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Conteúdos para inspirar e construir uma educação de qualidade com equidade

Aqui você encontra uma curadoria de conteúdos, produzidos no âmbito de nossos projetos e iniciativas, sobre práticas escolares e políticas educacionais. São recursos gratuitos que dialogam com os desafios da educação pública brasileira e fortalecem o compromisso com uma educação integral, antirracista, com equidade e qualidade.

Nesta seção, você poderá acessar diferentes formatos de conteúdo, de acordo com seus interesses e necessidades. As oficinas trazem propostas práticas para aplicar em sala de aula e/ou outros espaços educativos, com sugestões de atividades, materiais e orientações passo a passo. Os especiais são materiais mais aprofundados sobre temas relevantes da educação, que possibilitam a você, educadora(or), debruçar-se com mais tempo e profundidade sobre um determinado assunto. Já as revistas digitais reúnem as edições digitais da Revista Na Ponta do Lápis, produção especial do programa Escrevendo o Futuro.

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Arte e cultura

Cadernos Cenpec (nº 7, 2010): Educação e cultura

Nesta edição, você confere um panorama de contribuições teóricas e de experiências concretas sobre educação e cultura. Acesse!

Educação e cultura 2 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 m 2003, descortinava-se no País, como questão e apelo social, a implementação de programas voltados à juven- tude. Essas iniciativas traduziam a dramática constata- ção da existência de enormes contingentes de jovens em situação de vulnerabilidade, risco, e exclusão. Viver e valorizar o novo e a tradição 3 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Editorial ste caderno apresenta um panorama de contribuições teóricas e de experiências concretas sobre Educação e Cultura. Chega num momen- to precioso de debate sobre a necessidade de um repo- sicionamento ético, num mundo que se conecta intensa- mente, avivando o desafio de lidar cotidianamente com valores como liberdade, igualdade e diversidade. A cultura nos ajuda a compreender que a demanda por conhecimento impõe o desenvolvimento de competên- cias e atitudes mais abertas e criativas para lidar com o novo e com o tradicional e para criar respostas que aten- dam tanto aos desejos como às necessidades dos indi- víduos e das comunidades, com o mosaico de sentidos e valores que os diferenciam e os unem. Como marca identitária e condição de pertencimento a um território, grupo ou nação, a cultura cimenta valores e produz novos significados, abrindo caminho para a li- bertação das amarras ideológicas e a ampliação do res- peito à diferença, ao prazer estético e à renovação da éti- ca na transformação real do ser humano. Enfatizamos nas reflexões deste Caderno o papel incon- testável da cultura como base para o desenvolvimento de uma educação que possibilite aos alunos uma expe- riência de ampliação de horizontes e de possibilidade de liberdade. Em tempos de contatos instantâneos que descortinam o mundo e põem em xeque os velhos con- teúdos e tradições, é importante que se garanta um es- paço de discussão sobre as incertezas que permitam o vôo para diferentes temporalidades, mas reconheçam as expressões mais genuínas dos saberes e fazeres de cada cultura local, familiar ou étnica. Mostramos aqui que, em diferentes idades e níveis de ensino, a cultura vai tecendo, por gestos, símbolos, pa- lavras e rituais, os elementos que identificam o mundo e as pessoas no mundo; e que a criação de um ambiente cultural plural e estimulador de experiências sensoriais, estéticas e críticas pode constituir um capital pedagógi- co poderoso para o desenvolvimento de uma educação integral e integrada. Experiências inusitadas como um museu no sertão, um teatro rural, uma oficina nas unidades de internação de adolescentes e uma escola de arte na favela evidenciam a tenacidade e a sensibilidade dos brasileiros que orga- nizam a cultura a partir da realidade concreta em que vi- vem e atuam, com resultados surpreendentes. Felizmente, estamos hoje ampliando as possibilidades de experimentação cultural pelo Brasil afora, por meio de uma política pública que investe em Pontos de Cultu- ra tão diversos quanto são diversas as expressões e cria- ções culturais do povo brasileiro. Maria Alice Setubal Diretora Presidente do Cenpec E Sumário editorial Viver e valorizar o novo e a tradição 3 Maria Alice Setubal artigo Cultura e educação na sociedade contemporânea 7 Ana Regina Carrara, Maria do Carmo Brant de Carvalho, Thais Lima artigo A construção da humanidade 13 Maria Helena Pires Martins relato de experiência Arte como instrumento de transversalidade 20 Mônica Hoff artigo Ponto de Cultura: a construção de uma política pública 23 Célio Turino relato de experiência A escola na comunidade, a comunidade na escola 32 Vera Santana artigo Arte, cultura e o espírito de um tempo 37 Marta Porto relato de experiência: fundação casa Uma nova cultura na cultura institucional 44 Rodrigo Ramos Pinto Medeiros e Clara Cecchini do Prado artigo A cultura liberta 51 Renato Janine Ribeiro Sumário relato de experiência A cultura da infância e a formação do professor 62 Maria Lucia Medeiros entrevista Democracia, participação e cultura 67 Bernardo Toro entrevista Educação e cultura encontram-se na escola 76 Ana Elisa Siqueira e Alcides Lima reportagem O teatro que transforma 84 Fabiana Hiromi artigo Cultura e desenvolvimento humano 87 Danilo Miranda entrevista A valorização dos saberes da comunidade na escola 96 Sueli de Lima artigo Dez mandamentos do Ministério da Cultura nas gestões Gil e Juca 103 Alfredo Manevy relato de experiência Uma experiência inclusiva e formadora de crianças e jovens 116 Rosiane Limaverde reportagem Um novo chão de fábrica 118 Carlos Gustavo Yoda mosaico 122 Fernando Rios Cultura e educação na sociedade contemporânea * Ana Regina Carrara é historiadora e colaboradora do Cenpec desde 2004. Maria do Carmo Brant de Carvalho, assistente social, é doutora em Serviço Social e pós-doutorada em Ciência Política pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e Superintendente do Cenpec. Thais Lima, assistente social, é mestre em Serviço Social pela PUC-SP e especialista de carreiras da Training Innovations, Canadá. foto à esq.: circo escola de ecocidadania - juazeiro do norte/ce - acervo cultura viva ANA REGINA CARRARA MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO THAIS LIMA O ciclo histórico em que nos encontramos está inteiramente tomado pela mudança acelerada, ininterrupta e cumulativa. Nele, entrecruzam- se inovações tecnológicas e modificações socioculturais que repercu- tem sobre todos os planos e setores da vida social. Marco Aurélio Nogueira 1 s sociedades contemporâneas estão sendo configuradas e reconfiguradas pelo contínuo e acelerado avanço cien- tífico e tecnológico e, em particular, pelas chamadas tec- nologias da informação e comunicação (TICs). Esse avanço possibilitou uma nova dinâmica dos flu- xos de informação e potencializou as interações e trocas entre pessoas de todo o planeta, ao mesmo tempo em que valorizou o conhecimento, como principal ativo dos indivíduos e das sociedades, e as redes sociais, compre- endidas como o modo mais eficaz de atuação nas rela- ções pessoais e no mundo do trabalho. Nesse contexto, o tema da sustentabilidade permeia as agendas das diversas organizações societárias em face A * 7 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 artigo das contradições econômicas, sociais, ambientais, edu- cacionais e culturais que afetam a humanidade. Ao lado da imensa produção de conhecimento e de riquezas tangíveis e intangíveis, vive-se simultaneamen- te uma época marcada por enormes desigualdades so- ciais e econômicas, que são visíveis não apenas em uma análise comparativa internacional, mas no interior mes- mo de diversos países como o Brasil. Os conflitos políticos, econômicos, étnicos e religio- sos se fazem conflitos culturais que produzem e repro- duzem a diferença sectária, o isolamento social dos vá- rios grupos marginalizados, a guetificação e a violência. Perde-se o grande motor da cultura: a valorização da po- tência do ser humano. Valores, tradições e expressões culturais comparti- lhados são imprescindíveis para que os cidadãos se re- conheçam pertencentes a uma história, território e gru- po específico e constituam, portanto, as identidades das diferentes nações e etnias. Vale lembrar que não se pode confundir tradições culturais com fundamentalis- mo cultural, este acirrado pelas desigualdades que de- preciam as culturas de outros, consideradas estranhas e inferiores 2 . Mas há na cultura – enquanto expressões, saberes e valores – uma dimensão secular que se apresenta como resistência, mobilizando sem cessar a solidariedade na convivência, o respeito à diferença, a decantação do belo e do justo, e não deixa morrer a ética e a estética. O de- safio da busca pela sustentabilidade, em todas as suas dimensões – política, econômica, social e ambiental – tem forte respaldo nessa força da cultura. É a partir desse paradigma que se faz necessário refle- tir sobre o contexto atual. A sociedade que nos toca viver é caracterizada pela sua complexidade: uma sociedade multifacetada, tecida pela velocidade de mudanças cons- tantes e cumulativas, provocadas pelos avanços cientí- ficos e, sobretudo, pelo aumento das possibilidades de acesso às redes de informação e de consumo. Vivemos numa sociedade movida pelo conhecimen- to e pela informação; numa sociedade-rede, com novos atores e movimentos sociais que incidem cada vez mais o seu papel protagônico na definição da agenda políti- ca dos Estados. As organizações não governamentais, com todas as suas contradições e mesmo particularis- mos, alargam e revitalizam a esfera pública. A sociedade do conhecimento A valorização do conhecimento e da informação nas sociedades contemporâneas recarrega a importância da educação e da cultura como temas prioritários das po- líticas públicas. A educação, em sentido abrangente, pertence à socie- dade e se produz por um incansável movimento de reali- mentação sociopolítica, sendo impulsionada por um con- junto dinâmico e complexo de sujeitos e inter-relações: desde famílias, organizações do território, grupos sociais, organizações de ensino, movimentos sociais, coalizões, organizações multilaterais, institutos e fundações empre- sariais até órgãos governamentais de educação que a re- gulam e ofertam serviços educacionais. A educação, pela via de suas agências, desempenha um papel importante por ser a responsável oficial pela transmissão dos saberes socialmente valorizados e con- siderados fundamentais às futuras gerações. Mas a so- ciedade de hoje, chamada sociedade do conhecimento, introduz novos modos instigantes de produzir conheci- mento e, portanto, de aprender. Os fluxos e a distribui- (...) a missão da educação continua sendo formar pessoas capazes de construir sua vida e o mundo com ética e dignidade. É dessa compreensão que surgem os quatro pilares da educação promulgados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO: aprender a conhecer, aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conviver. 8 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 ção da informação democratizaram-se de tal modo que podemos falar de uma sociedade não apenas de infor- mações e conhecimentos compartilhados, mas de múl- tiplas possibilidades de aprendizados compartilhados. Somos todos aprendentes que circulam em uma roda de fluxos contínuos. Assim, o papel das instituições de ensino já não pode se restringir à transmissão de conteúdos: é tarefa infru- tífera e pouco eficaz. As novas gerações são interativas, dialógicas, e portam uma nova racionalidade cognitiva em que o aprender se faz descentrado e difuso. São gera- ções competentes para acessar e processar um conjunto simultâneo de informações, conhecimentos e experiên- cias. Na condição de aprendentes, circulam por espaços concretos e reais e também por meios e circuitos virtuais como twitter, orkut, facebook, celulares e outros. No entanto, a missão da educação continua sendo formar pessoas capazes de construir sua vida e o mundo com ética e dignidade. É dessa compreensão que surgem os quatro pilares da educação promulgados pela Orga- nização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO: aprender a conhecer, aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conviver 3 . Nessa perspectiva, a cultura não é apenas mediação privilegiada para a educação. Cultura e educação se vin- culam irrevogavelmente. Acessar, fruir, processar e criar são uma mesma espiral cultural e educacional. Essa tes- situra conjunta constrói conhecimentos e saberes, vivên- cias e valores, objetividade e subjetividade. Patrimônio, arte e conhecimento. A cultura expressa os diversos modos de existir dos diferentes grupos humanos, incluindo os modos de lidar com a natureza, as manifestações imateriais – os jeitos de cozinhar, dançar e tantos outros –, bem como os pro- dutos materiais que resultam das produções concretas e das construções empreendidas pelo seres humanos4 . Dessa noção, deriva a compreensão de patrimônio cultural como o conjunto de elementos da cultura que é valorizado como bem a ser preservado e ensinado: Patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos pre- servar: são os monumentos e obras de arte, e também as festas, músicas e danças, os folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e falares. Tudo enfim que produzimos com as mãos, as ideias e a fantasia5 . A seleção de personagens históricos, lugares, saberes e obras que são e serão futuramente considerados como patrimônio cultural – e, portanto, transmitidos às futuras gerações nos processos educativos – se dá por meio de disputas simbólicas que definem quais aspectos da cul- tura são ou não considerados como patrimônio. Essa seleção se mostra inevitável por causa das li- mitações de tempo (duração) e recursos do ciclo edu- cacional realizado pelas instituições de ensino e princi- palmente em razão das disputas por poder travadas en- tre os diferentes grupos sociais. Os interesses políticos e econômicos conflitantes dos diferentes grupos que compõem as sociedades resul- tam em disputas pela hegemonia sobre a memória co- letiva que compõe o patrimônio cultural. Na concepção do historiador francês Pierre Nora, a relação que temos com a memória é intermediada por determinados agen- tes e, portanto, não constitui uma relação espontânea, e sim mediada pelos chamados “lugares da memória” e pelos agentes ou agências que nos remetem a uma lei- tura/rememoração do passado. Assim, as memórias se constituem como uma cons- trução histórica que estabelece um discurso sobre o pas- sado, de acordo com um projeto político que deseja con- solidar aquele discurso. Entendemos, assim, que o patrimônio cultural trans- mitido às futuras gerações por meio de processos edu- cativos compõe-se por modos de ser e fazer e por valo- res de diferentes grupos sociais, cujos projetos políticos são distintos e divergentes entre si. No cenário contemporâneo, em que o grande desa- fio é a formação de pessoas que articulem diferentes sa- beres, de modo que assumam posturas comprometidas social, ética e politicamente, um dos grandes desafios da educação passa a ser propiciar situações de apren- dizagem que interconectem diferentes áreas do saber e coloquem as pessoas em contato com manifestações e produções culturais diversas. A experiência de aproximar-se e conhecer outras for- mas de se relacionar com o mundo, de se relacionar con- sigo mesmo e com o outro e outras maneiras de expres- sar e criar ideias e sensações de modos antes desconhe- cidos favorece a valorização da diversidade cultural exis- tente no mundo, no Brasil e em cada um de nós. Nesse sentido, a arte ganha relevância ao possibili- tar o encontro com o que existe de mais diverso, belo e transcendente no ser humano, pois: 9 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A arte tem o papel de tornar o mundo digno de ser vivido, reencantando-o, tornando-o um lugar não apenas de luta pela sobrevivência cotidiana, mas um lugar de imaginação criadora, de sonho e de utopia. É fundamental reafirmar a importância da arte como impulso transformador de pessoas portadoras de uma nova visão do ser humano, capaz de elevar sua autoestima, de humanizar e emancipar o espírito6. Valendo-se das habilidades humanas fundamentais – audição, visão, tato, paladar e olfato – e de diferentes linguagens – cênicas, plásticas, musicais e do corpo –, a arte se constitui como uma força comunicadora central para se promover a aproximação das pessoas a saberes e experiências consideradas importantes nos processos educativos de diferentes grupos. Nesse sentido, a arte propicia a construção de co- nhecimentos diversificados de forma interligada, reco- nectando saberes do campo da matemática, da geogra- fia, da história, da física, das relações sociais, da enge- nharia, da psicologia e de tantas outras áreas do saber que estão presentes nas diferentes obras e produções artístico-culturais realizadas por pessoas e grupos per- tencentes a culturas diversas. A potência dos encontros Ao refletirmos sobre a importância dos processos educacionais e da cultura no cenário contemporâneo, as- sim como a potência da arte para propiciar conhecimen- tos diversificados, nos deparamos com alguns desafios que ainda dificultam a articulação dos saberes do cam- po da educação e da cultura. O acesso da população brasileira a grande parte das produções culturais – sejam elas peças teatrais, shows ou apresentações musicais, espetáculos ou mostras de dança, exibições de filmes, acesso a livros e outros bens culturais – é assustadoramente baixo: • apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema algu- ma vez por ano; • 92% nunca frequentaram museus; • 93,4% jamais foram a uma exposição de arte; e • 78% dos brasileiros nunca assistiram a um espetácu- lo de dança7 . Os fatores que geram esse baixo acesso da maioria da população às produções culturais envolvem o preço dos ingressos e produtos – livros, CDs, DVDs e outros – 10 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 e o desconhecimento da população sobre as produções artísticas existentes nas diferentes regiões e comunida- des brasileiras. Isso significa que, além do custo de algumas produ- ções ser elevado, muitas pessoas nunca tiveram a opor- tunidade de assistir a uma peça teatral ou escutar ou- tros tipos de música além daqueles que seu grupo so- cial mais próximo – família e amigos, por exemplo – cos- tuma ouvir. Esse grande desafio é também uma grande oportuni- dade. Oportunidade para que nós, profissionais compro- metidos com a formação de pessoas e envolvidos direta ou indiretamente com a educação, possamos ampliar o acesso à arte, às manifestações tradicionais, às produ- ções experimentais e ao grande universo de produções artístico-culturais do Brasil e da humanidade. Colocar em contato “aprendentes” de diferentes re- giões, idades, gêneros e origens étnicas, estimulando a troca de saberes e experiências e propiciando o reco- nhecimento e a valorização das diferenças e semelhan- ças culturais existentes, é uma tarefa fundamental para se promover conhecimentos significativos e o fortaleci- mento de vínculos essenciais à cidadania. Acessar, interagir e construir novos conhecimentos a partir da diversidade cultural expressa nas produções ar- tístico-culturais e nas relações com pessoas pertencen- tes a outros contextos culturais é um caminho decisivo para a integração entre cultura e educação e, principal- mente, para a promoção do desenvolvimento sustentá- vel do ser humano no planeta. Notas 1 NOGUEIRA, 1995. 2 STOLCKE, V. 1993. 3 DELORS, J. et at, 1996. 4 SETUBAL, M. A. & ÉRNICA, M., 2006. 5 LONDRES, C., 2007. 6 Hamilton Faria e Pedro Garcia em “Arte e identidade cultural na construção de um mundo solidário”. São Paulo: Instituto Polis, 2002, p.58. 7 Diálogos Culturais, Ministério da Cultura, 2008. Disponível em http://www. slideshare.net/MinC/dialogos-culturais-ministerio-da-cultura-presentation- 666197. Acesso em 29 de setembro de 2009. Referências DELORS, Jacques et al. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNES- CO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. 4.ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 1996. INAGAKI, Alexandre. Os tempos, eles estão sempre mudando: a proliferação dos espaços onde se escreve, se lê, se fala e se ouve cultura. Continuum. São Paulo, n.6, p.5-8, dez. 2007. LONDRES, Cecília. In: Patrimônio cultural imaterial: para saber mais. Brasília: IPHAN/MinC, nov. 2007. NOGUEIRA, M. A. Para uma governabilidade democrática progressiva. Lua Nova. São Paulo, Cedec, n.36, 1995. NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: Lês lieux de mémoire, I La Republique. Paris, Gallimard, 1984, pp.XVIII-XLII. Traduzido por Yara Aun Khoury. PORTO, Marta. “Construindo o público a partir da cultura: gestão municipal e participação social”. Disponível em http://www.martaporto.com.br/dia- logos/wp-content/uploads/2008/09/tex_construindo.pdf. Acesso em 29 de setembro de 2009. SETUBAL, Maria Alice & ÉRNICA, Maurício. “Por que educação e cultura?” Cader- nos Cenpec/Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária: Educação e cidade. n.1. São Paulo: Cenpec, 2006. STOLCKE, Verena. “Cultura Européia: uma nova retórica de exclusão?” Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.22, ano 8, jun. 1993. Colocar em contato “aprendentes” de diferentes regiões, idades, gêneros e origens étnicas, estimulando a troca de saberes e experiências e propiciando o reconhecimento e a valorização das diferenças e semelhanças culturais existentes, é uma tarefa fundamental para se promover conhecimentos significativos e o fortalecimento de vínculos essenciais à cidadania. 11 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 P 13 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 artigo A construção da humanidade * Maria Helena Pires Martins é filósofa , escritora e professora de Políticas Culturais da Escola de Comunicações e Artes da Universi- dade de São Paulo. Atualmente é coordenadora da Escola do Museu de Arte de São Paulo - MASP. foto à esq.: projeto rabecas da amazônia: preservação e ensino - associação bra- gantina de música - bragança /pa - acervo cultura viva Maria Helena Pires Martins ara discutir o tema Educação e Cultura, a primeira questão que me ocorre é estabelecer as relações en- tre essas duas áreas. Elas são muito interconectadas e , por questões pedagógicas, separo uma e outra para fa- lar uma coisa de cada vez. A primeira questão nessa inter-relação é saber como conceituamos esses dois temas. Vou começar com uma conceituação muito geral: a de que educação é o proces- so de humanização do indivíduo. Dentro dessa grande generalidade, a cultura também é um processo de cul- tivo do ser – respeitando a raiz da palavra, que vem de cultivar – no seu processo de humanização. De repente nos perguntamos: estamos falando da mesma coisa? Ambas são processos de humanização do indivíduo; mas a cultura é também atribuição de sig- nificados. Significados que nós damos ao mundo, signi- ficados que damos a nós mesmos. A uma pedra, que poderíamos considerar uma coisa da natureza, quando nós nos sentamos sobre ela, já atri- buimos a ela uma outra significação: a de assento. Se usarmos a pedra para jogar dentro d’água e ver formarem- se aqueles círculos, podemos dizer que isso é uma brin- cadeira; se a utilizamos para jogar amarelinha, também estamos usando para brincadeira. Podemos usar a pedra para enfeitar o jardim, para decorar alguma coisa. Enfim, são significados diferentes que damos à pe- dra, que é uma coisa da natureza, e da qual nós não po- demos nos aproximar a não ser por meio da cultura. Es- ses significados são passados de geração em geração e muitas vezes são modificados ao longo do tempo. 14 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Quando eu digo que o ser humano passa por um pro- cesso de humanização, estamos partindo de uma visão muito específica, filosófica, de que o ser humano não vem pronto; ele se humaniza, se transforma em ser hu- mano. Construímos nossa humanidade por meio da cul- tura e da educação – porque educação é um modo de nos inserirmos na cultura e de nos tornarmos seres hu- manos. É importante ter sempre em mente esta premis- sa fundamental de que o ser humano não está pronto quando nasce; ele se torna um ser humano. Dentro desse contexto, para afunilar um pouco mais essa generalidade de que a cultura é um processo de hu- manização, vamos discutir um pouco a definição antro- pológica de cultura; a cultura como: • um conjunto de idéias: tudo o que pensamos, escre- vemos; • a criação e organização de instituições que se con- cretizam e se realizam no concreto, no mundo real; • ações humanas que se criam, se preservam ou se aprimoram por meio da comunicação e da coopera- ção entre os indivíduos em sociedade. Nessa reflexão, há três verbos principais: criar, pre- servar e modificar: • Em primeiro lugar, criamos cultura. Ela é uma criação humana; apenas os seres humanos criam cultura. É o que nos distingue dos outros animais. • Em muitas instâncias, nós preservamos a cultura. Essa cultura não é só um patrimônio; ela precisa ser trans- mitida para que as gerações futuras sejam incluídas dentro da mesma cultura. • Ao mesmo tempo, essa cultura pode sempre ser atua- lizada, modificada. Mesmo quando nos voltamos às coisas do patrimônio, ele não é o mesmo de quando foi criado. Ele é visto com os olhos do tempo presen- te e ressignificado em função disso. Permanência e mudança A cultura responde sempre a desejos e anseios humanos e às necessidades humanas e necessidades da comuni- dade. Por isso é diversificada. Em primeiro lugar, porque cada comunidade vai ter necessidades diferentes que vão desde a geografia, a economia, a história da comunidade. Ela vai apresentar desejos diferentes também. Se desconsiderarmos um pouco os meios de co- municação de massa que, às vezes, tendem a homo- geneizar esses desejos – a consumidora quer o cabe- lo que apareceu na novela tal, o consumidor deseja a roupa que apareceu em tal lugar –, as pessoas vão po- der fazer o uso desses desejos de formas muito dife- rentes, mesmo com a influência dos meios de comuni- cação de massa. Em segundo lugar, além da diversidade que isso proporciona, temos sempre uma dinâmica, porque as necessidades mudam e os anseios, também. Como a tradição, nesse sentido da cultura, vai enfrentar os de- safios de um mundo novo, de necessidades novas, ela vai resultar nessa diversidade para os vários grupos sociais. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que as Construímos nossa humanidade por meio da cultura e da educação – porque educação é um modo de nos inserirmos na cultura e de nos tornarmos seres humanos. É importante ter sempre em mente essa premissa fundamental de que o ser humano não está pronto quando nasce; ele se torna um ser humano. 15 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 mesmas necessidades podem requerer uma certa es- tabilidade. Então, vamos ter uma tendência de reprodução da cultura, de manter a cultura um pouco mais estável, de fazer a mesma coisa que nossos pais e os nossos ante- passados faziam. Outras vezes, a necessidade é exatamente de mudan- ça e nós temos que reestruturar a cultura em um novo mundo. As ideias novas, as técnicas novas, o estilo de vida novo nos obriga a adaptar a cultura e criar respos- tas diferentes para as nossas necessidades. Identidade e pertencimento De um lado, a cultura é um cimento que mantém unidos os grupos e as comunidades; é aquilo que existe de co- mum e que nos liga. Mas, ao mesmo tempo, ela nos di- ferencia dos outros. Ela estabelece que a cultura desse grupo é diferente da cultura daquele grupo, apesar de haver sempre o fundo comum de determinado caminho nesse sentido da humanização. Esse cimento, essa ideia de que existe algo comum, vai também construir o pertencimento. Como eu perten- ço a uma comunidade ou um determinado grupo? Eu não preciso explicar o mundo para o outro porque essa cultu- ra comum é uma base para nossa comunicação. A cultura é ainda uma oportunidade de prazer, de autorreconhecimento e de autoprodução. A questão do autorreconhecimento é exatamente a ideia de que eu me vejo retratado na minha cultura. Existem outras culturas que eu digo: “não tem nada a ver comigo, aquilo não é comigo, não sou eu”, mas, na minha cultura, eu tenho de me ver retratado – deve conter alguma coisa minha para que eu possa dizer que pertenço a esse grupo. A partir disso é que eu me identifico com a cultura. Mais do que ter uma identidade de pertencimento, eu me identifico com os aspectos dessa cultura que tem várias facetas (religião – não importa se é o catolicismo, o budismo, os evangélicos –, time de futebol etc.). Eu me vejo representado em cada um desses grupos, eu me irmano e digo: “aqui tem alguma coisa que sou eu também, que é minha”, e é nesse momento que a gen- te pode falar de identidade ou identidades – as múlti- plas identidades que temos de acordo com os papéis ou grupos variados nos quais vivemos. A autoprodução vai nos levar outra vez para a ques- tão da humanização. Se não nascemos prontos, enquan- to seres humanos; se temos de nos produzir, nos fazer, nos tornar humanos, essa produção vai se dar por meio da cultura e por meio do social. É com o social que eu vou me tornar humano. Sozinho, isolado, eu não me torno hu- mano. É nesse convívio, nessa troca, nesse embate, nes- se reconhecimento de valores, de ideias que são comuns, que vou me tornando humano e, ao mesmo, descobrindo quem sou. Ao mesmo tempo em que produzo cultura, eu me produzo também e descubro quem sou. Arte e possibilidades do real Para falar de prazer, vou abordar um pouco o sentido estrito de cultura. Em primeiro lugar, se tudo o que o ser humano faz é cultura, abrangemos uma área tão vasta que, dentro de um Ministério da Cultura, uma Secretaria da Cultura ou mesmo o trabalho dos produtores culturais, do pessoal que denominamos “o pessoal da cultura”, fica imensa e difícil de ser administrada. Em termos de secretarias, ministérios etc., vamos sempre constatar que a Secretaria de Cultura lida fun- damentalmente com patrimônio e com artes. O patri- mônio engloba uma série de itens: desde o patrimônio oficial – seja o patrimônio em pedra e cal, o patrimô- nio arquitetônico, seja todo o patrimônio material em termos de objetos, de adereços, partituras etc. – até o patrimônio imaterial que são festas, lendas, casos, modos de vida. O patrimônio, tanto o oficial, que é o patrimônio do IPHAN, reconhecido, tombado etc., quanto o não oficial, que é o patrimônio mais próximo das pessoas, aquilo que dentro da sua comunidade conta uma história, tem uma importância para história daquela comunidade: aquilo que mantém a comunidade unida dentro de de- terminados valores, sejam eles festas, hábitos, não im- porta. É exatamente o que vem dos próprios grupos e que os próprios grupos valorizam e precisa ser cuida- do e mantido. Do outro lado, a gente tem todo o território das ar- tes, e arte é aquilo que dá prazer. Não tem outra fun- ção mais importante para arte do que essa. Ela não é útil para coisa alguma, fora essa. Não é útil para tirar menino da rua, para me fazer ganhar status social. Du- rante muito tempo, a pessoa era culta porque tinha um acúmulo de conhecimentos e isso dava a ela um status social acima do resto dos mortais que não tinham um acúmulo de conhecimento específico. Se pensarmos um pouco, a arte é gratuita; ela é aque- le “a mais” que existe em nossa vida, mas é o “a mais” que nos torna mais humanos, é o “a mais” que enrique- ce nossa vida, que traz um novo conhecimento de mun- do. Isso significa que posso sair da minha vivência de uma mulher que nasceu em São Paulo, em 1943, que vi- veu de determinada forma até hoje, e experimentar a vida no Amazonas, na África, na Austrália; experimentar a vida no mundo inteiro por meio das obras de arte. Por meio da música, por exemplo. Aquilo que aquela música me traz é um determinado sentimento de mundo que está ligado a onde ela foi criada, como eu a ouvi. E isso eu posso ter sem precisar sair do meu lugar, ou sem ter que viver uma experiência que não é a minha. A arte proporciona essa possibilidade de você multi- plicar sua vida, suas experiências e seu conhecimen- to. Mais do que qualquer coisa, isso acontece porque a arte não fala da realidade (“isto é assim”). Mesmo um documentário, que “teoricamente” esta- ria nos mostrando uma realidade, experimenta um pro- cesso particular de criação: qual história vai ser conta- da, quais depoimentos serão tomados e como serão editados, como serão os enquadramentos, como esses depoimentos vão ser encadeados. Pode-se utilizar uma linguagem contundente, agressiva; é possível colocar, lado a lado, duas pessoas com depoimentos comple- tamente diferentes, uma contradizendo a outra. Nesse momento, está-se criando um determinado significado para esse documentário que vai muito além dos fatos que ele está mostrando. Ele tem uma mensagem, ele diz algo. Nenhum documentário é neutro. Qualquer obra de arte, mais do que retratar a rea- lidade, nos mostra possibilidades do real. A vida ou o mundo poderia ser assim. Inclusive a arte abstrata. É verdade que ela não está retratando; mas há uma ques- tão de formas, de cores que, de repente, olhamos e, nesse momento, descobrimos uma nova possibilidade do real, que podemos trabalhar a partir daí, porque ela aciona nossa imaginação. Uma das melhores coisas que podem acontecer na vida, além de viver a realidade, é poder imaginar outras possibilidades; isso é a mola da transformação do mun- do. Isso tudo acontece de certa forma porque a arte não se dirige à razão especificamente. Ela se dirige muito mais ao sentimento, esse sentimento de mundo. Não quer dizer com isso que eu deva, necessaria- mente e sempre, me emocionar com a arte, ter uma emo- ção de raiva, de riso etc. Não é por aí, porque a emo- ção rompe a estabilidade afetiva, uma vez que é uma agitação profunda. A arte é acolhida pelo sentimento, que é uma reação cognitiva, de reconhecimento de cer- tas estruturas do mundo. O que percebemos na obra de arte é o sentimento de um mundo particular. É tra- zer esse conhecimento que não passou por aqui, mas veio por aqui antes. Educação “bancária” e educação para a liberdade Feita minha “defesa” da arte, vamos passar para as questões da educação. Se temos, de um lado, uma cul- tura que precisa ser transmitida, passada adiante, por- que é um conhecimento acumulado e não vamos ficar reinventando a roda a cada vez; de outro lado, precisa- mos da criação para poder não só adequar essa cultura às necessidades de hoje, como também inventar novos mecanismos, novas ideias, novas instituições etc. Para que possamos lidar com o mundo atual, recor- remos a Paulo Freire, que nos aponta dois tipos funda- mentais de educação: uma educação bancária e uma educação para a liberdade. A primeira teria por objetivo a manutenção do status quo; é a educação que eu ainda recebi, na qual deco- rávamos textos e números. Não era para inventar nada. Nesse sentido é que Paulo Freire dizia que era uma edu- cação bancária porque era uma educação da acumula- ção. Era uma questão de você acumular dados, acumu- lar informações, mesmo que essas informações não ser- vissem para seu tráfego cotidiano, seja da vida com o outro, seja com a profissão. Do outro lado, temos a educação para a liberdade. É a educação que nos permite passar da heteronomia para a autonomia. Da heteronomia, quando somos guia- dos por regras que vêm de fora, para a autonomia, em que construímos nossas regras e respondemos por elas. Não dá para construir e não se responsabilizar. Essa passagem se dá em muitos níveis: há um ní- vel que denominamos de cognitivo, que é quando so- mos capazes de pegar um texto – pegar outra vez a tra- dição, partir do que já existe – e reinterpretá-lo ou apli- cá-lo a um outro contexto. Com isso, alargamos esse texto. Nesse momento, adquirimos a autonomia inte- lectual, atingimos o nível cognitivo. Mas temos também a autonomia moral, que é uma questão da ação: a princípio, também somos regidos por regras dos outros. Na adolescência, costumamos questionar essas regras até transformá-las em nos- sas regras. Algumas delas nós vamos rejeitar, outras vamos aceitar como regras que conduzem ao bem co- mum, que levam a uma vida social mais harmoniosa, melhor, mais produtiva para todo mundo. Outras sim- plesmente jogamos fora. Uma das melhores coisas que podem acontecer na vida, além de viver a realidade, é poder imaginar outras possibilidades; isso é a mola da transformação do mundo. Isso tudo acontece de certa forma porque a arte não se dirige à razão especificamente. Ela se dirige muito mais ao sentimento, esse sentimento de mundo. A mesma coisa vai acontecer com a cultura: eu pos- so simplesmente usufruir a cultura sem colocar nada de meu. Esse era o grande medo da Escola de Frankfurt: de que todo mundo ia virar um carneiro. O que estamos propondo é a educação para liberdade. Na verdade, é o uso dessa liberdade com responsabilidade. Vamos não só transmitir cultura, como também criar cultura, tanto no sentido da reinterpretação do que nos é dado e nós criamos novos significados, quanto a criação do nada, criação de novos produtos, mídia, conceitos etc. Educação formal e não formal Temos, ainda, dentro dessa relação entre educação e cultura, a questão dos tipos de educação. Temos a edu- cação não formal, que vai se dar na família, na vizinhan- ça, entre grupos de amigos, grupos organizados da so- ciedade civil, na comunidade, e que pode ser dar, tam- bém, em cursos, leituras etc. A educação através de li- vros é uma educação não formal. Você vai lendo, vai se educando a partir desses livros, mas o autor não está ali para dizer se é assim ou assado. Do outro lado, contamos com a educação formal, aquela que acontece na escola, regida por leis, decre- tos, regras; tem número “x” de dias letivos; a aula come- ça aqui, termina ali; tem que dar 75% da matéria; ago- ra tem livrinho... Como fica a cultura na educação não formal? Já fa- lamos que há a necessidade dessa transmissão da cul- tura que vem primeiro: a família, os amigos, a vizinhan- ça, a comunidade... Esse conceito antropológico de cul- tura acontece por meio da educação não formal. São os modos de viver, o saber fazer que aprendemos dentro de casa, seja cozinhar, não cozinhar, arrumar a cama ou não, fazer isso dessa ou daquela forma, comer, jun- tar tais alimentos, não juntar determinados alimentos. Tudo nós aprendemos no seio da família. Depois, mais tarde, com os amigos, com a vizinhan- ça, ampliamos esses horizontes. Até a fala é aprendida, em primeiro lugar, no seio da família. A gente vem com um vocabulário, com os modos de construir a frase que ouvimos na nossa família e depois, também, na vizinhan- ça, com os amigos, na comunidade. Até a educação da sensibilidade começa aí. Se a mãe cantava, embalava seu filho cantando, isso já vai ficando. Se é uma família que ouve muita música, se canta muito, se mexe com cores ou se gosta de fazer papel desse ou daquele – pessoas que, quando vão re- latar um caso, fazem as várias vozes, fazem os vários per- sonagens e tudo isso: em cada uma dessas situações, a criança está educando sua sensibilidade dentro de deter- minadas linguagens artísticas. Esse aprendizado na edu- cação não formal é, em um primeiro momento, por imita- ção, por tentativa e erro, por prêmio e castigo. Depois, existe um momento em que se pode fazer cur- sos que não sejam dentro da escola formal, estágios. Eu fiquei procurando uma palavra para o “aprendiz”. Quero me referir àquele aprendizado que se dá com um mes- tre, em um ateliê ou oficina. Nesses lugares, de uma forma mais estruturada, mais organizada do que o aprendizado na família, vamos ter uma educação da sensibilidade, a educação que eu cha- mo educação do corpo, que é educação da mão, se for na pintura, educação do ouvido, educação do corpo no espaço – qual o espaço que podemos ocupar no mun- do e como vamos nos deslocar dentro desse espaço . Ao lado dos ateliês, temos também cursos livres que se vol- tam mais para a educação da mente: são cursos mais te- óricos que apresentam técnicas, materiais, processos do fazer, além de história da arte, por meio de discussões e não “com a mão na massa”. A cultura está absolutamen- te presente na educação não formal desde o momento que nós nascemos. A escola, fundamentalmente, tem que promover, oferecer esses espaços para que a cultura e a educação deem a mão e possam seguir juntas na formação de um indivíduo mais rico, acima de tudo, mais feliz e com maiores possibilidades de atuar na transformação da sociedade. 18 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Na educação formal, é onde se dá o aprendizado da linguagem verbal que vai nos abrir as portas do mun- do humano e também da poesia, da literatura. Mesmo a cultura estando dentro da escola, vamos dizer que tal- vez essa educação, em termos da cultura, no sentido mais estrito, não está. O professor tem dificuldade de li- dar com essas outras linguagens que não aquelas com as quais ele tem alguma relação. Ele foi treinado, capa- citado a lidar com Matemática, Geografia, História, mas a parte das artes fica numa aula específica e com o me- nor número possível, porque assim os alunos não ficam longe das “coisas importantes”. E arte não entra em exa- mes, em vestibular, não é questionada de jeito nenhum. De maneira que, normalmente, na maior parte das esco- las, o que vemos é isto: a arte, essa parte extremamen- te importante da cultura, em sentido estrito, é extrema- mente desvalorizada. O que temos como necessidade na escola? Principalmente, a criação de um ambiente cultural plural em que os próprios alunos tragam suas culturas de origem e possam discutir, mostrar sem serem ridicu- larizados, sem precisarem se encaixar dentro de uma cul- tura única, que é a cultura escolar, e possam vivenciar outras culturas, sobre as quais eles tenham muita curio- sidade. Por exemplo, o hip hop: eu não sei o quanto ele está dentro da escola nesse sentido mais formalizado, mas no sentido informal ele certamente estará. Segundo: precisamos ter oportunidades de criação cultural, multiplicar essas oportunidades de procurar, de fazer, pesquisar e de fazer arte – fazer muita arte dentro da escola em “todos os sentidos”, algo que pode até ser encarado como: “você está fazendo arte, não está fazen- do nada sério”. A educação da sensibilidade só se dá se nós experimentarmos materiais, se brincarmos com es- ses materiais. O brincar faz parte dessa educação. Deixar essa ex- periência, saber o que dá certo e o que não dá certo. A oportunidade de discussão da cultura também é muito importante: ter debate sobre cultura, trazer pessoas de formações muito diferentes, de culturas muito diferen- tes, para conduzir esses debates, para mostrar essas cul- turas, trazê-las todas à luz. E, finalmente, a oportunidade de pesquisa, na qual entra a questão da história da arte, das linguagens, das técnicas. Deixar que essas pesquisas sejam feitas pe- los alunos para que eles possam ter uma verdadeira di- mensão do que é a linguagem que eles escolheram ou as outras linguagens da arte, até para dizer: “acho que eu quero fazer isso”, “acho que eu me encaixo aqui, eu me identifico com esse tipo de linguagem para me ex- pressar e não com outras”. A escola, fundamentalmente, tem de promover, ofere- cer esses espaços para que a cultura e a educação deem a mão e possam seguir juntas na formação de um indivíduo mais rico, acima de tudo, mais feliz e com maiores possi- bilidades de atuar na transformação da sociedade. O que temos como necessidade na escola? Principalmente, a criação de um ambiente cultural plural em que os próprios alunos tragam suas culturas de origem e possam discutir, mostrar sem serem ridicularizados, sem precisarem se encaixar dentro de uma cultura única, que é a cultura escolar, e possam vivenciar outras culturas, sobre as quais eles tenham muita curiosidade. 19 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 RELATO DE experiência: FUNDAÇÃO BIENAL DO MERCOSUL / AÇÃO EDUCATIVA DA BIENAL DO MERCOSUL. Arte como instrumento de transversalidade Mônica Hoff * Arte, educação e campos do conhecimento. Embora tenha o público escolar como principal objeto de seu trabalho, o Projeto Pedagógico da Fundação Bie- nal do Mercosul não trabalha, exatamente, com o ensino da arte nas escolas. Suas ações e seu pensamento se es- tabelecem no âmbito das micropolíticas situacionais, lo- cais e regionais, a partir de experiências informais. Cada ação é definida a partir do estudo caso a caso. Essas experiências, embora envolvam, na maioria das vezes, professores e estudantes, acontecem também com redes comunitárias, a partir de experiências colaborati- vas. O foco do projeto pedagógico não é o lugar no qual as relações são estabelecidas, e sim as próprias rela- ções. São os agentes (professores, estudantes, comuni- dade) que movimentam o projeto e que fazem dele um processo dinâmico e transversal. O projeto pretende subsidiar o professor em sua prá- tica e em suas investigações diárias; ao mesmo tempo, se propõe a dar conta de uma série de outras atividades que giram em torno da comunidade, objetivando uma formação mais ampla e experimental. Não acreditamos na arte como disciplina, e sim como ferramenta de atravessamento. Reconhecemos o impor- tante papel político da criação da disciplina de Educação Artística para o currículo escolar – esse movimento é in- questionável e devemos muito a ele. No entanto, defen- demos que o modelo tradicional não funciona mais. Dar à arte a insígnia de disciplina é transformá-la em uma coisa que ela não é. Limitar a experiência artística, esse processo crítico e poético, ao formato de uma dis- ciplina parece contrariar as premissas da própria arte. E, por isso, buscamos, cada vez mais, no projeto pedagó- gico, fazer uso de metodologias artísticas (com forte ca- pital pedagógico) para desenvolver ações experimentais e informais com o público escolar. No que se refere às referências conceituais, o projeto pe- dagógico não segue uma linha única e rígida. Com a reali- zação, a cada dois anos, de novos projetos curatoriais, em razão das mostras, o projeto pedagógico é obrigado a se re- pensar e a se propor novas miradas e metodologias. Assim, ao invés de uma linha única e fechada, tra- balhamos a partir de diferentes ideias e autores que so- mados nos possibilitam um “outro” olhar sobre a arte, a educação e seus cruzamentos com diferentes campos de conhecimentos. Alguns dos autores com os quais nos identificamos: Paulo Freire, Jacques Rancière, Nicolas Bourriaud, Luiz Camnitzer e Marcos Villela. Compartilhar saberes é uma das nossas principais propostas, considerando sobretudo que o contato de crianças e adolescentes com a produção artística é a pró- pria valorização de uma cultura estética mais democrá- tica. Nesse processo, a democratização acontece – seja o movimento em pequena ou grande escala. Possibilitar às crianças e adolescentes o contato com a produção ar- tística é transformar o contato em experiência concreta; é abrir espaço para novas narrativas, novos olhares, to- madas de decisão até então impensadas e, sobretudo, para o compartilhamento de saberes. A arte atravessa e é atravessada Luiz Camnitzer, curador pedagógico da 6a Bienal do Mercosul, costumava dizer que era preciso ver a arte como educação e a educação como arte. Ou seja, a arte contendo em si um forte capital pedagógico e a educa- ção entendida como potência poética e crítica. Ao entender a arte como ferramenta e não como dis- ciplina, podemos dizer que ela atravessa os processos de educação em todos os seus movimentos. A arte con- * Mônica Hoff é coordenadora executiva do Projeto Pedagógico da Fundação Bienal do Mercosul. 20 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 temporânea, por exemplo, que muitas pessoas dizem não entender, é matéria do hoje, do que vivemos no nosso dia-a-dia e, como tal, se alimenta dos mais diversos sa- beres e campos de conhecimento para existir – atraves- sa e é atravessada. Ao mesmo tempo, sabemos que a educação é cada vez mais transversal, espontaneamente transversal, em- bora muitos não percebam. Em 2009, não há mais lugar para instituições e metodologias rígidas de ensino: a es- cola do século XXI é um espaço de experiência comunitá- ria aberta aos diferentes saberes e metodologias. Não podemos esquecer que, na escola, se vai ao den- tista, se faz pré-natal, participa-se de oficinas de culinária, de capoeira, de marcenaria; se constroem sites e blogs, se dança e, também, se tem aula. Nessa escola, não exis- tem apenas alunos e professores: há famílias inteiras, clubes de mães, times de pais, festas de bairro, missa e consulta médica. A escola é palco de manifestações, sede de reuniões e espaço de exposição. É lugar de democratização de sa- beres. Não é por nada que as próprias experiências artís- ticas estão cada vez mais se estabelecendo em âmbito colaborativo, através de redes e vínculos sociais. Nosso trabalho principal é sensibilizar crianças, ado- lescentes e jovens para as artes, falando a língua deles, propondo discussões inteligentes, não subestimando a sua capacidade, reciclando-se constantemente e, sobre- tudo, gerando ações interessantes para eles. As crian- ças, adolescentes e jovens lidam e se relacionam com a arte de uma maneira muito mais poética e sem precon- ceitos que os adultos. Na nossa visão, professores e alunos formam um conjunto homogêneo, integrado. Tanto tanto professor quanto aluno são mediadores e detentores de saberes e ambos têm autonomia para se movimentar livremen- te em relação à arte. No entanto, num sentido mais específico de media- ção (no processo educativo, por exemplo), eu diria que o professor tem papel fundamental nessa relação, pois é dele a responsabilidade primeira de apresentar, desper- tar e seduzir. O encantamento provocado no aluno decor- re, muitas vezes, da sedução do professor. No entanto, não é dele a responsabilidade final. A me- diação é um caminho de mão dupla, que pressupõe uma relação. E uma relação, por sua vez, pressupõe a partici- pação de, pelo menos, dois elementos, dois pensamen- tos ou duas pessoas. Residências artísticas para professores e moradores As Formações de Professores são pensadas e construí- das a muitas mãos. A metodologia é gerada a partir de avaliações de todas as ações do projeto pedagógico, do feedback dos professores e de discussões em grupo: tra- balhamos com uma equipe multidisciplinar da qual fa- zem parte conteúdos das áreas de educação, artes visu- ais, literatura, filosofia, teatro e música. Por exemplo, em 2007, iniciamos o processo de for- mações de professores no interior do Rio Grande do Sul e, em 2008, voltamos a essas cidades para uma nova for- mação, com conteúdo mais amplo e transdisciplinar. Isso foi possível porque analisamos o registro deixado pelos professores na avaliação feita em 2007. Com o tempo, aprendemos a importância de medir nossas ações para então estabelecer novas ações. Até o momento, realizamos dois ciclos de formações de professores, em Porto Alegre e em pelo menos 40 ci- dades do interior do Estado. A primeira formação tinha como base os assuntos abordados pela 6a Bienal do Mer- cosul; a segunda, desvinculada das mostras, pois acon- teceu em 2008, projetou uma nova discussão, que pos- sibilitava aos professores entender certas transições ar- tísticas e relacioná-las com a contemporaneidade, a par- tir de recortes e períodos anteriores. Os encontros, normalmente, têm duração de oito ho- ras (ou um dia inteiro de trabalho) e são divididos em dois momentos: um mais teórico, na parte da manhã, em que o grupo participa junto; e outro, à tarde, em que o grupo se divide para participar de diferentes oficinas e discussões. Cada professor participa de, pelo menos, duas oficinas por encontro. Em 2009, junto à 7a Bienal, as Formações de Profes- sores ganharam uma nova cara e acabaram se transfor- mando num Programa de Residências de artistas cha- mado Artistas em Disponibilidade: a educação como espaço para o desenvolvimento de micropolíticas ex- perimentais. Esse programa reuniu 14 artistas, em 12 projetos, que realizaram residências artísticas em mais de 20 cidades do Rio Grande do Sul. Ele se propunha dar continuida- de às formações de professores através da tradução de projetos artísticos com forte capital educativo para um contexto socioeducativo. Nesse trabalho, em vez de en- volver somente professores, acabamos mobilizando co- munidades inteiras. 21 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Ponto de Cultura: a construção de uma política pública. * Célio Turino, historiador e administrador de cultura e lazer, é se- cretário de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura - MinC. foto à esq.: folia de reis estrela do oriente/sp; cortejo das culturas populares 23 ispa congresse são paulo 2009. autoria: verônica manevy artigo Célio Turino * AUm novo estado se forma quando ouvimos quem nunca foi ouvido aplicação do conceito de gestão compartilhada e transformadora para os Pontos de Cultura tem por objeti- vo estabelecer novos parâmetros de gestão e democracia entre estado e sociedade. No lugar de impor uma progra- mação cultural ou chamar os grupos culturais para dize- rem o que querem (ou necessitam), perguntamos como querem. Em vez de entender a cultura como produto, ela é reconhecida como processo. Esse novo conceito se expressou com o edital de 2004, para seleção dos primeiros Pontos de Cultura. In- vertemos a forma de abordagem dos grupos sociais e o Ministério da Cultura disse quanto podia oferecer e os proponentes definiam, a partir de seu ponto de vista e de suas necessidades, como aplicariam os recursos. Em algumas propostas, o investimento maior vai para a adequação física do espaço; em outras, para a compra de equipamentos ou, como na maioria, para a realização de oficinas e atividades continuadas. O único elemento comum a todos é o estúdio multimídia, que permite gra- var músicas, produzir audiovisuais e colocar toda a pro- dução na internet. 23 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Ponto de Cultura é um conceito de política pública. São organizações culturais da sociedade que ganham força e reconhecimento institucional ao estabelecer uma parce- ria, um pacto, com o Estado. Aqui há uma sutil distinção: o Ponto de Cultura não pode ser para as pessoas, e sim das pessoas; deve constituir-se em organizador da cultu- ra no nível local, atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura. Como um elo na articulação em rede, o Ponto de Cultu- ra não é um equipamento cultural do governo nem um ser- viço. Seu foco não está na carência, na ausência de bens e serviços, e sim na potência, na capacidade de agir de pes- soas e grupos. Ponto de Cultura é cultura em processo, de- senvolvida com autonomia e protagonismo social. A gestão do Ponto de Cultura começa a partir do con- vênio que é assinado entre governo e proponentes, de- finindo: • responsabilidades – acesso público ao Ponto, traba- lho colaborativo, compartilhamento de decisões com a comunidade; e • direitos – regularidade no repasse de recursos, acom- panhamento e capacitação, acesso público aos bens e serviços adquiridos com os recursos repassados etc. Como o Ponto continua desenvolvendo suas ativida- des, independente do convênio, a dinâmica de cada or- ganização precisa ser respeitada. Alguns são ONGs volta- das para a ação socioeducativa; outros, escolas de sam- ba, associações de moradores, quilombolas, aldeias in- dígenas, grupos de teatro, conservatórios, núcleos de ex- tensão universitária, museus, cooperativas de assenta- mentos rurais. Cada qual com sua especificidade e for- ma de organização. Durante o processo de implantação e acompanha- mento dos Pontos, há tensão. De um lado, os grupos cul- turais, apropriando-se de mecanismos de gestão e recur- sos públicos; de outro, o Estado, com normas de contro- le e regras rígidas. Essa tensão, de certo modo inevitá- vel, cumpre um papel educativo que, no longo prazo, re- sultará em mudanças em ambos os campos. O objetivo seria uma burocracia mais flexível e adequada à realida- de da vida, assim como um movimento social mais bem preparado no trato das questões de gestão, capacitan- do-se para melhor acompanhar as políticas públicas e o planejamento de suas atividades específicas. Essa interação, que no início é difícil, exige o exercí- cio de um novo modelo de estado, diferente dos até então conhecidos. Nos padrões conhecidos, temos de optar por formas pesadas de estado, de caráter intervencionista e burocrático, ou então o estado mínimo, com sensibilida- de às necessidades sociais igualmente mínima. Um esta- do de “novo tipo”, que compartilha poder com novos su- jeitos sociais, ouve quem nunca foi ouvido, conversa com quem nunca conversou, vê os invisíveis. Por isso torna-se ampliado, presente e ao mesmo tempo leve como o ar. Nós, o povo do santo, aqui em Pernambuco, estamos com a au- toestima levantada (...). Os terreiros de candomblé sempre foram tratados com intolerância. Quantas vezes fomos saqueados pela polícia, que tirava todos os nossos fundamentos! No porão do Palácio do Campo das Princesas [sede do governo do estado] estão jogados, feito pó, todos os nossos fundamentos, os ibás [arranjos em cerâmica e panelas para oferendas], os ilu [instrumentos mu- sicais, atabaques], os assentamentos [pedras]. Agora, quando a polícia aparece, nós dizemos: – O que vocês querem? Somos Ponto de Cultura, reconhecidos pelo governo federal. E a zabumba, que foi dos nossos avós e tem mais de 150 anos, pode tocar a sambada, a ciranda, o samba de coco, o maracatu e todos os encontros de brincantes. Beth de Oxum Ponto de Cultura Memória e Produção da Cultura Popular – Coco de Umbigada, Olinda, Pernambuco. Há risco de, nesse processo, os movimentos culturais irem se institucionalizando, perderem a espontaneidade ou até mesmo serem cooptados? Há. Diante dessa perspectiva, a cultura política e o ele- mento de emancipação surgem como fundamentais para evitar esse processo de cooptação. Aqui, entenda-se por cooptação a contaminação do “mundo da vida” (cultu- ra, sociedade, pessoa) pelo “mundo dos sistemas” (es- tado, mercado). Em contraponto, precisamos encorajar uma ação que desenvolva e fortaleça competências do sujeito (coletivo e individual), o reencontro com as pessoas e a sua capa- cidade de agir enquanto agentes históricos. Assim, ampliando a capacidade de interpretação do mundo, reequilibrando ordens legítimas que regulamen- tem a relação entre grupos sociais e garantam a solida- riedade entre eles, poderemos abrir um novo canal de entendimento (intercompreensão) e afirmação das iden- tidades sociais e pessoais. O Ponto de Cultura pode ser (ao menos este é o de- sejo) um ponto de apoio a romper com a fragmentação 24 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 da vida contemporânea, construindo uma identidade co- letiva na diversidade e na interligação entre diferentes modos culturais. Quem sabe, um elo na “ação comuni- cativa”, como na teoria de Jürgen Habermas. A equação em que se sustenta a teoria dos Pontos de Cultura foi construída a partir da observação empíri- ca, com casos vivenciados. E pode ser expressa em uma equação simples, em que a soma de autonomia + prota- gonismo resulta em um contexto favorável ao rompimen- to de relações de dependência, ou assistencialismo, tão comuns na aplicação de políticas governamentais. Esse novo contexto representa um avanço em políti- ca pública e pode ser potencializado se, ao resultado da- quela soma, agregarmos a articulação em rede. Quanto mais articulações e redes houver, mais sustentável será o processo de empoderamento social desencadeado pelo Ponto de Cultura. Com essa equação, percebe-se que um Ponto de Cultura só se realiza plenamente quando arti- culado em rede. Rede das Casas de Cultura em Campinas: a evolução do conceito. Marquesa. Empregada doméstica que carrega no primeiro nome um título de nobreza. E eram nobres seus propósi- tos. Moradora de um bairro distante do centro de Campi- nas, o Parque Itajaí, reuniu um grupo de mães e procurou a biblioteca pública com a seguinte proposta: – Queremos um curso para aprender a orientar o uso dos livros por nossos filhos. E queremos livros, também, pois a biblioteca mais próxima fica a 20 quilômetros de nossas casas. TC. Apelido de Antonio Carlos Santos da Silva, um Silva entre milhões. Nos anos 1970, fez supletivo e tea- tro popular no Colégio Evolução, de Campinas. Músico e militante do movimento negro, nunca esperou pelo que pudesse receber de fora. Compunha suas canções, fazia cartazes em serigrafia, andava (e continua andando) pe- las periferias e interior do Brasil, tecendo uma rede de mocambos e plantando mudas de baobá, a árvore afri- cana da memória, que no tempo da escravidão tornou- se a árvore do esquecimento. Na mesma época em que Marquesa procurou a biblio- teca (1990), TC buscou apoio para transformar em Casa de Cultura parte de um armazém desativado da Compa- nhia Brasileira de Alimentos - Cobal, igualmente em um bairro popular de Campinas, a Vila Castelo Branco. Assim começou a rede de 13 Casas de Cultura na ci- dade. Concebida como espaço comunitário, cada Casa recebia: uma pequena biblioteca com 500 livros, treina- mento para orientadoras de leitura, um agente comuni- tário (selecionado na própria comunidade e recebendo um salário mínimo por mês), oficinas artísticas, ingres- sos gratuitos para espetáculos nos dois teatros munici- pais e apoio para eventos locais ou integradores de rede, como o Recreio nas Férias. Uma ação simples, nada grandiosa, calcada na reali- dade e na generosidade de nosso povo. “A solução dos problemas do Brasil virá da escassez... e dos de baixo”, lembra Milton Santos nos seus últimos escritos, deixa- dos como herança ao povo do Brasil. A maioria das Casas de Cultura nasceu em projetos adaptados, por vezes uma associação de moradores ou casa-protótipo em vilas de Cohab, dessas que as pesso- as visitam para planejar como serão suas próprias casas depois de prontas, com sala, pequena cozinha, um ba- nheiro e dois quartos. Das treze Casas da Cultura, apenas duas dispunham de um pouco mais de estrutura física, com auditório, ci- nema ou teatro. Mas essa falta não impedia que fossem realizados espetáculos ou montagens mais complexos. A Casa funcionava como espaço de articulação que bus- cava outros recursos locais, como o pátio de uma esco- la, o auditório comunitário ou o salão paroquial. Um pro- grama de baixo custo unitário e grande escala de aten- dimento, que aproveitava estruturas já existentes e era compartilhado com a sociedade. Eu era secretário de Cultura de Campinas, na época (1990-92). A princípio, imaginava que o processo seria irreversível e nada impediria a continuidade das Casas de Cultura, nem mesmo a mudança na gestão munici- pal. Não foi o que ocorreu. Com a troca de governo, hou- ve atraso no pagamento dos agentes comunitários, as- sim como a desvalorização das iniciativas locais e a de- sarticulação do Conselho de Gestores. Esse processo de desqualificação levou à perda de protagonismo e, com o tempo, oficinas e cursos culturais foram cortados e a programação ficou irregular e desvin- culada das aspirações locais. Os agentes culturais da co- munidade foram se desestimulando e as Casas de Cultura deixaram de funcionar regularmente, perdendo público e referências. Perdendo vida. Dentre elas, a casa-protótipo que a população do Itajaí havia transformado em Casa de Cultura, o nobre espaço criado por Marquesa. 25 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A Casa de Cultura Tainã sobreviveu à escassez de verba e à burocracia Tainã, um pássaro. Esse era o nome da Casa de Cultura fundada por TC. Como estava habituado à escassez, se- guiu com seu povo, independente do apoio da prefeitu- ra de Campinas. A Casa continuou aberta com progra- mação vibrante, oficina de tambores, serigrafia, inicia- ção musical, biblioteca, horta, forno comunitário (a re- feição é uma forma de cultura); depois, telecentro e até orquestra de tambores em metal (steal drum), com me- lodia surpreendente. E os moradores do bairro continu- aram tecendo o seu Ponto. Em 2005, a Tainã torna-se Ponto de Cultura reconheci- do pelo governo federal e, em 2006, recebe a Ordem do Mérito Cultural pelas mãos do presidente Lula. Evidentemente, os gestores das outras Casas também estavam habituados a conviver com a escassez e são gen- te valente e lutadora. Mas o que fez a Tainã sobreviver com mais força e avançar mais que as outras? – Autonomia. Autonomia não como uma simples transferência de responsabilidades que antes caberiam ao Estado, ou um fazer por conta própria, desarticulado de seu meio e sem clareza de pressupostos conceituais e éticos. Autonomia enquanto capacidade de tomada de decisão e sua imple- mentação conforme os recursos disponíveis. Autonomia na experiência, na articulação em rede, obtida no processo de aquisição do conhecimento, na relação entre os pares e na interação com autoridades, sejam mestres da tradição oral ou autoridades institu- cionais. Autonomia como prática, como a própria realização, com atos concretos de participação e afirmação social; protagonista, articulada em rede, modificando relações de poder e gerando empoderamento social. Autonomia como exercício de liberdade. O Ponto de Cultura Tainã, em Campinas, como o pás- saro que lhe empresta o nome, ganhou asas e voou. Esse voo livre foi decorrente de sua autonomia. Mas como se chegou a ela? Num encanto, a natureza aflora e o povo vai embora, que é hora de trabalhar E assim o nosso dia se transforma na agonia de estar vivo sem poder viver E o que será do amanhã se a gente não lutar pelo nosso direito de ser? Ser livre e ser feliz. Samba-enredo composto por Antonio Carlos Santos da Silva, o TC, em parceria com Aloísio Jeremias, em 1983. De repente me dou conta do caráter espinosiano – do filósofo Espinosa – contido na música deles: a liber- dade como exercício da felicidade. Antes de o pássaro Tainã levantar voo, já estava ex- presso o protagonismo daqueles que formariam o Pon- to de Cultura. O protagonismo dos movimentos sociais aparece na medida em que seus integrantes e suas or- ganizações se entendem como sujeitos de suas práti- cas. Sujeitos que intervêm em sua realidade, desde os hábitos cotidianos até a elaboração de políticas de de- senvolvimento local. Entretanto, gestões públicas de cultura pensadas nos marcos do (neo)liberalismo (“cultura é um bom negó- cio!”) ou do Iluminismo (“levar luzes à inculta massa”) retiram da sociedade as suas ferramentas mais precio- sas: sua autonomia e seu protagonismo. Se a cultura for pensada somente como produto, sinônimo de moderni- zação ou negócio, o povo fica fora do palco. Quando as políticas de Estado não reconhecem a cria- ção cultural das paneleiras de Goiabeiras, em Vitória, no Espírito Santo, ou do mestre de brinquedos do Vale do Jequitinhonha, privando-os de seu protagonismo, tra- tando-os como folclore ou expressão de uma cultura in- gênua, “simples”, estabelece-se uma quebra na relação (que deveria ser) de igualdade entre sistema dominan- te e sociedade. Esse não reconhecimento tem por matriz um conceito de cultura vinculado ao de civilização. Cultura é aí pen- sada como o meio pelo qual se mede o desenvolvimen- to e o progresso, a modernização e refinamento da na- ção. Os “simples” precisam ser colocados em seu “de- vido lugar”: uma peça de museu, um artesanato ingê- 26 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 nuo, uma massa a ser formatada. E o sistema se man- tém dominante. Dessas concepções, nasce o “dirigismo” nas gestões públicas de cultura. À medida que são criados parâme- tros de reconhecimento e validade para algumas mani- festações culturais, e não para outras, o patrimônio cul- tural da sociedade vai ficando incompleto, apartando a imensa maioria do pleno exercício de sua cidadania (ou do palco). Negar o protagonismo a essa maioria e apresentar a elite (qualquer elite) como única detentora de saber e bom gosto é um eficiente modo de assegurar a sobrevi- vência de formas de dominação e legitimação de clas- se. Aos “outros”, aos “simples”, é oferecida uma cultura pasteurizada, feita para atender às necessidades e aos gostos medianos de um público que não deve questio- nar o que consome. A articulação em rede e o protagonismo se fazem es- senciais no processo de construção da autonomia dos Pontos de Cultura. Por isso, a Tainã sobreviveu e, em seu voo, se encontra com outros Pontos, ou pássaros, que, ao voar, afirmam: “Aqui se faz cultura”. A liberdade de experimentação e o protagonismo da juventude fazem a diferença O empoderamento social nos Pontos de Cultura pode provocar transformações que vão muito além da cultu- ra em um sentido estrito e desencadear mudanças nos campos social, econômico, de poder e valores. Ao con- centrar sua atuação nos grupos historicamente alijados das políticas públicas (seja por recorte socioeconômico ou no campo da pesquisa e experimentação estética), o Ponto de Cultura potencializa iniciativas já em anda- mento, criando condições para um desenvolvimento al- ternativo e autônomo, a fim de garantir sustentabilida- de na produção da cultura. É a cultura entendida como processo e não mais como produto. Em Nova Olinda, uma cidadezinha do Araripe/Cariri, a experiência de empoderamento social antecede o Ponto de Cultura. No final do século XX, um músico, filho da ci- dade, Alemberg, decide retornar de Fortaleza, a capital do Ceará. Sua referência: a Casa Grande, uma herança de fa- mília que estava em ruínas. Diz a lenda que era uma casa mal assombrada. Ele decide reconstruí-la e, para isso, re- cebe a ajuda de jovens, crianças, mulheres e velhos, pois os homens adultos, em sua maioria, haviam saído da ci- dade para buscar emprego em outros cantos. Casa reconstruída, começam a montar um museu de arqueologia. No Vale do Araripe, além de fósseis de di- nossauros, há muita pintura rupestre. A pré-história foi relacionada com a vida dos moradores, orientando-os na preservação. Surgiu a ideia de deixar que as crianças escrevessem as legendas para que a exposição ficasse inteligível para todos. Foi o que fizeram. Mas a Casa era muito grande e havia espaço para mais atividades. E as necessidades eram maiores ainda. Os jovens queriam produzir música; foi montada uma banda – uma não, algumas. Faltava cinema, montaram uma videoteca. Faltavam livros, criaram uma biblioteca. Faltava teatro, construíram um teatro. Tudo muito simples e utilizando apenas os recursos de que dispunham, mas feito com muito esmero (como na música de Vinícius) e com tudo que um bom centro cultural precisa: palco com cenotecnia, refletores, mesa de som e amplificadores de qualidade, bancos na pla- teia, área de contemplação, foyer. Dispondo de um museu próximo de casa, teatro, ban- das de música, filmes de qualidade e livros que dificil- mente chegariam ao Vale, os moradores quiseram mais: emissora de rádio, internet, TV local. Algum desavisado que sintonizar a rádio Casa Gran- de vai se surpreender com programas musicais de alta qualidade: música africana, aboios (cantoria dos vaquei- ros enquanto conduzem o gado: “ê boi, ê meu boizinho surubim...”), jazz, entrevistas, MPB... Tudo programado, narrado e preparado por crianças e jovens. Quem fica por alguns dias, além de visitar cachoei- ras e grutas com inscrições rupestres, ou andar a cavalo acompanhando uma boiada, à noite pode assistir a um filme do neorrealismo italiano, do Dogma dinamarquês ou do novo cinema nordestino. É só pegar um filme na videoteca da Casa Grande. Ou ver um programa de TV local, igualmente conce- bido, produzido, dirigido e gerido por jovens e crianças. No início, a emissora tinha sinal aberto, mas foi fechado por não ter concessão; alegaram que o sinal atrapalharia o voo de aviões que até hoje os meninos tentam avistar nos céus do vale dos dinossauros voadores. Com a interrupção do sinal aberto, a TV ganhou ou- tro nome: os Sem Canal, em alusão a um famoso cinejor- nal dos anos 60 e 70, o Canal Cem. A cada semana, um novo programa é exibido no teatro do Ponto de Cultura. Os adultos ficam na plateia e só aparecem como entre- 27 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 vistados, pois argumento, roteiro, direção e atuação são todos de crianças e jovens. Também há bandinha de crianças, que tocam instru- mentos inventados por eles, de brinquedo, em que a so- noridade é feita com a boca ou o batuque em latas, pa- nelas e baldes de plástico. Quando as crianças crescem um pouco, formam suas próprias bandas, com instrumen- tos musicais de verdade (os instrumentos de brinquedo e os batuques nos baldes também são instrumentos musi- cais? São. Quer dizer que também são de verdade). Os jovens que começaram com a primeira bandinha de brinquedo e que têm perto de 20 anos formaram uma banda de jazz experimental, misturando aboios com rock, MPB, xote e baião. Pelo Ponto de Cultura, já se apresen- taram na Alemanha, no Popkomm 2006. Alguns come- çam a sair da cidade, não mais para buscar emprego, mas para estudar em universidades, fazendo música, teatro, antropologia, arquitetura, cinema e engenharia. Suas cabeças ganham o mundo, mas seus pés estão fin- cados na Chapada do Araripe. Um empoderamento radical, desses que só aconte- cem de fato quando cultivados com autonomia, semea- dos pelo protagonismo – no caso de Nova Olinda, basi- camente de jovens. Alemberg e sua esposa Rosane, ar- queóloga, nem moram mais na cidade (se bem que sem- pre estão por perto), e o Ponto de Cultura da Casa Gran- de está cada vez mais forte. Quem dirige o Ponto são crianças e jovens: um coor- dena a editora, outro é gerente do parquinho, outros são coordenadores de programas de rádio ou TV e alguém cuida do orçamento participativo da Casa Grande. O or- çamento é exposto em mural público e apresenta desde as mais ínfimas entradas de recursos – a venda de um pedaço de bolo – até as despesas mais singelas. Cada atividade tem seu responsável e eles fazem rodízio entre si. São jovens que cresceram na Casa Grande, que apren- deram na prática e resolveram permanecer em seu vale, rompendo com o ciclo de êxodo que a todos levava. Com o tempo, visitantes foram atraídos pela notícia que ganhou o mundo: um turismo diferente, de quem quer mu- dar seu olhar integrando-se ao local. Três mil visitantes por mês, em busca de cachoeiras, pinturas rupestres, ouvindo aboios, presenciando a cultura do sertão e a radical expe- riência de protagonismo juvenil da Casa Grande. Com o Ponto, uma nova economia surge em Nova Olinda, solidária e sustentável. Como era preciso hos- pedar turistas, criaram-se hospedarias familiares e uma simples e confortável suíte no quintal da casa dos pais (principalmente das mães) dos meninos e meninas do Ponto de Cultura. O artesanato de couro revigorou-se com a arte de mestre Expedito e muitos outros mestres e aprendizes que agora encontram mercado para suas bolsas, sandálias e adereços. Um consistente programa de turismo cultural com base comunitária gera nova fonte de renda para as famí- lias. E os adultos começam a voltar. Mais renda na cidade, e bem repartida, porque dividida entre muita gente. A Casa Grande, antes mal assombrada, fez com que os moradores gostassem mais de si e de sua cidade, en- contrando o seu lugar no mundo, cujo centro estava ali mesmo. Cultura emancipatória: é preciso juntar autonomia, protagonismo e empoderamento. Autonomia, protagonismo e empoderamento são os pilares da gestão compartilhada e transformadora nos Pontos de Cultura e resultam da observação de situações reais. E, de certa forma, da frustração com a desmobili- zação das Casas de Cultura em Campinas. Qual a base real para o surgimento das Casas de Cul- tura em Campinas? Se eram tão necessárias e se espraiaram com tanta rapidez, por que se esvaíram com tanta facilidade? O que faltou? O que fez com que a Tainã tivesse outro destino? Por que a experiência da Casa Grande é tão marcante? As Casas de Cultura de Campinas partiram de neces- sidades concretas: um grupo de mães desejando ofere- cer atividades culturais regulares para seus filhos, artis- tas em busca de aprimoramento, comunidades procu- rando qualificar o seu ambiente. Mas será que houve enraizamento real? Talvez tenham sido implementadas mais como resul- tado do meu desejo e da minha vontade de grupos isola- dos, tendo havido confusão entre demanda legítima de pequenos grupos com aspiração de toda uma comuni- dade. Seguramente faltou tempo para maturação – me- nos de dois anos de gestão. A diferença entre a Tainã e o Parque Itajaí é que aque- la estava mais enraizada em sua comunidade e a Casa de Cultura do Itajaí foi instalada praticamente ao mes- mo tempo em que o bairro se constituía, quando os vizi- nhos mal se conheciam. 28 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 O que chama a atenção na experiência da Casa Gran- de é a contínua busca da experimentação, o comparti- lhamento das responsabilidades, a pureza com que in- ventam soluções, o não ter medo do ridículo e do erro, a confiança que eles têm em si mesmos; ao mesmo tem- po, se mantêm acesos a curiosidade e o interesse em aprender com o outro. Dar ênfase a apenas uma das noções seria equívoco. Autonomia e protagonismo se completam quando for- mam um triângulo com o empoderamento. Compõem o tripé da sustentabilidade cultural nas comunidades. Es- ses três fundamentos não podem ser entendidos de ma- neira estática ou como modelos. Por serem valores em construção, seus significados ganham relevância à me- dida que se cruzam e expressam as próprias experiên- cias da cultura e dos Pontos. São valores que geram um novo conceito: o Ponto de Cultura. Esse é um caminho diferente de inclusão e sustenta- bilidade social, e envolve não somente a capacitação a partir da vocação cultural de cada grupo, como também um processo de inclusão social, digital, cultural, econô- mica e política. A integração dessas noções e conceitos dá início a um novo processo de cultura política com caráter eman- cipador, em que o Ponto de Cultura quebra hierarquias sociais e políticas e cria bases para a construção de no- vas legitimidades. O entrelaçamento de sujeitos É recorrente a divisão dos movimentos sociais, organizada por estudiosos e especialistas, entre duas categorias dis- tintas. Os movimentos sociais definidos como “tradicio- nais” abarcam os sindicatos, associações de moradores, entidades estudantis. Esses movimentos se expressam a partir de sistemas de poder hierarquizado em graus e es- calões, atribuições de postos, fluxos de relacionamento preestabelecidos, definição rígida de papéis, com seg- mentação setorial e competitividade interna. Esse modelo de organização social sofreu sério des- gaste a partir do final do século XX e tem encontrado mui- ta dificuldade em responder às demandas dos próprios setores que pretendem representar. Em outro modelo, são identificados os chamados “no- vos” movimentos sociais, cuja referência pode ser en- contrada no movimento hip-hop, ambientalismo, coo- perativas e rádios comunitárias, nos movimentos de ca- ráter identitário, como de mulheres, negros, homosse- xuais. Há também as ONGs, com foco temático, territo- rial ou de público. Apesar de estarem enquadrados em uma mesma ca- tegoria, esses movimentos têm origens sociais as mais diversas: uns nasceram na periferia das grandes cidades, em busca de conexões de solidariedade entre os excluí- dos de bens e direitos; outros nascem na classe média, em busca de conexões de identidade setorial e defesa de causas. Ainda que devam ser vistos como movimen- tos heterogêneos e que congregam sujeitos sociais bas- tante diferentes, as organizações não governamentais tornaram-se referência importante para a construção de novas relações entre estado e sociedade. Já outra parcela das organizações sociais, que tem sido, inclusive, a que responde de forma mais original e imediata aos convites do Cultura Viva, são as comuni- dades tradicionais e a iniciativas não propriamente de caráter reivindicativo; podem ser definidas como gru- pos culturais, organizações de comunidades quilom- bolas, indígenas, de ritmos e danças tradicionais e po- pulares, como escolas de samba, maracatus, cirandas, quadrilhas, capoeiras, ou manifestações de caráter cul- tural/religioso. Esse “estar à margem” imunizou suas organizações dos dilemas dos movimentos sociais tradicionais (com caráter reivindicativo ou representativo) e dos “novos” movimentos sociais (com caráter temático e fragmenta- do), preservando sua fluidez e agilidade. No entanto, “guetizou-os”, apartando-os de um movimento por mu- danças em um sentido mais largo. Sem um diálogo com a nova realidade, muitos desses movimentos não se renovaram e permanecem escondi- dos e ensimesmados, ou foram absorvidos pelo merca- do ou pela cooptação política, como no caso das esco- las de samba das grandes cidades. Convenientemente classificados na categoria do “folclore” – na irônica de- finição de Roger Bastide, “cultura em conserva” –, res- tam e permanecem inacessíveis e incompreensíveis a outros setores sociais. Se, por um lado, apresentam estruturas aparentemen- te rígidas e hierarquizadas (o “dono do boi”, por exem- plo), por outro, há muito de leveza e descomplicação em suas formas organizativas, o que faz com que convivam constantemente com a dialética tradição-invenção que caracteriza suas ações. Esses movimentos foram criando formas subterrâneas 29 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 de direito político antes mesmo que a sociedade civil ou a cidadania moderna se estabelecessem entre nós. To- maram as ruas e canaviais nos momentos de festa, afir- maram identidades e exercitaram o compartilhar. Quem acompanha uma Folia de Reis percebe que ela é puro resultado do compartilhamento. Alguém cede ade- reços, tecidos; outros costuram roupas; em cada casa vi- sitada, há um prato de comida, por vezes colocado na janela para ser sorrateiramente roubado, como parte da brincadeira. Assim, os participantes da Folia de Reis so- brevivem por dias; e a cultura popular sobrevive por sé- culos. Comumente excluídos das políticas públicas, com o Ponto de Cultura as expressões tradicionais se afirmam como sujeitos relevantes na forma de fazer política. O programa Cultura Viva aproxima esses diversos mo- vimentos, aqui classificados em três: a. associativos/reinvindicativos; b. novos movimentos sociais; c. manifestações culturais e tradicionais. Essa aproximação não ocorre para que um campo hegemonize outro, ou para uniformizar formas de ex- pressão e organização, e sim para que se conheçam e se exercitem na tolerância, autoeducando-se no conví- vio em rede. Quando os todo-poderosos governam com a irrazão e sem limites, só os que possuem nenhum poder são capazes de imaginar uma humanidade que um dia terá poder e, com isto, mudará o próprio significado desta palavra. Terry Eagleton A Ideologia da Estética O entrelaçamento de sujeitos sociais e o seu desen- volvimento com autonomia, protagonismo e empodera- mento se completam. A agenda de estímulos do Progra- ma Cultura Viva pode gerar uma nova forma de fazer polí- tica pública e de cultura política. Essa concepção cria pos- sibilidades de construções coletivas, feitas no processo de seu desenvolvimento. Diferente dos velhos caminhos que, mesmo quando se apresentam como novos, estão previamente definidos nas cartilhas de gestão, planeja- mento e gerência para a administração pública, o Cultu- ra Viva não apresenta receitas a serem seguidas; ao es- timular e potencializar as energias sociais e culturais já existentes, valoriza a experiência social. A gestão compartilhada e transformadora se realiza nesse processo de aproximação e compartilhamento de responsabilidades entre estado e sociedade, no qual ges- tores públicos e movimentos sociais estabelecem canais de diálogo e aprendizado mútuos. Esse é um caminho que repensa o Estado e amplia suas definições e funções ao escancarar as portas para partilhar poder e conhecimento com tradicionais e no- vos sujeitos sociais, dividindo espaços e buscando no- vas possibilidades. Afinando o conceito: entrelaçar as diversas dimensões da vida. A expressão Ponto de Cultura foi utilizada pela primeira vez no final da década de 1980, quando o secretário de cultura em Campinas era o antropólogo Antonio Augus- to Arantes. Alguns anos depois fui nomeado secretário de cultu- ra. Com Marquesa, Ana Mattos, TC, Tom Crivelaro, Mar- cos Brito e tantos outros, a rede deslanchou. Por equívo- co das tentações ‘marqueteiras’ da política, o programa levou o nome de Casa de Cultura, pois a expressão Pon- to de Cultura poderia ser associada ao governo anterior. Quis o destino que eu pudesse aprender com os erros, aprofundar o conceito e aplicá-lo em escala nacional; re- tomei, inclusive, a expressão Ponto de Cultura. A diferença de fundo entre Ponto de Cultura e Casa de Cultura consiste em que esta, mesmo quando com- partilhada com a comunidade, é resultado de uma ação governamental e mais voltada a edifícios vocacionados. É o governo que constrói ou adapta o espaço e que de- cide a localização e a sua programação. No Dicionário Crítico de Política Cultural, o professor Teixeira Coelho aponta que esses espaços implicam (...) uma desterritorializacão da cultura ou dos modos culturais: prá- ticas inicial ou originariamente exercidas num determinado lugar passam a sê-lo num outro lugar com o qual não estão histórica ou socialmente ligadas. Esse artificialismo de origem é tão evidente e acentuado que não raro surge como motivo principal da decadência ou não utilização plena de seus recursos e possibilidades. Com o Ponto de Cultura, o processo é inverso, caben- do ao governo reconhecer e potencializar as iniciativas culturais da comunidade no território em que elas acon- tecem. Fazer cultural e território estão intrinsecamente vinculados. 30 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Outra dúvida recorrente é sobre o fato de o Ponto de Cultura substituir a necessidade de outros equipamentos culturais. Pelo contrário, o Ponto de Cultura cria condi- ções favoráveis para a consolidação de uma base social da cultura, assegurando meios mais perenes para a con- quista de melhores bibliotecas, teatros bem equipados, centros culturais dinâmicos, museus vivos e políticas de fomento à formação, produção e difusão cultural. Entender a cultura como processo pressupõe entrela- çar as diversas dimensões da vida. Com a posse do mi- nistro Gilberto Gil, o ministério adotou um conceito am- pliado de cultura, antropológico: cultura como produção simbólica, cidadania e economia. A dimensão da arte não pode ficar restrita ao campo do simbólico. Para além da produção de símbolos, a arte envolve habilidades, todas as habilidades humanas (do latim artem, habilidade) e a apreensão dos significados por meio dos sentidos, de uma percepção sensorial. O Ponto de Cultura envolve uma quebra nas narra- tivas tradicionais, monopolizadas por poucos, e a par- tilha do sensível é estratégica para este deslocamento narrativo, em que os “invisíveis” passam a ser vistos e a ter voz. Não se trata aqui da defesa do “belo universal” ou da “arte gratuita”, metafísica, e sim da própria reali- zação da estética. A arte reflete aspirações e contradições do seu con- texto histórico e é, ao mesmo tempo, produto e vetor das transformações sociais. Para além da preocupação exclusiva com a beleza, busca-se tudo aquilo que per- mita a afirmação cultural da subjetividade das pesso- as, grupos e classes sociais. E essa busca deve ser fei- ta com encantamento, beleza e qualidade, pois sem es- ses atributos não se rompem barreiras e os estereóti- pos permanecem. O mesmo ocorre com a dimensão cidadã. A conquista plena de direitos e a inclusão no diálogo cultural são es- senciais; mas circunscrever Ponto de Cultura à dimensão de cidadania ou da cultura popular é uma redução. Mais grave ainda são os discursos fáceis da “inclusão cultural” ou da “inclusão social por meio da cultura”. Pon- to de Cultura atua com cultura popular, inclusão social, e tem um claro papel na cidadania, mas ele é, sobretu- do, um programa de cultura. Cultura como interpretação do mundo, expressão de valores e sentimentos. Cultu- ra como intercompreensão e aproximação. Nesse senti- do, seria mais apropriado classificar a ação do Ponto de Cultura no campo da ética. Com a economia também é preciso aprofundar o con- ceito. Que economia queremos? De um lado, é fato que exista a economia da cultura (pesquisa do IBGE aponta que 8% do PIB advém da cultura). Mas em que contex- to se insere a chamada “economia criativa”? O capitalis- mo se apropria de todas as riquezas e bens produzidos sobre a face da Terra (e também sob; e, no futuro, se pu- der, para além do planeta) e os transforma em mercado- ria, sejam bens sólidos ou imateriais. Inserir a cultura nesse processo de mercantilização e alienação da vida não é o objetivo do Ponto de Cultura. Em Pontos isolados, em que falta discussão, isso até aconte- ce; ou, se não acontece, se deseja (até porque os que que- rem se vender nem sempre encontram compradores). O entendimento que está sendo construído no proces- so é que, se a economia determina a cultura, a cultura tam- bém determina a economia. Ao adotar uma nova atitude cul- tural, podemos modificar as relações econômicas, abrindo caminho para uma economia solidária, com consumo cons- ciente, comércio justo e trabalho colaborativo. Vejo a fagulha dessas novas relações econômicas, sobretudo na Teia, com o encontro dos Pontos de Cul- tura com os Núcleos de Economia Solidária do Ministé- rio do Trabalho. Ponto de Cultura é integração na diversidade. “A par- te está no todo, o todo está na parte”; a física quântica comprova esse conhecimento milenar, que foi abando- nado pela fragmentação da vida. Passados cinco anos de implantação dos Pontos de Cultura, observo que a rea- proximação entre estética, ética e economia é essencial para a organização da vida humana e pode cimentar uma nova significação para a cultura e para a própria socie- dade. Não há como separar um do outro, os três “Es” da cultura: ética, estética e economia. Nota 1 A íntegra deste texto está publicada no livro: Turino, Célio. Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009. 31 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Atualmente, o Conexão Felipe Camarão é Ponto de Cultu- ra do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura e reali- za várias ações, como oficinas de arte e cultura, atividades integradas às cinco escolas parceiras, montagem e apresen- tação de espetáculos culturais, discussões sobre temas de interesse público, além de agregar programas como o Ação Griô Nacional 1 - Programa Cultura Viva do Ministério da Cul- tura e o GESAC - Ministério das Comunicações. Implementou, em 2009, o Núcleo de Moda, Estilos e Costumes, Figurinos e Adereços – um polo artesanal de artigos, moda e adereços, com base na iconografia e cultura locais. Integra diretamente 400 crianças e jo- vens da comunidade e seus familiares, além de esten- der suas ações para as escolas parceiras e espaços so- ciais, como a Casa de Cultura Mestre Manoel Marinhei- ro e o Largo da Cruz da Cabocla – terreiro do mestre Ma- noel Marinheiro. Atuando junto a cinco escolas públicas do bairro, par- ceiras, com as quais desenvolve atividades regulares que valorizam a cultura local, o Projeto Conexão Felipe Cama- rão discute educação e cultura por meio de círculos de debates entre educadores, mestres de tradição oral e as crianças e jovens. Acreditando na importância de aliar a educação à cultura, na perspectiva da preservação da cultura local, realiza uma busca coletiva de alternativas pedagógicas e ações educativas que permitam o diálo- go entre o conteúdo escolar e o cotidiano local. Considerar no processo educativo a riqueza cultural que faz parte do cotidiano das crianças e jovens é um passo fundamental para que eles compreendam a re- alidade em que vivem e dialoguem com ela, entenden- do-se como sujeitos sociais ativos na construção coleti- va dos espaços e como sujeitos históricos. Essas são as bases fundamentais dos pressupostos político-filosófi- RELATO DE EXPERIÊNCIA: PONTO DE CULTURA CONEXÃO FELIPE CAMARÃO. A escola na comunidade, a comunidade na escola. Vera Santana Resgatar a memória cultural e desenvolver crianças e jovens * Vera Santana é historiadora, produtora cultural e coordenadora do Ponto de Cultura Conexão Filipe Camarão O Projeto Conexão Felipe Camarãoacontecena comunidade de Felipe Camarão, em Natal (RN), um dos berços da cultura potiguar, marcada pela contradição entre rique- za cultural e pobreza econômica. É realizado pela Asso- ciação Companhia Terramar – organização não governa- mental que objetiva contribuir com o desenvolvimento integral de crianças e jovens da comunidade, por meio da preservação, valorização e difusão da cultura local. Suas ações estão fundamentadas nos patrimônios ima- teriais locais: o Auto do Boi de Reis do mestre Manoel Marinheiro (in memoriam), o teatro de bonecos João Re- dondo do mestre Chico de Daniel (in memoriam), a mu- sicalidade do mestre Cícero da Rabeca e a capoeira do mestre Marcos. O trabalho surgiu com o projeto Canta Meu Boi, pa- trocinado pela Petrobras – Música, realizado entre 2003 e 2004, que promoveu o registro fonográfico do Auto do Boi de Reis do mestre Manoel Marinheiro e garantiu, quando ele ainda vivia, o reconhecimento, pelo Minis- tério da Cultura, de seu empenho e atuação como Patri- mônio Cultural Brasileiro. A experiência resultou no desdobramento do traba- lho, com a aprovação na Lei Federal de Incentivo à Cul- tura do Conexão Felipe Camarão, a partir de 2005. É um projeto socioeducacional e cultural, dedicando-se à pre- servação da memória cultural do bairro e ao desenvolvi- mento integral de crianças e jovens da comunidade de Felipe Camarão. 32 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 cos do educador Paulo Freire, que, junto com outros bra- sileiros, como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Milton San- tos e Amir Haddad, fundamentam a linha de ação políti- ca do projeto e dão sustentação aos ideais de uma edu- cação transformadora e libertadora. É nesse sentido que o Projeto Conexão alia educação à cultura, sem a qual não é possível estabelecer o diálo- go entre o que se aprende e o que se vive, entre o con- teúdo escolar e o cotidiano. A metodologia empregada faz uso desses aspectos, através dos círculos de cultu- ra, dos momentos de debate e uso da palavra, e consi- dera todos os envolvidos como sujeitos da ação, edu- cadores e mestres, alunos e aprendizes. O processo de construção coletiva das ações e a reflexão contínua so- bre o que se faz são vivenciados semanalmente, anali- sando-se avanços e dificuldades. Repensar sistematicamente o espaço da escola faz parte da metodologia de trabalho, provocando a reflexão sobre os processos de aprendizagem. Ao mesmo tempo, traz para dentro do espaço escolar, para a sala de aula, a cultura que está lá fora, e leva para fora o conteúdo que está dentro da escola. Ação Griô Nacional Em 2006, a Ação Griô foi lançada no Encontro Sul-Americano de Culturas Populares e na TEIA, além de outros encontros nacionais e regionais, com a distribuição do livro Pedagogia Griô: a reinvenção da roda da vida; a apresentação e distribuição do filme Sou Negro; e a divulgação da página www.graosdeluzegrio.org.br, com a experiência do Grãos de Luz e Griô de Lençóis, na Bahia, como refe- rência para todos os Pontos de Cultura do Brasil. O Grãos de Luz e Griô e o MinC elaboraram e publicaram o Edital Ação Griô no 1, em 15 de setembro de 2006, aberto aos Pontos de Cultura do Programa Cultura Viva da Secretaria de Programas e Projetos Culturais do MinC (atual Secretaria da Cidadania Cultural). Sua missão é criar e instituir uma política nacional de transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral em diálogo com a educação formal, para o fortalecimento da identidade e ancestralidade do povo brasileiro, por meio do reconhecimento do lugar político, econômico e sociocultural dos griôs, das griôs, mestres e mestras de tradição oral do Brasil. conexão felipe camarão na teia 2007 33 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 As experiências das Rodas de Prosa – círculos de de- bates que ocorrem periodicamente e abordam problemas e temas de interesse coletivo – são um exemplo de como o processo de aprendizagem é mais eficiente quando se alargam suas possibilidades, tendo como ponto de parti- da os problemas, as situações e os sujeitos reais. Nessas ocasiões, reúnem-se educadores, comunida- de, familiares, escolas, instituições, mestres, crianças e jovens em torno de temas que fazem parte do cotidia- no de cada um. Os temas se transformam em objeto de conhecimento e de reflexão, ampliando-se o espaço de aprendizagem e tornando todos capazes de aprender e de ensinar, pelo uso da palavra, do diálogo de visões de mundo, posições, saberes e gerações. A linha de ação política que orienta o Conexão Felipe Ca- marão parte do pressuposto de que a cultura é um elemen- to imprescindível para a compreensão do indivíduo e da re- alidade que o cerca. Sem memória cultural não há identi- dade, nem pertencimento, nem história. Suas ações edu- cativas, portanto, fundamentam-se na valorização, preser- vação e difusão da cultura de tradição oral da comunidade, utilizando-se de estratégias que vão desde a socialização dos saberes da tradição até o diálogo com as tecnologias e culturas digitais – novos saberes, que auxiliam no processo de resgate e preservação da memória cultural. A discussão coletiva da cultura como elemento de compreensão e de transformação social é ponto de par- tida para abordar temas como memória, identidade e ci- dadania. Nessas oportunidades, trata-se a cultura como muito mais do que representação coletiva do imaginário social, mais do que forma de viver e história social de um povo; ela se configura como constituição do que somos, de como nos formamos e como poderemos ser. O Conexão trata desses aspectos a partir da história da formação do povo brasileiro e suas matrizes culturais, atra- vés dos quais é possível compreender e refletir sobre a rea- lidade como processo social. Ou seja, é possível pensá-la como uma construção social, feita por sujeitos ativos e his- tóricos, o que constitui a própria noção de cidadania. Mais autonomia e personalidade O Conexão Felipe Camarão tem, ao longo dos anos, contribuído para o desenvolvimento integral de crianças e jovens da comunidade, a partir de ações de preserva- ção, valorização e difusão da cultura local, entendendo a sua prática como ação educativa e social. A atuação que vem realizando evidencia que há um crescimento coletivo e individual das crianças e jovens, gradativamente, perceptível de várias formas: • aprimoramento de suas habilidades; • aumento das capacidades de dialogar e de interagir; • desenvolvimento da aprendizagem (musical, artística, de liderança etc.); • melhor desempenho nas atividades escolares ou não; • aprimoramento de competências particulares e cole- tivas; • ampliação da capacidade de discutir, de se expres- sar, de questionar. Para além da qualidade musical – muitos se revelam com habilidades na música, composição, desenho, inter- pretação, entre outros aspectos –, algumas consequên- cias se destacam: ao se apoderarem não só de sua pró- pria cultura, mas de todas as possibilidades que essa cul- tura lhes dá, crianças e jovens ficam mais aptos a dizerem o que pensam, a terem autonomia e personalidade. Crescimento e desenvolvimento das crianças exigem uma equipe muito articulada e preparada. Por isso o Co- nexão Felipe Camarão desenvolve formação continuada com toda a equipe. Semanalmente, são realizados os cír- culos de cultura, momento de planejamento coletivo e avaliação constante do trabalho, reunindo educadores, mestres de tradição oral, coordenadores e crianças e jo- vens integrantes das ações. Em alguns momentos, os círculos contam com a pre- sença de educadores das escolas parceiras para o pla- nejamento e avaliação das atividades integradas proje- to-escola. Participam também outros sujeitos como re- presentantes da comunidade, dos pais, da unidade bá- sica de saúde, para a decisão de ações que envolvem a comunidade em geral ou para tratar de algum problema que exija o diálogo entre esses sujeitos. Os círculos de cultura são uma metodologia em que todos os participantes dialogam a partir de suas expe- riências, possibilitando que o debate se realize em to- das as instâncias do projeto. A formação também se dá periodicamente em mo- mentos específicos, chamados de Roda de Prosa: é uma ação realizada diretamente com as escolas parceiras, em que são discutidos temas de interesse coletivo. A Roda de Prosa conta com a presença dos sujeitos sociais já ci- tados e a participação de órgãos públicos e instituições que têm responsabilidade ou domínio sobre o tema em discussão. 34 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Geralmente acontecem três Rodas de Prosa por ano, viabilizando uma formação continuada a cada quatro me- ses e abordando temas dos mais variados. A metodologia inclui a discussão prévia do tema nas escolas e a prepa- ração de crianças e jovens, educadores e mestres para a Roda, promovendo o processo de aprendizagem e socia- lização do tema. Já foram abordados assuntos como dire- tos humanos, meio ambiente e sustentabilidade, cultura brasileira e musicalidade, educação e cidadania. Diálogo de saberes O Conexão Felipe Camarão atua na perspectiva de que as ações são desenvolvidas a partir do diálogo de sabe- res entre educadores, mestres de tradição oral, crian- ças, jovens e aprendizes. Há vários saberes que convi- vem nas ações, vivenciados no cotidiano do projeto e in- seridos nas relações que se estabelecem e que se sus- tentam pela rede social. O papel dos educadores e dos mestres de conduzir os diálogos de saberes se concretiza na compreensão do processo de aprendizagem da tradição, que passa dos mais velhos para os mais novos, considerando que os diá- logos com as gerações mais novas trazem desafios aos novos saberes e suas ferramentas. Esses aspectos são observados no cotidiano do projeto, por envolver educa- dores com formação específica, mestres de tradição oral, que acumulam seus saberes pela história de vida. O pro- grama Ação Griô Nacional intensifica a importância des- ses mestres no contexto educacional e no diálogo com a escola, e também agrega crianças e jovens, influencia- dos por todas as formas de cultura e tecnologias digitais e saberes novos, diferentes da tradição. O diálogo que o Conexão Felipe Camarão estabelece com as escolas reflete também sobre o papel do profes- sor que está na escola com um conteúdo a ser trabalha- do e que precisa abrir-se para o universo que está fora da sala de aula e do contexto da escola, dialogando com saberes que são de outras instâncias, mas que servem de ponte para o conhecimento formal e a aprendizagem das crianças e jovens. A mediação do processo de aprendizagem deve con- siderar esses aspectos e viabilizar que haja um equilíbrio entre passado e presente, conteúdo e cotidiano, vida e aprendizado. É nesse sentido que o Conexão Felipe Ca- marão tem realizado um trabalho que busca dialogar sa- beres, relacionando educação e cultura. Nota 1. É patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural e tem o copatrocínio da Votorantim. Fontes http://www.carolinaniemeyer.com/Em_andamento/index. php?pg=pagina&areasite_id=000017; acesso: 23 de fevereiro de 2010; 16:50. http://www.carolinaniemeyer.com/Em_andamento/index. php?pg=pagina&areasite_id=000018; acesso: 23 defevereiro de 2010, 16:55. A mediação do processo de aprendizagem deve considerar esses aspectos e viabilizar que haja um equilíbrio entre passado e presente, conteúdo e cotidiano, vida e aprendizado. É nesse sentido que o Conexão Felipe Camarão tem realizado um trabalho que busca dialogar saberes, relacionando educação e cultura. 35 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Arte, cultura e o espírito de um tempo. * Marta Porto é jornalista e coordenadora editorial de coleções vincula- das a causas públicas, com especialização e mestrado em planejamento e comunicação. Desde 2002, é sócia do IETS - Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, onde coordena o Núcleo de Políticas Culturais. foto à esq.: iii encontro de cultura caipira, cdc tide setubal, 2009. autoria: verônica manevy Marta Porto * O A cultura, sob todas as formas de arte, de amor e de pensamento, através dos séculos, capacitou o homem a ser menos escravizado. André Malraux Preâmbulo ano de 2010 começa com o signo de uma nova época, marcada por mudanças profundas que o mundo acom- panhou nesses primeiros anos do século XXI. Mudanças que transformam a nossa maneira de viver o presente e pensar o futuro. Na primeira década deste século, o mundo se tornou mais conectado, as causas ambientais e a sustentabilidade entraram definitivamente na agenda do desenvolvimento global, a força da criatividade como novo jeito de pensar e fazer negócios ganhou no Google um ícone de uma geração e, na ciência, os avanços da robótica, as pesquisas com cé- lulas-tronco e a possibilidade de qualquer indivíduo decifrar seu código genético apontaram para um novo tempo. A ferida do terrorismo iniciada com os atentados às Tor- res Gêmeas, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, marcou definitivamente a relação entre os países mulçu- manos e o mundo ocidental com as guerras de ocupação no Iraque e no Afeganistão e políticas internas de segu- rança que limitam o direito à privacidade e à mobilidade dos cidadãos em todo o planeta. A década de 2000, como já é chamada pelos analistas, termina com uma nova geopolítica: a ascensão de países emergentes como a China, a Índia e o Brasil e uma crise fi- nanceira sem precedentes na história que afeta as grandes potências econômicas, em especial os Estados Unidos. O Brasil encerra essa década como protagonista des- se mundo multipolar, com crescimento econômico, taxa de desemprego em declínio, redução da desigualdade e ampliação do consumo em todas as faixas de renda. 37 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 artigo Educação e Saúde também melhoram, e iniciamos a pró- xima década com otimismo. Na cultura, assistimos à retomada dos investimentos públicos e ao vigor da sociedade, cujos marcos são o pro- grama Cultura Viva, com a pujança de iniciativas e pro- jetos culturais visibilizados pelos Pontos de Cultura em todo o País; a Parada Gay de São Paulo, considerada o maior evento cultural do mundo; e a retomada da indús- tria do cinema, com uma produção e um público, para al- guns títulos nacionais, considerada histórica. Nossos desafios também são grandes, em especial, na melhoria da qualidade da educação e das condições para o exercício da cidadania, com proteção aos direitos humanos e redução dos índices de violência, principal- mente os de morte (homicídio e acidentes de carro), entre jovens das grandes cidades brasileiras. Almejamos tam- bém assegurar as oportunidades concretas necessárias para que as pessoas desenvolvam os seus talentos e as suas potencialidades, crescendo junto com o País. “Imaginário, cimento autêntico do estar junto.” 1 Essa é uma visão das mudanças contada especialmente pelos meios de comunicação. Mas há outra mais sutil, que a sociedade grita diariamente, especialmente os jo- vens, que só pode ser entendida deixando de lado anti- gas noções e conceitos teóricos para se conectar com um tipo de imaginário nascente que requer criatividade, sen- sibilidade e liberdade intelectual para promover as pa- lavras que podem capturar o espírito desta época, base de toda a compreensão do mundo da cultura, das artes e, consequentemente, das políticas culturais. É pensar no imaginário como fonte da vida social, o espírito que conecta o sujeito com o seu tempo históri- co, os valores de sua época, a sensibilidade em ação. Esse breve panorama cria as condições para colocar a pergunta central deste artigo: em um mundo, e em um país, onde o ontem, o hoje e o amanhã são marcados por transformações tão profundas, como pensar cultu- ra e arte? Como entender a dimensão simbólica da vida, alimento da produção artística e cultural, em um tempo onde o próprio valor e o sentido do simbólico mudaram tão radicalmente? Não tenho a pretensão de promover as respostas, e sim de contribuir para pensar alguns caminhos que pos- sam iluminar nossas diversas maneiras de imaginar o lu- gar da cultura, das artes e da criatividade em um tem- po que produz inovações e onde as chaves usadas para a sua compreensão lembram as narradas no preâmbu- lo deste texto. Teixeira Coelho, apresentando o livro de Michel Maffe- soli, A República dos Bons Sentimentos , faz o alerta: Em particular no modo de pensar a cultura e a arte, mas não apenas nele, velhas ideias prevalecem intatas, sem pudor e sem que a maioria pareça dar-se conta da defasagem. Pensa-se e atua-se no século XXI como se ainda predominasse o cenário do século XIX. (...) O resultado tem sido um já longo processo de domesticação da cultura e da arte. Um exemplo disso é, no Brasil, a busca de patrocínio mediante uma justificativa e pretexto sociais retirados do universo dos bons sentimentos, mas que geram largas inconve- niências societais, para usar o termo de Maffesoli, e um profundo moçambique de cunha/sp; cortejo das culturas populares mal-estar nessa mesma cultura e nessa mesma arte. Reconhecer o novo e descobrir novas formas de pensá-lo – e, se necessário, inventar novas formas de fazê-lo – é essencial, sobretudo, para os que pensam a ação cultural e se dedicam à difícil tarefa de definir políticas culturais. A questão básica continua a ser a proposta por Montesquieu: ampliar a presença do ser, a esfera de presença do ser, criar as condições para que todos e cada um ampliem a esfera de presença de seu ser como entendem fazê-lo e não como terceiros querem que o façam2 . 38 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 E que imaginário é esse? Como ele se apresenta? Quais os estilos reinantes, as sensibilidades, as formas, os desejos, os valores? Época de um hedonismo latente, que dá ênfase ao aspecto quali- tativo da existência, à relação com o meio ambiente e a ecologia. Época que faz que a criação seja mais importante que o trabalho ou que, ainda, destaque a importância do corpo (na moda, no esporte, na cosmética) como elemento do “corpo social”. Época enfim que considera que o desenvolvimento do festivo e do lúdico não mais é apenas um lado frívolo da existência, mas seu elemen- to essencial. Sem esquecer, por certo, a fragmentação tribal e a atenção dada ao presente 3 . público de milhões de pessoas, através de redes cola- borativas, como o YouTube, o orkut, o facebook, o twit- ter – seres anônimos que riem, choram e interagem com essas produções, formando uma massa crítica invisível às políticas culturais dos estados e dos sistemas de co- operação internacionais. Essas formas atuais de se relacionar, onde a comuni- cação se tece na costura do cotidiano, ao som das músi- cas baixadas de forma livre pela internet, de diários cons- truídos por instantâneos de câmeras digitais, de fragmen- tos de pensamentos, de livros de receitas culinárias, de plataformas para jogos eletrônicos, são marcadas pela polifonia, pela fragmentação, pela hiperestimulação dos sentidos, pela presentificação e pelo lúdico. Os interesses que movem centenas de milhares de pessoas em comunidades virtuais partem cada vez mais do senso comum de elementos recortados do cotidiano, de vivências particulares e gostos grupais. Geram um co- nhecimento provocado por sensações não cumulativas, pela seleção de informações que funcionam mais como acervo do que como memória. São fotos e mensagens de vivências íntimas, amoro- sas, sexuais, familiares e de rodas de amigos: a conver- sa no bar, nas festas, no jantar com o amigo, namorado ou namorada. Vivências de jogos de futebol, entre torci- das que se amam ou odeiam, que provocam encontros e fúria violenta. Tudo parece passar pelo sensorial, pe- las paixões pessoais e coletivas. O uso das lan houses, que aponta os sites de relacio- namento como campeões de audiência, mostra que não há distinção social e econômica nas modalidades de es- tar em rede. As lan houses atraem jovens de todas as fai- xas etárias, que se reúnem para festejar, namorar, se re- lacionar, mais do que se informar ou comunicar. O que há é uma sensibilidade nova que marca uma geração e que nos provoca a pensar mudanças nas for- mas de entendê-la e de propor ações, em especial nos campos da educação e da cultura. É com essa geração de jovens que se vislumbra uma ruptura com aquilo que entendemos por cultura, não de velhos conteúdos em novas formas ou linguagens, mas naquilo que Barbero (2006) chama de “natureza do pro- cesso”: o surgimento de uma comunidade mundial em que tradições culturais muito diversas emigram no tem- po, “imigrantes que chegam a uma nova era de tempora- lidades diferentes, mas compartilhando as mesmas len- das e sem modelos de futuro”. As mudanças apontam Época certamente que coloca em cena novos senti- dos e percepções sobre a vida, sobre nós mesmos e so- bre os outros, e também sobre estar junto e com os ou- tros; época que estrutura outras linguagens e formas de escrita e leitura que constroem um novo tipo de protago- nismo cultural. Nessa modalidade de atuação em rede, as fronteiras entre o pessoal (mais do que o privado) e o público vão se diluindo. O ato de criar na intimidade do seu quarto – vídeos, poesias, livros, paródias, experiências as mais diversas – e exibir em rede aciona de forma quase imediata um 23 ispa congresse são paulo - 2009 - foto: verônica manevy 39 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 para o surgimento de sensibilidades “desligadas das fi- guras, estilos e práticas de velhas tradições que definem ‘a cultura’ e cujos sujeitos se constituem a partir da co- nexão/desconexão com os aparatos”. No mundo concreto, as multidões vivem em busca de sensações exacerbadas, comprimidas em estádios de futebol, em raves e shows musicais, em megaeven- tos como a Parada Gay, nas festas de réveillon ao redor do mundo, no carnaval de rua, nos cultos teatralizados de templos e igrejas, nas filas imensas das superliqui- dações dos magazines de eletroeletrônicos e nos corre- dores dos shoppings centers. É a época da sensorialidade, da mobilidade simbóli- ca e das experiências vivenciadas no aqui e agora. Época de espetacularização da vida, que ganha na metáfora do homem-bomba seu símbolo mais contundente. Época de fluidez, como caracteriza o sociólogo Zygmunt Bauman: (...) os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constan- temente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento”4 . Estamos, então, diante de um novo tipo de imaginá- rio coletivo, suscitado pela fragmentação e pelo narcisis- mo das pequenas diferenças? Um imaginário que transi- ta entre o reino fantástico das fábulas, mitos e heróis en- carnados em jogos eletrônicos altamente sofisticados e produções cinematográficas de cifras milionárias – Ma- trix, Senhor dos Anéis, Harry Potter, Avatar, 300 e tantos outros –; uma espiritualidade religiosa manifesta na bus- ca crescente pelo sentido da vida ou no mais profundo ódio sectário, tudo em um cenário de mutações, onde a criatividade passa a ter valor de mercado em marcas como a Apple e o Google em suas buscas pela inovação frenética; onde as feiras de produtos tecnológicos que aliam ciência e robótica a equipamentos multifuncionais, como as televisões em 3D e os novos smartphones, são os eventos mais aguardados do ano. Nesse imaginário fantástico, onde fica o lugar da cul- tura, das artes, da política cultural? E como uma políti- ca cultural se abre para os reclames pela criatividade e a inovação? Entende o presente e contribui para o futu- ro com ideias, propostas, ações? É cedo para dar respostas e tarde para deixar de se ar- riscar a dá-las. Proponho, portanto, um retorno ao essen- cial, àquilo que não pode faltar em uma ação cultural. O poder de reencantar: o homem é fruto do desejo e não da necessidade. Há um núcleo celular para a atividade política com e para a cultura, dentre as variedades de visões, propos- tas e crenças (ideológicas inclusive) que pululam em mo- mentos e governos diferentes. O propósito de uma política de cultura é ampliar a subjetividade das pessoas e com isso as oportunidades de escolhas simbólicas sobre si, o mundo que as cerca e os sonhos que nutrem ao longo da vida. Por subjetivi- dade entendo todo o campo que ativa a imaginação, a criatividade, o sonho e a sensibilidade diante de expe- riências estéticas e de dilemas éticos. Uma boa política cultural é aquela que entrelaça dois campos da vida pública: os desenvolvimentos estético e ético (valores) de uma sociedade. Não ignoro a impor- tância econômica da cultura e nem os seus impactos sociais, e disso já tratei em vários textos, mas estimular a sensibilidade estética é algo que só cabe às políticas de cultura, e, ao fazer isso com ações que promovam o diálogo e a noção de alteridade, é possível iniciar aqui- lo que Antanas Mockus , em Bogotá, intitulou de “cul- tura cidadã”, um projeto (ethos) comum de como proje- tamos a nossa vida em sociedade, como a imaginamos para além da realidade do aqui e agora. 40 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 toré dos índios pankararú/sp; cortejo das culturas populares Essa liberdade de imaginar a nossa vida individu- al ou em sociedade de forma criativa, rompendo com o senso comum da leitura ad nauseum dos indicado- res socioeconômicos, em ação de deslocamento mo- mentâneo dessa realidade para uma imaginação ativa e criativa, é uma grande contribuição das boas políti- cas de cultura para sociedades em qualquer momen- to de sua história. Para isso, é preciso que as experi- ências vivenciadas pelos indivíduos desde a infância sejam ricas, sejam de qualidade do ponto de vista do conteúdo e da forma. Experiências capazes de promover o que o filósofo Renato Janine Ribeiro propõe: É cultural toda a experiência da qual saio diferente – e mais rico potência que ela ainda não tem; introduzir arte e cultu- ra em um universo pobre desses conteúdos, mas rico de técnicas de marketing, contabilidade e gestão. Em outras palavras, é preciso inovar. E entender que ricos e pobres têm direito de compartilhar a mesma qua- lidade de repertórios artísticos, de trocarem experiências entre si e com diferentes formas de pensar e viver o mun- do, de compreenderem a história cultural deste País e da humanidade com técnicas e programas atrativos que inspirem as mais diversas faixas etárias e segmentos so- ciais – enfim, de vivenciarem a experiência cultural na- quilo que ela tem de mais radical: a magia de sentir-se tocado pelo espírito que anima a existência. Um percurso para pensar as políticas de cultura? Pro- gramas capazes de promover inspiração, experimenta- ção e, por fim, a criação de linguagens próprias, mas em constante diálogo com o que não conheço; evitar noções que caminham na direção contrária de uma época mar- cada pela conexão e pela possibilidade de descortinar o mundo em vários cliques; superar a concepção de que os filhos dos mais pobres devem se manter em guetos culturais, cultuando as tradições dos mais velhos, sem a liberdade de fazerem suas próprias escolhas, pois essa janela de trocas, de novos repertórios e linguagens, ain- da não se abriu para eles. São muitos os programas já estabelecidos hoje por instituições culturais que, de forma espantosa, reafir- mam desigualdades simbólicas, impondo “perfis” de re- pertórios para tipos específicos de público. Um exemplo é a oferta para os jovens de periferia urbana que invaria- velmente são do universo do hip-hop, do grafite, das ex- pressões de rua. A desculpa é sempre “perfil e deman- da”, como se fosse possível demandar aquilo que não se conhece. Sobra previsibilidade e falta criatividade, risco, e até entendimento de que, nas periferias de nossas cidades, há um contingente imenso de jovens que cultuam outro tipo de música e buscam se expressar de outra forma, como os que frequentam cultos evangélicos ou missas carismáticas. Ou aqueles que silenciam, que nada “de- mandam”, que estão fora do alcance dos nossos ouvi- dos pouco atentos. O que deve mover as políticas de cultura é o espíri- to aberto presente nos processos criativos, abrindo ja- nelas de experiências simbólicas onde se reinventem os imaginários pessoais e coletivos, permitindo aos indiví- duos a liberdade de fazerem escolhas que poderiam ini- – do que era antes. Seja o que for, um livro, um filme, uma expo- sição: estou no mundo da cultura quando isso não apenas me dá prazer (me diverte, me entretém), mas me abre a cabeça, ou, para falar bonito, amplia o meu mundo emocional, aumenta a minha compreensão do mundo em que vivo, e assim me torna mais livre para escolher o meu destino 5. É facil? Não, não é. Primeiro porque exige uma recon- ceituação do que queremos com nossas políticas de cul- tura; depois, impregnar a gestão (programas, formação de RH, infraestrutura institucional, orçamento) de uma 41 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 23 ispa congresse são paulo - 2009 - foto: verônica manevy cialmente parecer disparatadas, ou mesmo impossíveis. É estimular o sonho, a liberdade de espírito que nos leva a produzir outras formas de estar juntos. Memória e experimentação são dois elementos cen- trais para garantir a qualidade desse percurso. O que mais? Acreditar. Ousar. Libertar-se dos modismos atuais que pregam que válido é só o que promove “inclusão” ou que reduz indicadores de violência ou de vulnerabi- lidade sociais. Por experiência própria, sei que um bom programa de cultura é capaz de virar para o bem a cabe- ça de muitos que dele participam, mas o mote é sempre o desenvolvimento, a oportunidade, a elegância de crer na potência, sem que ela seja interditada pelo conser- vadorismo de plantão que distingue “quem pode mais e quem pode menos”. Na cultura e na arte, podem todos os que encontram oportunidades para se expressar e se modificar, porque a varinha mágica do espírito aberto e fraterno algum dia os tocou. Se nessa trajetória aprendemos a ler, ver – a nós mesmos, ao mundo em que vivemos, aos conteúdos que se nos oferecem – e estar lá e aqui, sem falsos mo- ralismos nem identidades que se tornam guetos, nos- sa tarefa está iniciada, já que, em cultura, nada jamais é concluído. O valor da experiência A experiência não é uma categoria válida só para a política, ela é válida para quem aposta na vida. Sem medo de arriscar, de promover os próprios sentidos, de errar, de dizer sim e não, e voltar atrás porque “foi mal, não era isso”. Experiência são os fragmentos de memó- ria que a gente guarda para sempre: flashs, momentos, significados. É entrar e sair diferente, nos conflitos e nos encontros, nos momentos de prazer e de dor, nas impossibilidades, nas rupturas e no sim. É ouvir Bach ou Mano Brown e cho- rar. É encontrar um trecho – de poesia, crônica, reporta- gem, fala, palavra – que nos mova, que varra a areia acu- mulada ao longo dos tempos e que vai embaçando nos- sas maneiras de ver e sonhar. Experiência é saber dizer sim com consciência – e tam- bém saber dizer não, não porque sentimos medo, rancor ou necessidade de competir e nos sentirmos melhores ou “maiores”, e sim porque já foi, passou, não faz mais sen- tido. Experiência é fato que se transforma em significado, que nos inspira e alegra, nos choca ou emociona. Em política? Em cultura? É saber que um museu não é importante para um indivíduo ou uma cidade só porque gera empregos ou atrai turistas e “contribui com o desen- volvimento”, mas porque ali, naquele espaço e naquele momento, é dado ao sujeito viver o inexplicável, a emo- ção, o choque diante de uma experiência estética que o faz chorar, ou se alegrar, ou se irritar e bravejar... que o coloca diante do lado mágico da vida, aquele que mais se aproxi- ma da razão da existência humana, distante da lógica do trabalho, da renda e da coerência dos moralistas de plan- tão. É reiterar todos os dias que nossa missão essencial é resgatar a importância desse momentum em que o homem é “criação do desejo e não da necessidade”. A experiência não é um valor só para a cultura. Ela é um valor para a cultura porque é um valor para a vida. Vida vivida. zambiapunga/ba; cortejo das culturas populares 42 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Conclusão Por fim, é urgente que as políticas de cultura se inspirem no poder da criatividade e da inovação; que atuem efeti- vamente para ampliar as oportunidades de escolhas dos jovens, em especial no campo simbólico, de desenvol- vimento de suas subjetividades, de sua capacidade de expressão, diálogo e criatividade. É não ter medo das artes e da experimentação; ao con- trário, é investir nesse território como fonte de oxigenação de uma sociedade hedônica e conformista. É se abrir às in- venções, à pesquisa de novas formas de trabalho e renda que o universo simbólico nos traz, com seus equipamen- tos de última geração, com suas cada vez mais velozes re- des de relacionamento, muitas vezes vazias de significa- do e conteúdo. Notas 1 MAFFESOLI, Michel. 2009. 2 COELHO, José Teixeira. 2009. 3 MAFFESOLI, Michel. 2009. 4 BAUMAN, Zygmunt. 2001. 5 RIBEIRO, Renato Janine. 2002. Referências BARBERO, Jesus Martín. Livro 6 da coleção Cultura y Desarollo. La Cooperación Cultura-Comunicación en Iberoamérica. Madrid, Agencia Española de Coo- peración Internacional, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 JUNG, Carl. O espírito na arte e na ciência. Rio de Janeiro: Vozes, 1991 MAFFESOLI, Michel. A república dos bons sentimentos. São Paulo: Iluminuras, 2009. RIBEIRO, Renato Janine. Que política para a cultura? Artigo publicado na revista Bravo em fevereiro de 2003. COELHO, José Teixeira. In: A república dos bons sentimentos. São Paulo: Ilumi- nuras, 2009. É não ter aversão ao presente nem medo de contri- buir com o futuro. É contribuir para contaminar as outras políticas de conteúdos, experiências e linguagens que assegurem que a modernidade, líquida ou não, abarque as artes, a filosofia, a memória, as tradições, a cabeça de cada um e de todos. Abrindo um campo de atuação criativo onde a política de cultura entenda os desafios e o espírito do nosso tempo. 23 ispa congresse são paulo - 2009 - foto: verônica manevy A experiência não é um valor só para a cultura. Ela é um valor para a cultura porque é um valor para a vida. Vida vivida. 43 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 RELATO DE EXPERIÊNCIA: FUNDAÇÃO CASA. Uma nova cultura na cultura institucional Rodrigo Ramos Pinto Medeiros Clara Cecchini do Prado * – Antes, o educador chegava, definia ali o que ia fazer, muitas vezes sem um propósito a médio e longo prazos, sem uma intenção, sem saber aonde ele queria chegar com aquilo. Muitos são autodidatas e não sabiam como planejar e sistematizar aquilo que iam desenvolver. Constatado o problema, a Fundação passou a inves- tir na questão da formação dos educadores, dedicando a ela um dia da semana, com o propósito de discutir e trazer subsídios e respaldo teórico para os educadores, promovendo uma reflexão sobre o que é arte-educação no contexto da medida socioeducativa. Desde 2008, o Cenpec, a Ação Educativa e outras or- ganizações contribuem com esse esforço da instituição por meio do projeto Educação com Arte: Oficinas Cultu- rais, que consiste na formação contínua dos arte-educa- dores que atuam na instituição, além da sistematização dos conhecimentos produzidos em publicações. Na avaliação de Guilherme Astolfi Nico, a parceria com o Cenpec e outras instituições possibilitou um salto qua- litativo no trabalho realizado pela gerência de Arte e Cul- tura da Fundação, reconhecido tanto pela direção da ins- tituição como pelos próprios funcionários. Ele destaca: – Hoje a gente percebe que as oficinas não estão sendo feitas para “tapar um buraco”. Elas têm um propósito, ca- minham dentro da missão da Fundação, que é a de atender com qualidade esses jovens e de fato executar uma medi- da socioeducativa que tenha, na sua natureza, a questão pedagógica como carro-chefe e não a questão punitiva. Nesse sentido, a continuidade e o aprimoramento das ações, bem como a divulgação dos trabalhos produzidos nas oficinas, em mostras e exposições, são fundamentais para sensibilização dos funcionários quanto ao papel da Está ficando cada vez mais claro, à medida que vamos conhecendo o papel e a importância do intangível, que tudo aquilo que está ligado ao conhecimento, cultura e criatividade tem um significado, um papel no reinventar do mundo. Lala Deheinzelin * Rodrigo Ramos Pinto Medeiros é sociólogo e coordenador técnico do projeto Arte na Casa: Oficinas Culturais, da ONG Ação Educativa. Clara Cecchini do Prado é atriz, pós-graduanda em Bens Culturais na FGV e foi coordenadora regional do projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais, onde atualmente atua como especialista em Artes Cênicas. Em consonância com os direitos preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e dentro da proposta da instituição de estimular o desenvolvimento e a formação humana de jovens em conflito com a lei, a Fundação Casa vem desenvolvendo atividades de arte e cultura como parte das medidas socioeducativas. O trabalho com arte-educação procura despertar nos jovens o olhar para as diferentes manifestações artísti- cas, mostrando que elas estão em todos os lugares, in- clusive na periferia: – Eles muitas vezes desconhecem esse universo [da arte]; acham que é um universo erudito, elitista, do qual não podem nem passar na frente. Não sabem que essa cultura urbana, da periferia, também é cultura” – argu- menta Guilherme Astolfi Nico, gerente de Arte e Cultura da Fundação Casa. A ideia é, ao realizar essa reflexão com o jovem, dar a ele mais oportunidade de entender o mundo e assim ter mais condições de ser protagonis- ta, agente, ator nos seus espaços. Mas para que todo esse processo de aprendizado/ empoderamento aconteça, o papel desempenhado pelo educador é decisivo. Segundo Nico, as oficinas desen- volvidas na Fundação só adquiriram esse potencial edu- cativo recentemente: 44 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 instituição e, consequentemente, para uma mudança da cultura interna, marcada pelo olhar preconceituoso pre- sente na sociedade. Astolfi Nico explica: – É esse o paradigma que nós estamos trabalhando para mudar. Mas ainda há muito que fazer, porque não é fácil mudar uma cultura instalada, enraizada em uma Cultura de periferia na Fundação Casa Rodrigo Ramos Pinto Medeiros * instituição há anos. A própria sociedade e o senso co- mum entendem que esses jovens são bandidos e estão aqui apenas para pagar pelo que fizeram. Diante desse enorme desafio, ele não desanima: – O sucesso não é efeito do acaso, mas da persistên- cia. Acho que estamos no caminho certo.” Todo adolescente que cumpre medida socioeducativa de internação tem o direito a atividades de arte e cultu- ra, estabelecido no ECA, artigos 94, inciso XI, e 124, in- ciso XII. Para contribuir com a garantia desse direito, en- tra em cena o projeto Arte na Casa: Oficinas Culturais, re- sultado de um convênio firmado entre a Fundação Casa e a Ação Educativa, em agosto de 2008, para atender 1216 adolescentes. Iniciamos os trabalhos em 17 unidades e atualmente estamos presentes em 21: duas delas de internação (UI) e internação provisória (UIP); 18 de internação; e uma de internação-sanção, todas localizadas na região metropo- litana de São Paulo. Esse universo nos apresenta uma gama de possibilidades de atuação, pois proporciona- mos oficinas artísticas em unidades masculinas e femi- ninas, para adolescentes com idades entre 12 e 20 anos, alguns já tendo cumprido mais de uma vez a medida so- cioeducativa e outros cumprindo pela primeira vez. Isso fez com que a Ação Educativa elaborasse um pro- jeto que contemplasse essa diversidade de atores e ob- jetivasse principalmente a promoção da experimentação de linguagens artísticas como um exercício pedagógico e propulsor da produção de subjetividades individuais e coletivas. O intuito é promover a (re)descoberta de iden- tidade e pertencimento social e o retorno dos adolescen- tes atendidos pela Fundação Casa à vida social. Para atingir esse objetivo, as modalidades artísticas fo- ram pensadas para afirmarmos uma atuação política e cul- tural junto aos movimentos culturais presentes nas perife- rias da região metropolitana de São Paulo. Dar voz a esses movimentos de maneira articulada com as atividades cul- turais nas unidades da Fundação Casa, junto aos adoles- centes que cumprem medidas socioeducativas, é o mote principal do projeto Arte na Casa e seu diferencial. Acreditamos que, por meio dessa aproximação, po- demos despertar no adolescente uma percepção de que seu lugar de origem não é apenas uma arena de confli- tos, segregação e carências sociais. Nesse cenário de precariedade, há uma riqueza cultural da qual ele pode ser um agente ativo, altivo e promissor. Nesse sentido, toda a nossa atuação nas unidades da Fundação Casa foi pensada para proporcionar tal aproxi- mação. No que diz respeito às oficinas culturais, o proje- to foi divido em quatro áreas artísticas, com suas respec- tivas modalidades. São elas: Artes do Corpo (capoeira, danças brasileiras, danças circulares e dança de rua); Ar- tes da Palavra (literatura periférica, fanzine e rap); Artes Cênicas (teatro do oprimido, jogos dramáticos e circo); e Artes Visuais (desenho e pintura, escultura, grafite, fo- tografia e moda/estética). Para além da promoção das oficinas artísticas, a arti- culação entre os movimentos culturais das periferias de São Paulo se dá de diversas maneiras. Em primeiro lu- gar, acontece a seleção dos arte-educadores. Tendo em vista que diferentes estudos sinalizam que boa parte dos adolescentes privados de liberdade tem origem nas classes populares e nos bairros mais pobres da metrópole, contratamos arte-educadores pertencen- tes ao mesmo universo social, cultural e econômico dos adolescentes. Assim, dos 28 profissionais que ministram oficinas artísticas nas unidades da Fundação Casa, pra- ticamente todos têm essa origem e são engajados nos movimentos culturais da periferia. O projeto Arte na Casa: Oficinas Culturais também prevê apresentações artísticas e workshops com convi- dados nas unidades de internação. Essa é outra estraté- gia que utilizamos para levar às unidades grupos de rap, entre eles o aclamado grupo Racionais MC’s, e coletivos teatrais periféricos, como o Pombas Urbanas. Apresentamos diversos saraus com os integrantes da Cooperifa, Elo da Corrente e Sarau da Brasa. Debates com os escritores Alessandro Buzo e Sacolinha. Pales- tras sobre relações de gênero com o coletivo Atuadoras, questões étno-raciais com convidados e diversas outras apresentações. No primeiro ano de atividade, articula- mos apresentações com quinze grupos artísticos e 34 ar- tistas que atuam nos arrabaldes da metrópole. As formações coletivas e específicas proporcionadas aos arte-educadores pelo projeto também são meios para atingirmos nossos objetivos. Promovemos discussões sobre cultura de periferia, com agitadores culturais im- portantes, como Sérgio Vaz (Sarau da Cooperifa) e Alan da Rosa (Edições Toró). Planejamentos de aula focados na dinâmica de uma unidade de internação com a dou- tora Glória de Freitas, dentre outras palestras, reforçam nossas propostas. Pautado no Estatuto da Criança e do Adolescente, es- pecialmente os artigos 58, 71 e 121, o projeto Arte na Casa primou pelo acesso à cultura, o direito à informação, a saí- da do adolescente das unida- des de internação e o retor- no à comunidade onde sem- pre viveu. Parte importante desse processo foi a valorização de outra experiência já acumulada pela Ação Educativa na divulgação e fomento da produção cultural da perife- ria, sobretudo com a publicação da Agenda Cultural da Periferia: um guia revelador da cena cultural de bairros mais pobres, alguns deles extremamente estigmatiza- dos pela violência. Essa publicação passou a ser utiliza- da pelos educadores do Arte na Casa como um material didático que, ao apresentar a efervescência cultural pe- riférica (tais como rodas de samba, espetáculos teatrais, saraus literários, entre outros), também contribuiu para despertar nos adolescentes privados de liberdade outra relação com suas comunidades de origem. Os resultados dessas ações estão presentes nas pintu- ras, esculturas, livros de poesia, fanzines, peças teatrais, grupos de rap, grupos de dança criados pelos adolescentes. Eles, muitas vezes invisíveis e estigmatizados por grande parte da sociedade, por algum momento deixam a visibili- dade e a adrenalina proporcionada pela arma de fogo, tro- cando-as pelo foco de luz no palco, pela ansiedade ao pe- gar no microfone e cantar para centenas de pessoas, pela emoção da cor e de transformar barro em obra de arte. A literatura, muitas vezes desacreditada pelas coorde- nações pedagógicas das unidades, surpreendeu – possi- velmente pele fato de trabalharmos com autores periféri- cos. Adolescentes astutos, criativos, conheceram o gos- to pela leitura de maneira simples. Pegaram em livros e foram aplaudidos por suas palavras. Há relatos interes- santes, como o de uma unidade da Vila Maria, na qual os adolescentes tinham vergonha de usar óculos e dois meses após a implantação da oficina de literatura a de- manda foi maior que a oferta: não havia óculos suficien- tes para todos. Em outra unidade, a direção implantou um sarau quin- zenal com agentes de pátio, setor pedagógico e adoles- centes. É o poder da palavra. 46 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 De acordo com o pensador italiano Antonio Gramsci, (...) o início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer inicialmente este inventário1 . Nossa ação vai ao encontro do pensamento gramscia- no, pois estamos garantindo aos adolescentes o acesso, algumas vezes uma redescoberta, aos bens culturais de suas comunidades. Eles estão privados de liberdade, po- rém por pouco tempo. Em breve retornarão às suas “que- bradas”, de volta à dura realidade. Só que agora com ou- tros olhos, de óculos e inventário na mão. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça2 . O projeto Educação com Arte é feito de peculiaridades. Realizamos oficinas de arte e cultura em um ambiente em que os jovens estão separados dos seus cotidianos, exi- lados de suas comunidades, em um lugar em que se está de passagem. Isso gera, por exemplo, uma contínua cria- ção e ruptura de vínculos entre adolescentes e arte-edu- cadores e a angústia da descoberta de vocações artísti- cas sem possibilidade de desenvolvimento. Além disso, trabalhar expressão e liberdade em um território que, por natureza, não pode absorver tranqui- lamente esse tipo de dinâmica, faz com que este projeto seja uma ação pedagógica não apenas em relação aos adolescentes, e, mesmo que de maneira indireta, atinja todos os profissionais envolvidos na execução da medi- da de privação de liberdade. A contundência e a intensidade da vivência nas Unida- des de Internação e Internação Provisória nos obrigam a uma reflexão constante na busca dos sentidos deste tra- balho. Recusamos, porém, a pergunta “para quê?”, pois está claro para todos nós que o fazer artístico e cultural é um valor em si mesmo – não usamos a medida do fer- ramental, não usamos “isso” para ensinar “aquilo”. Pre- ferimos a pergunta “por quê?”, e sobre ela refletiremos neste texto. Para além da garantia de direitos, por que é importante que estejamos lá dentro? Abrir para os jovens o universo da abstração Clara Cecchini do Prado * 47 Se vivemos em uma época e em um lugar em que po- demos considerar que as noções de arte e cultura mui- to se ampliaram em relação ao passado, a metrópole nos reserva outras armadilhas quando tocamos em te- mas tão tênues e delicados como cultura, identidade e pertencimento. Fazer coro a um discurso recebido, sem ter a chance de refletir sobre ele ou mesmo a chance de escolhê-lo – porque escolha pressupõe opções –, gera uma falsa sensação de pertencimento e legitimidade. Gera uma falsa sensação de liberdade. Nesse sentido, o equilíbrio das modalidades que tra- balhamos em cada Unidade é fundamental. Existe uma diferença – não valorativa – entre as oficinas puramente artísticas (teatro, artes plásticas, por exemplo) e aque- las que carregam um universo cultural específico, como a capoeira e a dança de rua. Se estas últimas são fon- tes de identificação e mobilização coletiva, as primeiras podem abrir um universo desconhecido aos jovens – o universo da abstração, das cores e das formas, das me- táforas, metonímias e simbologias. As duas trazem experiências fundamentais para a constituição não apenas de um repertório cultural, e sim de maneiras de ver a realidade, compreendê-la e vislum- brar diversas possibilidades de ação. Aí sim, a liberda- de se torna possível: a escolha entre seguir uma tradição ou subvertê-la, transformá-la, embaralhar e redistribuir seus códigos a partir de um entendimento verdadeiro e da apropriação da linguagem. E esta criatividade é um aprendizado para a vida – por ser experiência vivencia- da, e não por ser ferramenta que se aplica. Pensando no projeto como um catalisador de experi- ências, os eventos dentro das unidades (apresentações dos adolescentes para os familiares, funcionários e co- legas, apresentações de grupos de fora etc.) adquirem grande importância. Não subestimamos o potencial pe- dagógico das saídas para apresentação de trabalhos ou contato com obras de arte. Mas levar a experiência da fruição para dentro das Unidades fortalece a presença da arte no dia-a-dia dentro dos muros, contagia de po- esia as relações entre adolescentes, arte-educadores e funcionários. A importância desses momentos é enorme e, por mais que durem poucos minutos, seu efeito é duradouro. Em meio à atmosfera de festa, podemos ver o b-boy3 que há no agente de segurança, a capoeirista que há na profes- sora da escola formal e a plateia atenta, questionado- ra e criativa que pode ser formada pelos adolescentes. Por um instante, a hierarquia desaparece e o elemento de união, o elemento comum entre os presentes não é o ato infracional, e sim a habilidade de compor e ler den- tro de determinadas linguagens – ou seja, o que temos de mais humano. Precisamos, portanto, superar a separação entre pro- cesso e produto. Essas categorias não são tão estanques para nós, pois tudo o que produzimos faz parte do pro- cesso maior, um processo de reconhecimento, em lon- go prazo, da importância da prática artística e cultural. Não apenas para os jovens, mas para a instituição. Afi- nal, os adolescentes passam, mas os funcionários per- manecem. E quando novos adolescentes chegam, o am- biente que encontrarão é determinante na maneira como eles passarão pela medida socioeducativa. Hoje entendemos que a experiência coletiva, compar- tilhada em torno de um acon- tecimento artístico ou cultu- ral, é o argumento mais po- tente que temos para com- preender o nosso papel den- tro da Fundação Casa – e também para nos fazermos compreender. Aos poucos, ganhamos cada vez mais aliados nesta empreitada que exige ener- gia e ousadia. Pois, como é próprio da arte e da vida, experiências deste tipo contêm um alto grau de imprevisibilidade e de risco, poucas ga- rantias, e, muitas vezes, possuem medidas que não se ajustam aos parâmetros e protocolos vigentes. Ou seja, todos os envolvidos precisam sair de sua zona de con- forto – aliás, única maneira de conseguir uma transfor- mação efetiva. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas 4. Notas 1 GRAMSCI, Antonio. 1995. 2 BONDÍA, Jorge Larrosa. 2002. 3 Breakdance (também conhecido como breaking ou b-boying) é um estilo de dança de rua, parte da cultura do hip-hop, criada por afro-americanos e latinos na década de 1970 em Nova Iorque, Estados Unidos. Normalmente é dançada ao som do Hip-Hop ou de Electro. O breakdancer, breaker, b-boy ou b-girl é o nome dado à pessoa dedicada ao breakdance e que pratica o mesmo. Inicialmente, o breakdance era utilizado como manifestação popular e alternativa de jovens para não entrar em gangues de rua que tomavam Nova Iorque em meados da década de 1970. Atualmente, o breakdance é utilizado como meio de recreação ou competição no mundo inteiro. Fonte: Acesso: 08.dezembro.2009, 21:45. 4 RILKE, Rainer Maria. 2001. Referências BONDÍA, Jorge Larrosa. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”. Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas. Revista Brasileira de Educação, no 19. Jan/fev/mar/abr 2002. Disponível em http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LAR- ROSA_BONDIA.pdf. GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta / A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristovão Rilke. Editora Globo, 2001. as fotos que ilustram estes relatos, da página 45 a 49, foram produzidas por ado- lescentes privados de liberdade em oficina cultural. 49 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Renato Janine Ribeiro * A cultura liberta * Renato Janine Ribeiro é filósofo e professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH-USP. Recebeu o Prêmio Jabuti em 2001, na categoria Ensaios e Ciências Humanas, com o livro A Sociedade contra o Social: o alto custo da vida pública no Brasil (2000). Foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito Científico, em 1998, e com a Ordem de Rio Branco, em 2009. foto à esq.: iii encontro de cultura caipira, cdc tide setubal, 2009. autoria: verônica manevy. H A cultura como experiência á várias maneiras de pensarmos a cultura. A maior parte das pessoas tende a considerar que a cultura consiste em obras importantes: podem ser obras de arte, de lite- ratura ou filmes, mas elas se caracterizam por se desta- carem. Acreditam que a cultura esteja ligada a pessoas cultas, que tiveram acesso a mais informações e, portan- to, têm cabedal maior de saberes, de instrução e acesso ao mundo do conhecimento. Não nego a questão da qualidade – ao contrário! Mas gosto de pensar de um modo não tanto diferente, mas adicional: prefiro correlacionar cultura e experiência. Pen- so mais em termos de experiência cultural do que em cul- tura como se esta fosse uma substância. Ora, o que a experiência cultural traz? Por que, quan- to mais obras culturais alguém conhece, parece que me- nos novas experiências culturais ela vai sentir? Tem-se por vezes a impressão de que essa pessoa já está bastante enriquecida e que o novo não vai lhe cau- sar uma impressão tão forte quanto alguma que já teve anteriormente. Assim, no filme de Ingmar Bergman, A Flauta Mágica, me chama a atenção um rosto de meni- na, pré-adolescente, que vai sentindo com intensidade cada episódio da narrativa. Ela certamente ignora os matizes do canto lírico. Tal- vez não faça diferença, para ela, se a orquestra é a me- lhor do mundo ou uma apenas correta. Mas, de seu olhar, depreendemos que sua experiência é inesquecível, que artigo 51 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 ela está descobrindo um campo novo de arte, que está sentindo a arte como se tudo o que se está narrando (o drama de Tamino, Pamina, a Rainha da Noite, Sarastro...) fosse verdade: eis uma experiência cultural forte, e que pode ser maior se a obra for melhor, mas também pode ser autônoma em relação à qualidade da obra. Outro episódio é o de um filme cubano do começo do período revolucionário. Principiam os anos 1960. Uma al- deia que nunca viu uma tela, um projetor, um filme, vai ter sua primeira experiência com o cinema – e essa ex- periência é filmada. É um olhar virgem que se abre para experiências novas. Assim, à medida que uma pessoa vai tendo mais con- tato com as diversas formas culturais, não apenas ela terá mais dificuldade de se deparar com novidades, como o novo talvez já não cause aquele impacto fabuloso, que nos marca, quem sabe, em definitivo. Esse é um ponto importante porque, se, por um lado, a questão da cultura é indissolúvel da qualidade, por ou- tro, a experiência cultural pode ser forte ou fraca sem tan- ta relação com a qualidade da obra, e sim, com a situa- ção do sujeito que a vivencia. Numa primeira abordagem, diríamos que, num caso, se privilegia o objeto e uma vi- são de qualidade, por isso mesmo, mais “objetiva” (por difícil que seja sustentar isso); e, no outro, se destaca o sujeito, e daí, uma compreensão mais “subjetiva” do que é o papel da cultura na vida das pessoas. Gosto dessa idéia da cultura abrindo uma experiên- cia cultural que amplia os horizontes das pessoas. Isso lhes proporciona mais liberdade. Isso não quer dizer que a obra cultural que abre mais horizontes seja necessariamente a melhor, seja uma obra do cânone, a mais conhecida, mais famosa. Para uma pessoa, o que pode abrir o espírito pode ser uma obra não tão boa, mas que, naquele momento, a sensibiliza de tal maneira que provoca uma mudança. Um exemplo da cultura enquanto experiência que am- plia nossa liberdade diz respeito à Irlanda do Sul. Nes- se país altamente católico, não se falava de homosse- xualismo, nem masculino nem feminino. Sublimava-se essa opção sexual. Não sabiam nomear um rapaz que não sentisse atração por mulheres, mas eventualmen- te se sentisse atraído por homens. O jovem nessas con- dições sentiria que tinha uma vocação para o sacerdó- cio. Não desejar mulheres não era repertoriado, cultural- mente, como desejar homens. O rapaz era encaminha- do para o clero. O resultado disso foi terrível: muitos homossexuais re- primidos se tornaram padres incumbidos de educar crian- ças pequenas, sobretudo meninos. Disso, decorreu mui- to abuso sexual. Provavelmente não teria havido isso se eles soubessem que aquilo que sentiam, aquela reação em seus corpos que presenciavam quando viam um ho- mem que os atraía, se chamava desejo homossexual. A privação de uma informação essencial limita a liberda- de. Não saber dar nomes aos sentimentos confina seria- mente as pessoas em espaços aprisionados. A cultura é importante na medida em que abre hori- zontes para as pessoas. Abre-se um horizonte novo quan- do se descobre que existe um tipo de conduta que não é aceita. Pode ser homossexualismo, divórcio, preconceito de cor. A cultura abre horizontes – às vezes, apenas pelo fato de alguém começar a manejar um lápis, uma tinta, uma câmera de vídeo, ou seja, aprender uma nova lin- guagem. É como se alguém estivesse aprendendo inglês ou francês, ou aprendendo a desenhar. Uma nova língua amplia o contato com o mundo. Artes plásticas ensinam também a ver melhor esse mundo. Criação permanente de novas formas de vida A partir do conceito de experiência cultural, acontece a relação da cultura com as outras dimensões da vida hu- mana: cultura e ética, cultura e economia e cultura e po- lítica. Isso nos estimula a algumas reflexões. A principal questão do nosso tempo é a liberdade para a criação de novas formas de vida. É o fato de que os sistemas que defendíamos entraram em crise ao lon- go do século XX, sobretudo na segunda metade: coisas que eram proibidas se tornaram lícitas em relação ao amor, ao trabalho, ao sexo. Essas mudanças tornaram obsoletos vários padrões. Mas o importante não é a substituição de um modelo por outro – e sim que, hoje, não se sabe, necessariamente, o que vai ser bom. Porque não é substituindo um padrão proibido por um padrão permitido que se resolve o confli- to. Aliás, um novo padrão, se impositivo, apenas cria um novo constrangimento. Por isso, o importante não é a tro- ca de padrões, mas a redução do papel dos padrões. Isso não é consenso. Vários movimentos, sobretudo os que procuram reverter um processo histórico visto como injusto – e aí incluo grupos com cujas causas sim- patizo: feministas, negros, homossexuais, pobres –, ten- dem às vezes, porém, simplesmente a trocar os sinais. 52 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 O “politicamente correto”, expressão contraditória em si mesma (porque o político é o espaço da pluralida- de, dos valores diferentes, que não podem ser medidos pela régua do certo e do errado, do correto e do incorre- to), é o exemplo infeliz disso. Uma consequência, que tem levado a vários incômo- dos, é que certos discursos, historicamente proibidos, se tornam dominantes, enquanto os discursos que eram do- minantes passam a ser discriminados. Vejam que em cer- tos casos, ouvindo alguns discursos feministas, se vocês trocarem os sexos ou gêneros (isto é, colocasse homem em vez de mulher, e vice-versa), terão nada mais nada menos do que um velho discurso machista. Isso não é dominante, mas tem certa frequência, a meu ver preocupante – porque não representa a supera- ção de um padrão obsoleto, e sim apenas uma vingança, uma troca de sinais, uma manutenção no mesmo nível. Este assunto merece uma curta digressão. Compreen- de-se que os oprimidos historicamente desejem uma revan- che. Entende-se que, para quem foi humilhado, a simples igualdade com o antigo opressor tenha um sabor de injusti- ça: afinal, ele não vai pagar pelo que fez. Daí que, com certa freqüência, processos revolucionários tenham um elemen- to de vingança, que por vezes é chamado, impropriamente, de justiça (justiça revolucionária, por exemplo). Contudo, olhando para o período que começa com a Revolução Francesa e vai até as revoluções de esquerda da segunda metade do século XX, vê-se que essa estra- tégia não deu certo. Ela geralmente apenas produziu no- vos problemas. Os países pobres, em que houve revolu- ções de esquerda que romperam radicalmente com a an- tiga classe dominante, raras vezes conseguiram avançar no próprio resgate da dívida social. Geralmente, afunda- ram na ineficiência econômica e acabaram restaurando a desigualdade social e a corrupção. Ora, se isso vale para os casos de conflitos de classes sociais, vale ainda mais para os casos de conflitos de gê- nero ou etnia. Porque, a rigor, as classes sociais são fi- guras que podem nascer e desaparecer ao longo da his- tória. Os gêneros, ou sexos, não . Nem se deseja que etnias desapareçam sem mais. E é por isso que a sim- ples troca de sinais – tornando positivo o que era nega- tivo e inversamente – é insatisfatória. Por isso, a ques- tão não é virar as coisas pelo avesso, mas mudar de pa- tamar. Se não o fizermos, corremos o risco de caminhar para o pior do século que passou. Nessa mudança de patamar, as pessoas estão tendo de criar constantemente novas formas de vida que valem para umas e não para outras. Nisso, a cultura pode aju- dar muito, porque lida com a criação. Quando exercita- mos nossa criatividade, quando nos dedicamos a criar – seja desenhando, cantando, filmando etc. –, temos maior facilidade para encontrar saídas para situações que consideramos adversas. Em 2003, ministrei um curso na Universidade Colum- bia, em Nova York. Como ele estava no quadro do Insti- tuto de Estudos Latinoamericanos, quis tratar de nossa parte do mundo – embora meu foco de pesquisa seja a filosofia política – mas não queria falar de pobreza, mi- séria, ditadura, isto é, dos temas usuais. Tratá-los é cor- rer o risco, às vezes, de expor somente nossas mazelas, e de suscitar piedade, ajuda, socorro. Isso às vezes, nem sempre – porque respeito muito quem trabalha esses te- Vários movimentos, sobretudo os que procuram reverter um processo histórico visto como injusto – e aí incluo grupos com cujas causas simpatizo: feministas, negros, homossexuais, pobres –, tendem às vezes, porém, simplesmente a trocar os sinais. O “politicamente correto”, expressão contraditória em si mesma (porque o político é o espaço da pluralidade, dos valores diferentes, que não podem ser medidos pela régua do certo e do errado, do correto e do incorreto), é o exemplo infeliz disso. 53 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 mas. Apenas, eu quis tratar de outros. Escolhi como tema a libertação; o curso chamou-se Freedom in the screen, Liberdade na tela. Assim, para falar sobre liberdade pessoal, utilizei al- guns filmes, que permitiam discutir como alguém procu- ra se libertar de uma situação pessoal, o caso do jovem que é internado como louco (O Bicho de Sete Cabeças); ou da pessoa que está sendo obrigada a matar o inimigo da família (Abril Despedaçado); ou de uma mulher que está confinada num fim de mundo sem ter liberdade para construir uma relação como queira (Eu, Tu, Eles). Para fa- lar de liberdade política, usei o filme argentino Khamcha- tka. Para discutir a liberdade, a responsabilidade, bem como o aprisionamento de uma pessoa num trauma qua- se insuperável, recorri a Minority Report. Ou seja, era possível tratar de temas universais, com filmes de diversas proveniências, para discutir uma ques- tão essencial em nossa época do mundo, que é como estamos presos a uma situação e como dela tentamos e mesmo conseguimos sair. Em cada uma dessas situações, cada pessoa constrói sua saída. São saídas muito diferentes entre si. Umas são libertações individuais, em relação à miséria, ou ao pre- conceito, ou mesmo em relação à riqueza, no que esta tem de repressora. Embora as ações de rebelião não de- corram necessariamente de uma pessoa ser culta ou não, a cultura fornece estilos de sentimento e pensamento que ampliam as possibilidades de escolha. É nesse sentido que uma experiência cultural nos mo- difica, no sentido de aumentar nossa liberdade. Filmes mesmo nazistas, como os de Leni Riefenstahl, podem ser ricos culturalmente; contudo, se transformarem uma pessoa em nazista, limitarão suas perspectivas, porque ela se tornará racista, preconceituosa etc., passando a ver o mundo de um único ponto de vista. Se, ao contrário, pelo próprio fato de os filmes serem ricos em sua linguagem, de ampliarem o horizonte ain- da que apenas estético da pessoa, a experiência pode- rá enriquecer. Esse é um ponto que a estética da recep- ção nos ensinou: o que se faz com uma obra tem rela- ção, sim, com esta, mas pode ser uma relação tênue. O importante é o que se faz com ela. Além disso, a cultura tem a ver com a ética, que lida com a liberdade e com nossas escolhas. As escolhas só são éticas se forem livres. Se eu não fizer escolha, se for obrigado a fazer uma coisa, estarei submetido a uma im- posição. Esta exclui a dimensão ética da escolha. 54 Mas, quando a sociedade demanda de nós mais es- colhas do que no passado, ela nos interpela eticamente também mais que no passado, e com isso a cultura au- menta em importância. Este é um dos aspectos que nos fez experimentar grandes mudanças com relação à cul- tura ao longo do século XX. Até certo momento do século passado, a cultura se constituía num cabedal, num capital, em algo que se acumulava. A pessoa culta, que sabia línguas, que cur- sara uma faculdade, o médico, o engenheiro, o advoga- do, aquele que conhecia cultura francesa, dominava Ra- cine e sabia falar longamente a respeito, tinha, porém, várias vezes, um grande problema: com frequência, não produzia qualquer ideia original. O que reunia era um ex- tenso conhecimento, uma acumulação. Ora, a certa altura do século XX, ocorreram mudanças nesse perfil. No Brasil e em São Paulo, foi decisiva nesse sentido a criação da Universidade de São Paulo e, nela, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, uma grande faculdade de pesquisa, que transferia o estudo da física, da literatura e da filosofia das mãos dos diletantes para as dos especialistas. Esse foi um dos modos de enunciar que o importante deixava de ser acumular conhecimento, e se tornava necessário gerá-lo, criticá-lo, vivê-lo. É como se antes tivéssemos um tesouro, no mau sen- tido do termo: um entesouramento infecundo. É curioso que hoje se fale em capital social, capital cultural, capital humano. Esses termos têm sentido positivo, pelo menos para os que os empregam. São entendidos como instru- mentos para melhorar o mundo. Não têm mais o senti- do de que estejamos apenas acumulando um cabedal, como um avarento, como alguém que poupa, mas ape- nas sabe repetir. Com a cultura não se pode ser avarento. Não se pode entesourá-la. A cultura, temos de compartilhá-la, de utili- zá-la para mudar a vida para melhor. E não apenas nos- sa vida pessoal. Ela nos permite mudar a vida na relação com os outros. Nós vivemos em relação. Intencionalidade, erro e mentira. Vamos refletir sobre a mentira. Posso cometer um erro: dois mais dois igual a cinco. Isso é um erro. Porém, se eu for um vendedor e cometer um erro na conta, já não se trata de erro, mas de fraude, mentira (a não ser, cla- ro, que seja involuntário). É diferente. O erro não traz em si a má intenção; a fraude e a mentira, sim. Elas só existem na relação com o outro. Não há fraude ou men- tira sem a relação social. Já o erro pode existir na soli- dão do indivíduo. Por isso, é importante distinguir erro e mentira. Dois mais dois igual a cinco. Se responder assim à prova, recebo uma nota ruim. Porém, se for caixa, erran- do prejudicarei o cliente; por isso é que se vai além do erro. Mentira ou fraude têm a intenção de enganar o ou- tro. É na relação com o outro que fazemos o mundo me- lhorar ou piorar. Geralmente, melhoramos ou pioramos o mundo em relação com outra pessoa; às vezes, na própria relação com a gente mesmo; mas esse é um ponto mais complexo, que abordarei apenas de passagem. Porque, quando tenho liberdade para me questionar, isso também se configura como relação. A cultura permi- te isso. Permite que a pessoa veja a si mesma com uma amplidão maior, como se fosse de fora, de modo que es- tabelecemos também uma relação de exterioridade com a intimidade, fazendo, para usar a célebre expressão psi- canalítica, que o eu seja um outro. Essa relação pela qual a pessoa questiona a si mesma permite pôr em xeque as identidades recebidas. Porque, quando tenho liberdade para me questionar, isso também se configura como relação. A cultura permite isso. Permite que a pessoa veja a si mesma com uma amplidão maior, como se fosse de fora, de modo que estabelecemos também uma relação de exterioridade com a intimidade, fazendo, para usar a célebre expressão psicanalítica, que o eu seja um outro. 55 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Nossa televisão assumiu, sobretudo nas novelas, faz décadas, alguns valores importantes: por exemplo, a igualdade dos sexos, o não preconceito contra o ho- mossexualismo. Foi mais difícil passar o não preconcei- to contra as lésbicas: mas elas, hoje, conseguem viver até o fim de uma novela sem morrer em acidente ou em algo do gênero . A TV também levou para as pessoas de lugares afas- tados dos grandes centros uma série de liberdades que antes não tinham. A novela pode fazer merchandising; sempre vai pregar o consumismo; ela passa a ideia de que a ascensão social é a saída. Não aprovo nada dis- so, mas reconheço que ela também transmite, numa lin- guagem de fácil compreensão para milhões de pessoas, um discurso contra certos preconceitos. Isso foi e conti- nua sendo positivo. Democracia como sentimento A relação da cultura com a democracia é curiosa porque é uma relação de mão dupla. Por um lado, para que a popu- lação tenha acesso à cultura, é preciso que haja democra- cia. A cultura é um dos principais alimentos da democra- cia. Pessoas incultas terão maiores dificuldades para en- contrar seus caminhos, tanto políticos como pessoais. A cultura faz crescer as pessoas, como sustentei acima. Ao mesmo tempo, enfrentamos um problema na de- mocracia. Ela cresceu muito nos últimos duzentos anos. Hoje, temos talvez metade da população do mundo vi- vendo em países nos quais podem se expressar, se or- ganizar, votar, escolher sua profissão e seu cônjuge. Há muito mais liberdade que no passado. Nunca houve tanta gente com tanta liberdade quanto hoje no mundo. Ainda há muito por fazer, mas o avanço foi significativo. Contudo, se a democracia é uma forma de governo com muitas qualidades, nós a vivemos mais como um regime racional do que como um registro afetivo de sig- nificações. Em outras palavras, uma cultura democráti- ca ainda não se consolidou. Aqui estou pensando em cultura no sentido antropo- lógico e não no que usei acima. No que afirmei antes, pensei em cultura no sentido mais corrente: o das ar- tes, da literatura, do conhecimento que forma as pesso- as. Agora, estou falando em cultura na acepção que lhe dá a antropologia, isto é, como um conjunto de signifi- cações que são atribuídas aos atos humanos. O mesmo ato pode ter significados diferentes. O caso mais engraçado é o do gesto com a cabeça que para nós significa não, e que em várias culturas quer di- zer sim. Mas, além disso, há significações mais profun- das: por exemplo, quando a mesma atitude que numa cultura é entendida como sinal de independência, auto- nomia, respeito ao outro, em outra se compreende como indiferença, frieza, descaso. Ora, no caso da democracia e da república e dos re- gimes mais abertos, politicamente falando, eles são re- gimes que – ainda – estão em conflito com a formação afetiva que tivemos. Porque nossa formação afetiva, por milênios, aconteceu de maneira predominantemente au- toritária, o que vale tanto para a política quanto para a dimensão pessoal, em que, por exemplo, avulta o ma- chismo. Veja-se, no Brasil, o uso do coração como em- blema, por dois políticos conservadores, um na Bahia, outro em São Paulo. Assim, a questão não se resume em ampliar a partici- pação cultural na democracia. Aliás, nem é essa a ques- tão principal, a meu ver, e sim: será que a democracia é uma cultura? Será que existe uma cultura democrática Assim, a questão não se resume em ampliar a participação cultural na democracia. Aliás, nem é essa a questão principal, a meu ver, e sim: será que a democracia é uma cultura? Será que existe uma cultura democrática no sentido de a gente gostar da democracia, do respeito ao outro, da diferença, gostar da divergência por gostar e não apenas porque racionalmente ouvimos ou dizemos que tenho que respeitar o outro? 56 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 no sentido de a gente gostar da democracia, do respei- to ao outro, da diferença, gostar da divergência por gos- tar e não apenas porque racionalmente ouvimos ou di- zemos que tenho que respeitar o outro? Se dizemos de uma cultura que é autoritária – por exemplo, a dos talibans e, antes deles, as de várias et- nias e seitas que discriminam a mulher –, por que não dizer de uma cultura, talvez ainda por vir, que é demo- crática? Certamente isso não é fácil e provavelmente precisare- mos de uma mudança muito grande para aceitar que nos enriquecemos com a divergência e para criar uma condi- ção pela qual a democracia se torne uma cultura. A democracia se enfraquece hoje, ou melhor, a demo- cracia ainda não desenvolve todos os seus potenciais, porque nela o elemento de racionalidade, de razão, não foi superado pelo de vivência, de espontaneidade, de cultura, em suma. Se e quando conseguirmos isso, te- remos dado um salto. Exemplo nessa direção são as es- colas que ensinam as crianças a respeitar seus colegui- nhas, a brincar de maneira mais solidária que competi- tiva. As pessoas assim aprendem a significar seus atos de uma maneira que não é autoritária. É difícil planejar resultados na cultura Ninguém discorda de que a cultura – entendida como o universo de uma produção de qualidade que experimen- tamos de modo a ampliar nossa compreensão do mun- do e nosso fazer o mundo – é importante para a forma- ção humana. Por que então a cultura é tão desvaloriza- da? O que faz da cultura essa coisa poderosa e complexa e, ao mesmo tempo, renegada e diluída? E mais, a cultu- ra pode ser tudo, em um determinado momento: a ma- neira de sentir, de pensar, de vestir, de amar. Ao definir suas políticas públicas, os governantes fa- lam em saúde, educação, transporte, trabalho. Quase nunca em cultura. Como fui diretor da Capes e também pertenci ao con- selho do CNPq, acompanhei tanto o Ministério de Ciência e Tecnologia quanto as políticas de educação e de finan- ciamento. Os pedidos que vêm ao CNPq e que passam pelo crivo de qualidade – a chamada “demanda qualifi- cada” – são atendidos em 70%, talvez 80%. O orçamento do Ministério da Cultura é bem menor do que o de Ciência e Tecnologia; deve ser talvez um ter- ço dele. Lembro-me de que, quando estive no conselho do CNPq, em meados da década de 1990, o MCT recebia 0,35% do orçamento, o que já era abaixo da margem de erro da elaboração do orçamento (margem de erro que seria de 0,5%); e o da Cultura, 0,05%. Como os militares recebiam 30% do orçamento, calculei: uma tarde dos mi- nistérios militares seria um ano do da Cultura. Por que isso, melhor dizendo, por que a comunida- de científica tem mais êxito em suas demandas do que a cultural? Primeiro, a comunidade científica é bem organi- zada; segundo, a comunidade cultural é enorme, difusa, desorganizada e permeia várias classes sociais. Com a cultura, não se obtêm resultados tangíveis no curto prazo. Nas ciências, sobretudo as exatas e bioló- gicas, conseguimos resultados mais visíveis. Na cultura, os parâmetros são outros. Um projeto pode custar muito mais caro que outro e ter muito menos impacto. É muito difícil elaborar esses conceitos. Essa explicação procura levar em conta as políticas públicas e os atores que con- duzem projetos, quer científicos, quer culturais. Há também um fenômeno perverso: por que as pes- soas em geral, as que elegem o governo, não dão impor- tância à cultura? Será que a cultura não reúne coisas sé- rias? Ou as coisas sérias seriam aquelas apontadas pe- los cinco dedos da mão do então candidato a presiden- te Fernando Henrique Cardoso, em 94: saúde, habita- ção, emprego, transporte e segurança? Aparentemente, essas cinco coisas são seriíssimas, são do bem. A cul- tura não está aí. Não é que seja algo mau. Simplesmen- te, não aparece. Há talvez certa prevenção contra a cultura. Cultura não costuma aparecer como algo relevante, como primeira, segunda ou terceira necessidade social. Talvez isso te- nha a ver um pouco com a natureza mesmo da cultura, pelo fato de ela estar muito ligada à liberdade. Ela tam- bém não é algo no qual se investe e se tenha a certeza de determinado resultado. Não é a mesma coisa que plantar, por exemplo: os proprietários rurais semeiam, adubam, rezam para que chova e faça sol na época certa. Tudo correndo bem, os resultados esperados são conseguidos. E na cultura? Ninguém sabe como vai ser o resulta- do. Não se sabe se a obra vai dar certo ou não, se o pú- blico vai gostar, se vai ter impacto. Produzem-se obras, realizam projetos que costumam ter resultados opostos aos previstos. Há a história famosa de um índio que nunca tinha sa- ído de sua aldeia e que foi levado a Nova York. A coisa 57 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 que mais o impressionou foram as lâmpadas redondas em cima dos corrimões, na escadaria do hotel. Não fo- ram carros, arranha-céus, roupas e luzes. A cultura tem muito imprevisto e talvez queiramos, hoje, lidar com o social de uma maneira muito previsível. Não é casual que o Ministério do Planejamento seja tão importante. Fala-se o tempo todo em planejamen- to. As pessoas são instadas a planejar tudo: gastos, educação e até a própria vida. Avanços na gestão pú- blica se devem a bases de dados, de acesso fácil, pe- las quais ficamos sabendo o que se propôs e o que se executou. Na cultura, porém, temos diante de nós um espaço de liberdade, onde o risco é muito grande. A cultura, en- tendida como aquele conjunto de criações de excelên- cia que nos abrem janelas para o infinito, é importantís- sima, mas não suporta tanto planejamento. Se não hou- ver certa imprevisibilidade, advinda da liberdade para experimentar e sentir, ela não dá certo. Em outras pala- vras, ela exige correr um risco muito grande. Se quiser dizer de outro modo: talvez FHC tivesse ra- zão em não incluir, nos dedos de sua mão, a cultura. Isso porque se tratava do que é necessário; ora, a cultu- ra sai do reino da necessidade e compõe o da liberda- de. Se assim for, deveríamos parar de mencionar a ne- cessidade da cultura e entender que, pelo conceito usu- al de necessidade, ela é rigorosamente desnecessária e mesmo anti-necessária. Essas palavras podem soar demagógicas. Não é mi- nha intenção. Por um lado, a cultura tem a ver com o inú- til; ela rompe com o útil e, portanto, também com qual- quer rol de necessidades, ou de gêneros de primeira ne- cessidade. Por outro, é evidente que, em tudo o que afir- mei, está presente a idéia de que a cultura seja neces- sária, no sentido de que é importante para nossa liber- dade e para a qualidade de nossa vida. Mas o ponto em que essa aparente contradição se resolve fica claro se compararmos a cultura (e a edu- cação, penso eu) com a saúde. Sabemos todos o que é estar doente e o que é ter saúde. Este conhecimento é quase intuitivo. Por isso, sei se o atendimento hospi- talar é bom ou mau. Posso ignorar os detalhes, mas em linhas gerais sei fazer a distinção entre o bom e o mau atendimento. Ora, no caso da cultura (e da educação), o céu é o limi- te. Nunca nos podemos saciar. Sempre pode haver mais. É nesse sentido que, enquanto uma política de saúde desenha limites, metas, finais, uma de cultura não tem como chegar a um máximo, a uma completude. É por isso que mesmo o que na cultura é necessário está se ligan- do a uma crítica do conceito de necessidade. Será necessária uma economia da cultura? Qual é a idéia, o mote das propostas do Ministério da Cultura? Reconhecer e apoiar a diversidade, as formas di- ferentes de expressão, de transmissão. Ao mesmo tempo, por serem programas de governo, há exigências a serem cumpridas: devem ter bom desempenho, quantitativa e qualitativamente. Seus promotores devem saber geren- ciar verbas, preencher planilhas. Daí, decorrem necessi- dades em termos de planejamento e gestão; daí, decorre a necessidade de uma economia da cultura. Pensando na sociedade como um todo, podemos re- fletir sobre três aspectos da cultura: • a criação – lado que envolve mais risco, mais novida- de, mais chance de dar certo, de dar errado; • a preservação – que é o lado que envolve patrimônio, a garantia de que um filme não vai desaparecer, de que um livro não vai ser comido pelas traças e tudo o mais (bibliotecas, museus são muito voltados a isso, pelo menos em princípio); Ora, no caso da cultura (e da educação), o céu é o limite. Nunca nos podemos saciar. Sempre pode haver mais. É nesse sentido que, enquanto uma política de saúde desenha limites, metas, finais, uma de cultura não tem como chegar a um máximo, a uma completude. É por isso que mesmo o que na cultura é necessário está se ligando a uma crítica do conceito de necessidade. 58 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 • a difusão - que é a razão principal de ser de uma bi- blioteca, de um museu, de um festival, das salas de cinema. A criação pode custar caro. Pode ter poucos benefici- ários dos recursos. Pode também dar errado. Esses são problemas mais ou menos inevitáveis. Criar geralmente – embora nem sempre – é mais caro que preservar. Daí, também, que as pessoas que recebam recursos para criar sejam em pequeno número. Isso cria conflitos internos, entre quem ganhou e quem não recebeu recursos, e também externos – entre a criação e as duas outras áreas que mencionei. Além dis- so, como não se sabe se vai dar certo, aqui sempre esta- mos mais perto da aposta que do investimento. Finalmente, há certos setores da criação artística que são mais caros que outros. A música clássica não é bara- ta, e provavelmente por isso as nossas melhores orques- tras tiveram duração limitada no tempo. Talvez por isso, também, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo - Osesp, depois de criada com enorme sucesso, mas a alto preço, passe, desde 2008, por uma crise, que teve como sinal mais visível a demissão do seu recriador: o custo de certas atividades artísticas é elevado a ponto de somente uma decisão política – sempre arriscada – sustentá-la . A Espanha surpreende: está produzindo quase 200 filmes por ano. Há inúmeras linhas de financiamento para o cinema. Contudo, há películas que não foram vis- tas nem por cem pessoas. Então há algo sobrando, há um excesso. O que se vai fazer? Se não se aplicar, vai sobrar dinheiro. É uma coisa engraçada, não é? Não de- veria sobrar dinheiro na cultura. Provavelmente ele está indo na direção errada. Na Espanha, é possível que áre- as da criação cultural estejam recebendo mais do que precisam, e outras, menos. Mas meu ponto é: na cultu- ra, nunca sobra dinheiro. Se está sobrando, é num setor; sempre se pode destinar esse dinheiro para outro rumo, em que ele faça uma diferença. A difusão é o mais óbvio numa política cultural. Ten- de, se não a ser a mais barata, a ter a relação menos pro- blemática entre custo e benefício. O investimento nela é relativamente baixo, em especial naquilo que deriva do que foi chamado a reprodução mecânica e que, hoje, foi bem além do mecânico – eu preferiria falar em reprodu- ção digital. O seu risco é cair para o entretenimento. A sua potencialidade é fazer que os espectadores ou usu- ários se tornem, a seu modo, criadores. Cadernos Cenpec 2010 n. 7 O exemplo, que citei, da menina que assistia à Flauta Mágica, e vinha a conhecer um novo mundo a partir des- sa ópera, mostra como ficam fluidas as fronteiras entre a criação e a recepção: esta, como insistiu a melhor teoria do século XX, será tanto melhor quanto mais criativa for. Por isso mesmo, aquele ecletismo que antes critiquei – dos homens cultos que eram médicos ou engenheiros e, além disso, conheciam Racine mas não o estudavam – passa a ser uma forma inferior de recepção, pouco dife- rente, em última análise, do entretenimento. É claro que há diferença entre essa pessoa culta que ouve música erudita e alguém que vai a um multiplex ver o último blockbuster; mas têm em comum, ambos, ficarem muito perto da passividade, não se alçarem à criação. Mesmo quando se quer que a difusão ajude a aumentar a criatividade. Essa linha de políticas culturais está mais aberta a uma economia e a um planejamento do que à criação propriamente dita. É, finalmente, a área que dá maior retorno de público e, portanto, político. A preservação, finalmente, é área que pode ser cara, embora geralmente seja mais barata que a criação; é a área que não é imediatamente visível e por isso não tem a popularidade que pode concorrer em favor da difusão e da própria criação; e é área que requer planejamento, administração, prestação de contas. Um ponto presente nas três áreas, mas diferente, é o das opções e de seu custo. Escolher o que difundir e o que criar (ou o que incentivar para criar, porque nem toda criação depende de verbas) é uma questão de prio- ridade. Não é uma questão de exclusão. No caso da pre- servação, pode ser questão de vida ou morte. Se decidirmos preservar tal obra e não outra, pode ser porque estejamos condenando a segunda à morte. Na verdade, há tal superávit de obras em relação à me- mória que delas se pode ter, que parte substancial de- las sucumbe ao tempo. Não falo em termos físicos, em termos de serem destruídas ou de se deteriorarem: sim- plesmente, são esquecidas. Mas, por isso mesmo, e na mesma linha, o que se vai conservar ou não é uma esco- lha – aqui, mais consciente – de memória. Por exemplo, se sabemos que Eduard Strauss, irmão menos conhecido de Johann Strauss Filho, compôs cen- tenas de valsas e outras músicas que hoje mal são toca- das, nem por isso suas partituras têm de desaparecer; mas, quando pensamos em algo cujo suporte físico faz parte da essência da obra, a decisão de preservá-la ou não já diz respeito a sua sobrevivência ou morte. Eis um tipo de escolha que não parece tão grave quando seu alvo é a criação ou difusão, porque, na pre- servação, se trata do passado, de um passado ao qual vai se dar futuro – ou negá-lo. Em outras palavras, dei- xar de criar (ou difundir) uma obra é uma coisa; matar uma que existe ou existiu é outra. Há assim certa tra- gicidade na preservação, ou nas escolhas que em seu nome se fazem. Estamos aprendendo a dar valor à cultura Acredito que o setor que trabalha com cultura tenha de se organizar um pouco mais. Faz parte da criação cultural ser um pouco desorganizada. Mas, no nosso caso, essa desorganização é grande e os gestores acabam defen- dendo pouco os interesses que são comuns. Os profis- sionais de ciência e tecnologia sabem defender melhor seus interesses e conseguem melhores resultados nas suas demandas ao governo por financiamento. Já a cul- tura tem orçamento menor e demanda bem maior. Há um ponto adicional. Desde o governo FHC, a rea- lidade que se está criando na cultura dá certa ênfase à ideia de economia e de planejamento econômico. A pró- pria cultura começa a ser levada mais a sério quando se diz que pode haver uma economia da cultura. Os gesto- res têm falado cada vez mais nela. Aliás, quando fui di- retor da Capes, tentei formatar um mestrado profissional em gestão de cultura. Foi esse um dos pontos principais do seminário que organizei em março-abril de 2005 so- bre o tema Para além da academia, que tratou de mestra- dos profissionais. O MinC ficou muito interessado numa conversa preliminar, bem como a secretaria estadual de São Paulo; mas nada se desenvolveu. Segundo o próprio MinC, a produção de música in- dependente no Brasil não aumenta ainda mais por falta de gestão. É grande a área de produção independente, mas falta gestão. Esse é um problema sério. Por outro lado, a cultura é altamente libertadora. Isso nem sempre facilita a sua organização. Ela sempre tem em seu cerne alguma violação da seriedade. E a políti- ca é muito séria, quase horrível. Vejam os reitores. Em qualquer universidade, a maior parte dos professores está vestida como gente normal, com roupa normal. Mas você vai à reitoria e encontra as pessoas de terno e gra- vata. O próprio reitor, quando vai encontrar outros rei- tores, o ministro e pessoas com poder, vai sempre de terno e gravata. Sua comunidade não usa esses trajes. 60 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Como ele representa assim a comunidade a que perten- ce? Sempre achei isso estranho. Acredito que a cultura pode ajudar muito o Brasil a construir uma sociedade melhor. Primeiro, porque temos um componente cultural muito forte na nossa socieda- de: nossa música popular, nossas novelas. São duas for- mas de arte em que o Brasil adquiriu uma excelência su- perior à maior parte dos países do mundo. Em outras ar- tes, nós temos um nível também muito bom, mas nes- sas duas, que são até mais para um público popular, o Brasil conseguiu uma diferença grande. E nós temos também recuperado muitas formas e ma- nifestações culturais de povoações que foram discrimi- nadas; estamos valorizando também aspectos que an- tigamente não eram tão valorizados. A própria culinária está sendo mais e mais reconhecida. Acho que há uma possibilidade de o Brasil investir muito nisso e assim ter uma sociedade mais equilibrada, mais justa e também uma sociedade mais criativa. O futuro vai ter muito a ver com justiça social e cria- tividade. E justiça social se torna necessária, porque as pessoas pobres não estão mais aceitando a pobreza da maneira subserviente como aceitavam antes. Elas se re- voltam, e isso é bom. Mesmo que, às vezes, a revolta ma- chuque, mas o princípio disso é bom. A outra coisa que é muito nova no mundo é a criativi- dade. Como nós não temos mais a vida como um pacote, quer dizer, você não tem mais um pacote de vida progra- mada – sou um homem de classe média alta, católico, vou ser engenheiro, vou me casar e ter filhos – indepen- dentemente de ser, por exemplo, homossexual, ateu, ou o que seja e não gostar dessa profissão. Mas como a nossa vida já não está prevista pelos nos- sos pais, podemos estabelecer outras condições, reali- zar o que é importante para nós no amor, no trabalho, nos relacionamentos, no lazer. Cada um de nós vai compor isso mais ou menos a seu gosto e dentro de suas possibilidades. Nossa época exige muito mais criatividade do que as anteriores. Tudo o que consiga ligar criatividade, que é a praia da cultu- ra, com justiça social e, portanto, redução da desigual- dade, redução do sofrimento humano, é algo que tem e precisa ter futuro. Precisamos agir seriamente por isso. NOTAS 1 Há uma tendência de pensadores anglo-saxônicos a usar “gênero”, mais do que “sexo”, para enfatizar o caráter não biológico, mas cultural, do que é masculino e feminino. Lembro que, na tradição continental européia, “sexo” não é uma determinação puramente biológica. Para se valorizar gênero contra sexo, é preciso primeiro reduzir a polissemia da própria palavra sexo. 2 Para detalhes sobre este curso, bem como os trabalhos dos alunos, ver http://renatojanine.pro.br/LEstrangeira/freedom.html. 3 Questão que tratei em meu livro O afeto autoritário – televisão, ética, demo- cracia (São Paulo: Ateliê editorial, 2005). A entrevista do programa Roda Viva a respeito pode ser lida em http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/113/ entrevistados/renato_janine_ribeiro_2005.htm. 4 Ver John Neschling, Música mundana, 2009. 61 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 * Maria Lúcia Medeiros é pedagoga, com experiência em Educação Infantil e Ensino Fundamental I; atua também como formadora de gestores. Como lidam os(as) professores(as) com a cultura da infância? Está claro para eles que as crianças têm uma cultura que as identificam? Cultura da infância, culturas da infância, cultura da criança, culturas das crianças? O que é isso, afinal? Sarmento define cultura da infância como a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e ação 1. A cultura infantil é tão antiga quanto a infância, ainda que se discuta sobre o momento em que o conceito de in- fância surgiu. A cultura infantil é única e ao mesmo tempo múltipla. Ela é situada, produzida e modificada dentro de um contexto histórico e social. Reúne aspectos que são próprios de uma dada cultura, em suas expressões e es- pecificidades locais, e outros que se relacionam com a geração, gênero ou faixa etária. A cultura de pares permite às crianças apropriar, reinventar e re- produzir o mundo que as rodeia, numa relação de convivência que permite exorcizar medos, construir fantasias e representar cenas do quotidiano, que assim funcionam como terapias para lidar com experiências negativas, ao mesmo tempo em que se estabelecem fronteiras de inclusão e exclusão (de gênero, de subgrupos etários, de status etc.) que estão fortemente implicados nos processos de identificação social2 . Fazem parte da cultura da infância as brincadeiras, gestos, palavras, rituais. São diversos elementos que as identificam, por meio dos quais elas se expressam, co- nhecem o mundo, estabelecem relações, lidam com seus RELATO DE EXPERIÊNCIA: projeto brincar. A cultura da infância e a formação do professor Maria Lucia Medeiros* medos, angústias, alegrias, se socializam, aprendem, criam e reinventam o mundo de maneira criativa. Apesar de as crianças estarem inseridas em uma cul- tura que lhes é própria, nem sempre observamos um en- tendimento e um olhar cuidadoso dos adultos sobre ela. Nesse sentido, Mouritsen (1997) constata que as culturas da infância realizam-se frequentemente por oposição e numa atitude de contraponto crítico ao projeto educacional, numa espécie de “divisão de trabalho” entre as culturas societais (adul- tocentradas) escolarmente transmitidas e as culturas infantis3 . A idealização da criança A partir de preocupações como as expostas, nasceu o Projeto Brincar: o brinquedo e a brincadeira na infância. Sua origem está ligada a indagações em relação ao lu- gar que a brincadeira infantil – uma das expressões da cultura da infância – vem ocupando dentro das institui- ções de atendimento à infância. De um lado, cresce a defesa dos direitos da infância, da brincadeira e de a criança se expressar enquanto tal. De outro, observamos um entendimento ainda pouco claro sobre a natureza da brincadeira e, consequente- mente, da infância. Será que brincar é a mesma coisa que realizar ativida- des lúdicas, recreativas, com objetivos puramente didá- ticos? Como sensibilizar e subsidiar os professores para olharem para aquilo que é próprio da infância? Como tra- zer para dentro da escola a cultura da infância? Essas questões fazem parte do foco central do Proje- to Brincar, que, desde 2005, vem realizando formação de educadores(as) – professores (as), gestores(as) de escolas e gestores(as) de secretarias de educação – de diferentes municípios do Estado de São Paulo e de Minas Gerais. Um foco de trabalho é levar o(a) educador(a) a olhar para as crianças não como seres idealizados (é muito co- 62 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Vários aspectos vêm mudando na minha prática, mas acredito que os mais importantes foram o fato de eu estar me esforçando para dedicar mais tempo às brincadeiras e o fato de eu ser mais tolerante com brincadeiras cujo tema é a violência, pois passei a entender que se a criança as realiza é porque tem necessidade de fazê-lo. Ana Paula Magdalena – São Carlos, 2008. Para mim, o que mais me motivou foi o resgate das brincadeiras do tempo de criança, pesquisar junto aos pais e avós, lembrar momentos preciosos que pude vivenciar com as crianças. Elisangela – São Carlos, 2008. Não é só simplesmente brincar e pronto! Você planeja a brincadeira, mas não sabe até onde ela vai chegar – ela vai além. Comecei a brincar com o que a criança traz, não só com o que o Projeto propõe. Todo mundo aprende, todo mundo ensina. Adriana, Lorena, 2009. Cada educador/participante valoriza um aspecto dife- rente abordado nas formações: as suas lembranças de in- fância através de brincadeiras ou sensações; a ampliação do repertório de brincadeiras da tradição infantil; novas maneiras de olhar para os temas presentes no brincar, nas palavras e nos gestos infantis; a importância de permitir um contato mais próximo com a natureza, entre outros. Para cada um valeria um vasto comentário. O que se liga a todos e é importante refletirmos é a importância de abrirmos mais e mais as portas da escola para essa cultura infantil, tão rica de possibilidades, imaginação, criação, sabedoria e encantamento. Notas 1 SARMENTO, M. 2009. 2 SARMENTO, M. 2009. 3 SARMENTO, M. 2009. Referências KRAMER, S. & LEITE, M.I. Infância: fios e desafios. Campinas, SP: Papirus, 1996. HORTÉLIO, L. “É preciso brincar para afirmar a vida”. Disponível em: http://www. almanaquebrasil.com.br/podcast/papo-cabeca-com-lydia-hortelio/; acesso: 23 de fevereiro de 2010, 18:05. MOURITSEN, F. Cultura infantil – cultura lúdica. ___ In: Childhood and Children’ s Culture. University of Southern Denmark (tradução adaptada de Adriana Friedmann), 2009. SARMENTO, M. As culturas da infância na encruzilhada da 2a modernidade. Disponível em: http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/textos/ encruzilhadas.pdf; acesso: 23 de fevereiro de 2010, 18:10. SARMENTO, M. Imaginário e culturas da infância. Disponível em: http://www. cce.udesc.br; acesso em 7 de outubro de 2009. SIROTA, R. Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. In: Revista Éducation et Societés, n. 2, p. 9-33. 1998. Sites http://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/mapadobrincar http://www.casaredondacentrodeestudos.com.br mum ouvirmos: “a infância é um período de vida da pu- reza, da inocência”), mas como seres que têm uma ma- neira de agir distinta da do adulto, que se expressam por meio de diferentes linguagens (corporal, plástica, musi- cal...) e que estão ávidos por conhecer o mundo. Para isso, reavivam-se as memórias de infância dos próprios educadores(as). Através delas, o grupo em for- mação começa a perceber as diferentes formas como cada um viveu a infância, as diferentes maneiras de agir, de sentir, de ser criança, e, dessa maneira, gradativamen- te, vão se dando conta do quanto a escola ainda guarda a expectativa de encontrar um aluno idealizado, que se “comporte”, seja “atento” ou fique “quieto”. Outro foco importante é o compartilhamento e realiza- ção de brincadeiras do repertório tradicional, patrimônio cultural da infância e, portanto, da sociedade em geral: brincadeiras cantadas, de roda, de “mão”, brincadeiras com bola, pega-pega, brincadeiras da tradição oral (adi- vinhas, parlendas, trava-línguas), entre outras. Os participantes também são incentivados a obser- varem as crianças que os rodeiam, em outros espaços, para além da escola – nas praças, ruas, parques, no bair- ro –, e verem como elas brincam hoje. A proposta é que verifiquem como essa cultura de pares acontece em si- tuação de livre interação. Abrir a escola para a cultura infantil Paralelamente a essas vivências, realizam-se estudos e reflexões a partir de autores especialistas no assunto e das práticas dos participantes. Muitos têm sido os de- poimentos dos educadores, em formação pelo Projeto, valorizando a importância de relembrarem suas infân- cias, aumentarem seus repertórios de brincadeiras e re- fletirem sobre o assunto. O mais importante pra mim foi resgatar o passado (criança) e vivenciar quais são as sensações, sons e sentimentos que trans- mitimos às crianças. Gisele M. Miranda – Sertãozinho, 2009. A escola não domina o brincar; por isso tem tanta dificuldade de incorporá-lo no seu cotidiano. Rose – Jundiaí, 2009. Como em todos os encontros, o elemento marcante é a simplici- dade. E é assim que vejo a Educação Infantil, pois é através de elementos simples que ela acontece. Terezinha Ribeiro – Lorena, 2009. 63 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 O Projeto Brincar integra o Programa Território Escola, iniciativa da Fundação Wolkswagen com coordenação técnica do Cenpec, e se constitui em uma proposta de formação de educadores para que aprimorem suas práti- cas com relação ao desenvolvimento de atividade recre- ativas, lúdicas e expressivas com as crianças. Seu objetivo é formar profissionais e voluntários que trabalham com crianças para que reconheçam o brincar como direito da criança, ampliem conhecimentos sobre o brincar e aprimorem sua prática em relação à brinca- deira infantil. O programa de formação tem duração de dois anos e consiste na realização de sete oficinas no primeiro ano e cinco no segundo ano, com oito horas de duração cada, perfazendo um total de 96 horas, distribuídas em inter- valos regulares ao longo dos dois anos letivos. O repertório de brincadeiras, o faz-de-conta, os valo- res que emergem e são construídos no brincar, a intera- ção adulto-criança e criança-criança, o acervo de brin- quedos, o uso do tempo e do espaço na unidade de edu- cação infantil, a valorização de diferentes espaços de brincar, a articulação da unidade educacional com ou- tros espaços e instituições da comunidade são conteú- dos da formação. Vivências de brincadeiras, relatos, registros orais e escritos, estudo de textos e discussões de práticas são realizados durante as oficinas, estabelecendo-se rela- ções com as teorias e buscando-se soluções conjuntas e propostas de encaminhamentos para as questões que os educadores trazem. A formação é oferecida em duas modalidades: - formação de educadores que atuam direto com crian- ças em creches, EMEIs, escola de ensino fundamental e outras instituições que trabalham com crianças; - formação de gestores de secretarias de educação para que disseminem o projeto no município formando ou- tros educadores. Os educadores que atuam diretamente em institui- ções de educação infantil têm o compromisso de elabo- rar e desenvolver um plano de ação que tenha por ob- jetivo transformar um ou mais aspectos relacionados ao brincar em sua unidade de trabalho. Os coordenadores pedagógicos, quando integram o grupo, têm o compro- misso de socializar o projeto na unidade educacional, en- volvendo o maior número possível de educadores. A formação de gestores tem sido um marco do projeto, pois possibilita irradiar para um número cada vez maior de educadores uma cultura de valorização do brincar. Os par- ticipantes vêm para a formação no Cenpec com o compro- misso de formar os educadores de sua rede de ensino e de envolver a comunidade conscientizando professores e fami- liares sobre a importância da brincadeira para a criança. Projeto Brincar 64 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Além das oficinas de formação são realizadas visitas a municípios e unidades educacionais e coletados da- dos por meio de instrumentos escritos, tendo em vista o acompanhamento e avaliação do projeto. Histórico O Cenpec já havia realizado, em 1989, um projeto cen- trado no brincar que teve como produto o livro Memó- ria e Brincadeiras na Cidade de São Paulo nas Primeiras Décadas do Século XX. Em 2005, por meio de parceria estabelecida entre a Fundação Volkswagen, o Cenpec e a Secretaria Munici- pal de Educação de São Paulo, o Projeto Brincar foi re- alizado nas unidades municipais de educação infantil, abrangendo auxiliares de desenvolvimento infantil, pro- fessores de desenvolvimento infantil, professores titula- res e adjuntos de educação infantil, coordenadores pe- dagógicos, supervisores escolares e auxiliares técnicos de educação. Em 2006 o projeto foi desenvolvido com 31 creches conveniadas com a Prefeitura de São Bernardo do Cam- po e com representantes de outros 21 municípios do Es- tado de São Paulo. O projeto passou por uma reformu- lação de objetivos e conteúdos tendo em vista maior in- tegração com o Programa Território Escola. Houve tam- bém a escrita da versão preliminar de uma publicação com conteúdos da formação. Em 2007, o projeto foi ampliado com a entrada de mais 24 municípios, totalizando 45 municípios partici- pantes. A carga horária da formação também foi am- pliada, passou a ter dois anos, totalizando 12 encontros de oito horas e sete visitas de acompanhamento às ins- tituições participantes. Desse modo o projeto passou a ter quatro turmas de formação: duas em continuidade e duas iniciantes. Neste ano foi elaborado um DVD com o repertório de brincadeiras e outros conteúdos do pro- jeto para ser utilizado como apoio aos educadores em seu trabalho na unidade educacional ou como multipli- cador do projeto. Em 2008, deu-se continuidade às formações das tur- mas que iniciaram em 2007. Desse modo o projeto foi novamente reduzido a duas turmas de formação – uma in loco (diretamente com professores de educação in- fantil) e outra “por representação” (com representan- tes de municípios que trabalhavam como multiplicado- res do projeto). Fonte: Acesso: 23.novembro.2009, 20:29 65 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 professores em formação do projeto brincar - acervo do projeto brincar 66 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 entrevista Democracia, participação e cultura. ernardo Toro é um intelectual colombiano e um dos mais importantes pensadores de educação e democra- cia na América Latina. Estudou Filosofia, Física e Mate- mática e fez pós-graduação em Investigação e Tecnolo- gia Educativa. É decano Acadêmico da Faculdade de Edu- cação da Pontifícia Universidade Javeriana (Bogotá, Co- lômbia) e autor dos livros A Construção do Público: ci- dadania, democracia e participação, Educação, Conhe- cimento e Mobilização e Fala Mestre : Precisamos de Ci- dadãos do Mundo. Elaborou uma lista na qual identifica as sete com- petências que considera necessárias desenvolver nas crianças e jovens para que eles tenham uma participa- ção mais produtiva no século 21. São os Códigos da Mo- dernidade: 1. Domínio da leitura e da escrita; 2. Capacidade de fazer cálculos e resolver problemas; 3. Capacidade de analisar, sintetizar e interpretar da- dos, fatos e situações; * Entrevista concedida à jornalista Marta Porto. foto à esq.: bumba meu boi do maracanã/ma; cortejo das culturas populares 23 ispa congresse são paulo 2009. autoria: verônica manevy. B Bernardo Toro * 67 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 4. Capacidade de compreender e atuar em seu entorno social; 5. Receber criticamente os meios de comunicação; 6. Capacidade de localizar, acessar e usar melhor a in- formação acumulada; 7. Capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo. Marta Porto entrevistou Bernardo Toro para o projeto Coleção Viva Cultura Viva, em maio de 20091 . O que acontece depende de nós e não do destino Marta Porto: Você poderia falar um pouco sobre a ques- tão da democracia, explicar como a cultura se relaciona com a definição que você faz de democracia que é, basi- camente, construída sobre princípios éticos? Bernardo Toro: O que é a cultura hoje, ou o que é a cul- tura do ponto de vista democrático? É a criação de condi- ções estáveis para que os diferentes sentidos, que produ- zem os diferentes grupos de uma sociedade, possam cir- cular e competir em igualdade de condições. do possam circular e competir? Isso porque, se os senti- dos não circulam e não competem, não existem. O que aconteceu conosco historicamente? Aconteceu que a forma de circulação de sentido na sociedade ocidental excluiu alguns deles. Durante sé- culos, a forma de ver o mundo – de ver o negro, o índio, o imigrante, o camponês, o pobre, a mulher – não cir- culou nem competiu. Como todo sentido cria uma for- ma de ver o mundo, isso quer dizer que nós nos acos- tumamos a ver o mundo somente por um número deter- minado de sentidos e não pudemos construir um mun- do para outros. O desafio que tem a cultura, a comunicação e a po- lítica é como estruturar arquiteturas para que todos nós possamos circular e competir. De alguma maneira, é a vantagem que têm invenções como o twitter, o facebook, o YouTube ou até mesmo a própria internet: é possível re- alizar um jogo de sentido com poucos recursos. A democracia em si mesma não é uma ciência, não é uma doutrina. A democracia é uma forma de ver o mun- do. E essa forma de ver o mundo pressupõe algumas coi- sas elementares. Como a democracia é uma cosmovisão, ela possui al- guns princípios. O primeiro princípio é o da secularidade: é quase como aceitar a frase de que a democracia surgiu com um grafite; que, na democracia, não houve uma in- venção acadêmica nem nada. Estavam reunidos alguns senhores, chamados sofistas, e um dia escreveram que “a ordem dos homens não depende dos deuses, depen- de dos homens”. E eles complicaram a história. Os gregos eram transcendentais. Eles acreditavam em outra vida. Mas achavam que a outra vida era pior do que esta. Isso é como dividir o mundo entre o mun- do dos deuses e o mundo dos homens. Os deuses ti- nham atribuições humanas, mas não trabalhavam e não tinham nada para fazer. Parte da diversão dos deu- ses era definir a vida dos mortais: daí vem o conceito de destino. Ou seja, Zeus, o maior dentre os deuses, para se divertir e para ter o que fazer, determinava como de- veria ser a vida de alguém. Por isso, antes da democra- cia, existiram a tragédia e a epopéia, porque tudo esta- va determinado. Entre os séculos V e IV antes de Cristo, surgem os so- fistas, que dizem: “Senhores, se existe ou não existe outra vida, isso não é problema; o problema é que aqui onde estamos tudo o que acontece depende de nós e não do Olimpo”. O sentido é a razão de existência para alguém no mundo. Se alguém perde o sentido, se suicida. É o que mantém alguém vivo, como dizia um escritor colombia- no: “Apesar de saber que a morte está aí, o sentido lhe conserva a esperança”. Do ponto de vista democrático, em relação à cultura, a primeira pergunta é: como gerar estruturas para que as diferentes formas que os diferentes grupos humanos têm de ver o mundo, de construir o mundo, de estar no mun- 68 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Com esse conceito nasce a democracia. Por isso foi possível o nascimento do esporte, do teatro, da história. Porque, se existe destino, não existe drama, tudo está de- terminado; se existe destino, não há competição, porque alguém está condenado a ganhar e outro a perder. Dessa forma, não poderia haver nem esporte nem história. Precisamos da liberdade para construir a história O primeiro aporte que a democracia nos dá é o de que “nós somos os donos da história”. É um aporte cul- tural enorme, porque nos dá a base para conceitos mais complexos, como o de autonomia. O que aconteceu na América Latina não foi a chegada do projeto democrático, e sim do projeto liberal. O que nos vendiam como democracia era o liberalismo econô- mico, ou seja, a liberdade de vender e a liberdade de comprar; não a liberdade de construir a história. O outro conceito fundamental da democracia é o con- ceito de autofundação, que está no cerne do conceito de liberdade. Dito em outras palavras, seria: “a liberdade não existe sem a ordem, mas a única ordem que produz uma liberdade digna desse nome é a que eu construo em cooperação com o outro”. Esse conceito de autofundação, que também é gre- go, sustenta o conceito de autonomia. A autonomia é uma cultura que não foi passada para nós. Toda a nos- sa história, nesses últimos 500 anos, não é uma propos- ta de autonomia; é uma proposta de heteronomia: o ou- tro, o colonizador, nos diz o que é bom, o que é correto, o que nos salva. Nesse sentido, encontramos essa presença de auto- nomia na constituição do Brasil; depois, na da Colôm- bia, Venezuela, Bolívia, Equador etc. Todas estão tentan- do fundamentar o conceito de autonomia para enfrentar toda uma lógica cultural de heteronomia. E, hoje, a autorregulação é o grande desafio para as sociedades contemporâneas, mais para nós do que para os outros, porque ainda pensamos que existe alguém que vai nos dar a ordem, a liberdade; ou seja, que os próce- res nos darão a liberdade (isso porque o Brasil ainda não tem tantos problemas assim). E nos esquecemos de que ninguém pode dar a liber- dade a uma sociedade, assim como ninguém pode dar liberdade a uma pessoa. Se a pessoa não decide por si mesma autorregular-se nunca vai poder ser livre. Então, questões como confiança, produtividade, honestidade, convivência e estabilidade de relações para fortalecer as instituições dependem do grau de formação interior de autonomia que tenha cada cidadão dentro de uma so- ciedade. E isso não é um problema cultural; é um pro- blema de sentido. O outro ponto da democracia como projeto cultural é o problema do sentido completo. A democracia ensina que não há uma ordem perfeita. Há uma ideia geral de dignidade, de que devemos nos reinventar todos os dias. Não existe um modelo de democracia que possamos co- piar ou imitar. Devemos criar um modelo para cada so- ciedade: pode-se aprender com os outros, mas não se pode imitar de nenhuma maneira. A importância da criação da coisa pública O próximo ponto é o conceito de conteúdo ético, ou seja, de que a democracia é antes de tudo uma aposta ética. Quais arquiteturas e condições são necessárias para que o poder seja digno? Pois a dignidade, do pon- to de vista democrático, não é um presente per se, e sim uma construção. Primeiro, a democracia construiu o conceito do que é público. Os gregos nunca consideraram o conceito de pri- vado; este foi um conceito dos romanos. Os gregos tam- bém consideram o conceito de secularidade e de auto- fundação. O conceito de ética estava presente, apesar de com pouca ênfase, pois a democracia não era somente para os patrícios. Esse é um dado importante. 69 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Os romanos geraram o conceito de privado, o concei- to de bens, mas, sobretudo, fundamentaram o concei- to de pessoa. O conceito de pessoa que a democracia tem é um conceito de ordem cristã. Depois, Lutero gera o conceito de liberdade de consciência. Posteriormente, na América Latina e Índia, com Só- ror Juana Inês da Cruz, no fim do século XVIII, se forma o conceito de gênero. Pouco a pouco, fomos construindo e inventando os conceitos e cada vez vamos aprendendo mais sobre quais são os conceitos democráticos, porque estamos aprendendo sobre a dignidade humana. Hoje, já sabemos que determinados delitos ou certas coisas feitas durante a trajetória da democracia são pas- síveis de julgamen- to: depois que um espanhol dá uma ordem à polícia in- glesa para que pren- da e mande para a cadeia um ex-pre- sidente2 do Chile, o mundo se globali- zou; começou a glo- balização da digni- dade de direitos. O outro concei- to, que é muito an- tigo, mas que ainda não pudemos entender, é o concei- to de público. É um conceito que se desenvolveu com a cultura dos Estados Unidos: é que a democracia e o pú- blico se constroem a partir da sociedade civil, o que vai totalmente contra os conceitos de que o público se es- tabelece perante o Estado. A história concreta dos Estados Unidos nos mostra como os norte-americanos têm múltiplas origens. Às ve- zes, nos esquecemos de que os EUA são formados por imigrantes: em um momento determinado, chegam suí- ços, alemães, irlandeses, ingleses, italianos, para cons- truir um projeto luterano. Não falam o mesmo idioma, não têm as mesmas tradições, não comem a mesma co- mida e nem se vestem da mesma maneira. Por isso, nos EUA, não existe idioma oficial; existe um que prevale- ce, o inglês. Agora o idioma espanhol está prosperando e pode vi- rar a língua dos EUA, pois ali não há um idioma oficial, já que é um país de imigrantes. Eles se encontram numa si- tuação em que todas as instituições que deixaram na Eu- ropa não lhes servirão na América. Mas podem aprender com elas. E decidem criar novas instituições através de suas visões: criam a escola, o correio, a cantina, a igre- ja, ou seja, eles constroem tudo. Como? As pessoas comuns, sucessivamente, vão construin- do, como fizeram as pessoas de Boston: “Vamos cons- truir uma universidade”. E a fizeram. Essa capacidade que a sociedade norte-americana tem de criar aquilo que é público talvez seja um dos aspectos mais importantes da cultura democrática moderna ou atual. Se hoje me perguntassem: – Qual seria o grande aporte para a América Latina se transformar? Eu respondo: – É ter uma socie- dade civil que enten- da isso, que seja ca- paz de reinstitucio- nalizar tudo: o Esta- do, os bens públi- cos, tudo, desde uma mesma socie- dade, porque a his- tória que temos é a de que os bens foram trazidos de barco. Entre nós, falta convivência entre jovens ricos e pobres. Marta Porto – Como se faz isso? Há um dado que eu acho importante na sua fala. Quando você diz que a democracia se constrói também ampliando os imaginários, os diálo- gos, os sentidos, as representações, existe um risco: temos observado hoje que a cultura, num determinado momento, também se converte em recrudescimento, em conflito, não naquele conflito bom, que deve permear toda democracia, mas o conflito que confronta e tenta excluir o outro. A partir de que princípios se desenha uma política que consiga fazer com que essas questões culturais, ao serem ampliadas, não se convertam em fonte de confronto e sim de convivência e de cidadania? 70 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Bernardo Toro: Há muitas formas de convivência pací- fica. A democracia é uma das que aceita o conflito como condição da convivência. Houve países que viveram anos de glória, de convivência e de paz com a monarquia; hou- ve países que viveram anos de paz e de glória com a re- pública. A democracia trata de construir, trata de nos salvar. A verdade é que ela traz uma condição de entrada que faz com que o modelo de convivência seja único. Em todos os modelos de governo, pressupõe-se que o poder esteja fora da sociedade. Por exemplo, a monarquia pressupõe questões de sangue, de descendência; quando nasce um menino ou uma menina na monarquia, há uma festa, não porque nasceu uma criança, mas porque a geração vai conti- nuar. Nas ditaduras a ordem está fora: alguém coage o ou- tro e estabelece uma ordem de fora. No populismo, há uma adoração: eu te pre- senteio com meu po- der e renuncio à mi- nha capacidade. A democracia pressupõe que não exista nada fora e sim no interior dos seres humanos comuns e que eles sejam capazes de criar uma consciência democrática. Esse modelo de- pende muito do tipo de imaginário que cada sociedade possui sobre o outro; ou seja, como nós construímos e tornamos possíveis e cotidianos os direitos humanos e a garantia de uma vida digna para todos os homens, se- jam eles brancos, negros, índios, imigrantes, campone- ses, mulheres etc. Essa diferença que imputamos ao outro fez com que o projeto de convivência na América Latina tenha encon- trado muitas dificuldades. Pois também não temos mui- tos elementos de articulação, visto que as arquiteturas sociais que construímos mantêm a divisão institucional, territorial, social etc. Claro que temos um problema começando pela esco- la: é significativo o fato de que temos educação priva- da e educação pública diferentes. Dessa forma, em seus processos de formação, o filho de um homem rico e o fi- lho de um camponês nunca se encontrarão com o filho de um industrial, do intelectual famoso. Ou seja, a con- vivência entre eles será muito difícil quando se torna- rem adultos, porque não existiu um sistema de encon- tros quando eram jovens. O método mais fácil, inventado há muito tempo, pode ser exemplificado nesta história que reúne alemães e franceses e aconteceu depois da Segunda Guerra Mun- dial. Esse problema entre alemães e franceses, entre nós, não tem solução. Vamos nos odiar desde que fize- mos a guerra. Mas não podemos passar essa experiência às crianças. Então faremos o seguinte: faço-lhes o con- vite para que, no verão seguinte, vocês nos enviem to- das as crianças que possam ir à Alemanha nas férias. Va- mos tentar atendê- las da melhor ma- neira possível. E nós enviaremos todas as crianças que pude- rem ir à França nas férias. Se conseguir- mos fazer com que os jovens se encon- trem quando ainda são jovens, quan- do eles se tornarem adultos não resol- verão os problemas com violência. Esse modelo foi adotado por outros pa- íses. E este é um dado importante: os filhos da guerra fundaram a União Europeia, porque conseguiram gerar arquiteturas de encontro entre os jovens. Uma das decisões mais importantes que alguém pode tomar na América Latina, no interior dos países, é conse- guir homologar espaços de encontro entre todas as crian- ças: índios, brancos, negros, imigrantes, ricos e pobres. Assim como fomentamos o turismo de adultos entre os países, devemos fazer o mesmo com os jovens. Há alguns anos, eu estava em São Paulo dando uma conferência, e um empresário me perguntou: – Se o senhor tivesse todo o poder do mundo, que decisão tomaria para a América Latina? Eu lhe respondi: – A decisão é muito fácil: eu faria um trem de alta velocidade do Rio Bravo, na fronteira do México com os EUA, à Terra do Fogo, que junta Chile e Argentina, com integrações para São Paulo e Rio de Janeiro. Para que uma garota vá à Califórnia ou à Cidade do México 71 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 e diga: “Vou e voltarei apaixonada pela Cidade de San- tiago, ou Montevideo”. E o mesmo poderia fazer um garoto no sentido contrário. Se fizéssemos um sistema no qual esses garotos pudessem se encontrar, as inte- rações políticas, econômicas e sociais e a convivência internacional para nós seriam possíveis. E estaríamos em ótimas condições de realizar grandes projetos oci- dentais. Mas enquanto não chegamos a isso, nos dará muito trabalho fazer um projeto relevante na América Latina e até mesmo desenvolver simples articulações políticas e de soberania. E no interior de um país acontece a mesma coisa. Se o Brasil não consegue criar um sistema de integração entre garotos do Rio Grande do Sul e garotos da Paraíba, para que se sintam comuns, cidadãos de um mesmo país, vai ser muito difícil acertar a elaboração de projetos conjun- tos. E estamos falando do mesmo país. O mesmo acon- tece na Colômbia. Espaços que agregam e subtraem valores Marta Porto - Falando na Colômbia, um dos troncos principais do planejamento, especialmente em Bogotá, foi ideia de uma cultura cidadã juntamente com todas es- sas questões que você está abordando. Isso seria possí- vel no Brasil, onde você tem uma organização institucio- nal que está se sofisticando, mas ainda uma baixa parti- cipação da sociedade civil? Bernardo Toro: Para responder essa questão, te- nho de responder o que é uma cidade. Uma cidade é um acúmulo de energia, que se caracteriza pelo núme- ro de transações que agregam valor ou que subtraem valor. Uma cidade na qual os problemas são os edifí- cios, os automóveis não são uma questão fundamen- tal. O que torna São Paulo mais importante do que o Rio Grande do Sul? Simplesmente o fato de ser uma sociedade que per- mite grande número de transações que agregam valor. Há pouco tempo, Bogotá era a cidade mais insegura de toda a América. Sem dúvida, porque havia muitas tran- sações que lhe subtraiam valor. Um assalto é uma tran- sação que subtrai valor; um assassinato é uma transa- ção que destrói todo o valor. Uma cidade que possui muitas transações que agre- gam valor é uma cidade importante. Ou uma rua. A Ave- nida Paulista é importante porque, em uma quadra, po- dem ser feitas muitas transações de diversos tipos: ca- sar, mandar uma correspondência, fazer uma ligação, re- alizar negócios, pedir empréstimos, comer. Essa é a im- portância de uma rua – ali se realizam transações que agregam valor. Uma rua em São Paulo é insegura porque há mui- tas transações que subtraem valor; ou é irrelevante, se não há transações. Isso é o que faz a importância dos lugares. Mobilizar líderes dos ambulantes, empresários, prostitutas etc. Uma pergunta crucial é: como se transforma uma ci- dade? Poderia ser com a participação das pessoas, das comunidades. Mas a participação é um mecanismo. A pergunta seguinte é: como se criam as condições para que possa haver a participação? A cidade é um bem público. Não é um bem de um setor da economia, e sim um bem público. Ela tem de servir a todos da mesma maneira; tem de ser importan- te para o rico, o turista, a polícia, o comerciante, a pros- tituta, ou seja, boa para todos, para que seja uma cida- de valorizada. Não podemos cair na armadilha de que a cidade é boa para alguns e ruim para outros. Ela tem de ser boa para todos. Antanas Mockus3 foi o prefeito eleito para desenvolver a transformação de Bogotá de acordo com a proposta cons- 72 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 truída durante a gestão de Jaime Castro. O que se fez em Bo- gotá com a participação da cidade foi criar condições para a posterior chegada de Mockus. Criamos em 1994 o plano Bogotá 2000. E foi com Mockus que se fez o movimento de cidade. Mas quem criou as condições foi Jaime Castro4 . Foi com ele que aconteceu o primeiro movimento de cidade. Na realidade, Mockus vai nos levar para outros níveis de organi- zação de cidade. Mas a origem foi como reunimos as elites – entendendo por elite a pessoa ou grupo cujas decisões podem modificar o modo de pensar, de sentir ou de atuar em grandes setores dentro de uma população. Seria como aceitar o grande banqueiro da Colômbia, com o grande líder dos vendedores ambulantes, com o lí- der comunal, com o líder empresarial, ou seja, com os que organizam a cidade, com a líder das prostitutas, com os líderes dos movimentos de imigração. Juntamos todas as 132 pessoas – a elite não tem mais que 150, 160. E quan- do elas estão juntas, numa mesa, tudo é possível. Porque são elas que geram a legitimidade; são elas que possuem as leis e os recursos; são elas que possuem o dinheiro e movem a cidade. Por isso, quando todos se reúnem numa mesa, o que acontece é que sempre con- fundimos a classe com o dinheiro. E isso é um erro. Então foi muito fácil, facílimo. Precisávamos produzir uma informação e necessitávamos que toda a cidade es- tivesse informada sobre as discussões. Através das pró- prias redes das elites, isso foi feito a um custo ridículo. Não custou nada. Na primeira Discussão de Bogotá, custou 100 dólares para informar toda a cidade de Bogotá. Porque a rede de vendedores ambulantes se comprometeu a passar um comunicado de mão em mão a toda a cidade. Em 48 ho- ras, seis milhões de pessoas sabiam do que se tratava, porque a rede estava lá e funcionando. A participação é um mecanismo que, para ser legiti- mado, precisa estar dentro do sistema. Senão, converte- se em conversas, em resistência ou em luta. Para poder compartilhar uma ideia é necessário agir em redes, pois elas já dominam todo o sistema e permi- tem a participação de diferentes formas: há pessoas que esperam estar informadas; há pessoas que somente es- peram ser consultadas; há pessoas que esperam o convi- te para que possam debater; e há pessoas que esperam que as corresponsabilidades lhes sejam impostas. Em um trabalho de grupo, alguém escolhe um proje- to para ser corresponsável; outra pessoa quer apenas in- formar, participar do projeto de comunicação. As pesso- as não têm a mesma intenção de participação em todas as coisas. É importante compreender esse fato dentro de uma cidade, para saber quais setores querem ser in- formados, quais querem debater sobre alguma coisa ou quais querem ser consultados ou corresponsáveis. Por- que querer que todos sejam corresponsáveis não é uma ideia válida. Utilizamos todos os mecanismos possíveis para sensibilizar e mobilizar a sociedade, mas nos depa- ramos com um problema: como envolver os jovens? Negociar um imaginário coletivo da cidade Marta Porto - Em várias cidades da América Latina – Rio de Janeiro, São Paulo, as grandes metrópoles, Bogotá –, na última década, passou-se a pensar muito nos grupos cultu- rais de teatro, de hip-hop, como grupos que poderiam mini- mizar os efeitos da violência urbana. Atualmente, acredita- mos que isso submeteu essa ideia do fenômeno cultural ao fenômeno social; ou a uma visão conservadora da vida, a de que toda atividade ou atitude cultural tem de ter algum vínculo com as questões urbanas, sociais e tal. Como é que podemos resguardar esse caráter transcendente de que os gregos falam tanto, da arte e da cultura, não no sentido de proteger direitos, mas de imaginar novos direitos? Bernardo Toro: Um dos problemas que tive quando era gerente de uma empresa de televisão, e um frequen- te motivo de dificuldades com alguns grupos artísticos, era que, na América Latina, prosperou muito, através da esquerda, o conceito de que, se você era um artista cen- tral, estava vendido ao sistema. Isso gerou uma confu- são conceitual muito forte no desenvolvimento cultural na América Latina. 73 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Vou dar um exemplo: quando decidimos o imaginá- rio de Bogotá 2000, no ano de 1994, foi muito fácil che- gar até ele: uma sociedade segura, uma capital altamen- te produtiva, uma cidade boa para viver. Foi muito fácil chegar a esse ponto porque todo mundo chegou ao “isto é o que queremos”. Mas o movimento de uma sociedade é sempre pelo imaginário que queremos, ou seja, ninguém vive em São Paulo, você vive no imaginário, ou vem visitar o imaginá- rio que possui de São Paulo. Porque São Paulo não co- nhece ninguém, ou seja, é toda uma cidade imaginária e todas as cidades são imaginárias. Se você quer transfor- mar uma cidade, é necessário negociar um imaginário co- letivo. Mas de maneira que acerte e saia bem. A partir do momento em que se tem o imaginário, emerge a pergun- ta: e quais são os elementos para torná-lo realidade? Um deles é a ética. É fundamental que o imaginário tenha um norte ético. Segundo, a política. Não em termos político-partidá- rios, mas a política com o poder que armamos as redes sociais para fazer convergir todos os interesses na dire- ção do imaginário. Porque a política não é a arte de po- der, e sim a arte dos interesses, de conduzir e criar re- des de interesses. Política é isso. Se a convergência é realizada, tem-se o poder; se não, não se tem nada. Os sistemas educativos precisam introduzir as ideias básicas das convenções humanas: o conceito de con- vivência, as aprendizagens básicas da convivência, os princípios básicos da democracia e os códigos da mo- dernidade. Como Bogotá é uma cidade de imigrantes, foi traba- lhada com 20 mil professores, uma geração que quises- se ser “Bogotá”, porque até esse momento se dizia: “Eu vivo em Bogotá ou nasci em Bogotá, mas sou de... ou- tro lugar”. Houve um acordo com todos os professores: todos dessa geração iam se declarar de Bogotá. “Meu pai é de tal lugar, mas eu sou de Bogotá.” Todos aprenderiam o hino de Bogotá, o mapa de Bogotá, ou seja, tudo. Um dos problemas que tinham os artistas na Colôm- bia é que não podiam usar as cores da bandeira para fa- zer coisas atrativas. Não havia tradições do manuseio da bandeira nem de suas cores: amarelo, azul e verme- lho. Parte dos artistas jovens começaram a desestrutu- rar a bandeira e começaram a usá-la para a publicidade. Para muitas coisas. O que estavam fazendo era usar a comunicação e a expressão artística para criar uma nova iconografia, no- vos sentidos, novas simbologias e novas linguagens. Porque, como a democracia não existia – o que existia era o liberalismo –, tínhamos de implantar o projeto de democracia, que vinha da constituição. O ponto de vis- ta dos humoristas, dos pintores, dos cantores, do pes- soal de teatro, foi definitivo. Contudo, a ação principal aconteceu na música. E o grande instrumento foi o rock. Como Bogotá estava divi- dida entre grupos juvenis, que eram influenciados pelo rock, conseguimos fazer com que garotos de setores po- pulares se encontrassem com jovens da classe alta, rea- lizando os concertos de rock, nos bairros de classe alta. E, nos seis meses seguintes, convidando grandes grupos do mundo para os bairros populares do sul, para que os do norte viessem. A partir desse cruzamento de gerações e de status so- ciais, os jovens se encontraram em Bogotá. Hoje são eles Aí vem a discussão: como salvar a arte e sua transcendência? Não há nenhum projeto superior que cria condições para que as pessoas vivam livremente. Se algum artista pensa que existe um bem superior à dignidade humana, eu sinto muito. 74 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 4. Jaime Castro Político colombiano e advogado, nasceu em 1938, em Moniquirá, Boyacá. Castro foi prefeito de Bogotá (1992-1994) pelo Partido Liberal Colombiano. Também atuou como deputado e ministro. Fontes das notas http://es.wikipedia.org/wiki/Antanas_Mockus; acesso: 10 de dezembro de 2009, 20:30. http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/3655_AQUI+SE+MATA+P ARA+ROUBAR+OU+NAO+SER+ROUBADO+?pathImagens=&path=&actualAr ea=internalPage; acesso: 11 de dezembro de 2009, 10:15. http://www.iadb.org/sds/doc/Culturaciudadana.pdf; acesso: 10 de dezembro de 2009, 10:20. http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/36304; acesso: 10 de dezembro de 2009, 10:30. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/Bogot%E1%20-%20O%20 Programa%20Cultura%20Cidad%E3%20-%20A%E7%F5es%20Contra%20 Viol%EAncia%20em%20Bogot%E1.doc; acesso: 11 de dezembro de 2009, 10:30. Programa “Cultura Cidadã”: Boas idéias da Prefeitura de Bogotá Contra a Violência http://www.guiacomperj.com.br/portal/index.php/regional/924- noticias/830-paes-anuncia-incentiva-a-cultura-cidada-no-rio-contra-a- violencia.html; acesso: 10 de dezembro de 2009, 10:45. os que defendem a cidade, pois foram envolvidos no pro- jeto. Sem música, sem humoristas, sem cantores, sem artistas, sem pintores, sem desenhistas, não teria sido possível. Mas isso significa que a arte é o centro; ela não está num patamar elevado e nem está à margem. Aí vem a discussão: como salvar a arte e sua transcen- dência? Não há nenhum projeto superior que cria condi- ções para que as pessoas vivam livremente. Se algum ar- tista pensa que existe um bem superior à dignidade hu- mana, eu sinto muito. Notas 1. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bernardo_Toro; acesso: 23 de fevereiro de 2010, 11:20. 2. Augusto Pinochet Em Madrid, no dia 18 de outubro de 1998, o juiz espanhol Baltazar Garzón Real lavrou um ato que determinou a prisão do ex-presidente chileno general Augusto Pinochet, que estava na Inglaterra. “Dos autos consta que no Chile, a partir de setembro de 1973, da mesma forma que na República Argentina a partir de 1976, produziram-se toda uma serie de acontecimentos e atividades delitivas cometidas sob o manto da mais feroz repressão ideológica contra os cidadãos e residentes destes países. Para o desenvolvimento das mesmas seguem-se planos e tramas preestablecidas a partir das estruturas de Poder, que têm como fim a eliminação física, o desaparecimento, sequestro, bem como a prática generalizada de torturas de milhares de pessoas.” Fonte: http://www.internext.com.br/valois/pena/1998.htm; acesso: 5 de novembro de 2009, 08:45. 3. Antanas Mockus Antanas Mockus Rutenis Aurelijus Sivickas (Bogotá, 25 de março de 1952) é um político, filósofo e matemático colombiano, de ascendência lituana. Mestre em Filosofia (Universidad Nacional de Colômbia), licenciado em Matemática e Filosofia (Universidade de Dijon, França), Doutor Honoris Causa (Universidade de Paris XIII, França), foi reitor da Universidade Nacional de Colômbia. Elegeu-se duas vezes prefeito de Bogotá (1995-1997 e 2001- 2003). Antanas Mockus ajuda hoje as prefeituras de São Paulo, Belo Horizonte, Alagoas e Cidade do México a implantarem seu conceito de “cultura cida- dã”. As suas ações como prefeito da capital colombiana tiveram benéficas consequências. Para Mockus, a cultura cidadã tem base em três níveis de regulação: legal, moral e cultural. Segundo ele, se uma cidade funciona mal, é por falta de consciência e civilidade da população; por isso o papel do governo deve ser maior do que apenas cumprir e fazer cumprir as leis, e não apenas pela coerção: é necessário motivar as pessoas a mudar seus comportamentos. Bogotá era considerada uma das cidades mais perigosas do mundo. Em 1990, a taxa de homicídios era de 80 por 100 mil habitantes. Baixou para 23 por 100 mil em 2003, e este ano chegou a 17 por 100 mil habitantes. Os acidentes de trânsito diminuíram de 1.287, em 1995, para 585, em 2002. Ao longo do mesmo período houve um declínio de 26% no uso de armas de fogo. A isso deve-se agregar um aumento na arrecadação fiscal, ampliação no uso da água potável e saneamento básico, recuperação da credibilidade da polícia e um consequente aumento da autoestima da população. Apesar da permanência do estado de guerra civil no país, Bogotá se tornou a cidade mais segura da América do Sul. “O que importa em uma cidade é o comportamento das pessoas. Todos nós estamos aprendendo a ser cidadãos; somos projetos inacabados. Quando vemos outras pessoas atuando de maneira correta, tendemos a copiar sua conduta”, acredita Mockus. 75 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 * FABIANA HIROMI, jornalista, é editora do site www.cenpec.org.br Desde 2000, os alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, na Zona Oes- te de São Paulo, têm oficinas de capoeira, samba de roda, coco, ciranda e outras manifestações da cultura popular brasileira. As atividades são realizadas pelo Centro de Es- tudos e Aplicação da Capoeira – Ceaca, sob a coordena- ção do mestre Alcides Lima, representante nacional dos Griôs1 . Em 2005, a partir do projeto desenvolvido na es- cola, o Ceaca tornou-se um Ponto de Cultura2 . Além das oficinas de capoeira e cultura afrobrasileira, também são ministradas aulas de dança, teatro, canto- coral e artesanato. Todas essas atividades integram o cur- rículo e foram concebidas dentro do projeto político-pe- dagógico da escola, bastante conhecido pelo seu caráter inovador, inspirado na Escola da Ponte3 , de Portugal. De acordo com a diretora, Ana Elisa Siqueira, atual- mente, a escola “não se entende mais sem esse espa- ço da cultura”. Para o mestre Alcides, as oficinas propor- cionam às crianças o contato com a diversidade cultu- ral existente no País: – A gente precisa que a educação seja democrática de verdade, que todo mundo tenha a oportunidade de conhecer pelo menos um pouquinho de cada tradição para entender, assimilar e respeitar. Em entrevista ao Cadernos Cenpec, o mestre Alcides e Ana Elisa contam como foi concebido o projeto de cul- tura da escola, como se deu a parceria e qual o objeti- vo dessas oficinas. relato entrevista: ana elisa siqueira e alcides lima. Educação e cultura encontram-se na escola Fabiana Hiromi* A importante convivência do formal com o informal Cadernos Cenpec - Como surgiu esse projeto de cultu- ra na escola? Ana Elisa - Quando eu entrei aqui, quase 14 anos atrás, havia uma comunidade com muita vontade de participar da escola, e o foco central dessa participação era a festa junina. Mesmo assim, a festa era super restrita, porque ia das 11:00 às 15:00. De certa forma, mesmo essa festa junina pequena dava espaço para participação, porque tinha prenda, barraca, comida, enfim, muitas coisas que precisavam da comunidade. Começamos a discutir qual o significado da festa ju- nina e como fazer dela algo que fosse genuíno da cultu- ra brasileira. Tivemos a sorte de poder realizar essa dis- cussão com a participação de uma mãe que tinha dois fi- lhos aqui e era uma estudiosa da cultura brasileira, a Con- ceição Acioly. Ela era da USP e, na época, estava fazen- do mestrado nas questões da cultura, com foco específi- co no teatro de mamulengo. Já no meu primeiro ano aqui, conseguimos fazer uma festa muito diferente das outras: tentamos resgatar o que tínhamos de cultura, o que sabíamos da cultura dessa fes- ta. Nossa primeira entrada em relação à cultura foi uma coisa bem pequena, do cotidiano, mas que passamos a olhar com outros olhos. A partir daí, começamos a pensar quais eram as outras formas de participação dessa comunidade. Isso aconte- cia no conselho de escola, o qual contava com uma par- ticipação grande dos pais, principalmente os pais dos alunos do primeiro ano. As mães vinham para o conse- lho com um assunto muito claro para ser discutido: por- que os filhos falavam que corriam muito perigo na esco- 76 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 la, que apanhavam no recreio, que os grandes roubavam o lanche deles... Começamos a pensar nessa participa- ção das mães nesse horário de recreio, que era um horá- rio tão complicado e que demandava uma preocupação tão forte dessas mulheres. Lógico que as mães acharam ótimo, porque, na visão delas, cada uma vinha para cuidar única e exclusivamen- te do seu filho. Quando chegaram aqui, tiveram a maior surpresa porque o filho não queria ser cuidado por elas na escola. Ele podia até chegar em casa e reclamar do re- creio, mas a última coisa que ele queria era que a mãe es- tivesse do lado dele na escola, interferindo no espaço que era dele. A partir disso, passamos a dialogar com essas mães sobre o que elas poderiam fazer nesse horário que não fosse cuidar dos filhos. Conversamos sobre como am- pliar esse olhar e cuidar do intervalo das aulas, no sentido de ajudar a escola a ter um recreio bem cuidado, no qual as crianças não se sentissem abandonadas. A Conceição Acioly assumiu esse papel de interlocu- tora, de mediadora desse grupo de mães. Toda semana, elas tinham um horário de conversa, no qual pensavam o que poderiam fazer durante o recreio. A Conceição co- meçou a levantar um pouco do repertório de brincadei- ras que elas tinham da infância e foram construindo um registro dessas atividades. Durante o recreio, elas fica- vam com uma bola e uma corda, para quem quisesse brincar. A partir disso, elas inauguraram um dia da se- mana, às sextas-feiras, em que elas vinham para brincar com as crianças. Reuniam todas as crianças de 1a a 4a e as mães organizavam as brincadeiras que iam acontecer naquele horário. Foram surgindo outras idéias e aumentando a par- ticipação desse grupo de mães. A partir daí, não era só do recreio que elas cuidavam, e sim de toda a dinâmica da escola: verificavam que funcionários estavam faltan- do; se o banheiro estava limpo; se as crianças eram bem atendidas. Tudo era encaminhado para o conselho esco- lar, no qual elas passaram a atuar com muito mais mate- rial de discussão para o projeto político-pedagógico da escola. O projeto foi ganhando uma impressionante con- sistência a partir da fala e da opinião delas. Percebemos que havia muita coisa para ser feita a par- tir da participação da comunidade em relação à cultura na escola. Já percebíamos que a escola não é só um lu- gar de informação, e sim, principalmente, um espaço de cultura. Ao discutir cultura, óbvio que se discute informa- Verônica Manevy 77 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 ção, mas informação de forma muito mais contextualiza- da, significativa. Foi assim que começamos a pensar nes- se projeto de cultura. A ideia era fazer um trabalho de oficinas de capoei- ra, circo, dança, música, em paralelo ao trabalho com as mães. Mandamos um projeto de cultura ao programa Crer para Ver4, da Fundação Abrinq, e, entre idas e vindas, de- moramos uns dois anos para conseguir a aprovação. Foi muito bacana porque, a partir disso, iniciamos esse tra- balho. Foi quando o mestre Alcides entrou na escola. Naquele momento, o valor oferecido ao projeto era significativo e dava para contratar genuínos educadores da cultura, no sentido de serem pessoas que se constitu- íram e se desenvolveram nas manifestações culturais. De qualquer forma, eu acho que a gente preserva ainda o lu- gar do corpo, da brincadeira, da cultura na escola. Na época, foi muito bacana porque a Conceição foi construindo, com aquelas mães, um lugar de participa- ção da comunidade nas brincadeiras e na preparação das festas. Foi impressionante como essas mulheres foram se politizando, como essa participação em peças de tea- tro, nas atividades culturais em geral, foi proporcionan- do uma participação cidadã na escola. O olhar delas passou a ser muito mais qualitativo, por- que começaram a deixar as bobagens de lado e a pensar na escola como um todo, numa política de escola, de cul- tura, de trabalho com as crianças. Saíram daquele olhar voltado a “meu filho, minha vida privada” para assumi- rem um olhar muito mais atento à vida social. E a escola como um todo foi beneficiada. No começo, não foi fácil essa entrada da cultura na escola. As pessoas que costumam desenvolver ativida- des culturais atuam de um modo diferente do nosso, dos educadores, que têm uma rotina super rígida, que mui- tas vezes não aceitam questões das crianças... A cultu- ra permite outros posicionamentos, outro jeito de lidar com a realidade. Por exemplo, eu acho linda uma atitude que o mestre Alcides tomou. Havia uma criança com muita dificuldade de se relacionar. Na roda de capoeira, quando ela entra- va, as outras crianças se organizavam para não cair com ela. Um dia, o Mestre percebeu e fez o seguinte: deixou que as crianças fizessem aquela confusão para se orga- nizarem; quando todos estavam tranquilos ele entrava na roda e invertia as posições das crianças. Ele não pre- cisava fazer um discurso que talvez nós pedagogos fi- zéssemos para falar que precisamos integrar, conviver e blábláblá... Ele fazia um discurso prático: mostrava com uma ação o que era necessário ser feito, e essa era a grande questão. Penso que a cultura vai dando a possibilidade de a escola viver os conflitos de verdade. Os conflitos podem e têm de aparecer. E, quando eles aparecem, como tra- balhá-los sem ser na forma de sermão para o aluno, que vai entrar por um ouvido e sair pelo outro, e sim de uma forma prática? A cultura dá uma resposta prática para es- sas situações. Isso foi sendo constituído na escola. Os educadores fo- ram desenvolvendo um olhar para esse espaço da cultura muito mais respeitoso, muito mais forte, significativo. Eles perceberam que algo diferente acontecia naqueles espa- ços da música, da dança, da capoeira, que não existia nos espaços mais formais da sala de aula. A gente começa a aprender como trabalhar com todo mundo junto. Foi um percurso muito difícil de ser construído: um percurso de respeito, de aprendizagem, de diálogo en- tre duas coisas que são tão próximas e tão distantes ao mesmo tempo. Porque a gente foi descaracterizando a cul- tura da educação, querendo dizer que escola é só infor- mação, quando, na verdade, a escola não é nada sem a cultura. Todo o engajamento, toda a possibilidade da es- cola está pautada na nossa cultura. É importante a gen- te entender a cultura porque sem ela a gente não se en- tende. Por isso ela é fundamental. A questão da expres- são cultural é um direito de cidadania. Isso também está posto na escola. Como integrar oralidade, dança e sala de aula. Cadernos Cenpec - Como surgiu a parceria entre o Cea- ca e a escola? Mestre Alcides- O Ceaca é uma associação que já tem mais de 20 anos. Eu sempre dei aulas, no Butantã, em cen- tros comunitários, na USP. Pais que tinham filhos aqui na escola e que já conheciam o meu trabalho montaram um projeto de cultura popular brasileira em 2000 e acharam que ele se identificava com esse projeto pedagógico de cultura. Uma mãe, a Conceição Acioly, me convidou para apresentar um projeto de cultura popular para a escola. E aí nós fomos trabalhando com as crianças fora do perí- odo escolar de 2000 a 2005. 78 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Em 2005, surgiu o edital dos Pontos de Cultura do Mi- nistério da Cultura e nós inscrevemos o Ceaca como um Ponto de Cultura, em parceria com a escola. Começa- mos a trabalhar com um projeto mais voltado para edu- cação, dentro do período escolar, como é até hoje. A ca- poeira e outras atividades culturais estão dentro do cur- rículo, do programa. O eixo é a capoeira, mas não é só isso. Trabalhamos com coco, ciranda, puxada de rede, maculelê, samba de roda. Em 2007, nossa ação foi enriquecida com a entrada do seu Durval, mestre pernambucano que domina toda essa área do corpo, da ciranda, do repente. Toda essa ri- queza da diversidade é trabalhada com a criança. A ideia é que a gente trabalhe com a oralidade, não substituin- do o ensino formal nem “tapando buraco”, e sim no sen- tido de uma coisa ser parceira da outra. Ano passado, por exemplo, nós trabalhamos o mito do baobá, uma árvore sagrada africana: encenamos a história e as crianças vivenciaram todo o ritual. Estamos montando uma peça sobre a puxada de rede para pes- ca do xaréu, um ritual que existe no Nordeste brasileiro para a espera daquele peixe. A música da peça foi feita pelas crianças por meio do estímulo de palavras gera- doras, que no caso são mar, praia, brisa, sol, coqueiro, jangada, maré. Antes disso, elas conheceram toda a his- tória da puxada de rede, a música, como é cantada, em que época do ano... Tudo tem uma temporalidade. O ma- culelê, por exemplo, que é de meados do século XIX, do Recôncavo Baiano, era uma música do momento do cor- te da cana de açúcar. Tudo isso é passado na oralidade. Primeiro, apren- de-se qual é o gestual, a música... Tem toda a parte tea- tral da tradição. Só depois disso, depois que o aluno en- tende o que é aquela tradição, são feitas as atividades de escrita. É preciso primeiro fazer esse trabalho de en- cantamento do aluno, de provocar, e só aí ele vai incor- porar a proposta. Tem aí um trabalho de história, de geografia. Essa ar- ticulação vem naturalmente. Como é oralidade, é preciso tomar cuidado para não virar uma coisa de sala de aula. Se não, a gente cai no mesmo sistema da educação for- mal. Temos sempre esse cuidado: de estar pautado na oralidade, que é a repetição daquilo que a gente sabe. São tradições que vieram dos nossos antepassados e foram transmitidas por meio da fala e, no caso das dan- ças, pela prática. Cadernos Cenpec - Qual é o objetivo ao se trabalhar es- ses conteúdos; que valores se pretende transmitir? Mestre Alcides - São todos os valores: respeito, ética, conhecimento e valorização da sua cultura, o entendimen- to de que a cultura é transformadora. A cultura, principal- mente a popular, é muito poderosa, porque ela articula, é uma rede. Mesmo que a minha cultura popular seja di- ferente da sua, elas dialogam. Fui para Roraima e estive com os índios Macuxi, da Reserva Raposa Serra do Sol. Conversando, parece que somos diferentes, mas não so- mos. A gente cultua a natureza, o respeito ao corpo, ao ritmo do outro, à conversa, à fala... As mesmas coisas que eles valorizam. Também trabalhamos a questão da identidade cultu- ral. O Brasil é uma coisa muito grande. Então, quando se traz o coco para cá, a criança está conhecendo algo que é lá de Pernambuco. Quando trazemos a ciranda, o cordel, ela está conhecendo o jongo... Ou seja, está tendo a pos- sibilidade de conhecer várias coisas sem a necessidade de se deslocar de seu estado. Com isso, já se cria até um respeito a essa diversidade, que é o mais importante. A partir do momento em que eu tenho noção do que é jongo, toré, ciranda, coco de umbigada, eu conheci a de- mocracia. A gente precisa que a educação seja democrá- tica de verdade, que todo mundo tenha a oportunidade de conhecer pelo menos um pouquinho de cada tradição para entender, assimilar e respeitar. O dia em que a criança sair daqui e for lá para Per- nambuco e ver o coco, ela já vai saber dançar, vai entrar e dialogar com as outras pessoas. Não vai ser uma estra- nha no ninho. Isso é o beabá da alfabetização. Alfabeti- zar em outras manifestações culturais. Hoje, as crianças passam aqui cantando coco, ciranda, música de capoei- ra. Isso já está dentro delas. Mais respeito por si e pelos colegas Cadernos Cenpec- E, nessas atividades culturais, é possí- vel trabalhar essas questões éticas, da valorização da cul- tura e do respeito à diversidade, que são difíceis de serem trabalhadas na sala de aula? Ana Elisa - Sim, porque muitas vezes, na sala de aula, essas questões nem aparecem, uma vez que a sala de aula está formatada para que elas não apareçam... 79 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Ou aparecem de forma muito estereotipada. Nas relações que estabelecemos nas atividades culturais, elas apare- cem de forma muito viva. São muito mais difíceis de se- rem pensadas, porque são “de verdade”, mas trabalha- das dessa maneira têm um efeito muito mais duradou- ro na nossa constituição enquanto pessoa. Elas nos mu- dam por conta disso. O que eu sinto aqui no Amorim é que essa questão faz uma diferença absoluta. Hoje, é uma escola que não se entende mais sem espaço da cultura, sem essas mani- festações, sem essas possibilidades. Lógico que eu que- ria que, aqui na escola, nós pudéssemos ter um trabalho cultural de melhor qualidade. Mas o que nós podemos fa- zer, nós fazemos. Preservamos o lugar da cultura, man- temos as questões marcadas com as festas, a organiza- ção dos trabalhos. Por exemplo, quando vamos discutir o Auto de Natal, uma atividade que realizamos há sete anos. Trouxemos a Lídia Orteles, uma estudiosa da cultura da infância. Ela nos apresentou o Auto de Natal que é desenvolvido numa cidadezinha da Bahia. É muito legal, porque as pessoas se emocionam profundamente. Eu falei para ela: – Lídia, todo ano a gente se emociona. E ela respondeu: – Sabe por quê? O brasileiro tem saudade do Brasil. É isso. A gente começa a se ver ali... O Auto de Natal que a gente faz aqui tem a ver com as nossas danças, com a capoeira, com o samba de roda. É uma festa em que a gente louva o menino Jesus, mas que pode ser qualquer menino, porque o princípio é que qualquer menino que nasce tem de ser especial. É maravilhoso. Cadernos Cenpec- - Com esse novo projeto, você acha que houve uma integração maior entre as aulas e as ofi- cinas? Ana Elisa - Com certeza absoluta, porque umas começam a se fazer necessárias para as outras. A gente passa a se ver como parceiros de verdade. Além disso, os professores podem se apoiar muito no que acontece nas oficinas. Por exemplo, às vezes, uma criança que atua muitís- simo na oficina de dança, de capoeira ou de música, não participa das atividades de conteúdo mais escolarizado, digamos assim; ela não quer, não faz e, lá nas oficinas, ela faz muito bem. Porém, como as crianças trabalham em grupo, os outros participantes veem nas oficinas que ela não tem só o lado de não fazer nada. Há um lado em que ela é muito boa. A cultura vai entrando de uma forma sutil, vai crian- do um significado, uma compreensão para todos de que não somos uma coisa só. Eu posso ser várias numa só. Eu posso ser muito boa em matemática e uma droga na capoeira, porque não tenho coordenação motora algu- ma. Então, a gente começa a se dar outro valor e todo mundo começa a ter respeito por si e pelos colegas. A cultura vai oportunizando essa discussão, esse olhar para as pessoas. Trabalhar a resistência de pais e alunos Cadernos Cenpec- - Vocês enfrentaram alguma incom- preensão ou resistência por parte dos pais em relação às oficinas? Mestre Alcides - Já teve mais; hoje, menos. Mas eu acho que é mais uma questão de desconhecimento. E eu tam- bém não tiro totalmente a razão dos pais. Qualquer traba- lho, seja ele de capoeira ou o que for, se não tiver um ob- jetivo claro, acaba desvalorizado ou dando margem para isso. A capoeira é um exemplo. São poucos os projetos de capoeira que estão direcionados à educação; geralmen- te estão voltados para luta. Então, como vários pais já fi- zeram capoeira e sabem que tem pancadaria, coisas ne- gativas, eles trazem essa visão pra cá. Mas aqui nós não queremos formar capoeiristas na es- cola. Nós queremos formar público para capoeira e para cultura popular brasileira no geral. Elas não precisam ser capoeiristas. A ideia é que elas conheçam a riqueza dessa cultura. Eu entendo esse lado da preocupação dos pais e até de educadores que pensam assim. Como o trabalho é novo, temos que atuar com bom senso, deixando claro qual é objetivo e o que se quer atingir. Toda vez que há uma coisa negativa a esse respeito, procuro esclarecer da melhor forma possível. Há também a questão da religião. As pessoas acham que capoeira é macumba, candomblé, colocando isso no pejorativo. A gente procura deixar claro o que é. A gente sabe que, na história, toda manifestação cultural afro ou indígena vem de um ritual religioso. Todo mundo dança samba, mas a maioria não sabe que o samba em Angola significa semba, que quer dizer umbi- 80 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 foto à dir.: projeto oca - escola cultural - são paulo/sp. autoria: luciana d’francesco gada, ou dar e receber, e só era praticado no momento de pedir ou agradecer alguma coisa. Na plantação, se pedia; na colheita, dançava-se em agradecimento. Só que isso foi mudando, porque a história é dinâmica. A capoeira sur- giu em um momento de defesa, de luta mesmo. Hoje não tem mais essa necessidade, mudou o sentido e as pesso- as no geral não perceberam essa mudança. É nosso pa- pel esclarecer. Alguns mandam cartas pedindo pelo amor de Deus para tirar a filha da oficina. Isso sempre parte dos pais, porque as crianças nunca falaram isso. Elas sempre gos- tam. Já tivemos situação de mãe proibir e a criança ficar de canto e depois falar: – Mestre, é impossível ficar ouvindo e não participar. Ana Elisa : Tinha pai que chegava para mim e falava: – Meu filho não pode participar, porque a gente é Tes- temunha de Jeová. E aí como é que a gente dava conta disso? Fazia reu- nião, conversava, arranjava alguma coisa para o menino fazer. Porém, esse menino que a família não deixava par- ticipar era o que mais queria. Então, ele também tinha de ir trabalhando a família em casa para poder participar. Al- guns conseguiram. Cadernos Cenpec- - Em razão da localização da escola e do projeto pedagógico inovador, o perfil dos alunos é mais diversificado. Você acha que isso enriquece as ativi- dades culturais que vocês desenvolvem aqui? Mestre Alcides - Não sei se enriquece, mas acho que a possibilidade da convivência de crianças de vários estra- tos sociais já permite um respeito e diminui a distância que existe entre um e outro. É uma possibilidade de in- teração entre todos os grupos e classes sociais. Se não há isso, um não conhece o outro e a barreira entre eles fica cada vez maior. Aqui a gente procura quebrar essas barreiras. Cadernos Cenpec- - Na sua opinião, por que as escolas estão tendo tanta dificuldade em cumprir a Lei 10.6395 ? Mestre Alcides – Essas questões de matriz africana e indígena precisam fazer parte da vivência do professor, além dessa formação em História. Se não, ele vai cair no mesmo. A gente tinha História quando era criança e ela era escrita de um jeito muito constrangedor para nós, ne- gros. A minha experiência com História da África na esco- la foi a pior possível, porque nos coloca no lugar de coita- do, de inferior, sempre. Nunca numa situação de igual. E se for um professor ainda com esse perfil, vai continuar reforçando isso. Por isso eu acho que não é só capacita- ção. O professor deve vivenciar algumas temáticas, que é a maneira mais digna de falar dessa História. Cadernos Cenpec-- Aqui vocês já cumpriam, de certa for- ma, essa lei que determina o ensino de cultura e história afro antes de ela entrar em vigor... Ana Elisa - Pois é. Aqui teve uma coisa interessante. Logo que o mestre entrou, um menino que era bastan- te difícil falou: – Eu não faço aula com esse negro. Só que ele era negro, mas não se via como negro. E como discutir isso? É muito mais que discutir qualquer li- vro sobre a África. Eu acho que a cultura na escola pode dar essa consci- ência para os educadores, as crianças, os pais. Sem ela, vira tudo material sem significado. Não é uma coisa dos livros, e sim da vida. E só se consegue discutir isso nas relações; e as relações têm a ver com a cultura. É maravilhoso esse tema. Eu acho que é a parte mais importante da escola. Para falar a verdade, eu acho que é o fundamento da escola. Principalmente no Ensino Funda- mental. O Ensino Fundamental tem de se haver com isso, com essa identidade. As crianças precisam ser fortes no que elas são para poderem aprender. Ninguém aprende se não tiver uma identidade forte. NOTAS 1 Ação Griô, Programa Cultura Viva. A ação Griô consiste em estimular a tradição oral nas comunidades, reali- zada por “contadores de estórias”, sujeitos que adquiriram conhecimentos de antepassados e os repassam contando estórias. São chamados griôs (“abrasileiramento” da palavra francesa griot, usada por jovens africanos que foram estudar em universidades francesas e que se preocupavam com a preservação de seus contadores de histórias, que carregam consigo a tradição oral). A principal proposta da ação Griô, do Programa Cultura Viva, é reaprender com os griôs e mestres da tradição oral, o jeito de construir o conhecimento integrado à ancestralidade. FONTE http://www.cultura.gov.br/cultura_viva/?page_id=25; acesso: 2 de dezem- bro de 2009, 11:10. 2 Programa Cultura Viva / Pontos de Cultura O Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura - MinC, assume a cultura, a educação e a cidadania, enquanto incentiva, preserva e promove a diver- sidade cultural brasileira. Por meio da Secretaria de Programas e Projetos Culturais, o MinC iniciou, em 2004, a implantação dos Pontos de Cultura, com a missão de desesconder o Brasil, reconhecer e reverenciar a cultura viva de seu povo. 82 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 O Programa Cultura Viva contempla iniciativas culturais que envolvem a comunidade em atividades de arte, cultura, cidadania e economia solidária. Essas organizações são selecionadas por meio de edital público e passam a receber recursos do Governo Federal para potencializarem seus trabalhos, seja na compra de instrumentos, figurinos, equipamentos multimídias, seja na contratação de profissionais para cursos e oficinas, produção de espetáculos e eventos culturais, entre outros. Essa parceria entre Estado e sociedade civil é o Ponto de Cultura, que recebe a quantia de R$ 185 mil reais, divididos em cinco parcelas semes- trais. Atualmente, há mais de 650 Pontos de Cultura espalhados em todo o território brasileiro. Esses Pontos de Cultura foram selecionados por meio de editais – já foram publicados quatro desde 2004 – e por meio das Redes de Pontos de Cultura. Ao lado dos Pontos de Cultura, o Programa Cultura Viva integra outras quatro ações: Cultura Digital, Agente Cultura Viva, Griô e Escola Viva. O Ponto de Cultura não tem um modelo único, nem de instalações físicas, nem de programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a trans- versalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e a comunidade. FONTES http://www.cultura.gov.br/cultura_viva/?page_id=9; acesso: 2 de dezembro de 2009, 11:55. http://www.cultura.gov.br/cultura_viva/?page_id=31; acesso: 2 de dezem- bro de 2009, 11:45. http://mais.cultura.gov.br/2009/02/09/410/; acesso: 02.dezembro.2009, 11:35. 3 Escola da Ponte A EBI Aves / São Tomé de Negrelos, popularmente referida apenas como Escola da Ponte, é uma instituição pública de ensino, localizada em Vila das Aves, no Distrito do Porto, em Portugal. É uma Escola Básica Integrada, encontrando-se os seus alunos, antes de mais, inscritos formalmente por anos de escolaridade – do 1o, 2o e 3o ciclos do Ensino básico –, ainda que esta divisão administrativa não se reflita nem no seu Projeto Educativo nem no seu trabalho cotidiano. Embora a faixa etária dos alunos compreenda aproximadamente dos cinco aos 16 anos, devido à sua filosofia de educação inclusiva, a escola tem alguns alunos mais velhos. Ela encontra-se numa área aberta. Os alunos formam grupos heterogêneos, não estando classificados, agrupados ou distribuídos por turmas nem por anos de escolaridade que, na prática, não existem. Não há salas de aula, e sim espaços de trabalho, onde não existem lugares fixos. Essa subdivisão foi substituída, com vantagens, pelo trabalho em grupo heterogêneo de alunos. Do mesmo modo, não há um professor encarregado de uma turma ou orientador de um grupo; em vez disso, todos os alunos trabalham com todos os orientadores educativos. A escola está organizada por 3 núcleos: Iniciação, Consolidação e Aprofun- damento. Os orientadores estão organizados por dimensões: Artística, Identitária, Linguística, Lógico-matemática e Naturalista. FONTES http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_da_Ponte; acesso: 17 de dezembro de 2009, 14:40. Site da Escola da Ponte: http://www.eb1-ponte-n1.rcts.pt/documen/concursos/projecto.pdf; acesso: 17 de dezembro de 2009, 14:30. 4 Programa Crer para Ver O Crer para Ver nasceu em 1995, em parceria com a Fundação Abrinq pelos Direitos das Crianças, a partir da crença no poder da mobilização como geradora de transformação e na importância da educação como forma de aperfeiçoar a sociedade. Através do trabalho voluntário de vários profissionais e das consultoras em todo o Brasil, o programa cria e comercializa produtos com a marca Crer para Ver. O resultado obtido com as vendas dos produtos da linha do programa Crer Para Ver é revertido para projetos que contribuem para a melhoria da edu- cação pública no país. Atuando em parceria com o setor público, iniciativa privada e organizações da sociedade civil, o CPV beneficia alunos e profis- sionais da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos. Este ano, o CPV está chegando em 210 novos municípios com o Projeto Trilhas, que visa apoiar as pré-escolas e seus professores para que as crianças de quatro a seis anos tenham maior acesso à literatura infantil, à leitura e à escrita. De 1995 até o final de 2005, foram arrecadados R$ 20,9 milhões por meio da venda de produtos da linha Crer para Ver. Desses, R$ 3,0 milhões foram arrecadados só em 2005. Com os recursos arrecadados de forma voluntária pelas consultoras Natura, foram financiados 153 projetos em 3.638 escolas públicas do ensino fundamental de 21 estados brasileiros, envolvendo 911 mil alunos. FONTES http://naturavonconsultora.blogspot.com/2009/09/programa-crer-para- ver-natura.html; acesso: 3 de dezembro de 2009, 18:20h. http://www.natura.net/port/universo/acao_social/crerparaver.asp; acesso: 3 de dezembro de 2009, 19:35. http://www.revistasim.com.br/asp/materia.asp?idtexto=1482; acesso: 3 de dezembro de 2009, 18:40. http://www.blogconsultoria.natura.net/2009/11/05/orgulho-dos-numeros- crer-para-ver/; acesso: 3 de dezembro de 2009, 19:00. http://scf.natura.net/crer-para-ver; acesso: 3 de dezembro de 2009, 18:50. 5 Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003 Altera a Lei número no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro- Brasileira”, e dá outras providências. FONTE: http://www.ceert.org.br/modulos/lei_10639/lei_10639.php?id=6; acesso: 4 de dezembro de 2009, 18:00. 83 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 REPORTAGEM: PONTO DE CULTURA “A BRUXA TÁ SOLTA”. O teatro que transforma Fabiana Hiromi gravaram entrevistas com os pioneiros, moradores anti- gos. Também procuraram identificar os principais pro- blemas enfrentados pela comunidade, como a gravidez na adolescência e a falta de acesso aos serviços públi- cos de saúde. Em Nova Colina, todo o material colhido deu origem à peça Histórias de Cutião. – O espetáculo trabalha a questão da solidão do ho- mem do campo. Como eles vivem em uma situação mui- to precária, é muito difícil criar os filhos, porque não há escolas por perto, postos de saúde, enfim, o básico. En- tão, o homem acaba ficando sozinho na roça – anali- sa Chacon. – Mas não são só as coisas ruins que são faladas, não. Muitas coisas engraçadas, piadas e tiradas dos morado- res locais, também são colocadas nos espetáculos – des- taca Luzia Ribeiro, 17, moradora de Nova Colina. Na Vila Equador, onde a população vive da agricul- tura e da pesca, foram elaboradas duas peças: Pirace- ma e Zé Juquira. As histórias discutem a importância da preservação da natureza, atuando na conscientização ambiental dos moradores. Para que haja identificação do público com a peça, é feito um trabalho de pesquisa para composição das personagens. – Todo o vocabulário, o gestual, o modo de andar, é baseado na maneira de falar e agir do homem do campo, de modo que quando as pessoas assistem ao espetácu- lo elas se veem nele – comenta o coordenador. Luzia concorda: – Tem dado muito resultado porque as pessoas, quan- do assistem, se veem nas peças e isso causa um impacto enorme. Elas se divertem muito, dão dicas, fazem comen- tários, e isso é muito bom. Nós aprendemos muito. As peças mencionadas já foram encenadas não só na comunidade como também nas redondezas de Rorainó- polis, em Boa Vista e em outros estados, como Brasília, a convite do Ministério da Educação, durante o Fórum Mun- Fabiana Hiromi, jornalista, é editora do site www.cenpec.org.br. Como impedir que jovens moradores de vilas rurais desprovidas de espaços de lazer e cultura, localizadas no interior de um assentamento cortado pela BR-174, a 350 km de Boa Vista, Roraima, no extremo Norte brasi- leiro, permaneçam em suas comunidades? O Ponto de Cultura A Bruxa Tá Solta vem conseguin- do essa proeza por meio do teatro. As atividades começaram em 2006 pelo grupo de tea- tro de mesmo nome, formado na capital roraimense. Con- templados pelo edital dos Pontos de Cultura, do Ministé- rio da Cultura, os integrantes expandiram as oficinas de teatro para crianças e adolescentes que já aconteciam na comunidade de Martins Pereira, em Rorainópolis1 , para outras vilas do município: Equador e Nova Colina. Hoje, em cada uma dessas três comunidades, há um núcleo dos Pontos de Cultura. E são os próprios jovens, que passaram por diversas capacitações em Boa Vista no início das atividades do Ponto, que coordenam as ativi- dades, incluindo as oficinas de teatro. – Participei de umas cinco formações, de teatro de rua, dramaturgia, entre outras – lembra Micileide Nasci- mento, 19, que realiza as oficinas com adolescentes no núcleo Equador. Resgate da autoestima – Por meio do teatro, procuramos resgatar a autoestima das pessoas – explica o coordenador pedagógico e ar- tístico do Ponto, Nonato Chacon. O teatro abre um leque muito grande de potencialidades nas pessoas. Permite a cada um descobrir a sua força, a sua energia, acredi- tar mais em si mesmo. Em cada vila, as peças foram escritas a partir de uma pesquisa prévia sobre a história do lugar. Para descobrir como cada comunidade surgiu, os meninos e meninas 84 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 dial de Educação Tecnológica, e do Ministério da Cultura, durante a Teia2 . As pesquisas que antecederam a escrita das peças foram realizadas com recursos vindos de um edital da Funarte, pelo qual foram selecionados. Aliás, a participação do Ponto em editais é constan- te e geralmente bem-sucedida: – Só o ano passado participamos de oito e em todos os oito fomos premiados – comemora Chacon. É dessa forma que o grupo vem conseguindo incre- mentar as atividades oferecidas em cada núcleo, que se torna um pólo cultural. Além das oficinas de teatro, em Nova Colina, a comu- nidade tem à disposição uma biblioteca rural comunitá- ria (dentro do Programa Arca das Letras, do Ministério do Desenvolvimento Agrário), onde há teatro de fantoches, contação de histórias e também sessões de cinema (pos- síveis graças ao edital Cine Mais Cultura). Na Vila Equa- dor, também há uma biblioteca e foi instalado um tele- centro em um barracão construído em terreno cedido pela colônia de pescadores Z-40, parceira do Ponto. Em Martins Pereira, a partir da seleção em um edital do MinC, é desenvolvido um trabalho de Ação Griô , que tem como objetivo o resgate e a valorização da oralidade, da tradição e dos saberes presentes na comunidade: – Lá tem duas senhoras que trabalham com as ervas medicinais. Em Equador, tem as senhoras que são par- teiras. Cada comunidade tem seus destaques, digamos assim – explica Eder Sobral Paiva, que integra a coorde- nação do Ponto, junto com Chacon e Catarina Ribeiro. Adesão da comunidade Em novembro de 2009, em parceria com a Usina Cultura, ponto de cultura sediado em Boa Vista, o Bruxa Tá Solta promoveu o I Encontro Griô de Mestres e Mestras do Sul de Roraima, viabilizado por recursos do edital Areté, do MinC. Chacon relata com satisfação que os mestres que vieram de outros estados ficaram hospedados nas casas da vila. E revela seu orgulho: – A própria comunidade os acolheu. Isso, para nós, foi muito importante. A gente viu que a comunidade re- almente aderiu ao projeto. Uma avaliação que a gente fez é que em 2009 as comunidades tomaram conta do projeto. A gente não precisa mais estar lá o tempo todo. Eles já se apoderaram. Com isso, o Ponto vem conseguindo alcançar o seu objetivo: retardar ao máximo a saída dos jovens de suas comunidades. Eder Sobral Paiva relata: – Para eles, os planos eram sempre, ao se tornarem maior de idade, irem para a capital, o que acontece em muitas cidades do Brasil. A nossa intenção foi mostrar que dava sim para eles permanecerem na comunidade e que eles fazem parte dela. Para Luzia Ribeiro, a participação nas atividades do Ponto teve mesmo esse efeito sobre ela: – Com certeza o meu olhar mudou. Aprendi a dar mais valor às minhas raízes, a sentir o local onde moro como meu também. Também descobri que posso ser feliz sem precisar sair daqui. Pude conhecer mais das pessoas e da história do meu lugar, o que me fez gostar mais daqui. Chacon lembra que quando o grupo chegou a Nova Colina, há quatro anos, Luzia era uma menina acanha- da. Nem parece a mesma pessoa que representou re- centemente com desenvoltura a Bruxa Tá Solta em um encontro internacional dos Pontos de Cultura, em Pire- nópolis, GO. – Ela não tinha coragem nem de olhar para gente de tanta vergonha. Notas 1 Rorainópolis é um município do sul de Roraima criado em 1995 com terras desmembradas dos municípios vizinhos. Possui a segunda maior população do Estado, 25.714 habitantes, censo 2007. Sua área é de 33.594 km2, o que resulta numa densidade demográfica de 0,73 hab/km2. A cidade foi criada na década de 1970, com a instalação de uma sede do Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, às margens da BR-174, a mais importante do Estado. Rorainópolis, assim como todo o Estado de Roraima, é formado por pessoas de diversas partes do país, principalmente maranhenses. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rorain%C3%B3polis. Acesso: 8 de janeiro de 2010, 17:15. 2 A TEIA é o maior encontro da diversidade cultural no Brasil. Ela reúne os Pontos de Cultura participantes do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania - Cultura Viva, do Ministério da Cultura. 85 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 artigo Duas culturas cultura sempre teve papel primordial em todos os momentos da história da humanidade, seja do ponto de vista da criação e transmissão de conhecimento, seja como antítese da natureza, com a criação de uma condição hu- mana, na qual dois conceitos de cultura emergem: um de- les, antropológico, diz respeito à herança social da huma- nidade, à transmissão de usos e costumes de uma geração para outra; o outro conceito relaciona-se ao conhecimento especificamente, agrupado por áreas, e, apesar de estar incluído no conceito mais amplo de cultura, pode ser se- parado: é o que poderíamos chamar de erudição. A cultura, num sentido amplo, engloba criação e trans- missão de uma visão de mundo, de conhecimento, de ex- periência de vida, de emoções; ela estrutura uma relação com a natureza, formas de socialização, relação com os outros, o pensamento simbólico. Enfim, tudo isso é cul- tura e isso sempre teve um papel central na vida do ser humano em geral. Cada vez mais se tem consciência disso; cada vez mais se percebe que o ser humano é sujeito e objeto des- se processo, é o motor desse processo. Essa dupla condi- ção de sermos agente e resultado de um processo exige que tenhamos uma percepção mais clara de nossa con- dição. E isso, quem proporciona é a cultura no seu sen- tido amplo. Ela é o centro desse processo. Danilo Miranda * * Danilo Miranda é sociólogo e Diretor Regional do Serviço Social do Comércio de São Paulo - SESC-SP. Texto elaborado a partir de entre- vista concedida a Thais Lima. foto à esq.: obra “macuxi” do artista euflávio góis, 2008. autoria: verônica manevy. Cultura e desenvolvimento humano A 87 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A cultura é toda a experiência humana acumulada, é prospectiva, todo vir a ser, tanto com relação ao conhe- cimento físico sobre o planeta quanto ao comportamen- to dos seres humanos e sua expressão artística, mate- rial ou imaterial. A cultura pergunta e responde diaria- mente sobre o dia-a-dia, sobre como fazer, como viver, se alimentar, se vestir, morar... Enfim, absolutamente tudo que o ser humano faz é cultura. Dominar a tecnologia, dominar toda a informação dis- ponível, com relação àquilo que imaginamos para nós, para o futuro, para aquilo do chamado imaginário, para aquilo que temos de mais humanamente interior e não material. A cultura lida com o material e com o imate- rial. Dentro da cultura, podemos incluir todas as experi- ências humanas, todas as relações humanas, todas as questões que o ser humano já levantou no decorrer de sua existência, desde sua sobrevivência até seu devir, seu futuro, aquilo que ele projeta. Vejo a cultura, no seu sentido antropológico, como o fenômeno central do ser humano. A cultura, nesse sen- tido mais amplo, antropológico, que começa com o nas- cimento do indivíduo e termina com a morte. Desde que nasce, o ser humano respira cultura. O fenômeno cultu- ral vai do primeiro choro ao último suspiro. Essa visão ampla da cultura nos possibilita perceber sua importân- cia absolutamente vital, radical, focal, central. Contudo, na reflexão que procedemos, podemos fo- car um pouco melhor alguns conceitos e trabalhar a ideia da cultura enquanto o fenômeno da criação humana, do imaginário, da capacidade de trabalharmos com ideias, com propostas, com a expressão de sentimentos e emo- ções por meio da arte e da literatura. Então, chegamos àquele ponto que talvez seja a pers- pectiva mais refinada da questão cultural, ou seja, a nos- sa capacidade de gerar informação, conhecimento, nos expressarmos por meio dos mais diversos mecanismos que o ser humano criou: o olhar, a fala, os gestos; a per- cepção, a emoção; enfim, todos esses sentidos que nos fazem ter contato uns com os outros, com nosso entorno e com algo particular e grandioso do ser humano: uma relação consigo mesmo. Abordamos esse conceito mais particular da cultura, referente à expressão das manifestações artísticas e do desejo do ser humano de se mostrar, de se exprimir, de protestar, de provocar, de apontar caminhos, enfim, de simplesmente manifestar sua forma de criar, de criar be- leza, de provocação, denúncia, de criar o que bem dese- jar; sobretudo, essa coisa do belo, da expressão estéti- ca, aquilo que provoca a sensação do bem-estar e, às ve- zes, de mal-estar diante de uma obra de arte. Contemplamos e dizemos: “Que coisa maravilho- sa”, seja um quadro, um poema, uma música etc. Che- gamos a um grande refinamento desse conceito particu- lar de cultura. Nessa perspectiva, temos de ter um cui- dado maior sobre a importância desse fenômeno cultu- ral específico, da expressão artística do ser humano en- quanto criador. Cada vez mais, percebemos como essa faceta ganha uma importância maior. Vivemos uma realidade na qual o ser humano busca satisfação, prazer, conforto. Busca- mos insistentemente melhoria da qualidade de vida. Pelo menos essa é a missão daqueles que têm uma preocu- pação e atuação do ponto de vista social, comunitário e público. Essa é a missão das instituições públicas, dos estados com relação aos seus cidadãos. Essa é a missão daqueles que se preocupam com os indivíduos em socie- dade, com a educação, com a difusão da arte. Se recorremos ao passado para mostrar as glórias e as mazelas do ser humano, temos um caminho vastís- simo pela frente. Cada vez mais, percebemos que essa questão do conhecimento, da cultura, do imaginário, do simbólico, do expressivo, são facetas de uma mesma re- alidade. Tudo vai ganhando, para o ser humano, uma im- portância cada vez maior na criação, no desenvolvimen- to de sua existência, de sua vida. Percebo que o lugar da cultura, enquanto esse co- nhecimento específico, vem se tornando cada vez mais importante, tanto do ponto de vista da sociedade como um todo, quanto do indivíduo. Nós, cidadãos que valo- rizamos o conhecimento literário e artístico, queremos cada vez mais nos apropriar dele, ou, para usar uma pa- lavra do sistema, queremos consumi-lo. Essa última ex- pressão não me é muito cara, não a aprecio, pois se re- fere a bens culturais como produtos comerciais, merca- dorias. Não me agrada quando manifestações culturais são apresentadas como produtos de consumo. Vejo os bens culturais muito mais como expressão do espírito humano; assim, como tal, não são quantifi- cáveis, precificáveis; não devem ser colocados em em- balagens; não são passíveis de serem tratados como sa- bonete, escova de dente ou geladeira. Vejo a cultura, nas suas especificidades, como a gran- de, a extraordinária, a fantástica ferramenta de mudan- ça e transformação real do ser humano. Desse modo, 88 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 tem um papel central e prioritário para transformar o ser humano, que nasce e recebe essa formação no decorrer de sua vida. Ele pode transformar-se num cidadão mais consciente, participante, envolvido e preocupado consi- go e com os outros, com seu entorno, com seu ambiente, com sua sociedade. A cultura tem esse papel. A cultura, enquanto erudição, é fundamentalmen- te um processo de assimilação de informação na qual a educação formal ou não formal, no sentido da ade- quada transmissão de conhecimento, tem um papel re- levante. A importância da experimentação A cultura, como tudo que demanda informação, experiência e conhecimento, vive fundamentalmente da experimenta- ção, do contato permanente com novas ideias, novas pro- postas. Falar de experimentação significa falar de vida, de processo de renovação permanente, significa dar oportu- nidade para quem cria continuar criando sempre. Mesmo quando alguém repete uma experiência, está particularizando aquele gesto, está experimentando: para ele, é novidade. Mantém esse caráter experimen- tal, embora outros já tenham feito o mesmo. Por outro lado, a criação, o experimento original, deve acontecer utilizando-se critérios morais socialmen- te aceitos. A reflexão ética é fundamental, porque impli- ca o respeito ao outro, ao meio ambiente, ao direito de todos, ao equilíbrio de todos, para que a igualdade ab- soluta do ser humano, com seus direitos, seja promovi- da e respeitada. Essa questão é fundamental e tem de estar presente em toda criação, em toda nova experiência. No mundo, ti- vemos muitas experiências desastrosas do ponto de vista humano. No filme Arquitetura da Destruição, isso fica ain- da mais evidente, lembrando o que aconteceu no regime nazista e suas experiências desumanas inomináveis. A cultura, enquanto ação pública, tem de estar fun- damentada na moral e resistir a uma reflexão ética. Ago- ra, as experiências que se fazem no campo da estética, no campo da manifestação do ser humano em todos os setores, nas artes em geral, só fazem sentido se provo- carem, no ser humano, o estranhamento, a curiosidade e uma certa indagação ética. O que seria da arte, como já se foi dito muitas vezes, se não déssemos espaço para todas as experimentações anteriores dos nomes que, de alguma forma, “transgre- diram” os cânones em determinado momento? Trans- gressão de cânone, de alguma forma, é inerente à pro- dução cultural permanente. Transgressão de cânone es- tético. Precisamos ter cuidado com os cânones morais. Precisamos verificar se são passíveis de transgressões. Muitas vezes, mudamos nossos usos e costumes. Mas essas mudanças precisam estar embasadas em rigoro- sas reflexões éticas. A pluralidade do ser humano O ser humano tem necessidade de encontros, diálogos, convivência; ele cria e resolve conflitos; sem falar nas diferenças étnicas, religiosas, políticas. Essa heteroge- neidade é a cultura, do ponto de vista antropológico, en- quanto herança social, criação e transmissão de conhe- cimento, usos e costumes. Essa cultura é uma realização social, anônima. Toda a sociedade participa da sua cria- ção e socialização. A outra cultura, aquela que podemos caracterizar como conhecimento científico e tecnológico, como ex- pressão artística de sentimentos e emoções, demanda uma convivência diferenciada, mais específica. Pressu- põe um indivíduo em permanente diálogo, em contato com o outro, com a necessidade do outro. Vamos nos restringir ao campo artístico. Não existe produção artística sem a possibilidade de ser vista, mos- trada, experimentada por outro. O escritor, quando es- creve, supõe que alguém vai lê-lo; o pintor, quando pin- ta, supõe que alguém vai ver sua obra. É verdade que já existem alguns caminhos, às ve- zes meio estranhos, meio centrados num extremo indi- vidualismo, por parte de algumas manifestações artís- ticas. Mas acho que elas não prosperam, porque a rela- ção com o outro, a questão da alteridade, é fundamen- tal e inerente à obra de arte. Da mesma forma que o ou- tro me dá sentido, o outro dá sentido à obra de arte, na medida em que ela se constitui como comunicação de emoção e de sentimento. E, se esse conteúdo não che- gar a um receptor, não existe comunicação. A grande experiência humana com relação à cultura em geral e às artes em particular constitui um fenôme- no absolutamente extraordinário. Todos nós experimen- tamos esse contato desde criança com aquilo que é pro- duzido a nossa volta, aquilo que aprendemos a ler e a perceber melhor. A questão do contato, da convivência, é inerente a esse processo. No decorrer da vida, vamos 89 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 recebendo, avançando, co- nhecendo instrumentos em que esse processo se dá de maneira mais comple- ta, mais frutífera, com me- lhores resultados. Tive a possibilidade, des- de muito cedo, de me envol- ver com a experiência artística de modo geral, com todas as formas ar- tísticas, seja do ponto de vista musical, li- terário, seja ponto de vista mesmo das artes visuais e, inclusive, da experiência religiosa – que tem um lugar destacado em qualquer cultura. Cada pessoa, a seu modo, vai juntando e consoli- dando suas experiências e capacidades para poder dar conta, no futuro, no decorrer de sua vida, de tudo aquilo que traz e vai acrescentando no seu dia-a-dia. Junto com tudo isso, há sempre a questão da convivência, dos gru- pos nos quais estamos inseridos, nas situações que vi- vemos. Tudo isso nos faz, ao mesmo tempo, reproduzir e recriar a cultura, tanto no sentido de erudição quanto no antropológico. O desafio é conviver com a diversidade Acho, sinceramente, que a arte, de modo geral, é um instrumento fantástico de aproximação das pessoas. E o mundo cada vez mais isola de um lado e aproxima de outro. É curioso isso. Não raro, a tecnologia de alguma forma nos afasta da convivência. Ficamos horas, às ve- zes, vendo e consultando a internet. Há certo ensimes- mamento muito forte. Podemos nos isolar. De fato, quando estamos diante de uma tela de com- putador, estamos muitas vezes em contato com o conhe- cimento, com o mundo. Temos uma janela extraordiná- ria a nossa disposição, coisa que há muito pouco tem- po não existia. Nós tínhamos janelinhas. Hoje temos uma vitrine imensa, uma grande janela permanentemente aberta a nossa frente. Podemos também estar em contato como muita gente. Aquilo não está ali friamente. Qualquer in- formação que está na tela significa dezenas, centenas, milhares, milhões de pessoas atrás dela – inclusive, cada um de nós pode estar criando e difundindo informação e conhecimento. Aquela tela, em si, não é um isolamento absoluto. Tal- vez no sentido físico, mas não no sentido social, psico- lógico e cultural. Porém, ao mesmo tempo, muitos indi- víduos se escondem diante daquela tela. Eles estão em contato com o mundo, mas se convertem em simples re- ceptores. Abandonam o lado emissor. Há também essa necessidade de nos aproximarmos dos outros, do contato, da convivência no dia-a-dia, para participar de questões, debates, e trazer, de algu- ma forma, uma contribuição para as questões que nos são propostas. Nós vivemos uma realidade muito paradoxal: temos tudo a nossa disposição e falta muita coisa para mui- ta gente. Não é simplesmente em função de uma visão caritativa, cristã, que devemos tentar fazer com que to- dos tenham acesso a tudo. Não é apenas por formação educacional. É por uma questão absolutamente humana. Além da questão religiosa, que alguém pode assumir, e também questões de princípios políticos, há uma circunstância absoluta e totalmente humana. Ou seja, não tem sentido imaginarmos uma sociedade no mundo inteiro na qual se produza 100 e apenas 20% ou 10% da população ou da humanidade têm acesso a quase 80% da riqueza. Isso não é uma questão social, nem religiosa, nem política. É uma questão humana. Desejarmos, por outro lado, que haja uma igualdade absoluta para o ser humano – quando temos diferenças profundas entre nós – também não é uma coisa simples de ser alcançada e achar que isso pode ser resolvido de uma hora para outra. Mas deve haver um equilíbrio en- tre essas questões. Para atingirmos esse equilíbrio, é fundamental levar- mos em conta a diversidade, o respeito à liberdade. O ser humano só vai realmente ter um padrão de bem-es- tar maior na medida em que grande parte dessa huma- nidade puder desfrutar dele. Isso é uma questão humana. Não é uma questão re- ligiosa, nem política. É uma questão absolutamente ba- seada no direito de o ser humano ter acesso aos bens que a natureza colocou a sua disposição. Se queremos igualdade, como é que vamos lidar com a diversidade? Como equilibrar essas duas tendências? O que é a di- versidade? A diversidade é, talvez, um dos aspectos mais curio- sos do nosso processo civilizatório. Aceitar como meu amigo, companheira ou companheiro, enfim, colocar ao meu lado alguém que seja parecido comigo, igual, que 90 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 tenha hábitos semelhantes, tenha as formas de se ali- mentar e de se vestir e de entender o mundo iguais às minhas formas e modos etc., me acrescenta algum méri- to, mas não é um mérito tão extraordinário assim. Agora, por respeito à condição humana, por convic- ção, eu aceitar alguém ao meu lado que pensa diferen- te de mim, que tenha visões diferentes com relação ao mundo, à história, ao passado, ao futuro; uma pessoa que se alimenta diferente de mim, acredita em outras coi- sas nas quais eu não acredito, que é diferente, é diver- sa de mim, isso me acrescenta muito mais. Nessa con- vivência, eu cresço. A grande questão da humanidade hoje diz respeito a essa não aceitação, diz respeito a essa dificuldade do convívio. Há uma questão cultural fundamental, do pon- to de vista antropológico. O conflito é o resultado de tudo isso e faz parte do processo. Porém, uma coisa é admi- nistrar um conflito porque alguém pensa de um jeito e eu penso de outro; nós temos um conflito efetivo. Outra coisa é acirrar essa posição e não admitir sua presença, nem a convivência e, se puder, tirar da frente, eliminar o outro, seja no sentido de não me interessar por essa convivência, ou, o que é mais radical, no de retirá-lo sim- plesmente da vida. Essa questão é o grande desafio do ser humano: como lidar com a diversidade e como lidar com a igual- dade. A igualdade é a maior conquista civilizatória. Não se pense que ela é tão universal como a gente imagina ou gostaria que fosse porque, hoje, ainda no mundo, a sensação, o conceito, o fundamento da igualdade ain- da é muito questionável. Se se levar em conta, por exemplo, a posição com re- lação à mulher em todo o mundo, esse sentimento da igualdade é algo que ainda exige uma evolução, um cres- cimento, uma melhoria de entendimento, no qual o prin- cípio da igualdade seja colocado em todos os padrões, em todos os sentidos, em todas as questões. Isso ainda é uma quimera para a sociedade. Isso também acontece com relação a muitas outras “minorias” – está entre aspas porque chamar um con- junto de mulheres de minoria é um absurdo, na medida em que elas correspondem a mais da metade da popu- lação mundial. O grande momento do atingimento, do ápice do pro- cesso civilizatório será no dia em que a igualdade for as- sumida de maneira absoluta e total no mundo inteiro, em toda a humanidade, o que para mim é uma perspectiva ainda muito distante. Isso não quer dizer que seremos todos iguais, e sim que somos iguais na diferença, nós todos nos reconhecendo como seres humanos, identifi- cando o diferente como ser humano, com direito à vida e a sua cultura. E o outro momento é o respeito à diversidade. So- mos iguais e diferentes. Essa é a frase. Ou, se preferir, somos diferentes e somos iguais. Não pode haver pre- ferência nem de um lado e nem de outro. O respeito é a diferença – o fundamento da igualdade está aí. Tudo isso para dizer o seguinte: a cultura, enquanto erudição e expressão de sentimentos e emoções, tem um papel vital nesse processo. O conhecimento pode ajudar nes- se processo de lidar com a diferença, lidar com o dife- rente, exercitar a tolerância, o respeito ao outro, a acei- tação do diferente, mesmo com dificuldade, onde se per- mite até o conflito. A arte como fator de mudança Com frequência, discuto muito essa questão do precon- ceito, de visão a respeito do outro. O preconceito como resultado de uma educação, de um tipo de socialização, pode ser grave, mas é explicável. É o caso de pessoas que não tiveram a possibilidade de refletir sobre esses preconceitos. Porém, se essas pessoas cultas, informadas, com acesso à informação e ao conhecimento, mantiverem discriminação racial, religiosa, sexual, estão cometen- do uma falha grave. Receber uma educação preconceituosa é algo com que a sociedade toda já se acostumou e é absolutamen- te comum. Manter esse preconceito no decorrer da vida é outra coisa. Uma cidade que não está acostumada a lidar com posições diferentes do ponto de vista político, do ponto de vista do gosto artístico, terá dificuldade de aceitar um conjunto de música jovem de vanguarda. Provavelmente, existirá algum conflito. Emergirá o preconceito. Contudo, acho importante os gestores da cultura sabe- rem que esse tipo de provocação, digamos, de confronto, é importante para o surgimento de novas ideias, desde que feito com inteligência, com ponderação, com cuidado. É o caso do conflito entre experimentação e cultura popular. É indispensável confrontar o velho e o novo; fa- zer uma ação somente voltada para um lado ou para ou- tro é um equívoco grave de gestão. 91 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Eu me assusto um pouco quando, muitas vezes, as pes- soas que falam em nome, por exemplo, da cultura popular não admitem nem de longe tratar daquilo que é novo, di- ferente, contemporâneo. Esbravejam: “Faço isso para pre- servar nossa cultura”. Não acho que isso é preservar. Se essa pessoa se isola nessa posição, não estará preservan- do a cultura popular. Estará criando um gueto que não vai sobreviver. Não tem a menor chance de sobreviver. Por outro lado, também, impor uma cultura nova no lugar tradicional, na marra, na força, também é um equí- voco. Isso deve ser feito de maneira absolutamente in- teligente e adequada. Por isso acho importante os gestores culturais com- preenderem esse balanço entre as coisas, entre o igual e o diverso, entre o de fora e o de dentro, entre o popu- lar, a cultura popular e a experimentação, entre esses polos, digamos, contrários, aparentemente conflituo- sos, mas que têm como se conciliar e, de alguma forma, caminhar juntos. A eterna tensão entre o tradicional e a inovação Lidar com o novo e com o tradicional é absolutamente indispensável e é importantíssimo que se respeitem to- das as tendências. Eu tive uma formação religiosa. Fui seminarista jesu- íta. Na minha formação, estudei latim, grego, humanida- des etc. Há uma frase latina que sempre me ocorre nes- sas horas: oportet illa facere et haec non omiterre. Tra- duzida, quer dizer: pode-se fazer uma coisa sem deixar de fazer outra. Na prática é isso, ou seja, como conciliar os contraditórios? Nesse sentido, acredito que o grande mistério da administração em geral, da administração de pessoas, da administração de recursos humanos, tem a ver com essa habilidade de lidar com o conflito, de lidar com polos antagônicos. No caso de uma instituição como o SESC, que dirijo há alguns anos e que lida com a cultura em diversas di- mensões, abordamos a questão do bem-estar, com pro- gramas voltados para as mais variadas populações. Aten- demos todo tipo de gente, de todas as idades, com todo tipo de tendência, com características das mais variadas – urbanas, rurais –, públicos bem diferentes, com dese- jos e perspectivas diferentes. Nós estamos sempre op- tando por decisões que são colocadas na mesa de ma- neiras antagônicas: devo contemplar o tradicional ou fa- zer algo novo? Devo aceitar alguma coisa de dentro da instituição ou algo de fora que está sendo proposto? Devo fazer uma coisa que contemple, digamos, muita gente ou vou con- templar um grupo menor, mas que poderá influenciar posteriormente mais gente? No SESC, temos permanentemente de lidar com essa dualidade. Isso faz parte da administração, especialmen- te no campo da cultura. Vou dar um exemplo bem interessante: há muitos anos, recebemos um grupo de dança muito sofisticado de Nova York, um grande mestre internacional da dan- ça, que era uma coisa realmente extraordinária, em re- lação à qual era preciso ter um cuidado muito especial na composição do palco, na luz, no som etc. Foi feita essa apresentação para um grupo de pesso- as que tinham interesse, desejo, e era importante por- que aquele grande autor, aquele grande nome, suscita- va muitas questões e, sobretudo, era muito importante para outros artistas. Foi feita em parceria com uma outra instituição, numa das nossas unidades, com todos os cuidados técnicos e artísticos necessários. Uma semana depois, nós rece- bemos, naquele mesmo espaço, naquele mesmo palco, com o mesmo cuidado técnico, com o mesmo cuidado artístico, com a mesma atenção e com a mesma divulga- ção publicitária, um grupo de jovens de uma comunidade carente de São Paulo que foi mostrar lá a sua dança. Para nós, a consideração, o respeito é exatamente o mesmo. Qual foi o espetáculo mais importante para nós? Os dois foram importantes. É nisso que acredita- mos: lidar de maneira igual com os diferentes; trabalhar de maneira que se respeitem as diversas tendências, contemplando toda a sua variadíssima clientela, divul- gando especialmente aqueles que têm menos possibi- lidade de se mostrar. Aí entra o critério social, a necessidade de dar aten- ção àqueles que têm menos possibilidades. São crité- rios indispensáveis para administrar eventos culturais do ponto de vista da sociedade, do ponto de vista do interesse público, que é o que tem de prevalecer. Mas precisamos ter o discernimento de propor algo inovador, para poucos, mas que pode significar, no futuro, novida- de para muitos. 92 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 O cyberativismo entre o tradicional e a inovação Não podemos fazer qualquer consideração sobre cultura sem considerar o poder das redes, a cultura digital, o cy- berativismo e as novas tecnologias da comunicação. Não é uma realidade futura, é uma realidade presente. Nós já temos uma experiência extraordinária no uso dessa tecnologia de uma forma absolutamente fantástica e que tende somente a aumentar e ampliar-se. Tenho a impres- são de que nós estamos vivendo uma nova era civilizató- ria graças ao progresso das tecnologias da comunicação e à facilidade com que temos acesso à informação. Comunicação, informação. Isso nos remete a uma nova sociedade. Sou muito otimista em relação a isso. Talvez algumas pessoas imaginem que seja exagero da minha parte, mas eu diria que se nós tivermos a popu- lação de países antagônicos com acesso pleno às infor- mações e ao conhecimento, os conflitos civis violentos certamente tenderão a diminuir. Já pensou? Diferentes disputas para as melhores sinfonias; ou dança, ou deter- minada música; ou quem faz melhores esculturas. Pen- sando bem, as Olimpíadas e os campeonatos esportivos são formas pacíficas de competição. Acredito que uma das formas de superação dos con- flitos é o conhecimento. O conhecimento contribui para a redução do conflito. Quanto mais conhecimento sobre o outro – conhecimento efetivo, afetivo, não preconceitu- oso –, melhor será nossa relação com ele. Se temos in- formação sobre determinada pessoa (a não ser que haja más intenções, ou outro tipo de elemento), dificilmente interrompemos um diálogo, o primeiro passo para uma convivência saudável. Assim, conhecendo-se bem, havendo uma boa inten- ção entre as pessoas, não vejo como elas possam entrar em conflito para se destruírem. O conhecimento, de alguma forma, elimina barreiras. Se eu passo a conhecer o que o outro faz, como o outro pensa, como ele age etc., eu passo a ter maior facilidade para entendê-lo e compreendê-lo. À medida que a infor- mação e a comunicação se tornam presentes de modo mais intenso nesse processo tecnológico todo, nós par- timos para outro nível de civilidade. Lento, gradual, difícil, complicado, demorado, tudo bem, mas acredito que caminhamos na direção da con- vivência pacífica, porque a tendência é que aumente o acesso à informação e ao conhecimento, em função do progresso tecnológico. Antigamente, nós tínha- mos computadores muito precários. É o que dizemos hoje. Naquela época, eram fantásticos. Lembro-me de que eu estava estudando ainda no colégio interno, em Nova Friburgo, nos anos 1950, quando fui ao Rio de Janeiro pela primeiras vez e vi, numa universida- de, um negócio chamado Cérebro Eletrônico – um antigo nome de computador. Ele ocupava um an- dar de um prédio com um monte de máquinas: esquen- tava muito, tinha um processamento muito demorado. Mas era uma coisa extraordinária. Isso em 1955. Depois disso vieram os computadores e os centros de processamento de dados que eram muito importantes, e todas as empresas começaram a obtê-los. Aos poucos, eles se transformaram em redes de micros. Hoje, a in- ternet, a maior rede mundial de armazenamento e trans- missão de informação e de conhecimento, provocou uma grande revolução na história da humanidade. O ser huma- no sempre criou conhecimento e o transmitiu, mas nunca de maneira tão rápida e em tanta quantidade. Eu me lembro que quando fiz um curso na Suíça, nos anos 1970, nós tivemos acesso aos computadores da uni- versidade de Harvard. Estando na Suíça, a gente tinha acesso aos computadores de Harvard para uma consul- ta: tínhamos hora marcada para fazer uma ligação telefô- nica e era algo extremamente lento para nossos padrões atuais. Mas na época era muito interessante, absoluta- mente extraordinário. Também nessa ocasião, descobri uma coisa que se chamava fax, que vem da palavra fac-símile, que quer dizer igual, cópia de alguma coisa. E fac-símile era o xe- rox à distância. Eu achava maravilhoso. Só existia no cor- reio da Suíça. Ia-se ao correio, pegava-se um papel, co- locava-se numa máquina que o lia e o transmitia para outro lugar. Era o xerox à distância. Eu achava aquilo ex- traordinário. Naquele tempo, havia o telex, uma máquina que en- viava mensagens por meio de uma fita perfurada. Usá- vamos um teclado como de máquina de escrever, que o convertia numa fita, que era decodificada no receptor. Já era um grande avanço. De lá para cá, isso tudo parece jurássico; tudo desa- pareceu. Chegaram os computadores de mesa, o e-mail, 93 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 os lep e pal tops, que podemos levar para qualquer lu- gar. Agora temos algo que cabe na nossa mão, que é te- lefone, máquina fotográfica, computador que acessa a internet... Para onde nós vamos? Daqui a pouco, vamos ter um botãozinho no anel que apertamos e projetamos numa parede o que desejamos. Ou no ar, como se fosse uma holografia. Aliás, já há algo parecido por aí. O avanço da comunicação, do ponto de vista tecno- lógico, é cada vez maior. Ou seja, a comunicação e a in- formação também estão cada vez mais facilitadas: para o que há de melhor e para o que há de pior, e a socieda- de vai também se ajeitando, corrigindo, tentando bus- car soluções. Tenho para mim que a formação de rede para to- dos os objetivos, para aumentar o conhecimento, man- ter intercâmbio, trocar informação, construir ideias, so- luções, resolver problemas dos mais variados no mun- do, se torna cada vez mais fácil. A rede é uma ferramen- ta cada vez mais útil. Tenho consciência muito clara de que nós avança- mos, mas avançamos correndo riscos – avançando o tempo todo porque somos humanos e temos, do nos- so lado, tendência a fazer o melhor sempre. Claro que, ao mesmo tempo, temos também tendência a praticar o pior mal possível. A civilização e a barbárie trabalham absolutamente paralelas, juntas. Isso é o ser humano, isso é a humanidade. Como corrigir isso? Acho que com a informação, a comunicação, esse processo cada vez mais avançado, a construção de redes, essa facilidade de ter acesso ao mundo todo de maneira quase imediata. Hoje, ninguém pode ter dúvida de nada. Quando alguém pergunta: “Quando morreu Beethoven?”, a resposta chega em se- gundos, por meio do celular. E, se a pessoa quiser, tem acesso a toda a vida dele, às músicas que compôs, a áu- dios e vídeos de suas sinfonias. Claro que isso não é ainda para a humanidade in- teira. É aquela história que eu dizia da igualdade. O dia que for, aí muda tudo. E aí vai ser inevitável: imagi- no, realmente, um mundo de avanço com todas as difi- culdades, com todos os equívocos, com essa situação caótica criada no mundo da riqueza virtual que está aí presente e que foi um grande e terrível problema, para o qual certamente vamos buscar caminhos mais equili- brados no futuro. Portanto, a minha perspectiva é sem- pre muito otimista. As políticas culturais farão a diferença Acredito que a maior ou menor rapidez na difusão da informação, da arte, do conhecimento, depende funda- mentalmente de boas políticas culturais. O Brasil avan- çou muito nesse sentido. Contudo, as demandas são imensas. São demandas tanto do ponto de vista da in- fraestrutura quanto do fomento, da estruturação de ne- cessidades e da operacionalização de ideias. Quanto à infraestrutura, nós temos um caminho gran- de a percorrer, no nível nacional, estadual, municipal... Temos avançado muito e temos conseguido organizar ações que atendam a essa necessidade. Quando falo in- fraestrutura, refiro-me a espaços, equipamentos. A estru- tura é propriamente a legitimidade e os meios pelos quais a criação cultural e artística pode transitar, ser difundida e apreciada, como ideia, conceito ou prática. O Ministério da Cultura tem trabalhado muito nessa direção, na criação do sistema nacional de cultura, que, Tenho consciência muito clara de que nós avançamos, mas avançamos correndo riscos – avançando o tempo todo porque somos humanos e temos, do nosso lado, tendência a fazer o melhor sempre. Claro que, ao mesmo tempo, temos também tendência a praticar o pior mal possível. A civilização e a barbárie trabalham absolutamente paralelas, juntas. Isso é o ser humano, isso é a humanidade. 94 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 para mim, é algo que tem de dar conta do processo de informação. Mas como se trata de um sistema que pretende organizar suas par- tes em todo território nacional, co- ordenando-as entre si, há ajustes que ainda deverão ser feitos quando as questões preponderantes até o mo- mento (como a preocupação com o fluxo de decisões) e o estabelecimento dos fluxos finan- ceiros estiverem superados, ou puderem ser mais bem previstos. Outro aspecto crítico para o qual os gestores do sistema devem estar atentos é com relação à burocra- cia do Estado que, mesmo sem querer, pode modificar o andamento dos processos e a qualidade dos resulta- dos. Portanto, é possível que o Sistema, mais como me- todologia do que como estrutura burocrática, aprimore a qualidade da comunicação social prevista na difusão cultural, para ganhar agilidade. Estamos avançando, estamos melhorando, mas fal- ta muita coisa ainda em todos os níveis. Recentemen- te, foi criado um instituto nacional de museus. Se isso é realmente uma coisa que vai permitir cumprir essa mis- são, acho fantástico e, daqui para frente, acho melhor que cresça. Com relação à infraestrutura, tenho uma vi- são bem clara e acho, com relação à questão física das estruturas que, mais do que criar espaços novos, deve- mos nos preocupar com os espaços já criados. Muitas vezes, políticos e gestores imaginam manter ou colocar o seu nome numa plaquinha na porta de um novo edifício. Temos muita coisa que precisa ser manti- da, restaurada, recuperada. Estou falando de patrimônio histórico, museus, casas de espetáculos, centros cultu- rais. E isso é no Brasil inteiro. Esta é a primeira variável sobre a qual precisamos nos debruçar: infraestrutura. A infraestrutura no senti- do da informação e desenvolvimento. Nós temos de criar essa modalidade. Por exemplo: formar bons gestores de cultura e espalhá-los pelo País; dar elementos para que toda essa rede imensa de Pontos de Cultura tenha condi- ções de exercer bem o seu papel de gestores, de alguém que entende o que fazer com o recurso, como utilizá-lo, como dar conta desse recurso de uma maneira adequa- da. Tudo isso tem a ver com gestão. E, com relação ao fomento, quando falo em fomento quero falar da criação de oportunidades para o surgimen- to dos criadores, daqueles que desejam participar. Estou falando de concursos, de festivais, de iniciativas as mais variadas no País inteiro que deem conta disso, que permitam que o poder públi- co, em todos os três níveis, seja ca- paz de atender às necessidades da área cultural. Infraestrutura e fomen- to são mais importantes do que ação di- reta, mais do que a gestão das ações cultu- rais. Essa é consequência. Aqui, entramos no campo do fomento e das leis de incentivo que têm sido, ultimamente, a grande fonte de apoio para a ação cultural. Acho indispensável. Evoluí- mos muito e temos de evoluir mais. Só precisamos to- mar dois grandes cuidados. Primeiro, com a utilização do recurso público, do in- centivo fiscal, para ações de caráter privado que têm o cunho de publicidade empresarial. É claro que a lei está aí, mas a ela deve ser cuidadosamente cumprida para promover a cultura e não financiar a publicidade. O segundo elemento diz respeito, sobretudo, ao ca- ráter educativo da cultura – que, para mim, é fundamen- tal. Refiro-me ao caráter educativo: é o interesse público que deve nortear o processo de difusão cultural incenti- vado. Isso quer dizer que devemos favorecer aquele ar- tista, literato, ou grupo de artistas que não tenha uma carreira consolidada, que precisa ser mais cuidadosa- mente amparado. Acho importante reafirmar: as ações culturais incen- tivadas devem ser presididas pelo interesse público. Te- mos de evitar a utilização desses recursos de uma for- ma inadequada, simplesmente publicitária ou merca- dológica. Empresas privadas que eventualmente desejem, por conta própria, investir recursos na cultura, que o façam independentemente da lei. O que não pode é depender exclusivamente do mecanismo de incentivo cultural. Eu acredito que a ação cultural é uma ação pública. Portanto, é preciso aumentar os recursos públicos pro- venientes da arrecadação dos impostos, direta e exclu- sivamente voltados para a cultura, devidamente contro- lados, além desses dos atuais incentivos fiscais. 95 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A Casa da Arte de Educar, ONG carioca que atua há dez anos nos morros do Rio de Janeiro, parece ter encontrado um ponto de equilíbrio perfeito na combinação de sabe- res presentes na comunidade e na universidade. Foi do encontro de profissionais oriundos desses dois univer- sos que a organização nasceu e é nessa mesma lógica que ela continua desenvolvendo as suas ações. Com sedes na Mangueira e no Morro dos Macacos, regiões da cidade do Rio de Janeiro, a Casa das Artes atende a cerca de 450 pessoas, dentre crianças, jovens e adultos, promovendo atividades no contraturno esco- lar e de Educação de Jovens e Adultos - EJA, com o obje- tivo de garantir a conclusão dos estudos dos seus dife- rentes públicos. Sempre trabalhamos com a convicção de que boas saídas nascem do encontro de diferentes. A gente preci- sava se misturar, aprender uns com os outros, para que juntos pensássemos esse projeto – explica a fundadora e coordenadora geral da Casa das Artes, Sueli de Lima. Em parceria com educadoras da Mangueira, Sueli deu início aos trabalhos da instituição, promovendo oficinas de arte na comunidade. Com uma proposta pedagógica consistente e fruto de constantes reflexões e sistematizações, a Casa da Arte de Educar estrutura seus projetos em núcleos de pesqui- sas, estimulando a construção de um conhecimento que articula e valoriza os saberes escolares e não escolares, numa relação de troca e respeito às diferenças. A metodologia desenvolvida pela organização foi adap- tada e implementada pelo Ministério da Educação nas es- colas participantes do Mais Educação1 , programa de edu- cação integral do governo federal. Em 2009, a Casa das entrevista: sueli de lima *. A valorização dos saberes da comunidade na escola FABIANA HIROMI * Sueli De Lima, pedagoga, arte-educadora e historiadora, é coordena- dora geral da Casa das Artes – Mangueira, Vila Isabel e Acari [http:// www.artedeeducar.org.br]. Fabiana Hiromi, jornalista, é editora do site www.cenpec.org.br. Artes foi a grande vencedora do 8o Prêmio Itaú-Unicef, que reconhece iniciativas de organizações que desen- volvem projetos socioeducativos em parceria com a es- cola pública. Em entrevista ao Cadernos Cenpec, Sueli de Lima, que é pedagoga e historiadora da arte, fala mais sobre essa parceria com o MEC, sobre as possibilidades que essa metodologia abre ao professor e sobre a relação en- tre educação e cultura. Ela é categórica: – É como ter fome e não pensar na comida. A gente nun- ca pensou a arte só pela arte, e sim como essa formação mais qualificada através da arte poderia colaborar concre- tamente com a conquista dos desafios acadêmicos. Educação e cultura são faces da mesma moeda Cadernos Cenpec: De quem foi a iniciativa de realizar ofi- cinas de arte na comunidade? Sueli de Lima: Esse trabalho nasceu do meu encontro com educadores da Mangueira e, anos depois, no Morro dos Macacos. Eu sempre trabalhei em favelas. Nasci em frente à Rocinha; depois, me mudei. Sempre fui de clas- se média, mas morei próximo a favelas, o que não é mui- to difícil de acontecer aqui no Rio de Janeiro. Essa ques- tão da favela sempre me interessou muito. Em diversos momentos da minha vida, cruzei com educadores comu- nitários. Meu trabalho sempre foi nessa direção. O encontro com as educadoras da Mangueira foi qua- se algo natural; aconteceu através da minha intensa re- lação com favelas e educadoras comunitárias. Quando nos encontramos, ficamos pensando como formular um projeto de educação capaz de dar conta dos enormes desafios que existem nas periferias. Base- 96 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 adas em Paulo Freire, a partir do diagnóstico de proble- mas locais, começamos a trabalhar na comunidade com patrocínio da Xerox. Esse patrocínio, que durou cinco anos, era o ideal, porque não precisávamos nos preocupar com questões materiais, só pedagógicas, o que fez com que a gente se aprofundasse bastante na metodologia. Tínhamos uma ação muito integrada à comunidade e, ao mesmo tem- É como ter fome e não pensar na comida. A gente nun- ca pensou a arte só pela arte, e sim como essa formação mais qualificada através da arte poderia colaborar con- cretamente com a conquista dos desafios acadêmicos. Nossas pesquisas sempre foram no sentido de avançar nessas relações. Cadernos Cenpec: As atividades estão estruturadas em núcleos, que foram sendo criados ao longo da história da instituição. Cada projeto é desenvolvido em um núcleo? Como funciona? Sueli de Lima: A Casa das Artes tem um projeto peda- gógico que se estrutura em cinco núcleos de pesquisa, que foram se estruturando ao longo dos anos e nasce- ram das nossas pesquisas. Os núcleos têm projetos em separado; às vezes, apresentam intersecções. Depen- de um pouco do desenvolvimento das ações, do assun- to, da proposta. Não tem uma regra. Inicialmente, nós começamos com o Núcleo de Pesqui- sas Artísticas e com o Núcleo de Memória. O Núcleo de Pes- quisas Artísticas realiza estudos no universo da cultura lo- cal, não com a intenção de formar artistas, e sim do ponto de vista de que a arte promove a valorização da subjetivi- dade, a capacidade de o indivíduo interferir no mundo, de se compreender como um igual e um diferente. A arte é estruturante de muitas das capacidades de cada um se conhecer melhor. É nesse sentido que rea- lizamos pesquisas artísticas, compreendendo também que a arte é algo de muito interesse dos jovens e buscan- do promover a cultura local, ao mesmo tempo em que a colocamos em debate com a sociedade. O Núcleo de Memória, que nasceu praticamente jun- to com o de Pesquisas Artísticas, faz uma pesquisa do contorno cultural da comunidade por meio do vídeo e da fotografia. Em seguida, nasceu o Núcleo de Diálogos com a Ci- dade, que a gente chama de educação urbana. Fazemos parcerias com museus e com a cidade em geral, de modo que todo o trabalho da Casa das Artes se estende à ci- dade. Recebemos gente de fora e também vamos a di- versos locais. É a compreensão da cidade como um es- paço de formação, de educação. Depois, criamos o Núcleo de Diálogos com a Escola, que surgiu a partir de uma demanda da comunidade. Co- meçamos a pensar: • como formular esse diálogo com a escola se não so- mos uma escola; po, contávamos com educadores saídos da universida- de. Sempre trabalhamos nessa convicção de que a saí- da nasce do encontro de diferentes. Então, a gente pre- cisava se misturar, aprender uns com os outros, para que juntos pensássemos projeto. Cadernos Cenpec: O trabalho de vocês tem como mis- são garantir que meninas e meninos concluam os estu- dos. Por que a escolha da interface entre educação/cultu- ra para promover isso? Sueli de Lima: Porque a gente entende que educação e cultura são faces de uma moeda. Uma não está se- parada da outra. Não dava para pensar em formular ou colaborar na formulação de uma saída para educa- ção pública, diante dos desafios que as crianças e jo- vens viviam, sem pensar na cultura local e no seu de- senvolvimento. casa da arte de educar, rio de janeiro, rj. foto: noelia albuquerque. 97 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 • qual o nosso papel em relação à escola; • como a gente se coloca de um ponto de vista diferen- te da escola, mas em diálogo com ela? Foi aí que começamos a pensar nas nossas metodo- logias que hoje estão aí, implementadas pelo MEC. Dois anos atrás, nasceu o Núcleo de Tecnologias Po- pulares. É um trabalho de promoção das ciências. A gen- te entende que, nas periferias, é formulada uma série de soluções para problemas do cotidiano. Então, procura- mos promover a valorização desses profissionais e des- ses saberes, relacionando isso com as ciências (Física, Química, Biologia...). De modo geral, todos os núcleos dialogam com a esco- la. Inclusive, na Mandala dos Saberes – que sintetiza a me- todologia da Casa das Artes –, o Núcleo de Diálogos com a Escola é o único que envolve todos os outros núcleos, porque ele realmente abraça todas as outras práticas. Também tem o EJA, que está incorporado à nossa di- nâmica com jovens. Foi uma coisa bonita que foi aconte- cendo no nosso trabalho. As crianças começavam a gos- tar de estudar e os pais ficavam muito para trás e come- çaram a se interessar. Foi quando a gente iniciou esse trabalho de educação de jovens e adultos, que hoje é um projeto super forte, atuante. Interlocução com a universidade Cadernos Cenpec: Você acha que essa divisão nos núcle- os atuais contempla todas as dimensões que vocês preten- dem trabalhar, ou a ideia é criar novos núcleos? Sueli de Lima: A gente não entende a educação como algo estático. Neste momento, a Casa tem esse formato, mas estamos sempre pesquisando, inquietos, porque enten- demos que sempre é preciso encontrar uma forma melhor de fazer o nosso trabalho. Gostamos de pensar o nosso trabalho de um ponto de vista experimental. Estamos, por exemplo, pensando em criar um núcleo de saúde; sentimos a necessidade de apoio nessa área. Já temos alguns recursos para isso, mas queremos ter mais. Precisamos de fonoaudiólogos, oftalmologistas e uma série de outros profissionais. Cadernos Cenpec: Quantos educadores atuam aí e de que áreas são? Sueli de Lima: São cerca de 30, entre educadores e moni- tores. São de diversas áreas: pedagogos e artistas, princi- palmente. Também temos geógrafos, historiadores, pro- fissionais de informática. Mas todo mundo dentro da Casa da Arte é pesquisador. A gente realmente vem conquistan- do isso. Me parece que é um diferencial nosso. Entendemos que a Educação passa por um momen- to que necessita de mais pesquisas que nasçam da prá- tica. Não adianta as ONGs receberem recursos e os apli- carem só nas ações. A ação implica uma reflexão que, por sua vez, implica uma nova ação. Trabalhamos com essa dimensão. Então, eu acho que a gente vem avançando tanto no trabalho de campo quanto nas reflexões que a gente consegue produzir. Temos seis li- vros publicados, vídeos, uma série de materiais que a gen- te vem conseguindo elaborar buscando essa reflexão. Procuramos monitorar muito bem o nosso trabalho. Em função disso, a gente vem buscando uma interlocu- ção com a universidade. Trabalhamos aqui no Rio com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e, em São Paulo, com a Universidade de São Paulo - USP. Buscamos a supervisão da universidade e, ao mes- mo tempo, tentamos formular no espaço em que a gen- te atua um saber que é distinto do saber universitário. É um saber que nasce da prática. Achamos fundamen- tal essa relação entre o que a gente faz e o que a gente aprende com o que faz, que, em alguma medida, vai fa- zer com que a gente faça diferente. A metodologia da rede de saberes que o MEC imple- mentou e o trabalho que estamos desenvolvendo de adaptação dessa metodologia para o EJA – tudo isso está sendo feito com a supervisão da universidade. Recuperar a dimensão pesquisadora do professor Cadernos Cenpec: Um dos diferenciais do trabalho de- senvolvido por vocês é a metodologia da Mandala dos Sa- beres2 . Você poderia falar como ela foi desenvolvida e no que ela consiste? Sueli de Lima: As mandalas nasceram dos diálogos com as professoras das escolas onde a gente trabalha, pen- sando muito no que elas diziam: 98 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 – Puxa, parece que os nossos alunos não sabem de nada. É uma coisa bem Paulo Freire. A gente respondia: – Meu Deus, mas eles sabem tanta coisa; dão tan- to olé na vida. Pegamos o universo da cultura e começamos a pen- sar como deixar isso claro, como explicitar. A primeira mandala, que é a dos saberes comunitá- rios, apresenta o universo da cultura local de qualquer sujeito vivo. O que vai diferenciar é que cada um tem a sua experiência com habitação, com o corpo, com a voz. Mas todos nós temos experiências nas onze áreas que compõem essa mandala. E aí a gente colocou isso em diálogo com os saberes escolares, pensando a escola de um ponto de vista não tão linear, sem “gavetinhas” (Matemática, separada do Português, separada da História...). Começamos a pensar sistemicamente. Entendemos que nós, professores-pes- quisadores, somos mediadores de saberes. Nosso desafio é construir essas relações. Para conseguir isso, é preciso ser livre, ter a capacidade de pensar de forma mais livre. É nesse sentido que muitas coisas podem se relacionar. Depende de como o professor cria esses sentidos. O trabalho da educação integral é formar um pesqui- sador. Esse é o trabalho do “contraturno”: apoiar a es- cola na formação desse pesquisador. 4a feira do livro de são miguel paulista, cdc tide setubal, 2009. foto: verônica manevy. 99 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Cadernos Cenpec: O pesquisador a que você se refere é o sujeito crítico, interessado pelo conhecimento... Sueli de Lima: É! É preciso aprender a pesquisar em Capoeira, Música, Artes Plásticas, Matemática, Portu- guês, nas Ciências... É preciso aprender a pesquisar: observar, desenvolver uma hipótese, debater, destruir essa hipótese, construir outra, criar, jogar – todos es- ses procedimentos que são inerentes ao pesquisador. Assim, conseguimos relacionar o campo da escola ao dos saberes comunitários, sem que uma coisa precise formatar a outra e reconhecendo pontos de intersec- ção entre ambas. A metodologia é muito simples. Tem um passo-a-pas- so que garante ao professor a liberdade de construir seu próprio projeto pedagógico. A gente entende que o pro- fessor precisa recuperar essa dimensão pesquisadora. As políticas públicas não podem entrar com cartilhas do tipo “faça-isso-faça-aquilo”, e sim explicitar princí- pios para que os professores venham a desenvolver os seus projetos. A formação se estrutura desta forma: garantindo ao professor a capacidade de ele se estruturar como pes- quisador nas suas práticas pedagógicas, a partir das re- lações entre cultura e educação, ou seja, entre o univer- so do território no qual ele atua e os desafios acadêmi- cos que os alunos trazem. Essa metodologia foi aperfeiçoada, continua sendo e vai estar sempre nesse processo. Ela não está pronta. Ela é só o início. Ao ser aplicada, ela é destruída e reconstru- ída, porque a gente não entende a educação como uma coisa fixa. Nunca. A realidade não é permanente e nós temos de acompanhá-la. O que a gente formulou para o MEC, a partir da nossa prática, foram princípios que ago- ra estão sendo, digamos, “digeridos” pelo País e vão na- turalmente ganhar formatos novos, espero eu. O País tem de botar temperos, reformatar, dizer o que está faltando... Não é possível que esteja perfeito. É o início de um caminho que precisa sempre ser aperfeiço- ado. A metodologia deve refletir a diversidade da cultu- ra local, das experiências, dos desafios. Por isso, tem de ser livre para ser refeita, reelaborada. O que a gente fez foi garantir isso. Foi apontar o que está em jogo, quais são as peças do quebra-cabeça, e mostrar que esse quebra-cabeça não encaixa só em um lugar. É uma obra aberta – um conceito do Umberto Eco que diz que “as obras de arte contemporânea são obras 100 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 curso de literatura de cordel e xilogravura, cdc tide setubal, 2009. foto: verônica manevy. que não possuem um significado em si, e sim naquele que se relaciona com a obra”. O parangolé, do Hélio Oiticica3 , pode ser um pano para eu fazer uma cabana, pode ser o meu véu de noiva, meu lenço, uma saia... Vai depender da resposta que eu der àquele pedaço de pano. Isso é que é fazer obra de arte: é eu me relacionar com ela. A gente entende que os projetos pedagógicos têm de ir na mesma direção: a gente distribui pedaços de pano, mas cada território vai se apropriar e dar a sua resposta. Para que isso aconte- ça, é preciso incentivar os professores a se tornarem pes- quisadores da cultura local. Cadernos Cenpec: Quais os impactos dessa metodolo- gia na aprendizagem? Sueli de Lima: A gente percebe que os professores au- mentam os seus referenciais, seu vocabulário, suas fer- ramentas e estratégias pedagógicas. Consequentemen- te, percebem com mais facilidade as relações e o papel deles como mediadores. A metodologia não só valoriza a cultura local, como também o professor. Isso é funda- mental, porque o professor precisa ser estimulado, re- conhecido, incentivado. A metodologia dá a ele o poder de construir o seu trabalho. Cadernos Cenpec: Vocês mantêm uma relação muito es- treita com a comunidade... Sueli de Lima: Totalmente. A comunidade é a autora dos projetos. A gente pode dizer que esse trabalho, essa me- todologia que foi implementada no País, foi construída pelos professores universitários em diálogo com os pro- fessores comunitários. Isso é muito bonito para o pro- grama Mais Educação, porque é quando a forma e o con- teúdo conseguem andar juntos. O que está sendo valo- rizado não é só o saber dos professores universitários; é também o saber das professoras do Morro dos Maca- cos e da Mangueira. Notas 1 O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial no 17/2007, aumenta a oferta educativa nas escolas públicas por meio de atividades optativas que foram agrupadas em macrocampos como acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde, educomunicação, educação científica e educação econômica. Fonte: http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=86&id=12372&option= com_content&view=article. Acesso: 26 de janeiro de 2010, 18:30. 2. Para mais informações sobre a Mandala dos Saberes, acessar http://portal. mec.gov.br/dmdocuments/cad_mais_educacao_2.pdf. 3. Hélio Oiticica Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, 26 de julho de 1937 — Rio de Janeiro, 26 de março de 1980) foi um pintor, escultor e artista plástico performático de aspirações anarquistas. É considerado por muitos um dos artistas mais revolucionários de seu tempo. Sua obra experimental e inovadora é reconhecida internacionalmente. Era neto de José Oiticica, anarquista, professor e filólogo brasileiro, autor do livro O Anarquismo ao Alcance de Todos (1945). Em 1959, fundou o Grupo Neoconcreto, ao lado de artistas como Amilcar de Castro, Lygia Clark, Lygia Pape e Franz Weissmann. Na década de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé, que ele chamava de “antiarte por excelência”. O Parangolé é uma espécie de capa (ou bandeira, estandarte ou tenda) que só mostra plenamente seus tons, cores, formas, texturas e grafismos, e os materiais com que é executado (tecido, borracha, tinta, papel, vidro, cola, plástico, corda, palha), a partir dos movimentos de alguém que o vê. Por isso, é considerado uma escultura móvel. Foi também Hélio Oiticica que fez o penetrável Tropicália, que não só inspi- rou o nome, mas também ajudou a consolidar uma estética do movimento tropicalista na música brasileira, nos anos 1960 e 1970. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lio_Oiticica#cite_note-0. Acesso: 26 de janeiro de 2010, 18:15. 101 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Para István Jancsó, in memorian. política cultural no Governo Lula, conduzida pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, alcançou patamares mais eleva- dos e concretizou novas premissas, com base em um proje- to imaginativo e ousado para o Ministério da Cultura. Essa organização, que completa 25 anos, não parecia ter nascido para voos mais altos e emblemáticos na vida nacional. Hoje, o Ministério da Cultura - outrora inexpres- sivo, concebido em grande medida para acomodar au- tarquias tradicionais do patrimônio, do cinema e das ar- tes, sem exercer liderança - formulou políticas públicas e ampliou seu raio de ação e de influência na vida polí- tica e cultural do País. É marcadamente relevante a recente decisão do Pre- sidente da República de inserir a cultura como destina- ção dos recursos do fundo social do pré-sal, na ilustre companhia de serviços públicos considerados essen- ciais, como saúde e educação, destacando tanto o novo perfil de atuação do Ministério quanto o êxito em estar presente nas grandes decisões. As ações que revelam a nova face do Ministério da Cultura têm o mérito de falar por si. Entre tantas realiza- ções no plano nacional, destacamos: Dez mandamentos do Ministério da Cultura nas Alfredo Manevy * gestões Gil e Juca * Alfredo Manevy é secretário-executivo do MinC e doutor em Estética e Audiovisual pela Universidade de São Paulo. foto à esq.: bumba meu boi do maracanã/ma; cortejo das culturas populares 23 ispa congresse são paulo 2009. autoria: verônica manevy. artigo A 103 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 • o Vale-Cultura; • o Simples para as micro e pequenas empresas cultu- rais; • os Pontos de Cultura; • as reformas da Lei Rouanet e do direito autoral; • a política para o patrimônio imaterial; • a criação do Sistema Nacional de Cultura (fortalecen- do as políticas de cultura nos estados e cidades); • a criação de fundos públicos setoriais para as artes e a revitalização da Funarte; • o Fórum Nacional de Televisão Pública; • o fundo setorial para o audiovisual; • o Sistema de Indicadores e Informações Culturais. A abrangência plena – horizonte maior do MinC nes- tes anos – inclui desde políticas inovadoras para a cul- tura digital e jogos eletrônicos nacionais, até o inédito apoio aos povos indígenas, à moda, à arquitetura e ao design. E, algo sem precedentes, no plano internacio- nal, a demanda por programações artísticas de gran- de impacto, como o Ano do Brasil na França e as parce- rias de exportação da música e do cinema a países de todo mundo que querem a cultura brasileira sendo exi- bida e assimilada. Durante a gestão Gilberto Gil e Juca Ferreira, a cultu- ra brasileira tornou-se um ingrediente essencial e deci- sivo do novo papel do Brasil no mundo, na medida em que ela parece apresentar o País pela adesão a valores, estilos e atitudes de vida, diferentemente de um movi- mento estratégico estritamente político e orientado eco- nomicamente. Ao mesmo tempo em que democratiza o acesso a bens culturais de todos os tipos, a atual gestão do Mi- nistério da Cultura está na raiz da questão, ao valorizar a concepção de equipamentos culturais que representam um novo paradigma de excelência no acesso à cultura: • a instalação da biblioteca digital Brasiliana, na USP, contendo o acervo de José Mindlin, é um importante marco do que será o maior centro de difusão de acer- vos para todo o Brasil; • o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo; • o Parque Serra da Capivara, no Piauí; e • o Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre. São todas instituições financiadas principalmente com recursos públicos federais em parceria direta com o MinC, a partir de 2003. Mas essas ações e equipamentos públicos não expli- cam o conjunto nem revelam o essencial. Essas agendas não seriam viáveis sem a conquista de um novo status para a cultura, e para a política cultural, vários degraus acima do lugar em que historicamente foi relegada e en- contrada por esta gestão. Subir ao palco do teatro polí- tico em posição de protagonista não seria possível sem a introdução da cultura no rol das necessidades básicas do País: essa é a palavra de ordem da atual gestão. Os dois Ministros empenharam-se diretamente em ampliar a presença da cultura na percepção das grandes instituições do País: a começar pelo Congresso, pela im- prensa, pelos bancos públicos, pelas redes sociais, em- presas privadas e estatais. O resultado é uma discussão sobre política cultural na esfera pública sem preceden- tes na história do País. Apresento a seguir, dez pontos estratégicos, um de- cálogo que marca a atual política cultural brasileira e que já é tecnologia exportada a outros países e ministérios da cultura do mundo: 1o. Amplo conceito de cultura. 2o. Cultura como direito fundamental e necessidade bá- sica 3o. Promoção da diversidade cultural brasileira. 4o. Valorização das culturas tradicionais. 5o. Diretrizes para a economia da cultura. 6o.Modernização do direito autoral brasileiro. 7o. Modernização da política do fomento à cultura. 8o. A sociedade civil como conceito da ação estatal. 9o.O papel do Estado na cultura. 10o. Orçamento público para a cultura. Amplo conceito de cultura. O primeiro, e mais importante, desses pontos é a definição ampla de cultura ao lado de sua percepção como um ter- ritório social estratégico para o futuro do País. É a construção da narrativa, do discurso e do espaço social em favor da agenda cultural. Tem sido recorrente ministros de todo mundo encontrarem instituições cultu- rais públicas sucateadas, periféricas, esvaziadas. O Mi- nistério da Cultura do Brasil foi solicitado diversas ve- zes a participar no redesenho e fortalecimento dessas instituições mundo afora, em especial na América Lati- na e na África. Em grande medida, as políticas culturais e as políti- cas ambientais foram as mais prejudicadas nas duas dé- cadas perdidas de 1980 e 1990. Em muitos casos, como o nosso, os Ministérios foram suprimidos do arcabouço 104 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 institucional: quando da supressão do Ministério da Cul- tura no Governo Collor, em 1989, seguiu-se um grande si- lêncio nas esferas mais amplas da sociedade. Um silêncio em certa medida sintomático da inope- rância e irrelevância do Ministério, ainda que, sob ele, houvesse instituições relevantes como a Embrafilme e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. A fragilidade do MinC refletia uma concepção polí- tica vigente que via como desnecessário o papel do Es- tado no apoio à cultura. Acima de tudo, isso encontra- va solo fértil na baixa aderência ou baixo consenso da sociedade e do mundo político sobre a importância das políticas culturais. Para além das centenas de ações e programas, o papel público e destacado dos ministros Gil e Juca foi decisivo para ampliar a base de consenso da sociedade sobre a necessidade e o alcance do Minis- tério da Cultura. Nessa direção, o Ministério da Cultura investiu, desde 2003, em uma parceria com IBGE, para conhecer a pre- sença da cultura nas cidades, no orçamento da família e na geração de emprego formal do País. Foi criado o Sis- tema de Informações e Indicadores Culturais do MinC, a primeira base de dados oficial em termos de cultura. Constituiu-se em instrumento decisivo de política cultu- ral: ele permitiu mapear e perceber os gargalos, defici- ências, ausências e potencialidades da área cultural que cabe ao MinC alcançar com políticas e programas. Trata-se da necessária tarefa de construção do seu campo: missão no plano do discurso em última instân- cia tão ou mais sólida quanto qualquer ação prática. A primeira menção de Gil na pasta foi na direção de a cul- tura deixar de ser, então, “a cereja do bolo”, para ocu- par lugar central nas estratégias de desenvolvimento do Estado e da sociedade, uma disputa pelo lugar da cul- tura na vida política do País. Consequentemente, os Ministros tornaram pública a discussão por um orçamento mais robusto, com a meta de alcançar o patamar mínimo de 1% das recitas gerais da União, o recomendado pelas Nações Unidas. Sem isso, corria-se o risco de insignificância e de deixar de contri- buir para alterar o modelo de desenvolvimento: a perse- guição do crescimento, da produção e distribuição de ri- queza – pura e simplesmente – não é capaz de gerar de- senvolvimento humano. O Brasil teve altas taxas de crescimento, nos anos 1970, mas o fez inchando e poluindo as cidades, sem um sistema educacional qualificado e reprimindo nossa diversidade cultural. A política cultural tem como obje- tivo maior justamente qualificar o acesso à informação, à autodeterminação, ao lazer, ao prazer estético, garan- tindo espaço de liberdade de expressão e fruição a to- dos os indivíduos. É uma distopia imaginar uma sociedade com as ne- cessidades materiais realizadas, entretanto, sem plura- lismo de valores, espiritualidade, senso estético, sem tradição e inovação, senso crítico, capacidade plena de criação e renovação do pensamento. Ou megalópoles sem espaços centrais destinados às comunidades, gru- pos artísticos e culturais. Ao afirmar esse novo patamar, o Ministério afirmou o segundo ponto estratégico: a cultura como direito fun- damental e necessidade básica. Cultura como direito fundamental e necessidade básica Tão importante quanto a educação, a saúde pública e o voto, a cultura deve ser afirmada como direito da popu- lação. O Ministério cristalizou uma demanda estabeleci- da entre os brasileiros, ainda que não representada por boa parte das agremiações políticas. As necessidades culturais felizmente deixaram de ser um luxo de bem nascidos para se tornar hoje um item in- dispensável do cotidiano de qualquer criança, jovem e adulto do País. Elas se manifestam na busca pelo aces- so cultural em uma lan-house ou em um telefone celu- lar, quando são baixados conteúdos musicais, audiovi- suais, notícias ou realizam-se trocas de e-mail. Se a cultura é de fato um direito social como nos defi- ne a Constituição de 1988, o papel do Ministério da Cul- tura muda decisivamente em perfil e em escala de aten- dimento. Assim como o Ministério da Educação e da Saú- de, o MinC passa a ter um papel universal, e estabelece diálogo com todos os cidadãos e suas demandas. Essa visão impulsionou a reforma e o fortalecimento do Ministério da Cultura, para que ele se tornasse equipado, dinâmico, eficiente e com um orçamento à altura de sua missão. O orçamento do Ministério em 2003 – ainda sob o plano plurianual feito no governo Fernando Henrique – era de aproximadamente R$ 400 milhões. O orçamento em 2010 é de R$ 2,2 bilhões, cinco vezes mais, um salto im- portante, mas ainda insuficiente diante da sua nova mis- são: atender o conjunto da sociedade brasileira. 105 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 O IBGE, nas pesquisas em parceria com o MinC, nos revelou a acintosa divisão entre os brasileiros no aces- so cultural: • apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema algu- ma vez no ano; • 92% dos brasileiros nunca frequentaram museus; • 93,4% dos brasileiros jamais frequentaram alguma exposição de arte; • 78% dos brasileiros nunca assistiram a um espetácu- lo de dança, embora 28,8% saiam para dançar; • mais de 90% dos municípios não possuem salas de cinema, teatro, museus e espaços culturais multiuso. Os números revelam um enorme fosso entre os que podem ter acesso a equipamentos culturais e leitura e a imensa maioria discriminada. É inimaginável pensar a sociedade brasileira como um corpo estanque, uniforme, à espera de oferta de bens culturais. A sociedade detém cultura, mas “se o povo sabe o que quer, também quer o que não sabe”, como dizia Gilberto Gil. Os direitos culturais devem ser pensados em três vias distintas: direito ao acesso a bens culturais, ao repertó- rio cultural e artístico do Brasil e da humanidade. O direi- to de acesso deve ir muito além do que é oferecido pela família, pelo trabalho, pela comunidade, pela escola ou pelo contexto cultural imediato. É ampliação dos espa- ços de liberdade, fruição e escolha dos indivíduos. É um repertório necessário para viver no século XXI. Esse acesso – se garantido pelos poderes públicos - impacta fundamentalmente o sistema educacional e au- menta a qualidade de vida da sociedade. A questão que podemos perguntar é se essa necessidade estatística já se transformou em demanda da sociedade. A resposta é positiva. Um estudo sem filtros sobre homens e mu- lheres que vivem neste século não nos deixa dúvidas: a demanda existe, está aí e é universal. É um grande equívoco acreditar que a demanda cultu- ral é proporcional à renda dos indivíduos e, logo, apenas se manifesta nos estratos elevados em termos de renda. É outro equívoco crer que apenas a minoria rica da popu- lação brasileira deseja cultura e arte, aqui e agora. Essa é uma demanda política da população, que infelizmen- te a ação política contemporânea, em todo mundo, não repercutiu nem incorporou satisfatoriamente. Outro dado estatístico é oferecido pelo Sistema de In- formações e Indicadores Culturais do Ministério da Cul- tura e IBGE: independente de classe social, o brasileiro utiliza o mesmo porcentual de seu orçamento em ativi- dades culturais, algo em torno de 3% do orçamento fa- miliar, em média. O número não é baixo: os dispêndios em cultura ocu- pam um lugar importante na hierarquia dos gastos fami- liares: o quarto lugar entre as prioridades das famílias brasileiras, atrás de alimentação, transporte e habita- ção, e à frente do gasto em educação. Se o número é ne- gativo, o é para as classes altas. Se pobres e ricos gas- tam o mesmo em cultura, isso significa que o País não está conseguindo formar uma elite informada e esclare- cida, com vínculos sociais e humanos com a singulari- dade brasileira. O porcentual revela que uma multidão de homens e mulheres quer lazer, arte e cultura em suas vidas, ape- sar das precárias condições de vida. E talvez aqui fique bastante evidente uma história de vazio e omissão, tan- to do setor público quando do privado, na área cultural. Esses setores ou foram irresponsáveis – caso do Estado – ou acomodados e desprovidos de alcance – caso do setor privado – em criar uma economia cultural no Bra- sil, em oferecer bens cultuais à maior parte da popula- ção brasileira. São dezenas de milhões de brasileiros que não fre- qüentam salas de cinema no Brasil. E os que freqüen- tam são os mesmos que conseguem desembolsar os al- A política em favor da diversidade cultural engloba todas as outras quando introduz os critérios de observação de território e população, sem filtros ou preconceitos, sem complexo colonial, sem um olhar viciado pela hierarquia de visibilidade dos grandes centros e sem deixar de perceber o Brasil interconectado com seus vizinhos e com o todo o resto do mundo. 106 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 tos preços da economia formal de CDs, livros e DVDs. O que se percebe é que a economia formal da cultura é uma economia de poucos e, acima de tudo, pensada para poucos. Podemos dizer que ela é pensada para poucos por- que os investimentos do setor privado são baseados na parcela consumidora preexistente, uma minoria. É raro sermos surpreendidos com algum esforço para efetiva- mente ampliar a base de consumo de algum bem cultu- ral no Brasil. O setor privado na cultura parece não acompanhar os crescentes investimentos de outros setores da eco- nomia, mesmo em um período de estabilidade e cres- cimento que o Brasil conquistou na última década. Não há desenvolvimento de modelos de negócio baseados nas expectativas, perfis de demanda das classes, C, D e E, no Brasil. O único modelo de negócio que soube chegar em todo território nacional é o da televisão aberta. Mas suas condições foram especiais e privilegiadas pela ação en- tre Estado e empresas nos anos 70, uma história que se conhece bem. Não por acaso, a programação de televi- são é a única alternativa que chega a todas as cidades e estratos sociais: mais de 90% dos lares. A televisão é um acontecimento central na vida do País, mas sua ofer- ta em caráter de quase exclusividade empobrece a frui- ção cultural dos brasileiros. Em outros setores da cultura, como livros e música, há uma enorme oportunidade na ampliação da classe média e da enorme demanda por conhecimento e informação que acompanha a ascensão social de milhões de brasi- leiros e suas famílias. O resultado é que, em economia, não existe espaço vazio para as necessidades de consu- mo. O resultado é a ocupação desse espaço pela pirata- ria e outras formas de economia informal, em cumplici- dade com boa parte da sociedade. Daqui depreendemos algo fundamental: é uma aná- lise redutora acreditar que a pirataria é um fenômeno que pode ser enfrentado pelo enfoque estritamente po- licial. Como há crime organizado com tentáculos inter- nacionais, ele deve continuar a receber repressão firme: houve nessa direção forte investimento governamental no combate a essa modalidade de crime. Mas seria insistir numa estratégia de avestruz des- considerar que o buraco é mais embaixo, e que se trata de uma demanda social sem o devido atendimento eco- nômico e social. Essa é uma mudança profunda de pa- radigma. Até 2003, os programas do Ministério não ti- nham indicadores e metas de acesso ao público e à so- ciedade. As metas avistavam apenas a produção de pou- cos bens culturais. Algo tão estranho como se o Ministé- rio da Educação não incorporasse os estudantes como finalidade última de suas políticas, focando apenas nos professores e suas demandas. Aqui chegamos ao terceiro ponto, o fomento à di- versidade cultural brasileira como um rico patrimônio do País. Promoção da diversidade cultural brasileira. Não há, em nossa visão, qualquer contradição entre a inovadora política universalista (cultura, direito de to- dos) e seu natural complemento com políticas e ações em favor das diferenças culturais que nos enriquecem a todos. A política em favor da diversidade cultural engloba to- das as outras quando introduz os critérios de observa- ção de território e população, sem filtros ou preconceitos, sem complexo colonial, sem um olhar viciado pela hie- rarquia de visibilidade dos grandes centros e sem deixar de perceber o Brasil interconectado com seus vizinhos e com o todo o resto do mundo. Num período de fortes mudanças globais e sociais, o Estado deve oferecer apoio às manifestações artísticas e culturais de enorme valor e que correm risco de extin- ção, como saberes e conhecimentos orais. Mas a políti- ca em favor da diversidade cultural não é, em essência, preservacionista: cabe ao Estado priorizar os espaços de autonomia para a renovação, interação, diálogo com as tendências contemporâneas e de futuro que, em todo o canto, o dinamismo social traz à tona. Atenuar as pressões econômicas que recaem sobre o que é diferente será, em outras palavras, garantir flu- xos mais amplos com o mundo externo, onde os protago- nistas dos grupos e comunidades reforçam sua autono- mia, formulam sua própria inserção e ensaiam sua capa- cidade de movimentação. A política que o Ministério da Cultura adotou desde 2003 escancarou as portas para, entre outros, povos indígenas, mestres de capoeira, lu- thiers de instrumentos tradicionais, cozinheiras de aca- rajé, bem como para minorias urbanas (como GLBT, tea- tros amadores, cineclubes, população de manicômios, para manifestações como hip hop). E o fez sem ingenuidade romântica ou oportunista de 107 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 uma tradição política que faz o elogio do autêntico/po- pular, pois seria sonegar a condição moderna do Brasil e as precariedades e necessidades dos grupos culturais. O Ministério valorizou as iniciativas dos estratos menos favorecidos sem fazer o elogio ingênuo do isolamento, já que a pauta é justamente o acesso às estruturas e meios de expressar e circular. Trata-se de equipar as comunida- des para que essa circulação seja feita em proveito pró- prio, fortalecendo seus projetos de longo prazo. Como nação, somos produto intenso da globalização. A sociedade brasileira foi tecida com muitas contribui- ções de diferentes partes do planeta, por meio de múlti- plas migrações, interações e influências de povos de todo o mundo. Há contribuição de japoneses, poloneses, liba- neses, italianos, latino-americanos. A lista é imensa. A preciosa contribuição dos povos ameríndios, ori- ginários do continente, e dos diversos povos africanos aqui trazidos à força pela escravidão é parte indissoci- ável de toda a sociedade, um traço comum a todos os brasileiros, independente da cor da pele, ou da baga- gem genética das gerações atuais. Depois de séculos de conflitos sociais e históricos, o resultado é uma constru- ção humana que transborda beleza, conhecimento, sa- bedoria, música, espiritualidade, religiosidade, estiliza- ção da vida, do corpo, uma forma de perceber o mundo que é toda própria. Diante dessa riqueza, o Ministério da Cultura aliou- se a diversos países e aprovou na Unesco a Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expres- sões Culturais, um marco internacional que está para a cultura como esteve, anos atrás, o Protocolo de Kyoto para o meio ambiente. No plano interno, atualizou o papel do IPHAN – cria- do há 70 anos por Mario de Andrade e Gustavo Capane- ma – e criou uma secretaria com foco na questão. Colo- cou em prática um programa amplo para que essas di- ferenças se transformem em fluxos ativos da vida social moderna - e para mitigar preconceitos e violências. Ou para evitar diluição, desinteresse, invisibilidade de ma- nifestações e expressões que lutam para afirmar-se no campo simbólico. A diversidade é, nesse sentido, um ativo para o futu- ro, uma contribuição que o Brasil pode dar a si próprio e ao mundo. Isso nem sempre foi considerado verdade: seja pelo temor de fantasmagorias tardias de segregação territorial e étnica, seja pela necessidade de justificar a vontade de ocupação e reprodução do poder centraliza- do por meio da propaganda ou de formas mais sutis, da imposição dos padrões de vida de alguns sobre outros. A diversidade brasileira, até há pouco tempo, figura- va no rol das “preocupações estratégicas”, como as do regime militar. Nesse sentido, uma política de diversida- de cultural pode ser considerada uma das mais impor- tantes mudanças de paradigmas do papel do Estado em favor de um estágio ainda mais avançado de democra- cia e liberdades civis. Sua tarefa de longo prazo: prepa- rar a sociedade para conviver e admirar os distintos mo- dos de vida que a compõem. É o caso das populações indígenas e de seus mo- dos de vida, que entram choque com projetos de inte- gração forçada. Aqui chegamos ao quarto ponto, a valorização das culturas tradicionais, indígenas e quilombolas, entre outras diversas tradições, como parte decisiva do futu- ro do Brasil. Valorização das culturas tradicionais O aperfeiçoamento da democracia deve ir muito além do direito ao voto, para garantir o direito ao pluralismo de modos de vida. Uma grande nação continental como o Brasil não pode contornar este imenso imperativo. Para isso é preciso superar preconceitos, desinformação, com- plexos de inferioridade e perceber nas diferenças uma enorme riqueza que poucas nações possuem. No caso dos indígenas, são cerca de 230 grupos e 180 línguas que circulam no território, ao lado da língua por- tuguesa. Cada língua é um complexo sistema simbólico que lança ao mundo sentidos e formas de organizar uma experiência que é inteiramente diferente das formas oci- dentais em que boa parte da sociedade brasileira está ancorada. Para além da demarcação das terras - agen- da de lutas que se desdobra ainda hoje -, emerge a luta cada dia mais importante da afirmação cultural, em favor da transmissão do conhecimento para novas gerações e da garantia de uma plena cidadania indígena. Ao mesmo tempo, é preciso preparar a sociedade brasileira não apenas para a erradicação do preconcei- to, como também para uma atualização de valores. É ne- cessário valorizar o privilégio de cultivar em nossa socie- dade a presença de tamanha diversidade, de visões de mundo em tudo diferentes em sua relação com a nature- za, com a espiritualidade, com a saúde e com corpo. Os indígenas compreendem a natureza como parte de seu 108 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 universo social, uma das muitas influências que podem ampliar horizontes da sociedade brasileira. Os maiores laboratórios do mundo percebem uma alta tecnologia que vem sendo instrumentalizada sem qual- quer benefício aos povos que geraram tal conhecimento. Um enorme complexo colonial se abateu sobre os olhos do Brasil diante dessa enorme riqueza, o que não signi- fica que devamos assumir o protagonismo dessa instru- mentalização, com viés nacionalista. Trata-se de com- preender a contribuição das culturas indígenas de uma forma mais ampla e profunda, na qualificação de nossa relação com o meio ambiente e dos laços comuns com toda a América do Sul. Nesse sentido, as culturas indígenas são fundamen- tais para moldar o futuro do Brasil e do planeta, não sen- do apenas objeto de “políticas de memória”. É justamen- te nessa conexão com a tradição que o Brasil fortalece seu passaporte para um futuro sustentável. Os povos in- dígenas devem ter, nesse sentido, plenas condições de optar pelas formas de interação e integração que forem as mais adequadas para eles, respeitando sua autono- mia nessas decisões. Até 2003, o Ministério da Cultura não tinha relação com as culturas indígenas. Assunto de índio, no gover- no federal, resumia-se aos problemas de justiça, saúde e terra. Com a criação do Prêmio Culturas Indígenas – Edi- ção Xicão Xuxuru, o MinC recebeu centenas de projetos, que solicitavam câmera de vídeo, internet, materiais di- dáticos diferenciados, entre outras demandas que reve- lam projetos inovadores. O Ministério passou a dialogar com as centenas de povos e estabelecer políticas. Ao mesmo tempo, a política de patrimônio imate- rial do Iphan deslanchou com diversos reconhecimen- tos. A culinária baiana do acarajé, passando pelo tam- bor de crioula, até o reconhecimento do roteiro históri- co indígena da Cachoeira da Onça, em Iauaretê, no Alto Rio Negro, fronteira com Colômbia, são alguns dos rele- vantes exemplos de uma ampla lista. Todos esses reco- nhecimentos foram seguidos de ações de apoio, salva- guarda, cursos e instalação de pontos de cultura entre os mestres, pajés, baianas, que foram beneficiadas pelo reconhecimento. Desse modo, a política de cultura oferece sua contri- buição para a inversão do modelo de desenvolvimento que perdurou nos anos 70, no qual muitas dessas cultu- ras e tradições foram vistas como entraves ou como es- combros do progresso. Basta lembrar as vias predatórias de desenvolvimento, a forma como o campo foi esvazia- do e transformado em grandes favelas povoadas de ope- rários com a missão de erguer as maiores cidades brasi- leiras. Ao mesmo tempo, é fundamental lembrar a ocu- pação da Amazônia por fazendeiros armados, encontran- do pelo caminho povos ancestrais. Mais tarde, a diversidade tornou-se um slogan que deixou muitos deslumbrados quando foi hiperexposta, e parecia apenas evocar um período de rarefação de julga- mento estético, cultural, de diluição de projetos, no qual o único valor são as diferenças e desagregações. Valorizar a diversidade não significa deixar de abordar os temas e laços da nação, como a implantação de uma necessária política de promoção da língua portuguesa, nem de constituir uma esfera pública de reflexão sobre as sínteses gerais do processo nacional. Ao contrário, o Ministério da Cultura investiu em programas como Cul- tura e Pensamento, justamente de modo a apoiar um es- paço elevado de reflexão sobre o Brasil. A incorporação da diversidade apenas obriga que o processo seja feito sem desconsiderar a complexidade do país. Significa modificar os critérios de absorção do conhecimento que hoje pautam o ensino superior, bem como abrir as portas do ensino básico para mestres de capoeira e outros mestres que detém conhecimento, mas não detém reconhecimento formal para realizar a passa- gem desse saber. Chegamos ao quinto ponto. O Ministério da Cultura – além de reconhecer a dimensão simbólica, a cidadã, deve trabalhar uma política para a economia da cultura. Valorizar a diversidade não significa deixar de abordar os temas e laços da nação, como a implantação de uma necessária política de promoção da língua portuguesa, nem de constituir uma esfera pública de reflexão sobre as sínteses gerais do processo nacional. 109 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Diretrizes para a economia da cultura. Essa talvez seja igualmente uma tarefa tão complexa quanto a de garantir a cultura como direito: elas devem ser formuladas em conjunto, pois os equipamentos cul- turais oriundos de políticas públicas devem ser pensa- dos ao lado de uma vigorosa economia cultural que deve ser desenvolvida nas grandes cidades brasileiras. Uma economia baseada no consumo popular, evitando mo- nopólios e guetos. A política para a economia da cultura vem sendo con- duzida em três frentes: • na ativação e fomento das cadeias criativas e intelec- tuais – no centro do sistema; • no estímulo de cadeias produtivas: produção, distri- buição, circulação e publicidade, como elos de cone- xão com o acesso; e • na ampliação do mercado consumidor, incluindo os que não consomem cultura, em programas como Va- le-Cultura do Trabalhador. Essa análise deve ser percebida em três contextos: • da revolução digital; • do aprofundamento democrático; e • da criação de uma economia para muitos. A incorporação de trabalhadores que hoje não fre- qüentam cinemas nem consomem livros é o principal objetivo do Vale-Cultura. Ele permitirá um gasto de R$ 50,00, por meio de cartão magnético, em bens culturais de sua livre escolha. As centrais sindicais e centrais pa- tronais já aderiram à idéia e o projeto começa a funcio- nar em 2010. Empresas recebem um incentivo fiscal para adotar o cartão e os trabalhadores arcam com um quinto do valor. O potencial de trabalhadores a atingir é de 14 milhões de famílias, bem como se projeta uma injeção na economia da cultura de nove bilhões de reais. O Sistema de Indicadores e Informações Culturais do Ministério revela que, entre 2003 e 2005, a importância das empresas culturais cresceu no Brasil. Em apenas dois anos, o número passou de 5,6% do total de empresas para 6,1%, um número que já era expressivo mas que re- vela aqui seu franco crescimento. O Ministério da Cultura passou a estudar cada um dos setores culturais, daqueles que requerem políticas altamente cuidadosas com seu valor, como o artesanato, até as que têm estruturas tradicionais, mas vivem agu- das crises em função da obsolescência do seu modelo negocial no contexto digital, como a música. Uma parceria com o BNDES – principal indutor do crescimento na era Lula – levou o Banco à decisão iné- dita de criar um setor e um fundo específicos para a cul- tura, focado em áreas como animação, música e criação de salas de cinema. O Ministério também criou no Pla- no Plurianual, o instrumento de planejamento do Gover- no Federal, um programa específico para a economia da cultura, o Prodec. O prestígio da agenda cultural no Congresso Nacional permitiu a inserção da cultura no Simples – sancionada em 2010: ele permite às empresas culturais pagar 6% ao invés de 17,5 % de impostos, o que torna viável abrir e manter funcionando uma pequena produtora cultural no Brasil. Ao lidar com um setor que era verdadeiro ponto cego das políticas de estímulo a setores da economia, o Ministério da Cultura pode hoje oferecer políticas de cré- dito, desoneração e apoio direto às empresas culturais. Já são 321 mil entidades ligadas à cultura (novamente, dados do Sistema de Informações e Indicadores Cultu- rais do MinC), empresas ou entidades sem fins lucrati- vos. Elas cumprem, e irão cumprir ainda mais, um papel decisivo nas metas da política pública de cultura. O desenvolvimento de uma economia da cultura é, entretanto, impensável sem o fortalecimento e atualiza- ção do direito autoral no Brasil. Aqui chegamos ao sex- to ponto. Modernização do direito autoral brasileiro. Como é difícil o desenvolvimento de empresas sem um ambiente favorável, o mesmo se pode dizer das condi- ções de criação intelectual e artística. Elas exigem for- mas de temperatura e pressão específicas e o autor não pode ser o elo fraco dessa cadeia. O Brasil acumulou uma grande dívida com seus au- tores. A situação do Brasil é paradoxal: a cultura brasi- leira tem uma grande circulação global, fruto da sua vi- brante qualidade e magnetismo, porém, sem infraestru- tura, planejamento, apoio e políticas. A cultura brasilei- ra produziu internacionalmente um grande respeito, mas sem qualquer retorno comercial: a economia da cultura global gerou poucos dividendos para os artistas e em- presários brasileiros. Um enigma que é possível decifrar: esse triste para- doxo reflete o lugar banal em que a cultura esteve nas estratégias de desenvolvimento que o Brasil lançou no passado. Números do Banco Central revelam que, em 110 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 matéria de direitos autorais, o Brasil possui balança co- mercial deficitária, o que significa que o Brasil não rece- be a riqueza econômica a partir do que o mundo conso- me da sua cultura. Festejamos superávits em agronegócio, mas a opinião pública ignora que, em matéria de cultura, os números econômicos são muito ruins. Ao mesmo tempo, o poten- cial de consumo é imenso, o que foi no passado recente uma grande oportunidade desperdiçada. O mundo consome música e televisão brasileira, mas o que exportávamos tinha baixo valor agregado, por in- termédio de multinacionais em setores como música e edição de livros, gerando divisas fora do Brasil. É o caso de muitos sucessos nacionais que, alçados ao reconhe- cimento internacional, rendem o grosso de seu retorno ao parceiro estrangeiro, caso do filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), que viu sua imensa bilhete- ria internacional ser canalizada para uma distribuidora ligada aos estúdios Disney. O histórico de fracasso do Brasil nesse tópico revela não apenas um passivo de omissão, além de escancarar a fragilidade institucional e legal. A legislação brasileira data de 1998, mas nasceu velha: sequer percebeu a revo- lução digital e as novas formas de criação que o mundo já vivenciava há pouco mais de dez anos. Não observou nossa cultura com seu imenso potencial e acovardou-se enxergando na arte brasileira uma fraqueza. A lei do direito autoral é resultado da simbiose de duas pressões. Uma, internacional, advinda dos acor- dos de liberalização de comércio na recém estabelecida Organização Mundial do Comércio – OMC, na qual o go- verno à época permitiu arrastar o Brasil para uma legis- lação ainda mais conservadora que suas correlatas es- trangeiras. E, outra, interna, de lobbies de associações que atuaram apenas em interesse próprio. Como trágico resultado, o Brasil aceitou restrições ao uso privado de bem intelectual que praticamente todos os países recu- saram. Para muitos especialistas, a lei de direito auto- ral brasileira é a mais conservadora e cheia de desequi- líbrios do mundo. O resultado é uma legislação que coloca o artista - autor nacional - a mercê de contratos leoninos. Mesmo tendo sido criado por lei, o Escritório Central de Arreca- dação e Distribuição – ECAD é uma instituição que não presta contas e – como um velho governo stalinista - co- bra o uso de músicas até em festas privadas ou cineclu- foto: verônica manevy. 111 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 bes sem qualquer inclinação comercial, uma fúria tribu- tária que muitos brasileiros já sentiram na pele. E isso não em favor dos músicos: no caso do ECAD, que repre- senta as associações arrecadadoras da área de música, é imensa a queixa de falta de transparência, uma grita por parte de artistas insatisfeitos com o que recebem na repartição sem critérios. A lei também permite que um autor abra mão de 100% de seus direitos patrimoniais, o que significa abrir mão de qualquer possibilidade de remixar ou regravar suas músicas, ou mesmo reescrever novos livros com um mesmo personagem criado por esse autor. Ou de tornar sua criação intelectual disponível em circuitos que jul- ga relevante. Ou mesmo de reimprimir sua obra quan- do ela se torna esgotada e a editora (dona dos direitos) não concorde. É uma legislação que não reconhece a participação coletiva numa obra, quando se trata de filmes, progra- mas de televisão, relegando ao status de serviço tercei- rizado o papel criativo de roteirista, diretores e atores. E, mais grave: a legislação omite o consumidor final, a so- ciedade civil, os direitos culturais. Uma boa legislação de direitos autorais deve garan- tir o bom equilíbrio entre direitos dos três elos: aqueles que criam, aqueles que investem e os que consomem. Não é o caso, em nossa legislação de 1998. Todo cida- dão que baixa um arquivo do computador para o toca- dor de MP3 está na ilegalidade no Brasil. A cópia para uso privado, sem fins de lucro, não é autorizada pela nossa legislação. Assim como a cópia xérox é autorizada apenas para “pequenos trechos”, sendo que a maior parte das bi- bliotecas universitárias ou livrarias não dá conta da de- manda de estudantes e professores. Os textos usados em classe, para centenas de alunos, não podem depen- der da compra de cada livro recomendado para leitura. É impraticável. A falta de decisões razoáveis por parte de empresas e ação judicial contra algumas universida- des brasileiras públicas e privadas, colocando professo- res contra a parede, tornou a miopia legal um problema central da educação superior no Brasil. Além disso, as associações que representam os edi- tores e livreiros ainda não aceitaram a tarefa de inventar um modelo de negócio inteligente que se adapte a essa realidade e demanda estudantil. Propostas em circula- ção não faltam. Por essa e outras razões, o Ministério da Cultura coloco, em 2010, a consulta pública da alteração da legislação autoral no Brasil. O estabelecimento da re- gulação adequada, bem como de uma instituição públi- ca que possa zelar pelos equilíbrios em cada setor cons- tituem o projeto do Ministério para que o Brasil deslan- che em matéria de propriedade intelectual. Chegamos então ao sétimo ponto, a modernização da política do fomento à cultura. Modernização da política do fomento à cultura. A gestão do MinC nesses anos estabeleceu um critério republicano e transparente pela adoção de seleções pú- blicas e de critérios especializados para a transferência de recursos públicos. A política de editais é uma enorme conquista da atual gestão, ainda que o edital não seja um mecanismo que sirva a todos os propósitos de uma política cultural. Os editais passaram a oferecer dezenas de alternati- vas para os artistas e produtores culturais em todo terri- tório nacional. Inspirou empresas e gestões estaduais e municipais a seguir o mesmo exemplo. Tornou-se assim uma alternativa ao patrocínio, em que apenas 20% dos proponentes têm a sorte de conseguir o mecenato. Mas os editais não reverteram a estrutura central do modelo de fomento, no qual a maior parte do recurso público é via renúncia fiscal, cerca de 80% de todo o dinheiro pre- visto no orçamento da cultura. O modelo de renúncia fiscal é oriundo da Lei Sarney. Mantido e aperfeiçoado na Lei Rouanet, seu modelo foi im- plantado também em alguns estados e municípios. A po- lítica cultural, seguindo esse modelo, se restringe em ofe- recer estímulos aos departamentos de marketing de gran- des empresas. Em suas políticas de comunicação, cabe a eles, por lei, o papel de definir os projetos financiados com dinheiro público. O estímulo inicial, com o tempo, se tornou cobertura total. Na Lei Rouanet, alterada seguidas vezes, o incentivo chegou a 100%. Na Lei do Audiovisu- al, passou disso. Aí chegamos ao paradoxo: se o objetivo era envolver o setor privado e estimular o mecenato priva- do no Brasil, como autorizar 100% de renúncia fiscal, ou seja, passar a conta inteira para o contribuinte? Mas a crise do mecanismo mecenato desvia a aten- ção do essencial: a inexistência de fundos públicos para a cultura, de orçamento à altura da tarefa, o que é conse- qüência do mal original: a ausência recente de políticas para área, do tema que tratei logo no início deste ensaio - a falta de percepção estratégica da cultura. 112 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A renúncia fiscal foi a forma como se resolveu um im- passe na redemocratização do País, época de alta infla- ção, baixa capacidade de investimento: de um lado, a pressão de setores da cultura e, de outro, a baixa prio- ridade do assunto, a não disposição do Estado em en- frentar a questão e criar instituições públicas eficazes para lidar com a demanda. Outro ingrediente do impasse foi a preocupação com o dirigismo, o autoritarismo ou formas de corrupção e cor- porativismo. A preocupação, no passado recente pós-di- tadura, é legítima. Contudo, cultura foi submetida ao la- boratório da renúncia fiscal, enquanto outros setores da vida social aperfeiçoaram a transparência e moderniza- ram seus corpos técnicos; enquanto outros setores do Estado lograram desenvolver instituições públicas de fo- mento dignas desse nome – como é o caso da pesquisa científica e universitária, com Fapesp, Capes e CNPq. Os resultados da lei foram divulgados pela impren- sa no amplo debate proposto pelo Ministério da Cultu- ra, como método de elaboração de uma nova legislação. Apenas 3% dos proponentes captaram mais de 50% de todo o recurso: aproximadamente R$ 8 bilhões, em 19 anos. Do total de 10 mil projetos apresentados por ano, não mais que 20% chegam a conseguir patrocinador; e 80% do recurso ficou concentrado em apenas duas gran- des cidades do País. Setores da cultura sem captação: áreas como leitura, arqueologia, distribuição, cultura popular, entre outras áre- as. Um desfile de distorções que justificam uma nova legis- lação de fomento à cultura. O Ministério da Cultura propôs um amplo debate seguido de consulta pública, com vários anos de discussão. O projeto de lei que cria um novo marco de mecanismos está agora no Congresso Nacional. O mal maior não deve evitar a busca da genuína par- ceria com o setor privado: ela deve ser estimulada em forma de parceria, não falsificada com pés de barro. Por essa razão, o Ministério da Cultura convidou os maiores empresários, usuários da Lei Rouanet, para um pacto em favor do investimento privado e do genuíno mecenato. Apostando no diálogo, e em um novo ciclo de responsa- bilidades, o Ministério da Cultura estabelece um novo estilo de parceria entre público e privado, tão importan- te quanto o diálogo com o campo cultural. Nos cartazes e anúncios de página inteira em que di- vulgam espetáculos e eventos como parte de sua estra- tégia de marketing, é inegável o retorno de imagem para as empresas, a valorização e positivação da marca – o ativo mais importante do capitalismo contemporâneo - no imaginário da população. Essa promoção não pode ter custo zero para as empre- sas, feita com dinheiro do contribuinte apenas, abrindo mão dos orçamentos que as grandes multinacionais com raiz brasileira reservam para sua comunicação. São os mais lucrativos bancos, mineradoras, empresas de ener- gia: ao contrário dos países desenvolvidos, o dinheiro “aplicado” aqui é 100% público, salvo em louváveis ex- ceções. Em todo o mundo, essas empresas investem di- nheiro próprio. No Brasil, seguimos o caminho oposto. A nova lei fortalecerá o orçamento público como me- canismo central: para isso, cria diversos fundos públicos, como inédita fonte de apoio direto aos projetos, uma in- jeção de dinheiro público nas artes sem necessidade de intermediação de patrocínio. Ao mesmo tempo, o MinC contratou, em 2009, centenas de pareceristas especia- lizados, peritos para fazer uma avaliação dos projetos a partir de critérios. Aprovada a nova lei, há uma base profissional para adotar critérios públicos. A nova lei mantém a parceria com as empresas, agora com um patamar de investimen- to privado mínimo, nos casos de patrocínio. A estimati- va é que o patrocínio aumente em pelo menos 20%. A lei cria estímulos para a desconcentração, estabelecen- do o repasse automático de 30% dos recursos para se- cretarias de cultura, em estados e municípios. Elas só poderão utilizar o recurso em investimento nos artistas e projetos da sociedade. Outro entrave fundamental do campo cultural é a proli- feração das fundações sem fundo no Brasil. As instituições públicas, que não são nem estatais nem anexadas a gran- des empresas, vivem à míngua, sem capacidade de pagar suas contas. Prestam um grande serviço à cultura, mas a política cultural baseada em Lei Rouanet criou uma cultu- ra de projetos, que ignora a manutenção e o longo prazo desses museus, centros culturais, escolas de arte. Com a cultura dos 100% de abatimento, as grandes empresas se acomodaram e é muito raro ver o que acon- tece na Europa e EUA: a doação para fundos de manuten- ção. Para oferecer um inovador mecanismo de sustenta- ção, a nova lei incorpora o modelo de endowments (do- ações), oriundo do mundo desenvolvido, oferecendo in- centivo à formação de fundos específicos para a manu- tenção dessas instituições, para a remuneração de suas atividades meio, com avaliação de seus resultados e me- tas de atendimento. 113 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A nova lei visa alcançar um objetivo posto como cen- tral na atual gestão cultural: o fortalecimento das insti- tuições culturais de natureza privada com finalidade pú- blica. Com este novo paradigma, a diversidade cultural, os artistas e produtores terão uma legislação à altura da riqueza cultural brasileira. Mas o fomento à cultura deve buscar alcançar pon- tos sensíveis da vida cultural brasileira. Aqui vale comen- tar a criação do programa Pontos de Cultura, que ilustra bem o oitavo ponto: o protagonismo da sociedade civil como conceito da ação de Estado. A sociedade civil como conceito da ação estatal O programa Pontos de Cultura nasceu de um feliz encontro entre a orientação do Presidente Lula de apoiar comuni- dade e periferias do País, onde há enorme carência de equipamentos, e a experiência de Gilberto Gil e Juca Fer- reira com o terceiro setor da cultura. Gil chegou ao Ministério propondo o do-in antropo- lógico, a necessidade de massagear pontos vitais do país, represados, contraídos, sem espaço de circula- ção sanguínea. O programa Pontos de Cultura foi concebido de for- ma inovadora seguindo, passo a passo, a visão de Gil e Juca sobre o assunto: o Ministério da Cultura oferece apoio por dois anos e meio para grupos culturais de fa- velas, comunidades ribeirinhas, cidades pequenas. São foliões, maracatus, grupos de hip hop, rádios comunitá- rias, jovens lideranças indígenas. O olhar inovador de Gil neutralizou o cacoete tradi- cional do Estado em “inventar” as iniciativas. As inicia- tivas já existem na sociedade – foi o axioma simples e revolucionário que fez do programa um êxito rápido em sua enorme capilaridade e flexibilidade. Juca Ferreira tinha longa experiência com projetos so- cioculturais, como o Axé, na Bahia, que incorpora meninos e meninas da absoluta miséria, ao articular saúde, educa- ção, cultura e arte. Formais ou informais, essas iniciativas da sociedade brasileira pipocaram com a redemocratiza- ção do País em centenas de milhares; nelas, a cultura é ao mesmo tempo empreendimento social, integração de jovens e crianças, oferta de oportunidades, participação comunitária, expressão tradicional e invenção estética. No vazio deixado pelo próprio Estado, e pela econo- mia da cultura, a sociedade criou formas alternativas de dispor de repertório, informação, comunicação, lei- tura. O programa agregou três pilares: reconhecimento, apoio financeiro e tecnológico (câmera de vídeo, estúdio de som, a depender do perfil de cada ponto) e ofereceu cursos, prêmios, capacitação para que os Pontos alças- sem voos maiores. Hoje, o programa repassa recursos a aproximadamente 5.000 iniciativas do País. Mas o programa deixa como desafio a modernização do Estado brasileiro. Essa reflexão não se aplica apenas à gestão cultural: o Estado que herdamos não foi mol- dado para parcerias de fôlego com a sociedade. Os ins- trumentos legais disponíveis para transferência de recur- sos são obsoletos e – em nome do legítimo combate à corrupção – tornam inviável a relação com a maior par- te da sociedade por excesso de rigidez. A busca de maior controle e transparência do Estado é louvável - e indispensável - na democracia moderna, mas ela deve focar no acompanhamento dos serviços, na qualidade do que é produzido com dinheiro público, e menos no controle formal, que é superficial. Um dos maiores problemas do Ministério da Cultura, nesses oito anos, foi a prestação de um serviço ágil e eficaz para a sociedade, e o saldo é de ainda muito insuficiência. A parceria inovadora que o MinC propôs à socieda- de, em seus milhares de prêmios, bolsas e convênios concedidos, esbarra na inadequação do modelo de pro- jeto, acompanhamento e prestação de contas que a lei atual exige. A mudança da Lei Rouanet irá resolver parte desses gargalos, mas outra parte deve envolver, além do contínuo fortalecimento do MinC e de seu corpo de ser- vidores, uma nova lei orgânica da administração públi- ca, que já está em gestação e debate no País. O problema não é apenas da política cultural, e sim de um País que só resolverá problemas fundamentais da qualidade dos serviços prestados se – na linha do pro- grama Pontos de Cultura – incorporar o acúmulo insubs- tituível da sociedade. Chegamos então ao nono ponto: a compreensão do papel do Estado na cultura. O papel do Estado na cultura Parte do prestígio e influência do Ministério da Cultura se deve ao fato de que adotou, de forma irretocável, uma postura republicana, transparente e participativa de cons- truir suas políticas. Muito se fala de uma política de Es- tado para a cultura, mas, para isso, é preciso afirmar o papel do Estado. 114 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Não poderia ser de outra forma, considerando a imen- sa tarefa de fundo que é galgar a cultura a este novo e desejado patamar. O Ministério foi, nestes anos, imen- samente republicano ao jamais usar como critério a cor partidária nas parcerias com estados e municípios, inves- tindo direto em todos os estados administrados pela opo- sição. Assim, logrou criar programas federativos como o DOC-TV e os Pontos de Cultura, adotados em quase to- dos os estados do País. E, mais do que isso, observando o dinamismo cultu- ral brasileiro com imenso respeito, cuidado e zelo pela li- berdade de expressão e diversidade de visões estéticas e intelectuais, o Ministério primou por ser uma instituição pública e plural em seus editais, programas e ações. O Mi- nistério foi transparente em suas decisões, seja em calo- rosos debates, seminários; seja quando optou pela con- sulta pública em seus projetos de lei, afirmando o diálo- go na formulação de suas decisões e a interlocução com todos os setores organizados e não organizados no acom- panhamento e formulação do seu planejamento. O resultado é uma política de governo e uma políti- ca de estado, que mutuamente se fortalecem. A política de Estado, com o Plano Nacional de Cultura aprovado no Congresso, ganha metas para os próximos dez anos, du- ração que transcende futuras gestões do MinC e futuros Presidentes, e que segue o espírito deste decálogo Se ele é pré-requisito em qualquer política pública, a atual gestão radicalizou a opção do diálogo por entender que a área cultural é talvez a mais sensível, autônoma e livre da sociedade civil. Logo, se a atuação do Estado tem um vasto horizonte, como apontamos, ela não pode ca- recer dessa atitude permanente de respeito pelos artis- tas e pela complexidade de nossa sociedade. Desde 2003, o Ministério da Cultura realizou duas Conferências Nacionais, a segunda contando com a par- ticipação de 300 mil pessoas e 3.100 municípios. Um avanço imenso no que diz respeito à adesão das cida- des, prefeitos, que poderão criar seus fundos e orçamen- tos municipais. A instalação do Conselho Nacional de Política Cultural, em 2007, e dos Colegiados Setoriais, em 2008, vem na mesma direção de aumentar o con- trole social sobre o Estado. Um controle que deve fisca- lizar e verificar o quanto avançamos, bem como apon- tar novos desafios. O Brasil vive hoje uma liberdade de expressão sem precedentes e o Ministério da Cultura se beneficia des- se extraordinário momento. A sociedade está madura para o perigo do dirigismo estatal e deve estar mais ain- da para o perigo do acanhamento dos poderes públicos, esse perigo sendo o mais possível numa sociedade de- mocrática. Como há controle da imprensa e dos artistas, o risco de dirigismo é mínimo, um fantasma do autorita- rismo dos anos de chumbo. O risco que temos é do retorno de uma mentalidade política atrasada que trate a cultura como algo secun- dário, porque, convenhamos, parte da sociedade e dos formadores de opinião ainda pensa assim. O Estado, no caso da cultura, deve evitar a dicotomia do passado: es- tar presente de forma autoritária, ou estar ausente repas- sando suas responsabilidades ao setor privado. O Estado deve ser moderno, democrático, porém, presente e equipado para massagear os pontos vitais. Um Estado habilitado a fornecer estímulo de forma ágil e transparente, com recursos, planejamento e informa- ções técnicas e econômicas para tanto. As estatísticas de exclusão, a imensa diversidade, os meandros da eco- nomia da cultura são desafios que apontam para o pa- pel do Ministério da Cultura numa missão de longa du- ração no século XXI. Décimo: orçamento público para a cultura. Por fim, o décimo ponto: o orçamento público, principal instrumento de realização das políticas listadas nos pontos 1 a 9. A luta pelo orçamento foi, como vimos, uma grande bandeira nesses sete anos. O início de 2010 reservou a grande satisfação de ver o Presidente Lula sancionar a lei orçamentária anual com R$ 2,2 bilhões para o orça- mento do MinC, excluindo os tetos de renúncia fiscal (di- nheiro público também). Um salto de 50% em relação ao ano anterior, 2009, uma vitória histórica. Essa imensa vitória reflete o primeiro governo demo- crático com a devida compreensão sobre a cultura, ain- da que as insuficiências sejam muitas. O desafio, entre- tanto, é fixar na Constituição o patamar mínimo do orça- mento nas três esferas da federação. É o que faz a Proposta de Emenda Constitucional 150, que obriga o investimento em cultura: de 2%, em nível federal; 1,5%, em nível estadual; e 1%, em nível munici- pal. A proposta tramita no Congresso e sua votação pode ser um grande ganho para o País. A tradução de um consenso político nacional neces- sita dos meios para sua plena consecução. 115 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 RELATO DE experiência: FUNDAÇÃO CASA GRANDE. Uma experiência inclusiva e formadora de crianças e jovens Rosiane Limaverde * A Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri1 surgiu como um projeto de museu idealizado por Alem- berg Quindins e Rosiane Limaverde. Atualmente, é uma Escola de Comunicação e Cultura plantada no Vale do Ca- riri2 cearense, com uma vasta produção cultural elabora- da por crianças e adolescentes: programas de rádio e TV, atividades musicais e teatrais, produção de documentá- rios, administração e programação do museu. Fundada em 1992, a Casa Grande é um modelo de en- tidade que promove a inclusão social e o protagonismo infanto-juvenil. Mudou a realidade de Nova Olinda3 , ci- dade com pouco mais de 12 mil habitantes. Construção de identidade, patrimônio cultural e cidadania Pensar em patrimônio cultural é refletir sobre trans- cendência, algo que transcende o presente, na medida em que esse conceito engloba as gentes, os costumes, os sabores e os saberes. Patrimônio cultural não se re- sume às edificações históricas, aos sítios de pedra e cal. O patrimônio cultural deve ser entendido não como um dado estático apenas, pois não é só o concreto, e sim uma construção resultante de um processo no qual se atribuem significados e sentidos – reconhecê-lo assim é avançar no entendimento da sua dimensão política, eco- nômica, ecológica e social. Foi do material de pedra e cal e do intangível da his- tória – fatos, memória, lendas e mitos – que, em 1992, por meio da iniciativa de um jovem casal de músicos – Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde –, uma comu- nidade se permitiu restaurar um antigo casarão azul: ele foi marco do século XVII, entre a história colonial dos va- queiros do sertão nordestino e as terras indígenas dos Kariri, na porta de entrada do vale da Chapada do Arari- pe, região do Cariri, Nova Olinda, Ceará. A Casa Grande, como hoje é conhecida, foi restau- rada para guardar em acervo, a cultura do povo Kariri, a partir da criação da ONG Fundação Casa Grande - Me- morial do Homem Kariri, hoje um pontão de cultura dis- seminador de tecnologias de gestão cultural para jovens do Brasil e do mundo. Desde o início de sua criação, percebeu-se a imi- nente necessidade de acolher as crianças e os jovens da pequena cidade de Nova Olinda, de 12 mil habitan- tes. Eles enfrentavam a falta de perspectiva de vida e a necessidade de inclusão sócio-cultural, vivendo à mar- gem da sociedade brasileira, sem ter acesso às informa- ções, ao conhecimento de qualidade e a uma formação humana integral. No sertão do Brasil, ainda são poucos os incentivos ao desenvolvimento da autoestima da criança e do jovem, do autoconhecimento, como também da construção de identidade, patrimônio cultural e cidadania. Essa reali- dade está provocando nas novas gerações do interior do nosso país um grave empobrecimento cultural, consumo de drogas, prostituição, violência e subemprego. O desafio da Fundação Casa Grande foi sistematizar uma ação educativa que proporcionasse a esses meni- nos e meninas do interior do Brasil ferramentas forma- doras para a ampliação do repertório cultural, trazendo o “mundo ao sertão”. Tudo isso foi possível pelo acesso e internalização de novos saberes e conteúdos de qua- lidade em assuntos como: memória, patrimônio, cultu- ra, arqueologia, mitologia, comunicação, meio ambien- te, arte e cidadania. * Rosiane Limaverde O percurso inicial deu-se por meio da pesquisa sobre é Presidente do Conselho Científico da Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri. 116 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 os sons, os mitos, as lendas e o homem antigo que ha- bitou a região, promovendo a criação de um museu de referência sobre a pré-história regional - o Memorial do Homem Kariri. Queríamos acolher todo o acervo arque- ológico que populares haviam descoberto casualmente e nos doado. Assim, surgiu o primeiro Programa da Fun- dação: o Programa de Memória. As crianças chegaram ao espaço da Casa Grande e se identificaram com as lendas e o acervo pré-histórico dos primeiros habitantes da Chapada do Araripe. Com o tem- po, a novidade do Museu foi dando lugar ao sentimen- to de pertença a esse espaço, um ambiente onde os mi- tos e lendas contados por seus avôs estavam personifi- cados e justificados nas machadinhas de pedra dos an- tigos parentes indígenas ali encontrados. Essas crianças foram os primeiros guias mirins do Mu- seu e hoje, passados 17 anos, são os jovens que formam o Conselho Cultural da Fundação Casa Grande e que repas- sam para os mais novos e para quem ali passa a tecno- logia da gestão cultural. Essa tecnologia também já está sendo levada por esses jovens gestores até o mundo, for- mando crianças e jovens em Moçambique e Angola, na África, e em Portugal, Itália e Alemanha, na Europa. O Homem Kariri renasceu em cada pessoa A Fundação Casa Grande atende anualmente cerca de 25 mil visitantes, e todo esse potencial turístico tem pro- porcionado ao Município de Nova Olinda a alternativa de desenvolvimento econômico e social através do Turismo Social de Base Comunitária, gerando emprego e renda para as famílias. Em 2008, o Município recebeu do Ministério do Tu- rismo a categoria nacional de Município indutor do tu- rismo, para a implementação de ações de desenvolvi- mento regional através do turismo. A comunidade tam- bém teve sua identidade e autoestima valorizadas pe- los seus mais dignos representantes – as crianças – e apreenderam o significado do Memorial do Homem Ka- riri como parte de suas vidas. No cotidiano da Fundação Casa Grande, o prazer em ouvir e compor músicas, trocar informações, desenhar, criar personagens e histórias em quadrinhos, produzir ví- deos no estúdio de TV, gerenciar espetáculos num tea- tro com capacidade para 200 pessoas e manter uma rá- dio funcionando das 5 às 22h, diariamente, vêm trans- formando crianças e jovens em gestores culturais. As atividades realizadas estão compreendidas em cinco programas: Memória, Artes, Comunicação, Turis- mo, Meio Ambiente e Esporte. Esses programas estão apoiados em dois pilares: conteúdo e produção, que sintetizam a base dos saberes e fazeres da Fundação Casa Grande. Todos os projetos desenvolvidos e em desenvolvi- mento na Fundação pertencem aos laboratórios de “pro- dução” e partem de uma “leitura do mundo”: o mundo do sertão do Cariri e do verde vale da Chapada do Arari- pe. Partem do fazer cotidiano que integra teoria e práti- ca. São os laboratórios de conteúdo que servem de ins- trumentalização e favorecem uma melhor execução de planos nos laboratórios de produção. Ao se apropriar de uma paisagem natural como a Cha- pada do Araripe, catalisadora de povos e culturas des- de a pré-história, ao mesmo tempo em que se apropriam de novas tecnologias como o rádio, a TV e a internet, as crianças e jovens da Fundação Casa Grande se dão con- ta da relação do homem com a natureza onde a cultu- ra é o agente, a área natural o meio e a paisagem cultu- ral o resultado. NOTAS 1 Para saber mais sobre os índios Kariri, consultar: http://opovo.uol.com.br/opovo/ceara/752496.html; http://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=63483; http://www.overmundo.com.br/blogs/pesquisadora-descobre-tribo; http://pt.wikipedia.org/wiki/Cariris; 2 Região do Cariri A Região do Cariri, que abrange a atuação do Escritório de Desenvolvimento Regional, é composta pelos municípios cearenses de: Altaneira, Barbalha, Caririaçu, Crato, Farias Brito, Granjeiro, Jardim, Juazeiro do Norte, Missão Velha, Nova Olinda, Porteiras e Santana do Cariri. http://www.cariri.org.br/aregiao.jsp; 3 Nova Olinda Nova Olinda é uma cidade e um município do Estado do Ceará. Localiza-se na microrregião do Cariri, mesorregião do Sul Cearense, região metropolitana do Cariri. O município tem cerca de 13 mil habitantes e 291 km2. Foi criado em 1957. Está a 537 km de Fortaleza. 117 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A fábrica do futuro deverá ser aquele lugar em que o homem aprenderá, juntamente com os aparelhos eletrônicos, o quê, para quê e como colocar as coisas em uso. E os futuros arquitetos fabris terão de projetar escolas ou, em termos clássicos, academias, templos de sabedoria. Como deverá ser o aspecto desses templos, se estarão materialmente assentados no chão, se flutuarão como objetos semimateriais, se serão quase totalmente imateriais, é uma questão secundária. VILÉM FLUSSER O mundo codificado - Por uma filosofia do Design e da Comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. A cidade de Cataguases, situada na Zona da Mata mineira, tem pouco mais de 70 mil habitantes e está a 280 qui- lômetros de Belo Horizonte e a 240, da cidade do Rio de Janeiro. Apesar do distanciamento geográfico desses centros, a efervescência de artistas e empreendedores locais fez do pequeno município um laboratório do mo- dernismo brasileiro e também um cenário para o início do cinema nacional com Humberto Mauro. Essa rica produção cultural, que consagrou o muni- cípio como referência no Brasil e no exterior, teve ori- gem no pioneirismo da industrialização da cidade. Des- de 1905, as indústrias têxtil e de energia elétrica são os grandes promotores e financiadores da cultura local. Até hoje, esse é um fator fundamental para a presença de fundações e institutos ligados a programas corporativos de responsabilidade social empresarial. O legado histórico e o contexto atual motivaram, em 2003, o início de um amplo programa de Cultura e Desen- volvimento Local, articulado a partir de uma rede de co- operação horizontal formada por lideranças sociais, cul- turais e empresariais. Um processo inspirado na Agenda 21 da Cultura, com foco no audiovisual, nas novas tec- nologias e no desenvolvimento de políticas públicas na cidade e região. É nesse momento que surge a Fábrica do Futuro – In- cubadora Cultural do Audiovisual e das Novas Tecnolo- gias, que tem como missão desenvolver formas diversas e colaborativas de criação, produção e difusão audiovi- sual. Inaugurada em 2005 como um Ponto de Cultura do Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, a Fábri- ca desenvolve suas ações por meio de tecnologias ino- vadoras aplicadas à comunicação. Em quatro anos, a incubadora cultural formou uma equipe multidisciplinar com mais de 30 pessoas profis- sionalizadas, dentre técnicos em vídeo, áudio e multimí- dias, músicos, fotógrafos, desenhistas, designers, pro- gramadores de web, jornalistas, produtores e gestores culturais. Para o gestor cultural da Fábrica do Futuro, Ce- sar Piva, foi essa equipe que possibilitou um dos passos mais importantes na trajetória da Fábrica: a implantação da plataforma eletrônica da Fábrica do Futuro na Inter- net. “Nosso portal é mais do que um espaço de difusão e comunicação é, sobretudo, nosso ambiente de traba- lho colaborativo e espaço de aprendizado, formação e qualificação profissional em rede”, afirma Cesar. A partir de 2007 a Fábrica passou a contar com duas unidades: a primeira, concebida como espaço de gestão e produção; e a segunda, como um albergue com capa- cidade para receber doze pessoas. Foram condições ne- cessárias para atravessar as fronteiras de Minas Gerais e se conectar em âmbito nacional e internacional, seja por meio dos pontos de cultura em todo o País, ou de re- des de cooperação com as quais atua nos países de lín- gua portuguesa e ibero-americanos. reportagem Um novo chão de fábrica Carlos Gustavo Yoda * * Carlos Gustavo Yoda é repórter especializado em políticas culturais. Atuou na Agência Carta Maior e em Cultura e Mercado, entre outros veículos, e presta serviços de consultoria, formação e planejamento em comunicação digital. 118 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Juventude, Formação e Trabalho. A história dos jovens de Cataguases é semelhante à da grande maioria de jovens brasileiros, moradores de pe- quenas cidades que, por falta de opções, acabam dei- xando o lugar onde nasceram para buscar alternativas de vida em cidades maiores. Quem explica é Cesar Piva: Queremos provar que é possível criar novas perspectivas de desen- volvimento local a partir da retenção de jovens lideranças e talentos em cidades pequenas. Ao fomentar a economia criativa da cultura e das novas tecnologias em locais que não são os grandes centros, criamos as condições para que esse desenvolvimento local seja sustentável e tenha impacto geracional na economia, na política e na gestão da cidade. Bruno Abadias Na trajetória da Fábrica do Futuro, o que não falta são exemplos. Bruno Abadias ainda estava no ensino mé- dio quando participou, em 2005, do 1o CINEPORT - Fes- tival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, reali- zado em Cataguases. Empolgado, participou do primei- ro grupo de residentes da Fábrica do Futuro: Ainda não tínhamos a estrutura de câmeras e ilhas de edição que temos hoje. Mas, nesse período, participei de várias oficinas sobre cultura, audiovisual, patrimônio, democracia e cidade. Em 2006, fiz minha primeira grande viagem de intercâmbio, com a oficina de TV da Fábrica do Futuro, já durante o 2o CINEPORT, em Lagos, Portugal. Depois de dois anos, Bruno começou a estudar Ciên- cias Sociais em Juiz de Fora e, em seguida, transferiu-se para a UFMG, em Belo Horizonte. Essas mudanças não o afastaram da Fábrica; ao contrário, confirmou a cren- ça do trabalho à distância. “Os meios permitem reinven- tar usos”, declara Bruno, hoje aos 21 anos. Ana Carolina Ana Carolina participava de uma manifestação estu- dantil quando conheceu Cesar Piva e foi convidada por ele a participar da residência. Kaká, como é conhecida, passou a desempenhar o papel de mobilizadora social e produtora. Hoje, a estudante de direito considera esse intercâmbio cultural e social, do qual fazem parte viagens projeto olho vivo - bem tv educação e comunicação - niterói/rj foto: marcelo gonçalves moura valle 119 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 e eventos, como uma das melhores oportunidades para a formação dos jovens. É Kaká quem confirma: O que fica de mais importante para quem passa pela Fábrica é a formação humana que temos. Aprendemos fazendo. Ninguém mais precisa trabalhar com o que não gosta. Na Fábrica, aprendemos essas coisas que não são ensinadas nas escolas. Artur de Leos Já o fotógrafo paulistano Artur de Leos deixou o maior centro econômico do País e embarcou para Cataguases a fim de participar da primeira Residência Criativa do Au- diovisual – RECRIA, que reuniu as cidades de Catagua- ses, Ouro Preto e Brumadinho. Ele relata: Com um grupo de 15 jovens, criamos micronarrativas próprias para difusão em telefonia móvel, na qual possibilitamos aos visitantes dessas cidades, receberem esse trabalho em seu celular e ampliar sua visão sobre o barroco, o modernismo e arte contemporânea. Gustavo Baldez e David Azevedo O jovem Gustavo Baldez que, de eletricista na Prefeitu- ra local, virou web designer e coordenador do núcleo de comunicação na Fábrica do Futuro, conta: Com o Fundo Estadual de Cultura, fizemos uma experiência inédita de WebTV envolvendo cidades do interior de Minas. Com a TV Brasil e a TV Minas, já produzimos com os pontos de cultura em âmbito regional e nacional. Estamos produzindo conteúdo cultural para celular. Existe um mercado novo surgindo, no qual a colaboração é a chave. Outra ação que ele destaca é o Programa VIVO LAB. A partir de 2009, o canal mobiliza uma rede colaborativa de cultura na Internet e nas mídias móveis. Em parceria com a Vivo, a Fábrica do Futuro é responsável pela ativação da rede: realiza residências criativas presenciais e virtuais e organiza coletivos de jovens para cobertura de projetos e eventos, por meio da Agencia Multimídia de Webvisão – AMW. David Azevedo, um jovem programador do núcleo de tecnologia da Fábrica do Futuro, explica: Aprendemos na prática com o nosso portal e hoje desenvolvemos tecnologia e novas ferramentas que, além de agregar os conteúdos produzidos, dão a sustentação para as interfaces entre projetos, pessoas, conceitos e eventos da rede no portal Vivo Lab. Cláudio Santos Para o designer Cláudio Santos, da Voltz de Belo Horizon- te e parceiro da Fábrica do Futuro, o tipo de profissional que a Fábrica está formando é muito diferente dos que saem diplomados pelas faculdades: A demanda é muito grande para um profissional com visão inter- disciplinar. Eu costumo contratar na minha empresa o cara que é músico, blogueiro, programador, que tira foto e entende de audiovisual. Antropofagia, Educação Colaborativa e Acessibilidade. Cataguases não conta com uma rede qualificada de ensi- no superior e técnico na área da cultura e das novas tec- nologias. Foi para suprir essa carência de formação e cer- tificação que a Fábrica do Futuro buscou em 2007 uma parceria com o Labmidia da Universidade Federal de Mi- nas Gerais – UFMG. Essa ação ganhou potencia com no- vas perspectivas para a formação e produção à distância e resultou no lançamento do Espaço de Aprendizado em Rede - e.AR, no portal da Fábrica do Futuro. Regina Mota, professora e pesquisadora da UFMG, co- laborou na concepção do espaço de formação e afirma que um dos roteiros de aprendizagem propostos é base- ado no manifesto antropofágico. Para ela, a leitura sobre o modernismo nos tempos atuais é fundamental para re- fletir acerca do momento que estamos atravessando. Re- gina percebe três relações entre características do ritual Tupinambá com os trabalhos da Fábrica: O caráter crítico, a apologia à diferença, que representa o reco- nhecimento, e a atitude anti-hierárquica. A cultura do remix e a cultura hacker têm tudo a ver com isso. É a barbárie tecnizada. O selvagem se apropria das tecnologias da civilização, mas não se torna um civilizado. Ele vira um bárbaro tecnizado e passa a ser mais o outro e ele mesmo. 120 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Gustavo Jardim, documentarista da DuRolo Filmes, de Belo Horizonte, e parceiro da Fábrica do Futuro, des- taca o e.AR como promotor de uma investigação da arte com a perspectiva do outro: O e.AR é um salto de diferença em relação ao EAD. É o aprendizado em construção colaborativa. Os roteiros são construídos derruban- do a ideia de aluno. Todos são colaboradores. Cesar Piva pontua: O lugar da formação se desloca no ar e pula os muros da academia. O Festival de Ver e Fazer Filmes caminha também nesse sentido. Realizado em parceria com a Fundação Ormeo Jun- queira Botelho, sua primeira edição reuniu, em 2008, alu- nos de três universidades; uma portuguesa e duas bra- sileiras. Todos envolvidos na produção de três filmes de curta metragem, com a participação de mais de 200 pes- soas de Cataguases. O Festival deve entrar para agenda permanente de grandes eventos na cidade. Para possibilitar ainda mais a formação de público e ampliar o repertório cultural da região, sobretudo da po- pulação local, foi criado em parceria com o Instituto Vo- torantin, o Projeto Tela Viva. Segundo Karina Freitas, uma das produtoras do pro- jeto: A unidade móvel de cinema leva o acesso à produção audiovisual brasileira, mobiliza as comunidades para se reconhecerem e produ- zirem suas próprias histórias. Mas, principalmente, contribui para recuperar o espaço público, um exercício de cidadania. Economia Criativa da Cultura e Sustentabilidade Em um mercado permeado por cobrança de resultados e balanços de produção, divisão e precarização do tra- balho, a Fábrica do Futuro optou por percorrer outros ca- minhos bem distintos, comenta Erick Krulikowski, gestor de projetos especiais da Fábrica do Futuro: Buscamos promover uma experiência de gestão de processos e trabalho colaborativo, com geração de oportunidades, empreen- dimentos e distribuição de riquezas. Reunimos essa experiência de gestão às novas tecnologias, explorando ao máximo a rede produtiva do audiovisual, com a pesquisa, experimentação, for- mação, criação, produção, distribuição, difusão e formação de público, de maneira a estruturar a economia criativa ligada a esse setor na região. E foi com o objetivo de ampliar o impacto da Fábrica do Futuro que foi criado o Projeto ANIMAPARQUE - Pólo de Audiovisual, Animação e Mídias Digitais. A intenção é construir, em Cataguases, um centro de excelência in- ternacional para criação de conteúdos audiovisuais em rede, com foco na animação e nas mídias digitais, sobre- tudo, para o público infanto-juvenil. O Pólo funcionará com base em uma escola, uma incubadora e uma cen- tral de produção. O projeto, lançado em julho de 2009 e com inauguração prevista para 2011, está em fase acele- rada de elaboração de planos de sustentabilidade, mo- delo de negócios, gestão, formação, conceito arquitetô- nico e impacto urbano. Cesar Piva conclui: Será um centro internacional de formação e produção bem dife- renciado, com outros caminhos para mercado, trabalho e renda. Desse processo, surgirão novos modelos de empresas, coletivos, cooperativas, redes, ONGs e projetos. Não devemos repetir a es- cola e a indústria do século passado. É outro chão de fábrica, em uma sociedade em rede. Estamos falando de cultura, associada à comunicação e à apropriação social das novas tecnologias. Esse é nosso mais ousado sonho; e vamos realizá-lo! Para saber mais www.divercidadescriativas.com.br www.fabricadofuturo.org.br www.festivalcineport.com www.festivalverefazerfilmes.com.br www.vivolab.com.br 121 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Cada ser humano é proprietário de dois fenômenos, dos quais ele jamais se desvencilha: o sonho e a cultura. O sonho como propriedade absolutamente privada. A cultura como propriedade absolutamente coletiva. Falo da cultura como herança social, como conhecimento transmitido de geração para geração. Não do conhecimento sistematizado, reunido por áreas de conhecimento, isso que comumente se chama de erudição e que também não deixa de estar incluído na cultura, no sentido amplo. Falo de cultura, no singular, enquanto conceito, e culturas, enquanto realidades. Fala-se de cultura urbana, cultura rural, culturas regionais, cultura das sociedades pré-letradas, culturas orientais, culturas africanas. A distância entre Nova Iorque e uma cidade do interior da Repú- blica Centro Africana não se mede apenas em quilômetros, e sim em alguns milhares de anos. Mas tanto em Nova Iorque quanto no interior da República Centro Africana, as pessoas sonham e têm cultura. São proprietárias. Para nós, ocidentais, urbanizados, os sonhos são expressões do mais íntimo da nossa consciência, ou inconsciência. Para compreendê-los, recorremos a Freud e seus seguidores. Para os povos do interior da República Centro Africana, os sonhos podem ser interpretados por feiticeiros ou sacerdotes. Freud e os feiticei- ros e sacerdotes recorrem à cultura para propor interpretações. E tanto Freud quanto os feiticeiros e sacerdotes sistematizam conhecimentos. Cada um conforme sua cultura. A distância temporal entre Nova Iorque e o interior da Repú- blica Centro Africana talvez seja a mesma entre São Paulo e o O POVO BRASILEIRO, SEGUNDO DARCY RIBEIRO. * Fernando Rios é jornalista, publicitário, antropólogo e consultor em Comunicação Organizacional Integrada (fernando_rios@terra. com.br | www.fernandorioscom.art.br) Mosaico Fernando Rios* Entre sonhos e culturas interior da Floresta Amazônica. Tanto em São Paulo quanto na tribo dos kranhakãrores há sonhos e cultura. E entre os sonhos e a cultura de São Paulo e dos kranhakãrores estão sonhos e culturas de milhões de pessoas que moram nas milhares de cidades brasileiras. Para que possamos viver integralmente a brasilidade, precisa- mos urgentemente integrar os sonhos e as culturas de todos os brasileiros, por meio de adequados programas de educação formal ou não formal e mostrar a riqueza de cada cultura regio- nal. Isso aproximará os brasileiros e evitará que a cultura da sociedade de consumo apague aquilo que mais caracteriza nosso País e nossos povos: suas culturas e seus sonhos. A se, ao conhecermos nossos povos, passarmos a respeitá-los mais, certamente estaremos criando uma sociedade de respeito mútuo e solidária. Aquela defendida por Darcy Ribeiro e por Le- onardo Brant, pelos índios kuikuro e pelos nossos sanfoneiros, algumas das ilustres presenças deste Mosaico. Ele pretende oferecer uma parte ínfima do que existe em nosso País para estimular novas buscas e novas trocas de conhecimen- tos sobre sonhos e culturas, sustentáculos para um desenvol- vimento sustentável. Para que, por meio de uma educação que também promova nossas raízes, possamos sonhar juntos um grande País que jamais perca sua imensa riqueza cultural. Juntem-se: um imenso amor pelo Brasil; uma sólida formação em antropologia; um grande conhecimento do País, de sua formação e de seu povo; um carisma; um dis- curso envolvente, forte e sedutor. Teremos algo próximo de Darcy Ribeiro, o mais famoso antropólogo brasileiro. Dentre suas obras, uma delas de destaca, pela ousadia e pelo tom apaixonado: o livro O Povo Brasileiro. O livro foi transformado numa série de dez capítulos pela cineasta Isa Grinspum Ferraz e pode ser vista em dois DVDs. Conta com a participação de Chico Buarque, Tom Zé, Antônio Cândido, Aziz Ab ́Saber, Paulo Vanzolini, Gilberto Gil, entre outras personalidades e reúne imagens captadas em todo o Brasil. E há também uma área no site da TV Cultura, o Alô Escola, com preciosas indicações para uma aula sobre o livro e o DVD. LIVRO O POVO BRASILEIRO, Companhia de Bolso/Companhia das Letras, 6a reimpressão, São Paulo, 2009. 122 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 http://www.brant.com.br/node/3 BRANT ASSOCIADOS / LABORATÓRIO DE POLÍTICAS CULTURAIS Brant Associados é um laboratório voltado para o desen- volvimento sustentável na área da cultura. http://www.culturaemercado.com.br/ CULTURA E MERCADO / REVISTA ELETRÔNICA Cultura e Mercado constitui-se numa rede de colabora- dores dos mais variados setores e orientações ideológi- cas, propondo discussões livres e abertas sobre temas urgentes relacionados à função política da cultura, nos planos nacional e internacional. http://redecemec.com/ CENTRO DE ESTUDOS DE MÍDIA, ENTRETENIMENTO E CULTURA - CEMEC Organização cultural formada por empresas com desta- cada atuação no mercado, empenhadas em transmitir conhecimentos e dialogar com profissionais e pesquisa- dores das áreas de mídia, cultura e entretenimento. DOCUMENTO CONVENÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE DAS EX- PRESSÕES CULTURAIS, UNESCO, 2005. http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/ 150224POR.pdf Texto oficial ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006 SITES MINISTÉRIO DA CULTURA E MUNIC 2006 Dois sites reúnem grande quantidade de informações sobre as questões da cultura no Brasil e podem e devem ser consultados sistematicamente. O primeiro é o site do Ministério da Cultura: http://www. cultura.gov.br/site/ O segundo é uma área do site do IBGE http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/ perfilmunic/cultura2006/cultura2006.pdf Ela coloca à disposição dos internautas o Suplemento de Cultura da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC 2006. DVDs O POVO BRASILEIRO, DA OBRA DE DARCY RIBEIRO. Idealização e direção: Isa Grinspum Ferraz; Roteiro: Isa Grinspum Ferraz, Marcos Pompéia e Antônio Risério. Ano: 2000. 280 minutos SITE ALÔ ESCOLA / ESTUDOS BRASILEIROS / O POVO BRASILEIRO Entre no endereço http://www.tvcultura.com.br/aloes- cola/estudosbrasileiros/index.htm e conheça também preciosos materiais sobre Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre; Os Sertões, de Euclides da Cunha; e Entre Dois Mundos, um panorama da migração no Brasil através do olhar de quatro mulheres LEONARDO BRANT DISCUTE CULTURA, DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE. O pesquisador e consultor Leonardo Brant escreveu um instigante e contundente livro que aborda as relações da cultura com o desenvolvimento. Ele discute com propriedade o que é cultura, sua função pública, a relação direta entre cultura e desenvolvimento, sustentabilidade e a questão cultural, o significado da política cultural, entre outros temas. Leonardo Brant é pesquisador de políticas culturais e presidente da Brant Associados, consultoria estratégica para empreendimentos socioculturais. Criou e edita Cul- tura e Mercado, um dos mais influentes sites de políticas culturais do Brasil. É autor dos livros Mercado Cultural, Diversidade Cultural (org.) e Políticas Culturais vol.1 (org.). Conferencista internacional e coordenador de cursos de formação na área cultural, Leonardo é fundador do Instituto Pensarte (Brasil), do Divercult (Espanha) e do Cemec – Cen- tro de Estudos de Mídia, Entretenimento e Cultura. LIVRO O PODER DA CULTURA, Editora Peirópolis, São Paulo, SP, 2009. MIDIA DIGITAL http://opoderdacultura.com.br/ O PODER DA CULTURA Resumo do livro de Leonardo Brant. 123 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 A publicação traz dados sobre a diversidade cultural dos 5.564 municípios brasileiros, úteis para todos que lidam com cultura – artistas, pesquisadores, empresários, ONGs e gestores públicos. CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR - CNFCP http://www.cnfcp.gov.br/ http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/ O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP desenvolve e executa programas e projetos de estudo, pesquisa, documentação, difusão e fomento de expres- sões dos saberes e fazeres do povo brasileiro.Reúne um acervo museológico de 13 mil objetos, 130 mil do- cumentos bibliográficos e cerca de 70 mil documentos audiovisuais. Disponibiliza também a segunda versão ampliada do Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira. ACERVO DIGITAL DE CULTURA NEGRA BRASILEIRA - CULTNE http://www.cultne.com.br/ No CULTNE, é possível conhecer novos pontos de vista da história do nosso País, através de materiais inéditos em vídeo, em diversos momentos artísticos e políticos, registrados ao longo de décadas. MUSEUS MUSEU DA CASA DO PONTAL http://www.museucasadopontal.com.br/museucasado- pontal/index.htm A Casa do Pontal é o maior e mais significativo museu de arte popular do País. O acervo é composto por 8.000 esculturas e modelagens feitas contemporaneamente por cerca de 200 artistas populares de todas as regiões brasileiras. Localização: Estrada do Pontal, 3295 - Recreio dos Ban- deirantes - Rio de Janeiro RJ 22785-580 – Telefones 21 2490-3278 / 2490-4013. Aberto ao público de terça a domingo, das 9h30 às 17h. Escolas e grupos sob agendamento. MUSEU DO ÍNDIO - FUNAI - RJ http://www.museudoindio.org.br/template_01/default. asp?ID_S=45 Cerca de 270 grupos indígenas vivem hoje no Brasil. São aproximadamente 370 mil índios que falam cerca de 180 línguas. Este museu possui rico acervo relativo à maioria das sociedades indígenas contemporâneas, constituído de 16 mil peças etnográficas; 16 mil publicações nacio- nais e estrangeiras especializadas em Etnologia e áreas afins. O Museu do Índio está aberto ao público de terça a sexta-feira, no horário das 9h às 17:30h, e, nos sába- dos, domingos e feriados, das 13h às 17h. Nos finais de semana, além das áreas de exposição, apenas a loja permanece aberta. Endereço: rua das Palmeiras, 55, Botafogo, CEP 22270- 070 Rio de Janeiro, RJ – BRASIL Tels.: 21 3214-8702 / 3214-8705 MUSEU AFRO BRASIL – SP http://www.museuafrobrasil.com.br/ O artista plástico, curador e diretor de museus Emanoel Araujo reuniu uma extraordinária coleção de pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, livros, vídeos e docu- mentos, de artistas e autores brasileiros e estrangeiros, relacionados com a temática do negro. O acervo está dividido em seis grandes áreas: África, trabalho e escra- vidão, o sagrado e o profano, religiosidade afrobrasileira, história e memória e arte. Endereço: Rua Pedro Álvares Cabral, s/no - Pavilhão Ma- noel da Nóbrega - Parque do Ibirapuera, portão 10 – CEP 04094-050 - São Paulo, SP - Telefones: 11 5579-8542 / 5579-7716 / 5579-6399 O Museu funciona de terça a domingo, das 10h às 17h. REVISTAS JANGADA BRASIL – REVISTA DIGITAL http://www.jangadabrasil.com.br/index.asp Revista mensal digital, veiculada exclusivamente na internet. Cada edição da Jangada Brasil é composta de cerca de quarenta matérias distribuídas em nove seções temáticas: festança, cancioneiro, imaginário, oficina, palhoça, colher de pau, panacéia, catavento - o universo 124 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 do folclore infantil, almanaque – variedades, realejo - canções da tradição oral brasileira, REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL No 8 ABRIL/JULHO 2009 SÃO PAULO SP TEMA: DIVERSIDADE CULTURAL: CONTEXTOS E SENTIDOS Em brochura e disponível no site: http://www.itaucultural.org.br/bcodemidias/001516.pdf Este número temático da revista Observatório Itaú Cultu- ral busca mapear ideias e atitudes, trazer ao leitor visões e propostas, revelar realidades e sonhos em torno da importância antropológica, política, econômica e estética expressa pela diversidade cultural. DOCUMENTÁRIOS O MILAGRE DE SANTA LUZIA: UMA VIA- GEM PELO BRASIL QUE TOCA SANFONA Direção e roteiro: Sérgio Rosenblit. Elenco: Dominguinhos, Patativa do Assaré, Mário Zan, Sivuca, Renato Borghetti, Osvaldinho do Acordeon entre outros. Fotografia: Rinaldo Martinucci e Sérgio Roizenblit. Ano: 2009, 104 minutos. O filme é uma viagem pelo Brasil que toca sanfona, acordeon e gaita conduzida por Dominguinhos, principal sanfoneiro vivo do País. Entre encontros acompanhados de muita música e reunindo depoimentos dos mais representativos sanfoneiros brasileiros, o filme faz um mapeamento cultural das diferentes regiões do país onde a sanfona se estabeleceu. CINEASTAS INDÍGENAS KUIKURO Este DVD Kuikuro, que traz dois curtas-metragens, é o primeiro da série “Cineastas Indígenas” que leva para o grande público a produção de documentários, resultado das oficinas do Vídeo nas Aldeias. Sob o prisma do olhar dos índios, estes filmes revelam a realidade indígena com uma intimidade jamais vista. A Coleção Cineasta Indígenas é composta de seis DVDs dos povos Kuikuro, Panará, Hunikui, Ikpeng, Ashaninka e Xavante. Para mais informações, consultar: http://www.videona- saldeias.org.br CHEIRO DE PEQUI (Imbé Gikegü, 2006, 36 minutos.) Autores: Takumã Kuikuro e Marica Kuikuro Ligando o passado ao presente, os realizadores Kuikuro contam uma história de perigo e prazeres, de sexo e traição, onde homens e mulheres, beija-flores e jacarés constroem um mundo comum. O DIA EM QUE A LUA MENSTRUOU (Nguné Elü, 2004, 28 minutos.) Autores: Takumã Kuikuro e Marica Kuikuro Durante uma oficina de vídeo na aldeia Kuikuro, no alto Xingu, ocorre um eclipse. De repente, tudo muda. Os animais se transformam. O sangue pinga do céu como chuva. É preciso cantar e dançar. LIVROS Destacamos dois livros indispensáveis para um apro- fundamento dos debates sobre a cultura no mundo contemporâneo: • A Cultura Importa – Os valores que definem o progresso humano, organizado por Lawrense E. Harrison e Samuel P. Huntington, Ediora Record, Rio de Janeiro, 2002. • Culturas Híbridas – Estratégias para entrar e saiar da modernidade, de Nestor García Canclini, Edusp, São Paulo, 1998. Mesmo considerando as inúmeras intersecções existen- tes nos conceitos de educação e cultura, chegando algu- mas vezes a se fundirem, muitos especialistas propõem consistentes reflexões particularizadas. Estes quatro livros trazem ótimas contribuições para esse tema: • Sociedade, Educação e Cultura(s) – Questões e pro- postas, organizado por Vera Maria Candau, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2010, 3a edição. • Educação, Cultura e Sociedade – Abordagens múlti- plas, organizado por Ernani Lampert, Editora Sulina, Porto Alegre, RS, 2004. • História, Cultura e Educação, organizado por José Claudinei Lombardi, Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro e Lívia Diana Rocha Magalhães, Autores As- sociados, Coleção Educação Contemporânea, Campi- nas, SP, 2006. • Educação, Cultura e Formação – O olhar da filosofia, organizado por Ildeu M. Coelho, Editora PUC Goiás, Goiânia, 2009. 125 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Cadernos Cenpec Ano 5 Número 7 2010 Cadernos Cenpec é uma publicação do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Minas Gerais, 228 cep 01244-010, São Paulo SP Tel/Fax: (55-11) 2132-9000 cenpec@cenpec.org.br www.cenpec.org.br Os artigos assinados não representam necessariamente os pontos de vista do Cenpec. As opiniões e idéias expressas neles são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Cadernos Cenpec / Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. – N. 7 (2010) – São Paulo: CENPEC, 2006 ISSN 1808-9631 Anual 1. Educação 6. CENPEC CDD 370 Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Superintendente Maria do Carmo Brant de Carvalho Assessora de Comunicação Ivana Boal Coordenadora Técnica Maria Amabile Mansutti Coordenadora de Documentação e Informação Maria Angela Leal Rudge Coordenador Administrativo-financeiro Walter Kufel Junior 126 Cadernos Cenpec 2010 n. 7 Créditos desta edição Organização e Coordenação Editorial Isa Maria F. Rosa Guará Coordenação executiva: Ivana Boal Cristina Fernandes de Souza Equipe Prêmio Cultura Viva: Ana Regina Carrara, Mariana Cetra e Mariana Garcia Comitê Editorial Ana Regina Carrara Eloísa de Blasis Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará Maria do Carmo Brant de Carvalho Conselho Editorial Âmbar de Barros Antonio Matias Bernadete Gatti Fernando Almeida Fernando Rossetti Gilda Portugal Gouveia Isa Maria F. Rosa Guará Marco Aurélio Nogueira Maria Alice Setubal Maria do Carmo Brant de Carvalho Vera Masagão Colaboram nesta edição Maria do Carmo Brant de Carvalho Thais Lima Ana Regina Carrara Maria Helena Pires Martins Mônica Hoff Célio Turino Vera Santana Marta Porto Rodrigo Medeiros Clara Cecchini do Prado Renato Janine Ribeiro Lúcia Medeiros Bernardo Toro Fabiana Hiromi Danilo Miranda Alfredo Manevy Rosiane Limaverde Carlos Gustavo Yoda Preparação de textos, redação e edição Fernando Rios Revisão Percival de Carvalho Projeto gráfico original Homem de Melo & Troia Design Diagramação, editoração eletrônica e ilustrações Fonte Design Foto da capa III Encontro de Cultura Caipira, CDC Tide Setubal, 2008. Autoria: Verônica Manevy. Tiragem 2000 exemplares 127 Cadernos Cenpec 2010 n. 7

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Podcast
Relações Étnico-Raciais e de Gênero na Educação

História e cultura dos povos indígenas na educação

No primeiro episódio do podcast Educação na ponta da língua, entenda a importância de apresentar a história e cultura dos povos indígenas nas escolas, e os desafios e experiências reais dessa implementação nas salas de aula.

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Oficinas
Leitura e escrita

Inteligência Artificial generativa no ensino de artigo de opinião

Explore uma série de oficinas para o ensino e a aprendizagem da escrita de artigo de opinião com o uso da IA generativa, que complementam a sequência didática do caderno docente Pontos de vista, do Programa Escrevendo o Futuro.

Cara(o) educadora(or), Recentemente, tornou-se comum ver estudantes utilizando ferramentas de inteligência artificial (IA) para redigir textos escolares, criar legendas para redes sociais ou responder a atividades avaliativas. O gesto, aparentemente simples, levanta questões que atravessam o trabalho docente: afinal, o que significa ensinar a escrever na educação básica quando parte dos textos começou com o auxílio de uma máquina? Enquanto elaborávamos esta apresentação, em julho de 2025, um estudo recém-publicado pelo MIT1 alertava para os efeitos de determinados usos da IA generativa sobre a cognição: embora aumentem a produtividade, essas ferramentas podem comprometer o estímulo a áreas do cérebro ligadas à criatividade, à memória e ao pensamento crítico2. No campo da educação, esses efeitos se somam às antigas promessas de transformação trazidas pelas tecnologias digitais — promessas que desconsideram muitas vezes o abismo que separa as escolas brasileiras. Em um país onde somente 29% das unidades escolares públicas têm computadores ou tablets disponíveis para uso pedagógico das(os) estudantes (pesquisa Panorama nas Escolas — NIC.br3), é difícil falar em inovação sem encarar, antes, as desigualdades. Além disso, mesmo com o uso crescente da IA por crianças e adolescentes, ainda são raros os trabalhos acadêmicos que investigam, com profundidade, a relação entre escrita e inteligência artificial no cotidiano escolar. Diante dessa lacuna, esta publicação se apoia em diretrizes internacionais e nacionais — como as recomendações da Unesco e o Complemento de Computação da Base Nacional Comum Curricular — para propor caminhos possíveis, atentos ao contexto e às urgências da escola pública brasileira. As oficinas apresentadas neste material foram baseadas na sequência didática para a escrita de artigo de opinião da publicação Pontos de vista — Orientações para a produção de textos do gênero Artigo de Opinião, elaborada pelo Escrevendo Futuro, programa desenvolvido pelo Cenpec em parceria com o Itaú Social entre 2002 e 2024. No primeiro semestre de 2025, o Cenpec realizou um projeto experimental, apoiado pela Fundação Itaú, para integrar ferramentas de IA generativa nesse processo de ensino e aprendizagem da escrita do artigo de opinião. O ponto de partida da nossa proposta é claro: ensinar a escrever é, sobretudo, ensinar autoria. E autoria não se resume à produção de textos inéditos, mas envolve o exercício de construir sentido, assumir pontos de vista, argumentar com responsabilidade e reconhecer o outro como interlocutor. É um trabalho que demanda tempo, escuta, linguagem, imaginação — e que não pode ser substituído por cliques. Por isso, optamos por uma abordagem crítica da tecnologia, voltada à formação de docentes e estudantes do 9o ano do Ensino Fundamental (EF) e do Ensino Médio (EM) para que compreendam o funcionamento dessas ferramentas, seus usos e limites. Partimos do pressuposto de que desenvolver habilidades como checagem de informações falsas, análise de padrões linguísticos e identificação de vieses algorítmicos é, hoje, parte do trabalho de letramento. Este material, assim, não pretende oferecer respostas prontas, mas abrir espaço para perguntas. Propõe práticas que considerem as condições concretas da escola e que convidem os sujeitos envolvidos no ensino da escrita a refletir sobre o que está em jogo quando produzimos, revisamos e publicamos textos. Em tempos de automação crescente, preservar o valor da autoria é também afirmar o papel da educação na formação de cidadãos críticos e conscientes. Este material é resultado da sistematização do projeto “IA generativa no ensino da escrita: uma experimentação com a sequência didática do artigo de opinião”, desenvolvido ao longo do primeiro semestre de 2025 na Escola Estadual Castello Branco, em Limeira, São Paulo. Esse projeto, concebido pelo Cenpec, foi um dos selecionados pelo edital Inteligência Artificial na Educação da Fundação Itaú, que apoiou iniciativas inovadoras que adotam IA para melhorar a qualidade da educação no Brasil. De março a junho, a turma do 9o ano 34 da E.E. Castello Branco explorou, com a professora de Língua Portuguesa Elza Maria Barroso Alves da Silva e o coordenador pedagógico Márcio Bergamini, possibilidades de uso da inteligência artificial generativa — sobretudo o ChatGPT — como apoio ao ensino e à aprendizagem do artigo de opinião. Ao longo do processo, o grupo debateu e experimentou usos das IAs nas aulas de Língua Portuguesa, analisou textos das(os) estudantes e revisou continuamente as atividades propostas, com os seguintes objetivos: Contextualizar o desenvolvimento das inteligências artificiais generativas na atualidade. Discutir os limites e possibilidades dessas ferramentas para o ensino da escrita — especialmente do artigo de opinião — com foco na ampliação da criticidade das(os) estudantes. Valorizar o processo de escrita humano e o desenvolvimento da autoria como dimensão essencial da formação de adolescentes. Experimentar formas de utilizar a IA para apoiar tanto o trabalho docente quanto as diferentes etapas da escrita das(os) estudantes. Dessa experiência, emergiu uma constatação fundamental: é indispensável que a(o) professora(or) receba formação para adaptar e utilizar as IAs de forma estratégica e contextualizada. Ou seja, trata-se de ir além do uso de plataformas massificadas, que ignoram as especificidades locais, e de criar oportunidades para a(o) docente desenvolver habilidades e competências que, posteriormente, também poderão ser desenvolvidas pelas(os) estudantes. Tal como as IAs e o modo como nos relacionamos com elas, esta sequência didática permanece em construção. As oficinas a seguir sintetizam o trabalho realizado pela equipe técnica e pelas(os) estudantes da E.E. Castello Branco, com o apoio da equipe de especialistas do Cenpec, e podem ser repensadas para que façam sentido em diferentes contextos escolares. Estão abertas a revisões e aprimoramentos.Este documento apresenta um conjunto de oito oficinas para o ensino e a aprendizagem da escrita de artigo de opinião com o uso da IA generativa, que complementam a sequência didática do caderno docente Pontos de vista, do Programa Escrevendo o Futuro. Voltadas para estudantes a partir do 9o ano do Ensino Fundamental, as atividades são organizadas em etapas, de modo a facilitar a progressão da aprendizagem do gênero Artigo de Opinião e a reflexão sobre a inteligência artificial generativa. Para as(os) educadoras(es) que quiserem saber mais sobre sequência didática, sugerimos, inicialmente, a leitura da Introdução do caderno docente Pontos de vista. O texto apresenta uma explicação detalhada sobre o diálogo dessa abordagem com as competências e habilidades de Língua Portuguesa da Base Comum Curricular Nacional (BNCC). A seguir, mostraremos como as oficinas propostas com o uso da IA generativa se relacionam com a BNCC — Computação5, documento complementar à BNCC que garante direitos de aprendizagem relacionados ao uso crítico de ferramentas digitais na Educação Básica.A integração do uso da IA generativa nesta sequência didática também considerou as condições reais da escola pública. Assim, nem todas as oficinas exigem o uso de computadores conectados à internet, e há inclusive atividades “desplugadas” para refletir sobre noções, fundamentos e uso crítico da inteligência artificial. Nas atividades, indicamos IAs generativas com versões gratuitas e as três mais usadas no projeto experimental — ChatGPT, Gemini e DeepSeek. É importante que, ao realizar as oficinas, a(o) professora(or) faça uma pesquisa sobre outras ferramentas e pergunte às(aos) estudantes quais elas(es) utilizam, para ampliar esse repertório. ChatGPT — https://chatgpt.com Lançado em 2022 pela OpenAI, foi a primeira ferramenta a popularizar o uso de IA generativa. O nome "ChatGPT" combina chat (do inglês, “conversa”) com GPT (Generative Pre-trained Transformer), o tipo de modelo de linguagem utilizado. Gemini — https://gemini.google.com Ferramenta de IA generativa do Google, lançada em 2023 como resposta direta ao sucesso do ChatGPT. É um modelo de IA multimodal, com capacidade de processar diferentes tipos de dados, incluindo texto, imagens, áudio e vídeo. DeepSeek — https://www.deepseek.com Empresa chinesa de IA generativa que lançou seu primeiro aplicativo chatbot em janeiro de 2025, disponibilizado em código aberto, permitindo que seu código seja livremente utilizado e adaptado para a criação de novos projetos. Ao longo deste material, a(o) docente também encontra as seguintes seções para apoiá-la(o) no desenvolvimento das oficinas e atividades: Palavra-chave: conceitos relevantes sobre inteligência artificial. : dicas para testar comandos e instruções em ferramentas de IA generativa. Janela teórica: recortes de textos de apoio teóricos sobre IA na educação e no ensino de escrita. Conexão Pontos de vista: indicação de conteúdos presentes no corpo principal do caderno docente Pontos de vista.

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Especiais
Relações Étnico-Raciais e de Gênero na Educação

O fazer docente comprometido com a educação para as relações étnico-raciais

Este especial apoia professoras(es) no planejamento de aulas de Literatura e Língua Portuguesa, a partir da abordagem das culturas dos povos negros e indígenas no Brasil. Inspire-se com práticas pedagógicas comprometidas com a educação antirracista.

Esta publicação reúne uma série de materiais elaborados pelo programa Escrevendo o Futuro, com enfoque nas questões étnico-raciais na educação, para apoiar educadoras(es) no planejamento de aulas de Literatura e Língua Portuguesa. O Escrevendo o Futuro é uma iniciativa do Itaú Social, com coordenação técnica do Cenpec, que desenvolveu, entre os anos de 2002 e 2024, ações de formação para professoras e professores de Língua Portuguesa das escolas públicas do Brasil. Dentre as ações de maior destaque estão: a publicação dos Cadernos Docentes, com orientações para trabalhar os gêneros poema, memórias literárias, crônica, artigo de opinião e documentário em sala de aula; a publicação da revista Na Ponta do Lápis, de caráter educativo e cultural, com o objetivo de apoiar a prática de docentes interessados no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa; o oferecimento de diversos cursos on-line, com foco na formação de professoras(es) para o ensino de leitura e escrita; e a realização da Olimpíada de Língua Portuguesa, um concurso de produção de textos de diversos gêneros que mobilizou professoras(es) e suas turmas ao longo de sete edições; Estão reunidos neste especial diversos artigos, entrevistas, planos de aula e textos literários para inspirar e repertoriar um fazer docente comprometido com a educação antirracista.

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Revistas digitais
Leitura e escrita

Revista Na ponta do lápis

Editada pelo Programa Escrevendo o Futuro, a revista apoia a formação e a prática de educadoras(es) interessadas(os) no ensino-aprendizagem de língua portuguesa. Acesse todas as edições digitais e inspire-se com esse conteúdo!

Uma revista para educadoras(res) e apaixonados pela Língua Portuguesa Na Ponta do Lápis é uma publicação de caráter educativo e cultural, editada pelo Programa Escrevendo o Futuro. A revista apoia a formação e a prática de educadoras e educadores interessadas(os) no ensino-aprendizagem de língua portuguesa a partir da divulgação de conteúdos pedagógicos que proporcionam reflexão teórica, subsídios para a prática, compartilhamento de experiências e expansão do repertório cultural. Em maio de 2005, o Programa Escrevendo o Futuro lançou o primeiro número da publicação Na Ponta do Lápis para apoiar a formação e fortalecer o diálogo com professoras e professores de língua portuguesa de todo o Brasil. Desde então, foram 41 edições, milhares de exemplares distribuídos por todo o país e inúmeros artigos nas seções Entrevista, Especial, De Olho Na Prática, Página Literária, Óculos de Leitura e Tirando de Letra. Os textos que compõem cada edição abordam os desafios encontrados no contexto escolar, especialmente no ensino de leitura e escrita, possibilitam a ampliação do repertório cultural e promovem a troca de experiências entre educadoras(res).

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Podcast
Relações Étnico-Raciais e de Gênero na Educação

Literatura afro-brasileira na escola

No oitavo e último episódio do Podcast Educação na ponta da língua, entenda as estruturas de apagamento da representatividade afro, no campo da literatura brasileira. Ouça agora!

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Revistas digitais
Família, comunidade e território

Cadernos Cenpec (nº 6, 2009): Escola, família e comunidade

Procuramos, nesta edição, mostrar que é urgente e possível “entrelaçar o ser-fazer-saber das famílias com o ser-fazer-saber das escolas”. Acesse!

6 Escola, família e comunidade Cadernos Cenpec 2009 n. 6 m 2003, descortinava-se no País, como questão e apelo social, a implementação de programas voltados à juven- tude. Essas iniciativas traduziam a dramática constata- ção da existência de enormes contingentes de jovens em situação de vulnerabilidade, risco, e exclusão. Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Editorial relação entre a família e a escola tem sido objeto de debate tanto pela consta- tação de sua efetiva importância nos novos rumos da educação quanto pelas tensões provocadas sobre a de- finição de competências e responsabilidades na educa- ção das futuras gerações. Reclamam os pais e a socieda- de em geral pelos baixos resultados do ensino nacional, reclamam os professores e agentes educacionais sobre sua condição de trabalho e sobre a situação dos alunos que chegam à escola sem uma base cultural e compor- tamental que permita a aprendizagem. Procuramos, neste caderno, desvelar os meandros dessa relação necessária e difícil apresentando relatos e reflexões que demonstram o desejo e as possibilidades de diálogo entre as duas instituições. Um diálogo que pode se tornar construtivo e constante e ter o efeito be- néfico de provocar o arejamento das estruturas familia- res e escolares, o sucesso escolar das crianças, a moti- vação dos professores e a efetiva participação dos pais no processo educacional de seus filhos. Mostramos aqui o cotidiano das famílias dos alunos das escolas que vivem em áreas vulneráveis, com pouca oferta de serviços públicos e a preocupação diária com os problemas da sobrevivência e da segurança que atra- palham seu sonho de ver os filhos progredirem na esco- la e na vida. Nas pesquisas aqui relatadas, ouvimos tam- bém os professores e as escolas, seus dilemas cotidia- nos e as iniciativas para criar pontes e estratégias que facilitem o contato entre estes dois mundos. Muitas pesquisas têm revelado a importância da famí- lia na escolaridade dos filhos e aqui vimos que as famílias de camadas populares, ao contrário do que pensa o senso comum, atribuem valor a escola e a escolarização de seus filhos. Famílias com vários arranjos e modos de funciona- mento, que precisam ser ouvidas e compreendidas. Isso exige flexibilidade da escola na busca de referên- cias político-pedagógicas especiais e criativas para for- talecer a participação dos pais na escola e na educação dos filhos. Uma relação que não seja apenas mediada pelo dever de casa e pela expectativa de que a família compense as falhas do sistema. Procuramos neste caderno mostrar que é urgente e possível “entrelaçar o ser-fazer-saber das famílias com o ser-fazer-saber das escolas” na construção de novos sen- tidos e significados para a educação. Quando as escolas se abrem e descobrem as demandas, as dificuldades e o potencial de seu território, elas conseguem encontrar as reais possibilidades de interação com as famílias. Uma composição entre a escola e a família deve pro- curar aprender a lidar com as contradições e os desafios da participação dos pais na escola, especialmente nos conselhos de escola, e discutir as possibilidades de uma gestão democrática que não seja apenas formal. Os relatos práticos aqui publicados, e que procuram unir escola, família e comunidade, oferecem sugestões de políticas e ações escolares para promover uma coo- peração respeitosa entre a família e a escola, a fim de que crianças e jovens possam obter o sucesso escolar que desejam. Para a Fundação Tide Setubal, que investe e acredita na capacidade das famílias de construir seu futuro com dignidade e cidadania, é uma satisfação apoiar a publi- cação deste Caderno, apostando que ele estimule o de- bate sobre o tema e contribua para que a educação bra- sileira tenha melhor qualidade. Maria Alice Setubal Diretora Presidente do Cenpec É cada vez mais necessário o diálogo entre família e escola A editorial É cada vez mais necessário o diálogo entre família e escola 3 Maria Alice Setubal artigo Os desafios de uma educação de qualidade em comunidades 7 de alta vulnerabilidade Maria Alice Setubal relato de prática Em busca de familiaridade 20 Maria Cristina Zelmanovits artigo A complexidade da relação escola-família em 27 territórios vulneráveis Beatriz Penteado Lomonaco, Thais Christofe Garrafa relato de prática Conselhos escolares: vários caminhos, o mesmo desafio. 39 Adriano Vieira, Ana Luiza Mendes Borges, Fernanda Andrade Santos pesquisa Mães e pais pedem melhores escolas públicas 47 Nilson Vieira Oliveira, Patricia Mota Guedes Relato: Programa de Interação Família Escola de Taboão da Serra, São Paulo. Com os professores visitadores, a escola vai à família. 56 Isa Maria Ferreira da Rosa Guará artigo Participação dos pais na escola: a representação dos professores. 59 Lúcia Velloso Maurício Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Sumário relato de prática Que relações de cooperação são possíveis entre a família e a escola? 70 Abdalaziz de Moura artigo “Coragem para a luta”: desafios e potencialidades da 75 relação escola-famílias. Tânia de Freitas Resende relato Uma construção coletiva de encontros e encantamentos 86 Carla Lopes, Irene Piñeiro, Maria Eleonora L. Rabêllo artigo Uma difícil e necessária parceria mediada pelo polêmico 93 dever de casa Maria Eulina Pessoa de Carvalho relato de experiência Quando as escolas se abrem 108 Otoniel Niccolini, Maria Cristina Zelmanovits relato de prática Família, comunidade e escola se encontram 111 Adriano Vieira, Maria José Reginato, Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes documento As mulheres na família e na sociedade paulistanas 118 Maria Alice Setubal mosaico 121 Fernando Rios Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Tudo é e não é... No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro, contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso... O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia... o real roda e põe adiante... Fala do personagem Riobaldo. In: Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. esvelar o contexto sociocultural de famílias que vivem em situações de alta vulnerabilidade na cidade de São Paulo implica captar as ambigüidades, nuances, contra- dições que compõem as múltiplas e heterogêneas confi- gurações que se estabelecem no cotidiano desses gru- pos sociais, em suas interações no território, especial- mente na relação com as escolas. O objetivo deste artigo é identificar como é possível obter melhores indicadores de qualidade na educação a partir da criação e implementação de políticas públi- cas que promovam a eqüidade social. Entender como vivem famílias que habitam áreas de alta vulnerabilidade1 e como é a sua inserção na escola de seus filhos, especialmente em grandes centros urba- nos, constitui um pressuposto necessário para o suces- so de políticas sociais multissetoriais, norteadas pela eqüidade social. O que se afirma é a garantia de igual- dade ao direito à justiça, a um lugar digno para morar, ao acesso à educação de boa qualidade, assim como à cultura, esporte e cuidados com a saúde. Os desafios de uma educação de qualidade em comunidades de alta vulnerabilidade Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Artigo Maria Alice Setubal * * Maria Alice Setubal é presidente do Conselho Administrativo do Cenpec e da Fundação Tide Setubal. Socióloga e mestre na área de Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Integrante do Colegiado de apoio do Movimento Nossa São Paulo. Percorrendo territórios de alta vulnerabilidade Diariamente, a mídia mostra, em seus noticiários, situ- ações de pobreza das periferias, geralmente associadas à violência urbana. São imagens que pressupõem uma visão linear e homogênea desses territórios, como se todas as favelas ou espaços periféricos fossem iguais. Tal perspectiva desconsidera que, em São Paulo, os bairros localizados naquelas áreas fazem parte de regi- ões muito extensas, nas quais cada subprefeitura con- ta em média com mais de 300 mil habitantes. Portan- to, internamente aos seus limites geográficos, existem áreas classificadas como de alta, mas também de baixa vulnerabilidade, assim como é possível encontrar fave- las na região do Centro expandido da cidade.2 Nas diferentes regiões de São Paulo, há equipamen- tos públicos e privados de qualidade variável, alguns precários, outros de um nível razoável ou bom, assim como profissionais qualificados e de todas as especia- lidades. Em geral, as periferias acabam por reproduzir o mesmo modelo de desigualdade dominante na cida- de: a região central do bairro, periférico ou não, é mais rica, concentrando as melhores moradias, a maior parte dos equipamentos e benfeitorias, ficando para as áreas mais distantes os equipamentos e as condições de vida de pior qualidade. Percorrer ruas, caminhos e vielas que cruzam os ter- ritórios de alta vulnerabilidade é, antes de tudo, perce- ber suas conexões com a modernidade tecnológica dos grandes centros globalizados, que ali chega de forma in- cipiente e convive com traços, costumes e hábitos arcai- cos. São as múltiplas temporalidades que perpassam a contemporaneidade. Ao se entrar nesses territórios, parece que imedia- tamente se é tomado por um estranhamento diante da imensidão de casas construídas com blocos cinza ou ti- jolos laranja, sem nenhum acabamento... O que acon- tece? Afinal, essa paisagem é mostrada várias vezes por semana na mídia e, no entanto, fica a sensação de que nosso olhar não dá conta de integrar a realidade concre- ta, constituída por aquelas pessoas de carne e osso que têm nome, sobrenome e endereço, com a realidade vir- tual... Fica a certeza de que ali se passa algo que nos es- capa e, portanto, continuar o percurso é a saída para se chegar a alguma compreensão. A paisagem pode ser plana ou configurada por morros, ladeiras ou vielas, em geral, com corredores estreitos e com- pridos, onde moram diferentes famílias em casas que se su- cedem sem muita demarcação. Outras vezes, as casas se amontoam perto de um rio ou represa, sempre em áreas ile- gais, sem condições mínimas de habitabilidade. Asfalto ou terra cobrem as ruas sem um planejamen- to básico de urbanização; predomina o acinzentado dos blocos ou o alaranjado dos tijolos, o que contribui para a monotonia da paisagem, quebrada pelos grafites e pi- chações dos muros. Um vaievém de gente pelas ruas cir- culando em meio a muito lixo espalhado, trechos com es- goto a céu aberto e passagens clandestinas. Nas ruas principais, o asfalto é melhor, não há lixo espalhado e a existência do comércio – onde se ven- de tudo – aporta certo dinamismo, ainda que estrita- mente local. Uma viagem no tempo torna possível en- contrar semelhanças entre esse comércio e velhos ar- mazéns da zona rural ou das cidades do Norte e Nor- deste do país: pequenos mercados, vendas, barracas, bares e até academias com equipamentos de segunda categoria, mas que denotam os cuidados com o cor- po tão divulgados pela mídia, uma preocupação com a “malhação”. Pipas cortam o céu e vendedores ambulantes – como caixeiros-viajantes deslocados no tempo – vendem tudo: tapetes, luminárias, cobertores, comida, produtos de lim- peza... Campos de futebol fazem parte desse cenário: são pontos de encontro obrigatórios aos domingos, graças à participação do time local em campeonatos regionais. Por trás dessa paisagem, encontram-se vidas e his- tórias que configuram características diferenciadas em cada localidade, tornando a referência genérica às peri- ferias algo vazio de sentido e conteúdo. Às vezes, o caminhar pelas ruas surpreende pela vi- vacidade de uma comunidade que pode abrigar vários projetos sociais, com crianças e jovens freqüentando nú- cleos socioeducativos, projetos de comunicação, arte e cultura, hortas comunitárias. Telecentros e lan houses, sempre lotados, estão criando a possibilidade da con- fecção de projetos em que jornais locais, acervo fotográ- fico e vídeos realizados pelos jovens divulgam fotos do cotidiano e demonstram tentativas de ampliação do uni- verso cultural dos moradores. Aos domingos, o campo de futebol, com os bares lo- calizados estrategicamente nas proximidades, é o pro- grama dos moradores, em especial do público mascu- lino, que termina irremediavelmente com uma roda de samba regada de muita cachaça e cerveja. Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Se adentramos para focalizar o interior das casas de maior vulnerabilidade, o cenário é mais desolador. Os barracos de madeira ou zinco foram, na sua maio- ria, substituídos por casas de alvenaria, mas sem aca- bamento e, ainda, com muita precariedade: quase sem- pre são apenas de três cômodos, ou seja, quarto, cozi- nha e banheiro. No interior, panos e roupas são estendidos pelos es- paços possíveis, o forro de zinco é remendado, com mui- tos furos, pelos quais goteiras se espalham por todo o espaço, o piso é de terra, fios são pendurados de forma descontínua, beliches, caixotes funcionam como armá- rios, divisórias de pano substituem portas, os banheiros são precários, há pouca luz e pouca ventilação, que cau- sa um forte odor de urina e mofo por todo o ambiente. Nas paredes, fotos da família emolduradas, santos e às vezes medalhas. Fora, no que se pode designar como quin- tal, lixo, muito lixo de toda espécie. Ao olhar acostumado com alguma ordem, fica a impressão da total desordem, da mistura, da falta de classificação, da falta de acabamento, da falta de estética, enfim... da falta... de tudo. A paisagem inclui também muitas casas à beira de córregos, geralmente feitas de restos de pedaços de ma- deira ajuntados de forma irregular, localizadas perto de um matagal, onde é comum surgirem cobras. O esgoto é a céu aberto; o mato invade o quintal e as ruas sem asfalto. Desse cenário, fazem parte ratos, problema co- mum a todas as residências dessas regiões. Muitas ve- zes, essas áreas abrigam outros animais, como cabras e porcos, que acabam por trazer problemas graves de hi- giene. Algumas casas têm esgoto que vai para uma fossa situada nos fundos do quintal. Nestas precárias condi- ções de saneamento, o banheiro é pouco utilizado, pois os encanamentos estão entupidos. O consumo como marca distintiva de inserção social O cenário da marginalidade social e econômica não é linear, pois são vidas que dialogam com a pobreza, mas também com os apetrechos do mundo da tecnologia e os bens de consumo. Assim, apesar da precariedade das condições de habitabilidade, todos os moradores pos- suem TV, geladeira, energia elétrica (ainda que as liga- ções sejam clandestinas – denominadas “gatos”), má- quina de lavar ou “tanquinho”. Algumas famílias contam com aparelho de som, DVD e celular. A vida é um caleidoscópio em que ora a imagem focaliza acessórios e equipamentos da moda, ora foca- liza situações cotidianas de falta de documentação dos terrenos, casas em áreas de mananciais, energia elétrica clandestina, trabalho precário, uso de drogas etc. Nesse cruzamento do lícito com o ilícito, adolescen- tes e jovens desfilam com roupas, acessórios e cortes de cabelo da moda; têm seu perfil no Orkut, usam celu- lares e freqüentam shopping centers. Esse padrão tam- bém pode ser encontrado nas mulheres que trabalham muitas vezes como domésticas, cuja aparência enco- bre os traços de extrema precariedade de suas condi- ções de vida. A força da aparência confunde o olhar e a as pessoas rotulam-se umas às outras, atribuindo-se valores e mo- dos de vida que nem sempre correspondem à realidade. Nesse sentido, a aparência de mães e alunos muitas ve- zes oculta, para professores e diretores, a crueza das con- dições de vida dessa população. Ou, ainda, aqueles que não entram nesse padrão de consumo da moda acabam sendo discriminados e rotulados a priori: Aquele ali, tá na cara, né.... lógico que a família não tá nem aí... A força da aparência confunde o olhar e a as pessoas rotulam-se umas às outras, atribuindo- se valores e modos de vida que nem sempre correspondem à realidade. Cadernos Cenpec 2009 n. 6 A complexidade da sociedade contemporânea, que impõe o consumo como a principal forma de inserção e valorização social, chega a todos os lugares das cidades, desconstruindo rótulos apriorísticos e exigindo análises mais profundas para se captarem os valores, desejos e modos de vida de seus moradores. Uma hipótese interessante para se pensar, com base nas análises anteriores, é que o Programa Bolsa Família (cujo público-alvo tem o perfil dessas famílias de alta vul- nerabilidade) tornou-se uma política pública com apro- vação unânime na sociedade justamente por seus efei- tos talvez não previsíveis à primeira vista: tornar consu- midora uma parcela da população que estava margina- lizada dessa condição. Assim, o Programa é reconhecido não pelos seus as- pectos relativos à cidadania, eqüidade social e garantia mínima de direitos a uma vida digna, e sim por sua vin- culação ao mercado, possibilitando movimentar econo- mias locais de pequenos lugarejos das diferentes regi- ões do país. Apego ao bairro Se o consumo das novidades da moda e das tecnologias está instalado nas diferentes camadas da população de São Paulo, a opção por permanecer no bairro onde mo- ram é uma constatação que desmonta crenças difundidas no imaginário geral dos paulistanos das classes média e alta, que acreditam que os moradores das periferias so- nham mudar-se para as áreas nobres da cidade. As pesquisas3 têm mostrado que a maioria da popula- ção residente nas periferias não quer sair de lá. Gostam do local onde moram. Alguns são profissionais bem-suce- didos em suas carreiras ou negócios, têm status e prestí- gio social na localidade; outros querem ganhar mais, me- lhorar a vida, ter uma casa regularizada, mas desejam fi- car onde têm amigos, família, onde se sentem acolhidos. Para esses últimos, os sonhos são muito básicos: cons- truir uma casa, ter carteira de trabalho assinada, consti- tuir uma família e poder dar tudo aos filhos. Nesse contexto, inserem-se as falas de muitos mo- radores de territórios de alta vulnerabilidade,4 cujos de- poimentos expressam uma apologia do bairro onde mo- ram, declarando seu amor pelo local onde nasceram ou onde o filho nasceu, a participação nas atividades do bairro, especialmente futebol, ou as festividades como carnaval, festa junina etc. Segundo eles, a vida é sim- ples, não dá para ficar rico, mas dá para viver, trabalhar e pagar as contas. Não querem sair dali... Exaltam as potencialidades do bairro – desde lugares nos quais é possível apreciar um belo pôr-do-sol, até os equipamentos, mesmo que simples, como academias e creches, os núcleos e, prin- cipalmente, as tradições locais, geralmente ligadas ao futebol, ao samba, à família e aos amigos. A simplicidade das pessoas constrói um lugar aconchegante, o lugar onde moramos e a solidariedade de todos nos ajuda no nosso dia-a-dia.5 Ficam muitas questões • Esse olhar positivo para um bairro tão destituído de equipamentos e excluído da cidade é por falta de re- ferências? • Ou talvez por se sentirem ameaçados, segregados em outros territórios? • Por priorizarem as pessoas, os amigos e a família, e daí a vontade de melhorar o local, mas não de sair? • Ou exprime outro modo de olhar a vida, mais des- prendido de padrões de uma estética linear, um olhar capaz de enxergar a beleza do local pelas ami- zades, pelo acolhimento das pessoas, um olhar que traz consigo uma potência, uma força de vida, um olhar superador? 10 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Terra natal: sonhos e decepções Outras vezes, o sonho envolve mudanças, mas não é mudar para outro bairro, e sim voltar para a terra natal, como no caso de Ema, 32 anos:6 Até hoje moro na invasão, porque o que a gente faz nunca teve alcance de comprar um terreno documentado. O meu sonho é comprar um terreno documentado para não ter que morar nesse negócio de invasão, não ter que perder, a gente batalha a vida toda para fazer o nosso lar hoje. Eu moro aqui no Lapenna, na beira do rio. Sofro muito com enchen- te, mas é melhor sofrer com enchentes do que com outras coisas piores. E tô ali batalhando. Moro em um quarto e cozinha. Só meu esposo trabalha. Eu trabalho assim, mas é por conta, quando eu acho assim um serviço em casa de família. Fora essa parte, eu sou formada em artesanato no Senai. Sou cozinheira de forno e fogão, sou formada em culinária, mas não tenho esse ponto certo de ser- viço. Pra nós tá faltando serviço. Eu tenho certificado do artesanato assinado, mas tá faltando emprego pra gente criar nossos filhos pequenos e passar para eles o que nossos pais passou. Meu sonho era morar em Juazeiro, Bahia, e mostrar para o povo de lá o que eu sei fazer. Meu sonho é colocar o que eu aprendi na vida: fazer bolo, casamento, aniversário, batizado. Tudo pra festa eu sei fazê. E fora isso eu queria dá curso de crochê. As pessoas se interessam muito pelo o que eu faço. Eu quero aprendê e também dá aula, ser monitora. Para Ema, apesar de todos os aprendizados, faltou o principal: o reconhecimento social de suas habilidades. Não encontra espaço para desenvolver seu potencial. Daí o sonho de voltar e mostrar para o povo de lá que valeu a pena a vinda para São Paulo. O vazio da vida, a falta de lazer para a mulher, a fal- ta de leitura para o trabalho podem ser motivações para voltar para a terra natal e montar um negócio próprio, como mostram alguns depoimentos. Eu quase não saio, não. Fico mais em casa. Meu marido sai, se diverte pelos cantos, mas eu não. Fico, tenho uma mocinha de 15 anos. Nóis fica em casa. A gente liga um som, passa um CD e a gente passa o dia que a gente nem vê. Geralda, 44 anos. Falá verdade, quando ele não trabalha nos domingos nóis sai com os meninos e vai até a casa dela (Geralda, a sogra) e volta pra casa e pronto. Às vezes, vamo lá no parque ecológico e é só. Mara, 19 anos. O sonho das duas é comprar uma casa em Pernam- buco e ir embora. Diz Geralda: Colocar uma banca de verdura. Porque ali ele vai trabalhar para ele mesmo. O sonho que ele tem é esse, trabalhar pra ele mesmo. Deixar de trabalhar para os outros. Trabalhar aqui não dá, minha leitura não dá, não sei ler nem escrever; mas eu pego uma revista da Avon e saio vendendo. Mara, 3a série, complementa: Não tenho amigos pra ficar assim conversando, contando as coisas que aconteceu... as mágoas que a gente tem. Fica tudo guardado com a pessoa. Eu queria trabalhar, eu acho ruim ficar assim só dentro de casa. A casa é pequena, é só um cômodo. Faz as coisas e chega o resto do dia não tem o que fazer. Fica só com os meninos, só. O universo cultural restrito e a falta de qualificação educacional fazem desmoronar o sonho de vencer no grande centro urbano e sobra a falta de perspectiva de uma vida digna. Afinal, o que se entende por boa qualidade do ensino? Quando Geralda afirma que “trabalhar aqui não dá, minha leitura não dá, não sei ler nem escrever”, ela faz referência a um aspecto decisivo, que deve ser examina- do detalhadamente: os laços entre a qualidade do ensi- no e a qualidade de vida. Com a promulgação da Constituição de 1988, o Bra- sil entrou em nova fase de sua história política e social. Dentre as inúmeras mudanças, passamos a nos alinhar O vazio da vida, a falta de lazer para a mulher, a falta de leitura para o trabalho podem ser motivações para voltar para a terra natal e montar um negócio próprio, como mostram alguns depoimentos. 11 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 com movimentos externos em prol da educação. Sem dú- vida, a década de 1990 assistiu a um avanço significati- vo no acesso ao Ensino Fundamental e Médio.7 Nos últimos anos, a questão que está em jogo é a qualidade da educação, uma vez que as diversas ava- liações realizadas por governos das diferentes instân- cias têm apontado para os pífios resultados de nossos alunos. Os dados relativos ao Índice de Desenvolvimen- to da Educação Básica – Ideb da 8a série revelam que ainda não superamos o desafio do ciclo II do Ensino Fun- damental e, menos ainda, o do Ensino Médio, resulta- dos que se agravam em escolas localizadas em regiões de alta vulnerabilidade social.8 Inúmeros estudos têm buscado entender as causas desse malogro, ora apontando para fatores internos à es- cola, ora para fatores externos. O bom senso nos diz que em um país como o Brasil, em sua enorme diversidade espacial e populacional, esses fatores são diferentes, de acordo com as peculiaridades e características do territó- rio e sua história política, social e econômica, assim como segundo as características da própria rede educacional e/ ou de algumas escolas, de forma mais específica. Por outro lado, diante de tantos diagnósticos, estudos e avaliações, já se tem clareza dos principais aspectos que impactam na melhoria da qualidade da educação, como: foco na aprendizagem, valorização do professor, planeja- mento e continuidade de políticas, avaliação, gestão da escola, atenção individual ao aluno, número de horas da jornada escolar, diversificação de atividades, participação dos pais, abertura para a comunidade etc. Não é objetivo deste artigo explicar e justificar cada um desses pontos; as divergências se dão quanto à or- dem de prioridades ou ao peso dado a cada um desses fatores, ou ainda se estão sendo consideradas escolas de forma isolada ou redes de ensino – o que muda muito o foco da análise, assim como os seus resultados. Como mencionamos no início deste artigo, nosso ob- jetivo é analisar a qualidade do ensino na sua interação com a eqüidade social e, assim, buscar entender a inser- ção na escola dos alunos oriundos de famílias de alta vul- nerabilidade, especialmente nos grandes centros urbanos. Nesse contexto, paralelamente a todos os fatores aponta- dos acima, as relações humanas no âmbito da educação, mais especificamente nas comunidades e nas escolas, de- veriam ser tratadas com o mesmo sentido de urgência que os dados relativos às avaliações de aprendizagem. A banalização da violência, tanto no contexto mais ge- ral do cotidiano da sociedade como internamente nas ins- tituições escolares, é um dos fatores responsáveis pela baixa qualidade do ensino no Brasil. A fragmentação das relações sociais na sociedade contemporânea e a perda de vínculos de confiança e convivência mais estáveis têm conseqüências graves na coesão do tecido social, especialmente para os grupos mais pobres; e, como aponta Brant de Carvalho,9 Com a confiança social perdida, uma violência simbólica, mui- tas vezes camuflada, instala-se nas escolas, perpassan- do as interações sociais ali construídas por meio de di- ferentes atitudes e regras invisíveis: • criação de obstáculos ao acolhimento de alunos pro- venientes de famílias de alta vulnerabilidade ou para aqueles que querem retornar aos estudos; • distância entre o currículo formal e o mundo cotidia- no dos alunos; • dificuldade de se aceitar e lidar com a diversidade, a diferença e o enfrentamento do preconceito; • homogeneização dos alunos por meio de imposição de disciplina formal descolada de um clima de respeito, convivência saudável de colaboração e tolerância; • falta de compromisso com a aprendizagem de todos os alunos; • desvalorização da história e da vivência das famílias e dos alunos; • culpabilização da família pelo malogro escolar de seus filhos. Estas atitudes, embora de difícil medição, são mui- tas vezes fatores determinantes dos baixos resultados de aprendizagem alcançados por nossos alunos. De um lado, escolas que não conhecem o território de seu en- 12 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 torno e as condições socioculturais de seus alunos, as- sumindo posições preconceituosas e desistindo de seu papel de garantir aprendizagem. De outro, pais que não têm modelos ou referências de como podem apoiar os filhos na sua trajetória escolar, sentindo-se distantes e excluídos da escola de seus filhos. Enfim, escola e comunidades vulneráveis constituem mundos regidos por ordens opostas, uma vez que a es- cola é o espaço da legalidade e da burocracia, muitas ve- zes o único espaço público de algumas comunidades. O desafio é como fazer a ponte para um diálogo com comu- nidades que vivem numa tênue fronteira entre o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal. Isso sem falar na convivência amedrontadora com o tráfico de drogas. Dissonâncias e ambigüidades Não se trata aqui de percorrer o caminho mais fácil de apontar culpados, pois temos claro que a escola sozi- nha não resolverá todos esses problemas. É fundamen- tal, como apontaremos mais adiante, que as políticas públicas trabalhem de forma transversal, articulando as diversas áreas sociais, assim como é importante que as escolas se abram para a comunidade, em um trabalho conjunto com os Conselhos Tutelares e as Varas da In- fância e da Adolescência, com as Ongs locais, bibliote- cas, clubes, casas de cultura... Tudo isso tem sido objeto de inúmeros artigos. Po- rém, não é suficiente para explicar de forma satisfató- ria as dificuldades geradas por essa violência invisível, que contribui para o aumento do abismo entre a escola e as famílias, e a conseqüente incapacidade de garantir a aprendizagem de todos os alunos, o que penaliza es- pecialmente os mais pobres. Para não incorrermos no risco de considerar todas as escolas e professores um conjunto homogêneo, é impor- tante destacar que, na experiência do Cenpec e da Fun- dação Tide Setubal em territórios de alta vulnerabilidade, também nos deparamos com professores interessados em uma aproximação com as famílias de seus alunos. Tais professores querem conversar com elas sobre edu- cação, ver as crianças de outra forma, a partir de um maior conhecimento de sua realidade, assim como têm o dese- jo e a expectativa de que os pais os vejam como pesso- as, como parceiros e não apenas como docentes. O exem- plo de Taboão da Serra, analisado neste caderno, é outro exemplo dessa aproximação entre professores e alunos. No entanto, nos grandes centros urbanos, onde a dis- tância entre a escola e a comunidade é acentuada, o mais comum talvez seja o discurso da culpabilização dos pais e a explicitação da evasão como saída legítima para o aluno: Esse não tem mais jeito! Você não vai entrar aqui para dar porrada nos menores, vai? Aqui não tem mais vaga, você nunca devia ter parado de estudar! 10 A escola aponta para fora de seus muros toda a res- ponsabilidade pelo fracasso dos alunos – situações de alcoolismo e violência doméstica, pais que não dão atenção aos filhos etc. Se tal situação alarmante é mui- tas vezes verdadeira, na falta de instrumentos e assis- tência profissional adequados, a escola fica paralisada e se fecha sobre si mesma. A distância entre a escola e a família se coloca como fator da imobilidade e da desobrigação do estabeleci- mento de ensino em relação aos problemas da comuni- dade. Tudo se passa como se a solução estivesse intei- ramente fora do âmbito da vida escolar. Daí a existência de uma certa “permissão para sair”, como se abandonar a escola fosse um “bom negócio”, uma vez que a evasão permitiria que o jovem trabalhas- se e melhorasse a condição social da sua família – apon- tada pela escola como a principal razão para que os alu- nos não aprendam. O tom de perplexidade em que diretores e professo- res falam exaustivamente da situação precária e desor- ganizada dessas famílias aparece como impedimento para ouvi-las e manter uma relação mais próxima. Essa postura deslegitima qualquer comentário, sugestão ou demanda vinda dessas famílias. Presenciamos depoimentos de diretoras desqualifican- do reclamações das mães relativas ao atraso de professo- 13 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 res, à sujeira das salas ou, então, questões mais corriquei- ras, como a preocupação muito comum pelo fato de alunos do primeiro ciclo do Ensino Fundamental conviverem com os do segundo ciclo. Uma professora vocifera: As mães acham que os filhos são bebês. Daí eu deixei elas entrarem nos primeiros dias, mas depois elas começaram a me atrapalhar e eu toquei elas daqui. Apesar de situações como as descritas acima faze- rem parte do cotidiano de muitas escolas, especialmen- te nas periferias, várias pesquisas têm apontado que a maioria dos pais avalia como boas as escolas de seus filhos. Esse aspecto, de certa forma, pode ser confirma- do por alguns professores ao relatarem inúmeras tentati- vas para fazer com que os pais participem mais das reu- niões, explicando-lhes sobre os conteúdos trabalhados, as expectativas da escola etc. No entanto, dizem os professores e diretores que os pais não conseguem participar, afirmando sempre que “está tudo bem”. Do lado dos pais, em reuniões comuni- tárias e entrevistas individuais (como é analisado no es- tudo sobre famílias de São Miguel Paulista, neste cader- no), nas quais se cria um ambiente mais próximo e aco- lhedor, as mães têm muitas queixas concretas em rela- ção às escolas de seus filhos. Esta crítica às escolas é corroborada por estudos que abrangem todo o território nacional.11 Os resultados de- monstram que, para os pais, a escola pública é o espaço da indisciplina, da transgressão e da desordem, o espaço em que a autoridade mais se esvaziou na sociedade. Há um desejo de que a autoridade dos diretores e dos professores seja instaurada, que a escola se torne mais atrativa e motivadora e que as secretarias de educação sejam menos omissas em relação à organização e ma- nutenção das escolas. Os pais também mostram descon- tentamento em relação às faltas e greves dos professo- res e às brigas entre os alunos, e apontam roubos e dro- gas como problemas das escolas. Há um ruído forte nesse diálogo, causando danos pre- judiciais às possibilidades de aprendizagem de muitos alunos, na medida em que a escola não reconhece quem e para quem está ensinando. A escola, para essas famí- lias e para seus alunos, torna-se mais um espaço em que se sentem desrespeitados, não reconhecidos, ficando a sensação de descartabilidade e invisibilidade. 14 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Do ponto de vista da escola, a falta de capacitação e de efetivas políticas que busquem a eqüidade social leva a essa imobilidade, impotência e a uma espécie de de- fesa para não ver, não ouvir e se trancar dentro de seus muros, diante de uma realidade tão dura e complexa. Sozinha e isolada, a escola não tem mesmo condições de uma atuação que garanta a aprendizagem de todos os seus alunos. Daí a necessidade premente de se pen- sar em políticas sociais articuladas de forma interseto- rial e, sobretudo, que atendam às diferentes necessida- des, especificidades e potências dos diversos territórios que compõem as periferias de São Paulo. Em busca de caminhos e saídas Para finalizar nossas reflexões, buscamos desvelar al- guns fatores acerca das relações entre a escola, famílias e comunidades de alta vulnerabilidade, que devem ser considerados no desenho e implementação de políticas que visem alcançar maior eqüidade social. Partimos do pressuposto da importância central que joga a educação nesse caminho, mas que só ela não dá conta de uma realidade tão complexa, o que exige uma articulação com as demais políticas sociais. Alguns desses aspectos referem-se a dimensões mais concretas, como o currículo, enquanto outros são mais in- tangíveis, como o respeito, a cultura, os valores, as iden- tidades, pois consideramos que a construção da identi- dade na sociedade contemporânea passa por escolhas pessoais e pelo reconhecimento social. É na interação com o outro e por meio de seu reconhe- cimento que eu me constituo como sujeito e concretizo a possibilidade de construir uma cidadania participati- va. Nesse contexto, destacamos cinco pontos para refle- xão sobre o desenho e a implementação de políticas pú- blicas cujo objetivo seja causar impacto na melhoria da qualidade de vida, da construção da cidadania e da edu- cação de famílias de alta vulnerabilidade social: • investimento e articulação de políticas sociais nos territórios; • currículos e metodologias mais adequados aos alu- nos e suas famílias; • atenção e acompanhamento individualizado ao aluno; • ênfase nas relações de convivência social; • reconhecimento da dignidade e da potência de cada um e de todos. Investimento e articulação de políticas sociais nos territórios Buscar melhores condições de habitabilidade e maior número de equipamentos públicos adequados à popu- lação é de fundamental importância para alcançarmos uma qualidade de vida digna para todos. Territórios de alta vulnerabilidade têm um impacto na forma de inser- ção dos alunos na escola. De um lado, porque esses lugares apresentam uma oferta reduzida de equipamentos e oportunidades; de ou- tro, como vimos, em razão da extrema precariedade das condições de habitabilidade de seus moradores, fazen- do com que, para essas famílias, a sobrevivência diária seja questão norteadora de sua existência. Elas vivem em um mundo permeado por relações ile- gais ou ilícitas e a escola é o único espaço público orga- nizado a que têm acesso de forma contínua. Daí a difi- culdade em se manter dentro de suas normas e regras, o que gera maiores índices de evasão escolar, freqüên- cia às aulas de forma intermitente, foco no presente sem capacidade de planejamento ou visão de futuro. Essa realidade impede que as famílias ouçam, con- centrem-se e opinem sobre questões muito gerais ou abstratas colocadas pela escola. De novo, não é uma relação causal, e sim uma tendência, pois também, va- mos encontrar exemplos de boas escolas com altos ín- dices de qualidade de desempenho. A questão é enten- der como essas realidades interferem, ou podem inter- ferir, de forma decisiva, nas condições de aprendiza- gem dos alunos. A discussão sobre educação integral insere-se nesse contexto, considerando que não se trata apenas de es- cola em tempo integral, e sim de um conceito ampliado de educação que busca integrar a escola nos espaços do seu entorno, fazendo conversar – mais de perto – comu- nidade, pais e educadores.12 É na interação com o outro e por meio de seu reconhecimento que eu me constituo como sujeito e concretizo a possibilidade de construir uma cidadania participativa. 15 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Experiências de abertura das escolas para a comuni- dade, por meio do uso de seus equipamentos públicos, como bibliotecas, clubes, telecentros, parques etc., têm evidenciado uma melhoria nos resultados de aprendiza- gem, como demonstra o artigo sobre a Escola Integrada, em Belo Horizonte, neste caderno. Currículos e metodologias mais adequados aos alunos e suas famílias A distância entre escola e comunidades vulneráveis aumenta diante dos conteúdos ensinados e da realidade da sociedade contemporânea vivida por esses alunos. A escola é, por excelência, o universo do mundo letrado em contraposição ao mundo da cultura oral, que rege a maioria dessas famílias. Todas as atividades, especial- mente as aulas, são norteadas por essa lógica, muitas vezes linear, de sacralização do texto escrito, sem levar em conta a importância da imagem e de outras lingua- gens no mundo de hoje. Essa concepção acaba por impor barreiras não só aos alunos, mas principalmente aos seus pais, pois a lógica da escrita pressupõe conhecimento prévio, abstração, or- ganização do pensamento e planejamento que não en- contram eco numa população movida pela cultura oral, em que o pensamento é mais concreto e repetitivo em suas explanações. Acrescente-se a esse quadro a falta de incorporação, ao currículo, das histórias, dos valores, da arte e dos costumes da comunidade em que a escola se insere. Com isso, alu- nos e pais não se reconhecem nem se identificam com os conteúdos transmitidos pela escola. Ao contrário, sentem- se excluídos, já que seu universo cultural não é levado em conta e a escola, por não considerar que as diferenças so- ciais e culturais estão na base da desigualdade social, cria um descompasso entre a competência cultural exigida e pro- movida internamente e a competência cultural apreendida por essas famílias. Cobra-se dessas famílias um conheci- mento cultural anterior que elas não detêm – daí a violên- cia simbólica, na conceituação de Pierre Bourdieu.13 O desafio que se coloca é como adequar conhecimen- tos e habilidades necessárias à construção da cidadania no mundo contemporâneo a essa população, de forma a alcançarmos maior eqüidade social. Atenção e acompanhamento individualizado ao aluno Parece haver um consenso de que toda criança pode aprender; a diferença está no tempo e na forma de apren- der de cada uma. Ao analisar as boas práticas de municí- pios que garantem o direito de aprender,14 o Unicef res- salta que educar a todos implica acompanhar de perto a evolução de cada criança, partindo-se do ponto em que cada uma se encontra e, no vaivém dos conteúdos, ga- rante-se a sua aprendizagem. As metodologias são diversas: reforço, reenturmação, professor de apoio etc. O que importa é o lema “Um a um, nenhum a menos”, tendo, como referência, práticas já em andamento que estão dando certo, respeitando-se a diver- sidade e os ritmos individuais de aprendizagem. Nesse sentido, é possível também citar políticas já implantadas em São Paulo, como a de se trabalhar com dois professores na 1a série. Ficam algumas questões para serem avaliadas em função dos resultados dessa experiência: não seria importante estender essa práti- ca até a 2a série, para as escolas que alcançaram Ideb mais baixo na 4a série? E ainda, por que não experimen- tar a prática de orientadores educacionais, além dos co- ordenadores pedagógicos, na 5a e 6a séries, quando a multiplicidade de professores faz com que os alunos, muitas vezes, percam aquela figura central do profes- sor da classe como referência? Talvez se pudesse ado- tar, na 8a série, o mesmo critério proposto relativo ao Ideb da 4a série. 16 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Ênfase nas relações de convivência social Ao não se verem reconhecidas por professores e dire- tores que desconhecem seus modos de vida, seu agir e seus sentimentos, muitas famílias concluem que a es- cola acaba por reforçar uma experiência já vivida em outros equipamentos públicos: uma sensação de in- visibilidade, de que não fazem falta, não são ouvidas, nem levadas em consideração, não se vendo, portan- to, como oferecendo uma contribuição para a continui- dade da sociedade. Tudo isso gera nas famílias, especialmente nas mães, uma descrença nas políticas públicas, falta de esperança, hipersensibilidade e ressentimento, de- correntes da necessidade premente de sobrevivência e da falta de respeito com que normalmente são trata- das. Instala-se uma sensação de injustiça, do não re- conhecimento social. Esse acúmulo de desencontros aumenta a distância entre escola e comunidade, redu- zindo as possibilidades de mais impactos positivos na aprendizagem. Nesse contexto, buscar o eixo da eqüidade social para se pensar em políticas públicas multissetoriais para ob- ter melhor qualidade de vida e de educação implica pra- ticar uma escuta atenta. O olhar para o entorno do território e suas relações sociais exige uma aproximação que carrega esse tipo de escuta como uma atitude respeitosa de se deter, de levar em conta o que é digno de consideração. Atenção exige flexibilidade e não a rigidez do “Preste atenção” da professora, é uma abertura para o outro, um esvazia- mento de pré-conceitos para se abrir espaço para rece- ber o outro.15 Saber ouvir e saber falar é um aprendizado que acon- tece na prática cotidiana, tanto em relação aos educado- res quanto em relação às famílias. O ambiente rural tra- dicional, origem de muitas dessas famílias, não dispõe de parâmetros para relações mais horizontais e dialógi- cas. Na cidade grande, o cotidiano é permeado por rela- ções desrespeitosas, em que as pessoas não são leva- das em consideração nos atendimentos dos equipamen- tos públicos de saúde, educação, documentação etc. e, portanto, não têm padrões de referência para atuar em um convívio social mais harmônico. Nos depoimentos de muitas mulheres pertencentes ao Programa Ação Família/São Miguel Paulista,16 apren- der a falar, não bater e não gritar com os filhos e com a família estão entre os pontos destacados como a mais importante aprendizagem: Pra tudo tem que ter diálogo, não adianta gritar. É importante mostrar para cada um seus direitos e deveres, tentando sempre manter o respeito. E ainda: Antes eu batia na minha filha e não tinha paciência porque ela fazia xixi na cama, depois das orientações percebi que eu não estava agindo certo... e o que foi falado aconteceu, ela parou de fazer xixi na cama. Percebi que é porque eu converso mais com ela. Os jovens também destacam, em seus depoimen- tos,17 a importância do simples, do respeito, da humil- dade, da ajuda dos moradores para alcançarem ações capazes de melhorar suas vidas, “pois há muito a bata- lhar, muito o que fazer”. Nessas conversas em que todos aprendem a ouvir e a se expressar, as mães também indicam que querem uma escola que não seja racista, que respeite seus fi- lhos, não tenha violência e na qual professores e direto- res tenham autoridade e respeito. Cidadania implica convivência social e, se a escola é o espaço de construção da cidadania, é o espaço para a aprendizagem das normas e, sobretudo, das práticas que implicam o estabelecimento desse diálogo, dessa convivência social. Respeito. É impressionante o número de vezes que essa palavra aparece nas vozes de homens, mulheres e jovens que se sentem desrespeitados nas diversas situ- ações que rodeiam seu dia-a-dia. Reconhecimento da dignidade e da potência de cada um e de todos Um dos pontos essenciais para revelar a potência de cada um é o enfrentamento do fatalismo, traço comum encontrado em famílias pobres marcadas pela resigna- Saber ouvir e saber falar é um aprendizado que acontece na prática cotidiana, tanto em relação aos educadores como em relação às famílias. 17 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 ção, que se expressa na crença de que a vida está pre- definida: há um destino controlado por forças superio- res, mais poderosas, que inibem qualquer atitude de mu- dança. Gera-se uma postura de conformismo e submis- são norteada por uma tendência a não se fazer esforços, porque nada irá mesmo mudar. Sobreviver e viver nesses territórios exige um alto grau de potência, de garra e vontade de viver que dificilmente se desvela sem fortes apoios com essa intencionalidade. Exige-se um trabalho social competente,18 articulado in- tersetorialmente e sustentado no respeito em ouvir, re- conhecer e implementar ferramentas de apoio. Os depoimentos a seguir são expressivos: Tive uma separação muito difícil, fiquei muito ruim, queria que tivesse um buraco negro para eu me esconder, fiquei em depressão. Sempre me senti muito sozinha e nas visitas das agentes eu conse- gui falar. Melhorei a imagem de mulher. Melhorei a auto-estima. Nas visitas, surgiam perguntas que nunca ninguém fez, na hora certa e no lugar certo. Sempre que tenho momentos difíceis, lembro do filme que tinha as águas (Narradores de Javé) que assisti na reunião das famílias. Nos momentos ruins lembro do filme e busco outro jeito de lidar com as coisas. Acordei para a vida, antes me sentia como um cachorrinho dentro da minha casa. Mudei minha vida. Para ser alguém, precisamos melhorar. Aprendi a ser otimista e a me colocar no trabalho e até incentivei meus amigos. A gente tem que lutar e fazer com amor. Depois do programa, consegui conversar mais com meu marido e ele também está mais tranqüilo. Antonio Negri19 destaca que a potência instaura-se na dor, uma potência do não ser, uma potência da co- munidade. A ontologia da comunidade é a descoberta por meio do sofrer junto – um sofrer que subtrai a passi- vidade e torna-se construtivo, acumulando-se uma ener- gia potencial de constituição de um novo ser. Resistência e garra foi o que encontramos nessas mui- tas histórias de sujeitos participantes dos diversos pro- jetos da Fundação Tide Setubal e do Cenpec. São percur- sos permeados pela dor, por uma trajetória irregular, des- contínua em suas ações, mas que, a partir de um traba- lho social – seja ele comunitário, seja em oficinas de for- mação – eles foram capazes de construir uma subjetivi- dade, foram capazes de vivenciar uma superação. Para Negri, se a vida resiste, isso significa que ela afirma sua força, sua capacidade de criação, de invenção, de pro- dução de subjetivação. Assim, existe sempre a possibi- lidade de potência, de uma capacidade de transforma- ção e cooperação. Falar de qualidade da educação implica a implemen- tação de políticas públicas multissetoriais que dêem con- ta de todos esses aspectos, de modo que a escola pos- sa trabalhar de forma integrada, potencializando a co- munidade em relação às áreas de proteção social, saú- de, cultura e esportes. Assim, as políticas educacionais deverão ter esse olhar para todos os seus alunos e, especialmente, para aque- les que habitam os territórios de maior vulnerabilidade, 18 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 buscando desvelar suas potencialidades; entendendo a realidade sociocultural dos alunos e suas famílias e en- tão podendo ter um novo olhar: um olhar em que o des- respeito e a desqualificação dêem lugar a uma admira- ção pela capacidade de resistir, pela dignidade e pela garra que esses alunos precisam ter para enfrentar mun- dos tão distintos. Se condições objetivas de ações e projetos concretos são fundamentais, não menos importantes e urgentes são as considerações acerca das atitudes e dos valores analisados no decorrer deste artigo. Em uma sociedade massificada e massificadora, aprender a pensar, ouvir, expressar-se, conviver são condições básicas para o es- tabelecimento de relações pautadas pelos direitos hu- manos, pela dignidade e pela eqüidade social. A construção da cidadania para se alcançar uma sociedade mais justa e com eqüidade passa pelo re- conhecimento do outro como sujeito de direitos, de modo que todos os indivíduos sejam reconhecidos em sua dignidade pessoal e os diferentes grupos sociais aceitos e respeitados em suas diferenças materiais e simbólicas. REFERÊNCIAS 1 PREFEITURA DE SÃO PAULO. Mapas da Vulnerabilidade Social. Disponí- vel em: . Acesso em: 10 out. 2008. Link para os mapas: . 2 BRACHER, Elisa. A cidade e suas margens. São Paulo: Editora 34, 2008. 3 FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Pesquisa Ibope. São Paulo: 2005. 4 FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Programa Ação Família. São Paulo: 2007/2008. 5 FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Documentário São Miguel no Ar, São Paulo, 2007. 6 FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Programa Ação Família, op. cit. 7 BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Educação no Brasil na década de 90: 1991-2000. Disponível em: . Links sobre o tema nos sites: http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/censo/escolar/ news99_7.htm e http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/censo/esco- lar/arquivo99.htm. Acesso em: 10 out. 2008. 8 ÉRNICA, Maurício. Vulnerabilidade social e qualidade de educação em São Miguel Paulista. São Paulo: Fundação Tide Setubal, 2008. 9 BRANT DE CARVALHO, Maria do Carmo. Discursos y prácticas de exclusión I: discriminación y violencia en las escuelas. São Paulo: Cenpec, 2008. Apresen- tado no: FORO INTERNACIONAL SOBRE INCLUSIÓN EDUCATIVA, ATENCIÓN A LA DIVERSIDAD Y NO DISCRIMINACIÓN, Ciudad de México, 7, 8 y 9 de octubre de 2008. 10 Setubal, Maria Alice; Garrafa, Thais. Educação de qualidade e superação da pobreza. Folha de S.Paulo, 24 jul. 2008. 11 CAMPOS, Maria Malta. A importância das relações humanas na escola. Cadernos Cenpec, 4, Educação na segunda etapa do ensino fundamental, São Paulo, 2007. 12 CENPEC. Educação integraL. Cadernos Cenpec, 2 , São Paulo, 2006. 13 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007. 14 UNICEF. Redes de aprendizagem. Brasília: 2007. 15 ESQUIROL, Josep M. O respeito ou o olhar atento – uma ética para a era da ciência e da tecnologia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. 16 SAFORCADA Enrique; CASTELLA, Jorge. Enfoques conceptuales y técnicos en Psicología Comunitaria. Buenos Aires: Paidós, 2008. 17 FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. O nosso olhar sobre o Lapenna. Documentário São Miguel no Ar, São Paulo, 2007. 18 FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Programa Ação Família, op. cit. 19 NEGRI, Antonio. Jó: a força do escravo. Rio de Janeiro: Record, 2007. Ver também: NEGRI, Antonio. La fabrica de porcelana. Buenos Aires: Paidós, 2008. 19 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 20 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 RELATO DE PRÁTICA Em busca de familiaridade Maria Cristina Zelmanovits Em que medida é possível entrelaçar o ser-fazer-saber das famílias com o ser-fazer-saber das escolas, para garan- tir o direito de aprender de nossos meninos e meninas? Essa foi a pergunta que norteou a escolha de conteú- dos e estratégias utilizados nos encontros1 com dez fa- mílias do Barreiro, região com população predominan- temente operária, no sul de Belo Horizonte, distante 18 km do centro. Apostando que a participação ativa e substantiva das famílias depende de um processo de animação e empo- deramento delas próprias e, igualmente, de uma vonta- de política das escolas, três instituições se reuniram – Secretaria Municipal de Educação, Fundação Itaú Social e Cenpec – em torno do trabalho ora apresentado. A opção por estudar com as famílias alguns conteú- dos mais densos baseou-se em três idéias-chave: • Toda pessoa pode avançar em sua aprendizagem, independentemente de seus pontos de partida, ou seja, da distância em que se encontram seus sabe- res e determinado objeto do conhecimento. • “As pessoas sabem o que querem, mas também que- rem o que não sabem.2 ” • A apropriação de determinados conteúdos e de as- pectos da cultura escolar permite às famílias entra- das mais qualificadas nas discussões. Três módulos organizaram o trabalho: 1. Os sentidos da aprendizagem – módulo em que fo- ram propostos, aos participantes, sobrevôos pelos sentidos do conhecimento, de forma mais geral, e visitações mais específicas à língua portuguesa, matemática e arte. 21 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 2. Os diferentes espaços de aprendizagem – módulo em que os participantes pesquisaram e discutiram a existência e o uso dos espaços da escola e da comu- nidade, no trabalho desenvolvido com os alunos. 3. Produção de textos3 – módulo em que os partici- pantes foram convidados a colocar em jogo o que já sabiam e o que aprenderam durante os encontros, a fim de construírem textos com sugestões para que escolas, famílias e comunidades passem a se unir na luta pela melhoria da aprendizagem dos alunos das escolas públicas. Apesar de a professora tentar ensinar diferente, às vezes ela não percebe que os alunos estão escrevendo com a linguagem da rua. Mesmo errado, eles conseguem passar o que querem passar: a gente entende. Trabalho em grupo A língua que caminha solta pelas ruas tem objetivo de informar, orientar; a língua ensinada na escola atende a outros objetivos tam- bém. Há diferenças entre as línguas: na escola há uma preocupação em falar corretamente e na rua não há esta preocupação. Trabalho em grupo Na loja de ervas os alunos podem aprender a ler os nomes das plantas, pesquisar seus nomes científicos, pesquisar a utilidade.... A escola poderia produzir um livro com receitas de ervas, como um Livro de A a Z. Trabalho em grupo 22 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 A escola e a família A responsabilidade de ensinar a criança a ler e a escrever é da escola. Esta é uma das funções da es- cola: a alfabetização de todos os alunos. Os pais po- dem ajudar cumprindo com a responsabilidade de ensinar os filhos a respeitarem os professores e os colegas, os horários de aula, as regras escolares, co- locando os filhos em contato com os livros, contan- do histórias para que assim eles se interessem mais em ler e escrever. Quanto à matemática, a escola precisa ensinar as contas, a tabuada, a resolução de problemas. Mas os pais também podem ajudar os filhos, por exemplo, através dos jogos, como baralho, vira-car- tas, porrinha4 etc., pois assim as crianças também aprendem a conhecer os números, a contar, somar, multiplicar, diminuir, dividir, respeitar as regras, respeitar o outro, ganhar e perder, que são coisas que fazem parte da vida. Nas aulas de arte, é preciso que a escola vá além do desenho e da pintura. Os alunos também preci- sam trabalhar com teatro (interpretação, construção de cenário e figurino, montagem da peça, memori- zação de falas), dança, música e outras formas de linguagem. A escola também precisa garantir visitas a espa- ços em que a arte está – museus, teatros, cinemas, nas ruas. Até na televisão tem arte e a escola precisa Percursos de aprendizagem Cada um dos módulos traduziu-se em muitos assun- tos. A seguir serão explicitados alguns dos percursos pe- los quais o grupo caminhou. No módulo 1, mais extenso de todos, as famílias puderam: • conhecer a história de uma instituição (escola) que, ao longo do tempo, tem se ocupado com a socializa- ção de conhecimentos, seus avanços e seus desafios atuais (vídeo “Toda criança na escola”, da série Con- vívio Escolar – TV Escola); discutir isso com seus alunos. Os pais podem ajudar levando seus filhos a feiras de artesanato, museus, teatros, exposições etc. Visitas a estes espaços po- dem fazer com que meninas e meninos se interessem em pintar, fazer teatro, danças e outros. Os espaços das escolas apresentam várias possi- bilidades de aprendizagem aos alunos. A árvore na escola não serve só para dar sombra, serve também para ajudar na sobrevivência de cada um de nós, porque a natureza é o oxigênio que nós respiramos. Estudar biologia nas tantas árvores que não dão fruto e nas que dão, ensinar os alunos a importância de cada espécie, o respeito à natureza é utilizar melhor os espaços. Muitos pais e mães, mesmo sem ter ido à escola, são grandes conhecedores das plantas e podem ajudar nas aulas de ciências. A entrada da família na escola pode passar para o professor a oportunidade de conhecer melhor a família do aluno e, sendo assim, os professores têm mais apoio e mais conhecimento sobre os alunos. Além da escola, cada aluno precisa ter o apoio da família para aprender. Estudar é um direito de todos. Espero que a garantia da freqüência e da aprendiza- gem na escola possa fazer com que os alunos sejam respeitados como cidadãos de direito. Eva Augusto Lima, mãe. • reconhecer a importância das aprendizagens que se dão fora dos muros da escola (histórias pessoais, lei- tura de fotografias e desenhos, leitura de crônicas); • discutir as relações entre escola e família (vídeo Pais: inimigos ou aliados, da série Convívio Escola – TV Escola); • descobrir as condições a serem garantidas para a formação de leitores e escritores dentro e fora da es- cola (análise de produções infantis, ida à biblioteca municipal, análise de vídeos de sala de aula, con- versa sobre trecho do documentário Língua – vidas em português, vídeo Como as crianças aprendem a gostar de ler, da série Livros e etc. – TV Escola, pes- quisa na comunidade); 23 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 • estabelecer relações entre os saberes matemáticos e a vida (vídeo Jogos e atividades para trabalhar as operações, da série PCN na escola – Matemática – TV Escola, ampliação do repertório de jogos, confecção de jogos); • estabelecer relações entre arte e cultura (análise de obras e de seus contextos, ida à exposição de arte, produção de desenho, pintura e colagem). No módulo 2, foi possível: • elaborar roteiro de observação das escolas e entre- vistas; • investigar o que os espaços das escolas contam so- bre as aprendizagens dos alunos, ou seja, como a es- cola comunica o trabalho que realiza (análise de ví- deos e realização de pesquisa e entrevista nas esco- las); • socializar e conhecer experiências de trabalho bem- sucedidas entre escolas e comunidades (relatos orais e análise de produções infanto-juvenis). No módulo 3, foi proposto: • planejar o que escrever ou o que ditar para ser escrito; • reforçar o sentido da autoria dos textos, pensando in- clusive em quem não domina a escrita convencional (análise de trecho inicial do filme Central do Brasil); • dividir tarefas; • produzir os textos e revisá-los. Estudos, leituras, análises de vídeos, pesquisas, análi- ses de produções infanto-juvenis, entrevistas, conversas, explorações, produções... Eis os alimentos oferecidos para que as famílias conhecessem as regras do jogo. Sem dominar essas regras, como jogar com as es- colas? Como conversar nas escolas sobre os resultados das aprendizagens dos filhos? Como dialogar, somar, criticar, propor? 24 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Uma leitura aprofundada dos textos produzidos pe- las famílias traz à tona muitas indicações de possibili- dades para seu envolvimento com a vida escolar dos fi- lhos e para o envolvimento das escolas com a vida fami- liar de seus alunos. • Em um de seus textos, Fátima de Oliveira sinaliza que o fortalecimento do ponto de vista psicossocial e cul- tural das famílias é fundamental quando queremos tornar os pobres mais competentes para acessar e usufruir bens, serviços e riquezas societárias. Paro e penso que é maravilhoso poder conhecer e falar com pes- soas que têm um grau de estudo maior e tratam a gente como ser humano e dão oportunidade da gente falar e aprender [...] Trecho do texto de Fátima de Oliveira Fui criada com muita dificuldade. Sou a mais velha de 12 irmãos. Tive muita dificuldade para estudar. A escola era muito longe de onde nós morávamos. Não tinha conforto nenhum, nem material direito para estudar. Os vestidos eram dois, de chita: um pra estudar e outro pra ir à missa nos domingos. Não tinha agasalho – quantas vezes eu passei a noite com os meus dois irmãos no colo, na beira do fogo para aquecer do frio. Eles choravam a noite toda de frio porque não tinha coberta e nem uma casa direito. Era casa barreada, cheia de buraco. Andava duas horas de estrada cheia de pedra (que diz cascalho). Mesmo assim, com todo esse sacrifício, eu estudei até a 4a série e depois fui trabalhar em casa de família pra ajudar meus pais. Quando eu estava estudando ajudava meu pai trabalhando na roça. Meu pai era muito rigoroso com a gente. Ele colocava a gente pra trabalhar na enxada. Nós não podíamos pegar nem no caderno pra fazer “para casa”. Nem fazer leitura. Só na escola a gente estudava. [...] Trecho do texto de Maria das Dores Linhares • Na entrevista em uma escola municipal, tendo como pano de fundo a relação professor-aluno, Maria Eli- zânja Martins propõe um exercício interessante: o confronto de diferentes pontos de vista com chances de aproximação. Os adolescentes em sua maioria falam gírias, são rebeldes, ousa- dos. Por que não trabalhar com as gírias, saber o significado delas? Usar positivamente a ousadia dos adolescentes em teatros, danças, jogos, desafiando a rebeldia na construção de algo proveitoso e com conteúdo? Trecho do texto de Maria Elizânja Martins • Maria José Carvalho revela a necessidade das conver- sas entre pais e escolas ser alimentada pela produ- ção cultural mais ampla. Se eu fosse professora, eu discutiria com as mães sobre o assunto do comportamento das crianças e dos adolescentes. Vendo as pa- lestras da Rede Minas – TV Cultura eu aprendi muito sobre isso. Trecho do texto de Maria José Carvalho • Maria Inez do Carmo complementa esta idéia falando que, quando familiares ampliam seus conhecimen- tos, conseguem contribuir mais para as aprendiza- gens de seus filhos. • Ao descrever as condições em que famílias pobres vi- vem, Maria das Dores Linhares mostra ser profunda- mente necessário produzir conhecimento mais denso sobre a trajetória dessas famílias e sua relação com serviços públicos. 25 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Mesmo sem saber ler, a mãe e o pai podem incentivar trazendo para casa revistinha, pedindo livro emprestado para parente e vizinho, levando o filho para a biblioteca pública. O importante é que o filho veja que eles dão valor ao estudo. Trecho do texto de Maria Inez do Carmo • Ao dizer que cidadãos de direito são feitos de oportu- nidades e aprendizagens, Eva Augusto explicita pos- sibilidades de complementaridade entre escola e fa- mília para a garantia da cidadania. A escola também precisa garantir visitas a espaços em que a arte está – museus, teatros, cinemas, nas ruas. Até na televisão tem arte e a escola precisa discutir isso com seus alunos. Os pais também podem ajudar levando seus filhos a feiras de artesanato, museus, teatros, exposições etc. Trecho do texto de Eva Augusto • Explorando as oportunidades de aprendizagem conti- das nos diferentes espaços da escola e da comunida- de, Maildes de Araújo e Sandra Pereira mostram que não basta a existência de espaços, é preciso discutir seus usos. O pátio é um espaço que está sendo usado apenas para as crianças correrem e às vezes brigarem. Penso que este espaço deveria ser aproveitado para as crianças aprenderem a brincar e a resolver brigas. Poderiam conhecer mais jogos, brinquedos e brincadeiras tradicionais (pé-de-lata, rouba-bandeira, pique-esconde etc.) e também praticar dança, apresentar teatros e músicas. Trecho do texto de Maildes de Araújo Parques ecológicos podem ser usados como lazer e ao mesmo tempo contato com a natureza e estudo do meio ambiente. Também temos na cidade várias bibliotecas públicas, teatros, museus... Trecho do texto de Sandra Pereira • Públio de Carvalho entende que, isoladas, escola e família podem muito pouco. Aliadas com um objeti- vo comum – a educação de crianças e adolescentes – e se somando aos demais serviços e projetos da comunidade, daí sim, podem alavancar ao máximo as possibilidades de aprendizagem do grupo infan- to-juvenil de determinado território. Escola e família são instituições separadas, mas ao mesmo tempo é uma educação conjunta, onde as duas têm que ser parceiras por um tempo da vida de cada um de nós. [...] Mesmo que a escola e família façam sua parte, ainda é preciso garantir condições e materiais para os alunos estudarem; reunir agentes de educação, saúde e assistência social para acompanhamento dos alunos pobres e suas famílias; financiar estudo universitário com menos burocracia. Trecho do texto de Públio de Carvalho • Mesmo reconhecendo avanços significativos, Lúcia Mognato observa que ainda há muito caminho pela frente. É preciso um diálogo feito de confiança mú- tua entre escola, família e comunidade, para não re- duzir a escola a um equipamento da rede de ensino. Esse diálogo exige esforço, comprometimento, olhar e cuidado de todos nós. A Escola Integrada foi criada com o objetivo de melhorar a apren- dizagem e a integração dos alunos com a cidade em que vivem, já que vários lugares públicos, como parques, praças, campos es- portivos, teatros, museus passam a funcionar como salas de aula. A idéia é boa, mas ainda não me sinto satisfeita, pois vejo vários ocos neste projeto: na prática nem sempre se consegue encontrar o apoio necessário daqueles que coordenam. Trecho do texto de Lúcia Mognato Tanto temos lido, ouvido, falado sobre educação atu- almente... O mapa que reúne fragilidades e consistências e que se desenha com idéias das mais intelectualizadas às mais intuídas parece ainda borrado. Outras vezes, o mapa dá a sensação de que faltam alguns pedaços. O sentido da publicação produzida pelas famílias é trazer sua voz para essa composição. Voz que pede vali- dações, discordâncias, complementações, debates. Pede movimento. Este movimento é o que vem sendo construído em Belo Horizonte. NOTAS 1 13 encontros de 3 horas e meia cada, contando ainda com a participação e a colaboração de professores comunitários e profissionais das secretariais da educação e da assistência social. 2 Frase dita pelo ministro Gilberto Gil durante o discurso de abertura do Prêmio Cultura Viva, realizado em Porto Alegre, em 2007. 3 A reunião dos textos produzidos pelas famílias encontra-se na publicação A voz das famílias e a escola: com a palavra, as famílias. São Paulo: Cenpec, Fundação Itaú Social; Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte; 2008 (em fase de publicação). 4 Também conhecido como “palitinho”, jogo em que se opera com estimativa. * Beatriz Penteado Lomonaco é psicóloga, mestre em Edu- cação pela FE-USP, doutora em Sciences de l’Education pela Université Paris VIII e pós-doutora pela FE-USP. Trabalha na Fundação Tide Setubal. E-mail: . Thais Christofe Garrafa é psicóloga e psicanalista. Trabalha no projeto Ação Família São Miguel Paulista, da Fundação Tide Setubal. E-mail: . Beatriz Penteado Lomonaco Thais Christofe Garrafa* artigo ma rodovia, dois córregos e uma linha de trem delimitam as bordas de uma comunidade da Zona Leste da cidade de São Paulo. Sem saneamento básico e rede de esgo- to, o improviso das mangueiras que compõem o enca- namento das casas explicita a relação paradoxal entre a criatividade e a vulnerabilidade social de seus morado- res. Cada um deles traz ao espaço público os fios singu- lares de sua história, para tecer possibilidades de con- vivência familiar e comunitária na trama desagregada de um território onde não há creche, escola de educação in- fantil – EMEI, Unidade Básica de Saúde – UBS e cober- tura do Programa de Saúde da Família – PSF. Territórios vulneráveis como esse são encontrados em diversas regiões do país. Um universo de questiona- mentos se abre no contato mais estreito com moradores dessas localidades. • Quem são essas pessoas? • O que pensam do mundo? • Sonham? • O que comemoram? • Sofrem? • O que as mobiliza? • Quais são suas potências e dificuldades? A complexidade da relação escola-família em territórios vulneráveis 27 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Essas e outras questões têm sido suscitadas pelo contato com famílias acompanhadas pelo projeto Ação Família – São Miguel Paulista, que integra as ações da Fundação Tide Setubal. Por meio do acompanhamento de 300 famílias em si- tuação de alta vulnerabilidade, o Ação Família tem o ob- jetivo de contribuir para a melhoria sustentável da quali- dade de vida e para o desenvolvimento de três comuni- dades atendidas. A atuação do projeto incide no fortale- cimento ou no redimensionamento da participação sin- gular de cada sujeito no grupo familiar e na potencializa- ção das ações de cada família na coletividade. O Ação Família ocupa-se, fundamentalmente, das relações estabelecidas com a rede de pessoas, grupos e instituições que compõem o território e funcionam – ou podem funcionar – como referências à população lo- cal. Identificar e intervir nessa rede é, portanto, um pon- to central do projeto, porque se entende que o uso e a apropriação dos espaços, serviços e equipamentos pú- blicos são necessários para que se consolide o exercício de direitos e deveres fundamentais ao desenvolvimento da comunidade e de seus indivíduos. Nesse contexto, a escola se tem destacado de modo inequívoco, como o equipamento público mais próximo da população, não apenas por sua obrigatoriedade, como também por sua importância e valor simbólico. No en- tanto, nos três núcleos em que o projeto se desenvolve, essa proximidade contrasta com a difícil integração dos universos escolar e familiar. Se pretendemos alterar essa complexa dinâmica, é fundamental compreender as características singulares do laço da família com a escola nos territórios de maior vulnerabilidade. Para avançar no estudo dos diferentes elementos que compõem esse quadro, um conjunto de ações investiga- tivas tem sido desenvolvido com foco na participação dos pais na vida escolar e no processo educacional dos filhos. Reuniões com professores, pais e, mais especifi- camente, entrevistas com mães têm sido os instrumen- tos utilizados para esse fim. Neste artigo, privilegiaremos o ponto de vista das famí- lias, analisando informações oriundas de oito entrevistas realizadas com mães participantes do projeto.1 Para tanto, analisaremos alguns temas abordados nas entrevistas, es- pecialmente a relação dessas mães com o território, a es- cola, a aprendizagem e o saber, tentando dar inteligibilida- de a esses dados. Com isso, pretende-se lançar algumas 28 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 luzes sobre essa difícil relação, na tentativa de identifi- car de que fios é constituído o laço da família com a es- cola em territórios de alta vulnerabilidade social. Ao amplificar e fazer reverberar as vozes das mães, procuraremos deslindar os sentidos que elas atribuem à escola, em termos de valores, de significados e de práti- cas, a partir da relação da família com o território – apre- sentada na oposição entre a escola e a rua – bem como de suas próprias experiências escolares e daquelas que têm como mães de alunos. O conceito de relação com o saber é central nessa análise, porque recobre o seu caráter social e o subje- tivo. Bernard Charlot, professor emérito em Ciências da Educação da Universidade Paris VIII e professor-visitan- te na Universidade Federal de Sergipe – UFS, tem traba- lhado esse conceito há vários anos. As pesquisas sobre o tema ultrapassaram as frontei- ras francesas e são hoje desenvolvidas em diversos pa- íses, inclusive no Brasil. A maior parte delas tem como foco principal a relação de alunos e professores com o saber, mas o conceito não se limita aos atores do cam- po escolar. Entende-se por relação com o saber [...] uma relação de sentido, portanto de valor, entre um indivíduo (ou um grupo) e os processos ou produtos do saber (Charlot, Bautier e Rochex, 1992), ou, ainda, em uma formulação mais recente: A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo de um sujeito confrontado à necessidade de saber (Charlot, 2005). Compreender o que a escola representa para essas mães, quais são as especificidades de aprender na es- cola ou em outros lugares, qual é o papel dessa institui- ção na comunidade em que vivem é tratar de sua rela- ção com o saber. Isso permite identificar algumas por- tas através das quais essas mães e seus filhos podem se inserir no universo escolar, sem deixar sua identida- de e sua história para trás. A trajetória escolar das mães e sua relação com o saber A educação é tanto transmissão de um patrimônio como autocriação singular. Ela é encontro de uma história coletiva e de uma história singular, tendo cada uma dessas uma escala temporal diferente. Charlot apud Dieb, 2008, p. 177. À primeira vista, a análise das entrevistas permite- nos observar uma série de similitudes nas trajetórias de vida dessas mães. De fato, elas existem e devem ser ex- ploradas. De certo modo, aquilo que aparece como cons- tante e homogêneo produz conforto ao pesquisador por possibilitar a elaboração de explicações plausíveis para suas inquietações. Entretanto, vidas são singulares e, como tal, produ- zem efeitos e sentidos heterogêneos. Logo, é importante analisar o objeto de estudo de diferentes perspectivas, sem evitar as tensões que delas emanam, a fim de dar conta de processos e relações dos sujeitos com a esco- la. Como afirma Velho (apud Zago, 2007, p. 20): [...] por mais que seja possível explicar sociologicamente as variáveis que se articulam e atuam sobre biografias específicas, há sempre algo irredutível, não devido necessariamente a uma essência indi- vidual, mas sim a uma combinação única de fatores psicológicos, sociais, históricos, impossível de ser repetida ipsis litteris. Os personagens desse enredo são nossos conhe- cidos, rostos comuns em quaisquer periferias urbanas. Quase todas são migrantes: Marta, Sônia, Jucilene, Jan- dira, Cláudia e Fátima vêm do Nordeste (RN, BA, CE, PI) e Edileusa, da região Sul (PR). Somente Denise nasceu e cresceu na capital paulista.2 São mulheres jovens, na casa dos 30, com exceção de Marta, que tem 58 anos. Em relação ao estado civil, seis são casadas, uma sepa- rada e uma viúva. Todas elas têm vários filhos: de três até seis crianças.3 29 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Em residências precárias e com espaço exíguo (em geral, sala, quarto, cozinha e banheiro), moram não me- nos de cinco pessoas. A renda familiar oscila entre R$ 350,00 e R$ 880,00 e provém do trabalho do compa- nheiro, de uma ajuda dos filhos ou de parentes e ain- da de projetos sociais aos quais os membros da famí- lia estão vinculados, já que nenhuma delas tem em- prego fixo. O histórico escolar das mães é emblemático, tradu- zindo as principais mazelas da educação no país, nos últimos 30 anos. Das oito mães entrevistadas, somente uma, a única nascida e criada na capital, teve um percur- so escolar regular e chegou até a 8a série, quando inter- rompeu os estudos por causa da gravidez. As demais têm histórias semelhantes: moravam na zona rural, freqüentavam escolas com classes multisse- riadas, têm percursos escolares intermitentes, como ain- da é o caso de muitos alunos, mesmo em regiões mais prósperas. Três delas pararam no ciclo inicial (1a e 2a sé- rie), outras três também interromperam os estudos no antigo curso primário, mas voltaram a estudar recente- mente no EJA: Fátima está na 7a série, Marta acaba de terminar o ensino médio e Jandira está no primeiro seg- mento do EJA. Cláudia nunca foi para a escola; é capaz de ler, mas não escreve. Os afastamentos e retornos à escola se dão em ra- zão da sobrevivência: mesmo em tenra idade, elas assu- miam as tarefas domésticas, o trabalho na roça e o es- tudo, o que, naturalmente, leva qualquer criança a uma grande fadiga. Quase todas se referem a situações de intensa pobreza, em que a alimentação era tão escassa que algumas delas trabalhavam em troca de comida. Poucos pais se incomodaram com esses afastamen- tos da escola, era preciso contar com mais braços e for- ça de trabalho – como diz Fátima: [...] na minha época, barriga era mais importante. Algumas delas demoram vários anos para fazer uma nova tentativa de estudar e, mesmo mais velhas, essas retomadas também não são lineares e podem ser inter- rompidas por diversas razões. Exceção de Marta, que re- toma os estudos na quarta série do EJA e prossegue sem interrupções até o momento da entrevista, quando está no final do ensino médio. Injustiça e angústia Quando crianças, a relação com a escola revela certa tensão em todos os casos. As repetências são comuns, por faltas ou dificuldades no estudo. A palmatória era costume, assim como castigos vexatórios que lembram relatos do século XIX ou do início do século XX, muito embora a escolarização dessas mulheres tenha ocorri- do na década de 1970, quando essas práticas não eram mais aceitas. Fátima, uma das entrevistadas mais atuante e curio- sa, interrompe definitivamente os estudos por volta dos 12 anos quando uma professora não acredita que seu bom resultado nas provas tenha sido mérito próprio, e sim fruto de “cola”, erro considerado “gravíssimo”. Mes- mo faltando muito, Fátima diz que conseguia acompa- nhar as aulas, mas a professora não lhe deu crédito. A indignação tomou conta dela: Eu entendia lá e respondi direitinho, e aí eu fiquei decepcionada assim, fiquei triste e daí já saí para trabalhar fora, eu acho que mais por isso, para mim acabou. Os sucessivos fracassos predominam em todas as histórias. Denise nunca passou da primeira série e re- vela seu grande embate com a resolução de problemas na matemática: [...] tinha problema de desmaio e era um problema. Quando chegava no problema, era problema mesmo [...] acho que não entrava na cabeça. Você ler, pôr o resultado, que os problemas você tem que ler para pôr o resultado e eu não conseguia ler, então não saía nada. Os afastamentos e retornos à escola se dão em razão da sobrevivência: mesmo em tenra idade, as crianças assumiam as tarefas domésticas, o trabalho na roça e o estudo, o que, naturalmente, leva qualquer criança a uma grande fadiga. 30 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Pode-se imaginar quão angustiante era ficar às voltas com uma tarefa enigmática e interminável, uma vez que sua saída era condicionada ao término da atividade. Cláudia e Marta não freqüentaram a escola quando crianças; aprenderam as primeiras letras com a mãe e com a madrinha de criação, respectivamente. No caso de Marta, há um interesse em aprender mais intenso que o de Cláudia. A infância de Marta no campo foi marcante: Eu não fui criada por pai e mãe, fui criada por outras mãos, então eu fui muito sofrida e eu queria aprender porque queria. Então eu estudava à noite. [...] A minha madrinha me ensinava, nessa época não tinha energia, eu estudava com lamparina, queimava meus cabelos. [...] Eu fui até o terceiro ano com ela. Em casa mesmo, eu não ia para o colégio, eu não podia ir porque, naquele tempo, eu trabalhava muito, a luta lá em casa era muito grande, era casa de vaqueiro, nesse tempo não era fazendeiro, lá eu lavava roupa, eu quebrava coco, eu fazia tanta coisa. De alguma forma, essa disposição para o estudo per- maneceu latente, permitindo a Marta entrar na escola em idade adulta. Nesse caso, assim como ocorreu com Fátima, Jandira, Edileusa eSônia, a despeito dospercursos entrecortados, a relação que tiveram com a escola na infância não im- pediu que tentassem retomar os estudos em algum mo- mento da vida. As três que estão estudando atualmente falam sobre isso com muita animação, revelando a im- portância desse investimento pessoal. Em outras situações, contudo, um percurso escolar acidentado pode ter sido um ingrediente para que uma retomada se inviabilizasse, mesmo quando condições concretas parecem mais favoráveis (proximidade da es- cola, filhos maiores, tempo livre em virtude do desempre- go etc.), como é o caso de Denise, Sônia, Cláudia e mes- mo o de Edileusa, que voltou a estudar este ano, mas su- cumbiu aos pedidos do marido para que parasse. Denise e Cláudia, que têm pouco estudo, apresentam um discurso ambíguo em relação à escola. Cláudia diz: A pessoa ser pobre, ser bem-educada, ter um estudozinho, está bom demais, né? Entretanto,Sônia,que tambémestudoupouco,temum nível de participação social notável(APM, Conselho Esco- lar, igreja, ONG) e revela uma relação com a escola dos fi- lhosbastante diversa dasduasprimeiras. Isso mostra que a baixa escolaridade das mães não é fator determinante para um desinvestimento nos estudos formais. Mas é nas entrevistas de Jandira, Fátima e Marta, que retomaram os estudos, que se observa um entusiasmo maior com as possibilidades da escola: lêem muito, in- centivam os filhos, participam. Além disso, são elas que ressaltam com mais força argumentativa que o estudo se- ria uma possibilidade eficaz de ascensão social. Quando Marta fala dos sonhos que tem para seus fi- lhos, o ensino superior desponta como uma possibili- dade gloriosa: Universidade para ser alguém, sinceramente... Deus que me perdoe, eu tenho uma inveja tão grande quando eu chego em um banco para fazer qualquer coisa, uma lotérica [...] que eu vejo aquelas pessoas vestindo assim uniforme, que está trabalhando ali, sabendo tudo ali, eu fico olhando e pensando: será que eu vou ter sorte de ver alguém meu fazendo isso? [...] O que eu digo é que eles têm que abrir os olhos para a vida, estudar bem e entender as coisas, porque se eles não fizerem isso não dá. [...] Se sair do estudo, se sair, filha, não tem roça, no interior vai pra roça, mas aqui o que tem é rua e a malandragem, só isso. Assim, parece que, quando elas próprias conseguem ultrapassar as dificuldades e frustrações oriundas des- se percurso escolar acidentado, quando percebem os ganhos efetivos do estudo, seja em termos de desen- volvimento pessoal, seja de perspectiva profissional, o valor da educação formal aumenta e deixa de ser ape- nas uma retórica. Jucilene, a única que chegou à oitava série sem in- terrupções, também apresenta um discurso mais consis- tente em relação à escola e se atém, inclusive, ao seu caráter formativo: [...] mas aí, conforme o tempo, eu fui lendo livros, entendendo o que era o mundo aqui fora, entendeu? Fiz bastante burrada na minha vida, superei todas elas. Um pouco do meu estudo que eu tive, hoje eu sei o suficiente. Sei meus direitos, os direitos dos outros, entendeu? Então Deus entrou sem sair. 31 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Concorrência vida e escola Se uma relação difícil ou entrecortada com a escola não impede um retorno a ela, estar na escola ou ter estado por um período mais longo permite que melhor compre- endam sua lógica. Entendemos por lógica o modo de operar da escola, suas regras, burocracias, relações e, sobretudo, as especificidades da apropriação dos co- nhecimentos escolares. Além disso, essas mães parecem transmitir algo mais do que possibilidade de progredir por meio da escola- ridade, elas transmitem certo encantamento pelo que aprenderam e pelos horizontes abertos pelo conheci- mento, elas comunicam aos filhos o desejo de saber, imprescindível a toda aprendizagem. Segundo Charlot (apud Dieb, 2008, p. 178): Na escola, só aprende quem desenvolve uma atividade intelectual. Não se pode aprender no lugar de ninguém, já que a educação implica um movimento de “dentro”.Não há mobilização intelectual sem desejo e este esmorece se nunca leva ao prazer da satisfação. Sempre uma atividade visa a um objetivo, um resultado, mas o que a sustenta, o que lhe dá sentido e confere sentido ao objetivo é o desejo e o prazer antecipado da satisfação deste. As narrativas parecem então mostrar que o senti- do da escola é adensado pelas experiências escolares das mães. Outro ponto que chama a atenção nas entrevistas é a diferença essencial entre o modo como os pais das entrevistadas lidavam com a escola e a maneira como elas, como mães, o fazem. Na geração anterior, são ra- ros os pais que fizeram restrições ao abandono escolar de suas filhas, sobretudo porque o contexto social e as condições de vida eram bastante diferentes. Quando a escola e a vida concorrem, como era o caso da vida na roça, é preciso escolher entre elas, proces- so ao qual Charlot (2001, p. 150) identifica como ruptu- ra sem continuidade. Já, como mães, as entrevistadas vêem o fracasso escolar de seus filhos (seja na forma de abandono, de desinteresse ou de repetência) com gran- de preocupação. Para elas, a escola é mais do que uma possibilidade de aprender, é a única saída para se “ter uma vida me- lhor”.O estudo, para todas elas, confere um lugar social, dá um nome e uma identidade. Essa identidade traz a história do sujeito (e de seus antepassados) e o lança para o futuro, como uma nova possibilidade de ser um igual (aos seus), mas também um novo. Essa diferença no modo de encarar a escola provoca também outro envolvimento com as transformações que toda aprendizagem implica – no próprio sujeito, que pas- sa a saber algo que desconhecia, e no meio, porque esse saber opera mudanças objetivas e subjetivas. As mães se confrontam, portanto, com um trabalho de reedição e transformação de suas próprias histórias. Assim, a escolaridade dos filhos tem uma representação singular para cada uma delas. Seria possibilidade de re- vanche, de superação ou de repetição da sua própria es- colaridade? Colocando de outra forma, o que significa os filhos as ultrapassarem? Estudando o sucesso e o fracasso escolar de jovens franceses, Jean-Yves Rochex afirma que: [...] assim, entre gerações, entre pais e filhos, está em jogo um fenômeno de tripla autorização que parece condição da apropria- ção das mobilizações e dos projetos parentais: se os jovens se autorizam, sem grandes dificuldades subjetivas, a serem outros que seus pais, sem reproduzir sua história, não é apenas porque são simbolicamente autorizados por estes, mas que, por sua vez, reconhecem a legitimidade dessa história e dessas práticas que não querem reproduzir. É o reconhecimento de cada um – filhos e pais – de que a história do outro é legítima sem ser a sua, que torna possível esse processo de tripla autorização e que permite à história familiar, por meio das crianças, de prosseguir sem se repetir, e isso sem atuações nem conflitos graves ou insuperáveis. (Rochex, 1995, p. 260). Nas entrevistas, observa-se que algumas, de fato, es- peram que seus filhos as superem, e a escola então re- presenta a possibilidade de ultrapassagem. 32 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Nunca passei para os meus filhos que eu tive problema na escola, porque eu quero que eles estudem, afirma Denise, para quem ocultar o passado é condição para manter viva a aposta na possibilidade de superação dos fracassos que marcaram sua trajetória. Ainda na direção da superação, a fala de Jucilene ex- plicita uma outra forma de processar essa transmissão transgeracional: [...] a única que não estudou da minha família foi a minha mãe, que era analfabeta, né? Mesmo assim, ninguém passava a perna nela na conta, né? De vez em quando, eu tentava lá rapar um pouquinho do dinheiro dela, mas lidar com a conta ela sabia, né? E ela veio aprender a escrever comigo. Eu ensinei a ela, né? Escrever o nome dela. Ela veio a aprender com 40 anos a escrever o nome dela. Por ter vivido essa diferença geracional de modo posi- tivo, Jucilene parece lançar a mesma possibilidade para seus filhos: que sejam diferentes dela sem que isso im- plique desvalorização da família e traição das expecta- tivas maternas. E você sabe que a mãe sempre deseja que o filho realize um sonho, né? E se ele conseguir realizar o sonho dele, melhor pra ele, bom pra mim também, né? Outras mulheres, porém, não vislumbram mais do que uma sobrevivência digna, ou seja, que os filhos te- nham um trabalho que lhes permita ter um teto e cons- tituir família. Diz Cláudia: Eu sonho de dar um futuro melhor para os meus filhos, né? [...] cada um ter seu lugarzinho para morar... Nesses casos, a escola parece ser uma possibilidade de se manter como se é, de modo que a representação de “um futuro melhor” reside na possibilidade de os fi- lhos conquistarem com menos esforço aquilo que as mães conquistaram a duras penas. Os sonhos podem surgir sorrateiramente, explicita- mente ou com titubeios, mas eles aparecem, revelando uma aposta em uma vida melhor, mais tranqüila, o que, na maior parte dos casos, é recheada do simples, até do mínimo de dignidade da condição humana. E o sentido da escola também está lá, tramado com as linhas do passado e do futuro e ainda com as de fora (da rua, da vida) e as de dentro (da escola, da família). E essa trama que tece fios múltiplos e articulados se atu- aliza no cotidiano escolar que robustece (ou enfraquece) o tecido de sentidos construído por alunos e pais. Lições, regras, reuniões – a escola vista pelas mães. Tanto as entrevistadas quanto os outros pais que participam de reuniões socioeducativas do projeto Ação Família expressam desejos, condições e expectativas em relação à escola dos filhos. Muitas vezes, não somente pais, como também adolescentes apontam um parado- xo de difícil resolução: a escola não é boa (nesse senti- do, denunciam a falência do sistema público de ensino), mas ela salva (o que revela também uma supervaloriza- ção dos estudos formais). E por que a escola não é boa? Professores faltam, não têm respeito pelas crianças (há relatos de violência físi- ca e psicológica), são autoritários, a comida é ruim, falta segurança e todo tipo de material (em uma delas pede- se para levar papel higiênico). A escola, tal como se encontra em muitos locais da periferia, é o símbolo vivo da degradação da educação e do descaso com a população, o que confirma, escancara e facilita a reprodução da precariedade em suas vidas. Apesar disso, uma boa escola é, ao contrário, limpa, organizada, os profissionais são atenciosos e as crianças aprendem. Algumas mães citam a necessidade de biblio- teca. Também são mencionados como pontos positivos, a oferta de calçado e de uniforme, as provas (que permi- tem que o aluno estude) e os espaços alternativos para o lazer, como salas de leitura e de vídeo, campo de futebol, passeios, festa junina e atividades aos sábados. É importante ressaltar que a percepção das mães sobre as escolas da região coincide com os resultados A escola, tal como se encontra em muitos locais da periferia, é o símbolo vivo da degradação da educação e do descaso com a população, o que confirma, escancara e facilita a reprodução da precariedade em suas vidas. 33 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 observados no Índice de Desenvolvimento da Educa- ção Básica – Ideb,4 ou seja, as escolas mais valoriza- das são de fato as que apresentam melhores resulta- dos neste índice. E o que essas mães valorizam nas condutas e práti- cas escolares? Alguns pontos são reincidentes, nas con- versas, como práticas e atitudes consideradas impres- cindíveis para uma aprendizagem adequada. Esperam, por exemplo, que as professoras sejam atenciosas, respeitosas e, sobretudo, rígidas. Sabem, pelo que vêem e pelo relato de seus filhos, que muitas escolas vivem um caos: crianças se batem, ofendem-se, roubam, agridem professores, não cumprem as respon- sabilidades, desrespeitam e são desrespeitados. Há diversas queixas de agressão física e verbal dos adultos, de castigos (como colocar na criança um cha- peuzinho escrito “boboca”) e de atitudes preconceitu- osas dos professores (com crianças com necessidades especiais, com negros, com os que têm menos e “usam sempre as mesmas roupas”, entre outros). As mães têm consciência de que as crianças são di- fíceis e é preciso ser firme, o que não implica agressões, humilhações e castigos. Pode-se enxergar aqui um pedi- do de limite, de enquadramento, porque compreendem que algumas condições são necessárias para aprender – ordem, harmonia e respeito, por exemplo. Mas pode- se ainda compreender nesse discurso que diretores ou professores rígidos encarnam a ordem, não apenas aque- la disciplinar, como também a ordem simbólica que res- taura a lei, o poder da escola como instituição do saber, que guarda e legitima a cultura, os saberes dos antepas- sados e permite transformar trajetórias no futuro. Entre as práticas reiteradamente mencionadas, as li- ções de casa e as reuniões aparecem com freqüência. A lição é importante, primeiro porque ocupa as crianças e também porque dá lugar a certa solidariedade familiar valorizada: uns ensinam os outros. Todas as mães acham que devem acompanhar as li- ções de casa e criam estratégias para fazê-lo, mesmo as analfabetas, como conferir a data no caderno ou ver o quanto ele está preenchido. As lições parecem ser entendidas como um atesta- do de competência do professor, talvez porque permita a elas, dentro de casa, ver que a escola se mostra con- sonante com as suas principais expectativas: empenho em ensinar e dar oportunidade para que a criança faça outra coisa que não ficar na rua. Quanto às reuniões, as mães esperam que ocorram e que os professores falem de seus filhos, mas ressal- tam a necessidade da intimidade: não é para falar dos filhos em público. Todavia, não é apenas o desenvolvi- mento da criança que as interessa: Deveriam fazer reuniões para saber o que os pais acham da escola. Jucilene Se houvesse mais reunião, mudaria alguma coisa. Fátima Os pais deveriam organizar reuniões sem os professores para tentar melhorar a escola. Sônia Algumas acham que as reuniões são repetitivas, fala- se sempre a mesma coisa. Várias culpam outros pais por não participarem ou não se interessarem pela escola e muitas delas confessam que também não comparecem todas as vezes. 34 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Em muitas entrevistas, observa-se uma valorização do esforço da própria criança: é ela que precisa prestar atenção, escutar o professor, fazer a lição, esforçar-se. O voluntarismo atribuído à criança parece mostrar que o principal está nas mãos dela e não expressa com clareza o papel decisivo do professor na aprendizagem. Daí a grande frustração que sobrevêm quando a crian- ça passa por dificuldades: o próprio filho parece não ter condições de aprender, tal como ocorreu (ao menos em parte) com seus pais. A repetição de uma trajetória fra- cassada se anuncia e atualiza o sofrimento que a acom- panha. Afora o aprendizado da leitura e da escrita, mais evi- dente em termos de resultado, as mães não sabem pre- cisar exatamente o que seus filhos aprendem, mas isso não impede que saibam avaliar alguns aspectos do tra- balho do professor. Os exemplos são inúmeros e variados. As professora fala muito, né? Só. E deixa muito as crianças brincar à vontade. Não deveria ser assim, né? Cláudia O Luiz melhorou quando colocou umas menina pra ajudar na sala. Eu acho que as outras escola também precisaria ter esse tipo de apoio, sabe? Com uma professora só, eu não sou contra elas, só acho que elas deve treinar muito, entendeu? Sônia Além de ensinar, as mães pedem que os professores respeitem seus filhos, como diz Jucilene: O importante é eles estar aprendendo, dar o respeito e ser res- peitado. O que podemos perceber nessas pinceladas sobre o funcionamento da escola corrobora algumas reflexões an- teriormente formuladas. Independente do grau de esco- larização, as mães sabem o que esperar do ensino dado aos filhos: utilizam os recursos disponíveis para avaliar o que observam e dão muita importância aos professo- res, procedimentos, práticas, comportamentos, conhe- cimentos e valores transmitidos pela escola. As mães com maior experiência escolar parecem, no entanto, mais aptas a intervir na aprendizagem de seus filhos e eventualmente até a se engajar na promoção da melhoria da escola, mas essas experiências não são condições necessárias para um bom desempenho esco- lar das crianças. Observamos ainda que o cotidiano escolar tem o po- tencial de transformar a trama de sentidos que a família atribui a escola e, paralelamente, pode fazer com que o sentido da escola se fortaleça (ou se enfraqueça) à me- dida que essas práticas ampliam significados para pais e alunos. A seguir, ultrapassando o universo das trajetórias e práticas escolares, avançaremos na discussão sobre o sentido que as famílias atribuem à escola, com base na análise de alguns aspectos do território onde vivem. Nosso samba ainda é na rua Nos territórios mais vulneráveis, a frequente associa- ção da escola com um lugar que permite que as crian- ças não fiquem nas ruas é compreendida, pela maioria dos educadores, como uma desvalorização do ato de educar, porque minimizaria a importância do que consi- deram a função primordial da escola, qual seja, a trans- missão de conhecimentos. Essa percepção impede, porém, a reflexão sobre a re- lação da escola com o território e a construção de uma posição crítica e singular da instituição a respeito de sua permeabilidade e abertura para a comunidade e para as demandas apresentadas no discurso familiar. Veremos adiante como a análise dessa relação redi- mensiona a importância da alusão que as famílias mais vulneráveis fazem à escola, na demarcação de um espa- ço de resistência à violência urbana e na sustentação das potencialidades dos pais na educação de seus filhos. O desamparo infantil diante do risco de acidentes na rua e da violência praticada pelos mais velhos faz parte das preocupações maternas. Jandira esclarece: A gente fica muito preocupado, porque as crianças na rua, essas coisas, é perigoso também, passa uns caras de moto aí, passa na maior velocidade, a gente fica preocupado. As mães com maior experiência escolar parecem, no entanto, mais aptas a intervir na aprendizagem de seus filhos e eventualmente até a se engajar na promoção da melhoria da escola. 35 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 É no discurso de Jucilene, porém, que o contraste en- tre a delicadeza das defesas da criança e a violência no território adquire intensidade e nos aproxima dos temo- res dessas mulheres: A violência aí fora... é tanto que eu não sabia, estupraram uma menina de três anos aqui atrás [...] Então, o meu maior medo é esse daí [...] É tanto que os próprios cara abafou o caso, né? Pra comunidade não ficar sabendo. Eles falou que isso prejudica nós que somos mãe. A impossibilidade de metabolizar esse excesso vio- lento que atravessa as ruas é reconhecida pela sabedoria comunitária. A vizinhança que “abafa o caso” para pre- servar as mães revela sua inquietude diante da dificul- dade de educar quando a vida familiar é inundada pela preocupação com problemas alarmantes, que estão fora de seu campo de intervenção. No entanto, apesar dos esforços na construção de filtros e anteparos, os sons da violência na rua se fazem ouvir e deixam restos aos quais se ligam os maiores pe- sadelos dessas mulheres: Ah, a gente sonha, né? Tantos sonhos vêm ruim que depois a gente fica com medo [...] Sempre tem um matando o meu filho, eu tava vendo tanta barra que o homem saía atirando nele e eu não, não, né? Eu não sei se é porque outro dia teve uns tiros aqui na rua, eu comecei a gritar, sonhei umas três vezes a mesma coisa. Cláudia A ameaça de perder o filho penetra a vida familiar e o universo onírico de Cláudia, refletindo a intensidade com que o maior índice de vulnerabilidade juvenil da cidade se apresenta no cotidiano dos moradores do bairro.5 De modo semelhante, o homicídio, segunda maior causa de mortes na região,6 produz impactos no cotidia- no da família de Jucilene, que perdeu seu filho mais ve- lho em situação de conflito no tráfico: Porque quem já perdeu um filho, tem medo de perder outro. Então, o meu maior medo é esse [...] Entendeu? Então, igual eu, eu moro aqui, dez anos e pouco, né? Por isso eu já conheço a região como é que é. Então, o meu maior medo é esse daí, as drogas, violência. A estreita relação entre drogas e violência é recor- rente e porta um campo de possibilidades e convoca- tórias em relação ao qual cada criança ou jovem terá de se posicionar. Os relatos das mães explicitam a di- ficuldade da família em resistir ao que então se apre- senta como uma “tentação” que vem da rua, um “sa- ber indesejado”. Fora da escola não aprende é nada, sabe por quê? Aprende é o que não presta. É o que tem aí oferecendo aí toda hora nas portas. Marta Na família de Edileusa, é seu filho mais velho,Douglas – jovem de 16 anos que deixou a escola aos 13 e partici- pa do tráfico – quem faz uma firme oposição à presença da irmã mais nova na rua: [...] o irmão dela não quer ela na rua, se ele pegar ela na rua, ele briga com ela, dá bronca nela. Douglas conhece de modo particular a potência do complexo drogas-violência-tráfico e seus apelos nas re- lações comunitárias: oportunidades financeiras e uma posição no grupo delimitada de forma rígida e clara por meio de normas e signos próprios.7 Nesse contexto, a escola é convocada para, na aliança com a família, constituir um corpo capaz de fazer frente à intensidade com que os componentes da violência no território se apresentam às crianças e jovens: [...] que lá dentro eles estão aprendendo a estudar, a ler e aqui fora não, aqui fora a situação é mais difícil para orientar porque a vida aqui fora é mais difícil do que eles estarem dentro da escola. Denise O laço com a escola como resistência às facetas da violência no território amplia a questão para além da delimitação física do espaço institucional. Não se tra- ta de criar barreiras concretas – muros – ao território, e sim de possibilitar a construção de um lugar para o su- jeito dentro de outra lógica, da qual faz parte aprender a estudar, a ler e a transitar pelas leis que organizam a vida social. Além de oferecer um lugar para o sujeito nessa lógi- ca, a importância do laço da família com a escola anco- ra-se na possibilidade de sustentar as potencialidades dos pais na educação de seus filhos. Essa sustentação opera à medida que os pais persistem na tarefa de ensi- nar a criança a discriminar as situações de risco do coti- diano e de transmitir valores que lhes são caros. 36 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 A aliança com a escola nessa tarefa revela-se, assim, fundamental para que os pais não retrocedam, para que não desistam diante dos apelos que atravessam insis- tentemente essa transmissão delicada. É Fátima quem esclarece como isso se processa em relação a seu filho: Para ele, na verdade, assim, eu acho que ele tem uma consciên- cia que na escola... assim quando a professora fala “olhe, isso é errado” e ele vê na rua fazendo, ele sabe que é errado fazer. Quando tem essa consciência, assim, que aprende alguma coisa na escola, que a tia explica para ele ou fala, faz algum comentá- rio, alguém fala, aí tem que explicar para ele o porquê daquilo e ele chegar para mim e perguntar: “Mãe, o que você acha assim? Eu ouvi fulano fazer isso ou falar isso”. Ele vem saber, eu acho interessante a gente explicar e ele pensar para saber se é bom ou ruim, mas ele vai saber. As potencialidades da vida comunitária também es- tão presentes nas falas das entrevistadas. Se o ruído das ruas ecoa nos pesadelos maternos, suas melodias tam- bém abrem possibilidades de sonho: É. O sonho do João é ser bombeiro [...] na rua em que a gente mo- rava aqui o caminhão de bombeiro passava, ele ficava assim, os cara passava, tinha um que tinha... era de lei, ele passava, puxava, né? Ele já fazia isso a propósito, o cara já acenava pra ele. [...] O do Tales é ser jogador [...] Jogava com os amigos na rua porque a atividade deles era mais na rua, né? Jucilene Os sonhos de João e Tales, filhos de Jucilene, explici- tam a importância da rua como lugar dos encontros que marcam a singularidade da criança. Espaço plural, a rua oferece campos de relação em que a criança se constitui – seja através de um jogo estruturado seja do chamado ao olhar do “outro”, ao qual o sujeito se enlaça a partir de um aceno-resposta. Talvez por isso, Jucilene, apesar de seus temores, dê espaço à vontade de seus filhos: [...] eles vêm pra casa: “Mãe, já cheguei”. E rua, entendeu? [...] É o que eles quer, né? O que Jandira fala reforça a vitalidade desses encon- tros e brincadeiras: Osfilhosdasvizinhas,né? Eles chamam as criançasparabrincar,tem bastante criança aqui na rua.(...) Eles vão brincar, jogar videogame, brincar aí na rua, né? Há que se considerar, enfim, a multiplicidade de ele- mentos envolvidos na relação da família com o espaço comunitário para iluminar a importância dessa relação no laço da família com a escola. Como vimos, para as mães, “a rua” carrega uma sé- rie de significados paradoxais. É símbolo da exteriorida- de, não apenas da escola, como também da família; é a “vida lá fora”, onde se pode aprender, participar e se integrar à comunidade. É ainda um grande quintal para as crianças que vivem em espaços exíguos; ponto de en- contro para brincadeiras; uma das poucas possibilida- des de interação social. Mas a rua também corporifica o mal, as vilezas huma- nas, a sedução perigosa de um mundo do qual é preci- so aprender a se afastar. Em todos esses casos, porém, a rua é um lugar de investimentos afetivos importantes na vida familiar. 37 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 A reflexão sobre os diferentes significados da rua, sobre o impacto da violência na constituição do laço com a escola, convoca-o a se abrir ao entorno, discri- minar as potências locais e desenvolver uma postura crítica e singular em relação à sua permeabilidade ao território. A pertinência dessas questões para o campo da edu- cação torna-se evidente nas palavras de Fátima: Mas o que acontece na rua também é importante [...] hoje em dia aprende com tudo todos os dias, eu aprendo todo dia, a minha filha me ensina coisas assim, então é importante, você sempre aprende em todos lugares que você vai. De trás para frente, de dentro para fora e vice-versa. Como vimos, o caleidoscópio que enlaça família e escola produz combinações múltiplas a partir das tra- jetórias escolares de mães e filhos, da ressonância das práticas escolares na vida familiar e dos sons que ema- nam das ruas. Nos arranjos entre esses elementos, as expectativas dirigidas à escola atestam sua importân- cia nesses territórios. A escola é ponto de ancoragem do que é vivido na comunidade, ao mesmo tempo que abre portas diante da perspectiva de “um futuro melhor”, reorganizando a relação entre passado e presente. Cada modo de inter- pretar a escola (com base nas experiências com ela ou nela) inaugura uma rede de significados que é capaz de alterar sobremaneira o modo como os alunos estão e aprendem na escola. Ela tem saberes e modos de aprender que são parti- culares e valorizados pelas mães. O mundo lá fora tem outros, não menos importantes. Nesse contexto, as famí- lias convocam a escola a abrir passagem para que o sam- ba possa se fazer ouvir lá dentro e reivindicam o cumpri- mento de sua função educativa – assim como os profes- sores, como sabemos, pedem o mesmo das famílias. Se professores e pais têm anseios semelhantes, há possibilidade de diálogo. As tensões características da relação família-escola nos territórios de alta vulnerabi- lidade revelam a potência do “lado de fora”, exigindo a criação de novas respostas e modos de interagir. Aqui foram esboçadas algumas possibilidades. Ora, quem mais pode abrir aos jovens as janelas do espaço e do tempo, quem lhes fará descobrir que um outro mundo é possível senão a escola? Charlot, 2005, p. 137. REFERÊNCIAS CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação de professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005. ______. BAUTIER, Elisabeth; ROCHEX, Jean-Yves. École et savoir dans le banlieue... et ailleurs. 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NOTAS 1 Pelo fato de serem aquelas que têm tempo e disponibilidade para participar tanto das ações do projeto quanto do cotidiano escolar dos filhos. 2 Os nomes foram trocados a fim de proteger sua identidade. 3 Fátima, Jandira e Edileusa têm três filhos, Marta tem quatro, Sônia tem cinco, Jucilene, Cláudia e Denise têm seis. 4 O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi criado pelo Inep em 2007 e representa a iniciativa pioneira de reunir num só indicador dois conceitos igualmente importantes para a qualidade da educação: fluxo escolar e médias de desempenho nas avaliações. Ele agrega, ao enfoque pedagógico dos resultados das avaliações em larga escala do Inep, a pos- sibilidade de resultados sintéticos, facilmente assimiláveis, e que permitem traçar metas de qualidade educacional para os sistemas. O indicador é calculado com base nos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e nas médias de desempenho nas avaliações do Inep, o Saeb – para as unidades da Federação e para o país – e a Prova Brasil – para os municípios. Disponível em: . 5 Segundo dados da Fundação Seade, o Jd. Helena está entre os 19 distritos que compõem o grupo de maior vulnerabilidade juvenil no município de São Paulo.Disponível em:. Acesso em: 2007. 6 Os dados são da Fundação Seade. 7 A síntese aqui apresentada a respeito de Douglas refere-se ao acompanha- mento do jovem ao longo de quase dois anosno projetoAção Família.Douglas procura com freqüência a equipe para falar de suas inquietações em relação à vida familiar e à sua participação em situações de violência. Neste texto, julgamos relevante complementar com essas informações a fala de sua mãe na entrevista quanto à impossibilidade de a filha brincar na rua. 38 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 39 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 * Adriano Vieira é mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e pesquisador do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, área de Educação e Sistemas de Ensino. Ana Luiza Mendes Borges é bacharel em Ciências Sociais e licen- ciada em Educação pela Universidade de São Paulo. Atua no terceiro setor como pesquisadora e atualmente é assessora da diretoria executiva do Museu do Futebol. Fernanda Andrade Santos é bacharel em CiênciasSociais pela Pon- tifícia Universidade Católica de São Paulo e assistente de pesquisa do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, área de Educação e Sistemas de Ensino. O homem pensa o mundo a partir do lugar onde vive. Milton Santos Quando se pensa na família dentro da escola, o que mais comumente nos vem à mente é a imagem de um grupo de pais sentados nas carteiras da escola, como se fossem alunos, ouvindo o diretor, o professor ou o co- ordenador pedagógico. O assunto normalmente se res- tringe ao desempenho do filho ou filha, seu comporta- mento em geral. Essa imagem é mobilizada em nosso imaginário não por acaso: deparamo-nos constantemente com uma vi- são negativa e enfraquecida da relação entre a escola e a família, veiculada nos mais diversos meios escritos, dentro ou fora dos espaços de discussão sobre a políti- ca educacional. A pauta da busca da qualidade da educação tem ocupado espaço no cenário social, nas discussões polí- ticas, na mídia e nos movimentos sociais. Já há consen- so em afirmar que a participação da família e da comu- nidade na educação formal das crianças e dos adoles- centes tem sido fundamental para a construção de uma educação pública de qualidade. Muitos estudos têm re- fletido a esse respeito. RELATO DE PRÁTICA Conselhos escolares: vários caminhos, o mesmo desafio. Adriano Vieira Ana Luiza Mendes Borges Fernanda Andrade Santos* 40 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Com o intuito de diminuir a distância entre o vivido e o escrito, procuramos ouvir diretamente o que pensam os envolvidos nesta discussão, sem pretensão de desen- volver uma pesquisa formal, mas aquecidos pelo calor e emoção da presença ativa desses atores. Reunimos diretores, professores, mães e alunos de duas escolas da rede pública de ensino (Escola Estadual Prof. Jácomo Stávale1 e Escola Municipal Desembargador Amorim Lima2 ), localizadas no município de São Paulo, para uma conversa sobre a participação da família na vida da escola,tendo como foco principal osConselhos Escola- res. As escolas foram escolhidas por terem uma boa clas- sificação no Ideb – Índice de Desenvolvimento da Educa- ção Básica3 e por serem reconhecidas como escolas com forte participação dos pais na dinâmica escolar. Mães, professores representantes do Conselho de Es- cola ou da APM (Associação de Pais e Mestres), alunos e diretores se encontraram no CENPEC – Centro de Estu- dos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comuni- tária e, orientados por pesquisadores da casa, foram es- timulados a conversar sobre o tema: “A participação da família na escola”. A conversa entabulada seguiu um rumo próprio, sen- do aberta a questionamentos não previstos e a consi- deráveis embates quanto às práticas de gestão e ad- ministração escolares referentes a cada uma das equi- pes ali presentes. Pelo caráter “informal” da ocasião, criou-se uma atmosfera favorável a depoimentos reve- ladores do cotidiano das relações estabelecidas entre escola e comunidade Além disso, foi possível confrontar visões sobre a re- lação entre escola e comunidade que ora distanciavam- se, ora aproximavam-se, compondo um movimento in- teressante para pensar sobre a escola pública e a parti- cipação nos Conselhos Escolares hoje. Conselho Escolar como porta de entrada da família na escola Embora possa haver questionamentos sobre o funciona- mento e os modelos de espaços criados para participa- ção e representação da sociedade civil no Brasil a par- tir da Constituição de 1988, torna-se inegável a impor- tância que muitos deles adquiriram ao garantir a pre- sença ativa de diversos atores que antes se viam alija- dos das discussões políticas. Na política de educação, os Conselhos Escolares surgem como um grande avan- Mesmo que os Conselhos sejam garantidos, é preciso ter em mente que a sua importância está fortemente atrelada ao envolvimento e à valorização que cada comunidade escolar lhe confere. ço rumo à democratização das relações sociais, quan- do introduzem a vivência da democracia no espaço ins- titucionalizado escolhido pela sociedade contemporâ- nea para promover a socialização mais ampla dos indi- víduos,4 a escola. De acordo com o MEC, Os conselhos escolares são órgãos colegiados compostos por representantes das comunidades escolar e local, que têm como atribuição deliberar sobre questões político-pedagógicas, admi- nistrativas, financeiras, no âmbito da escola. Cabe aos Conselhos, também, analisar as ações a empreender e os meios a utilizar para o cumprimento das finalidades da escola. Eles representam as comunidades escolar e local, atuando em conjunto e definindo caminhos para tomar as deliberações que são de sua responsabi- lidade (MEC, 2004, p. 32-33). É importante enfatizar que, embora os Conselhos Escolares estejam amparados na Constituição Federal,5 na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB Educa- ção, 1996)6 e no Plano Nacional de Educação,7 suas for- mas de organização, composição e funcionamento po- dem ser extremamente variadas, visto que espaços as- sim foram pensados procurando respeitar a especifici- dade que adquirem em cada contexto social. Nesse sen- tido, mesmo que os Conselhos sejam garantidos, é pre- ciso ter em mente que a sua importância está fortemen- te atrelada ao envolvimento e à valorização que cada co- munidade escolar lhe confere. Em tese, a participação dos pais na escola, median- te o Conselho Escolar, deveria promover o seu fortaleci- mento institucional, conferindo maiorlegitimidade a este espaço por meio da atuação dos pais – atores externos ao ambiente escolar – e, com isso, ajudando a garantir a qualidade do ensino oferecido e, portanto, a perma- nência da escola como instituição social sólida dentro do bairro. Sobre isso, Marques diz: 41 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 [...] através do Conselho, a escola também cumpre uma de suas incumbências determinadas pela LDB, no artigo 12, item VI, que é a de “articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola”. Via democratização, a escola assumiria o seu caráter público, no sentido da oferta de uma educação de qualidade que atenda aos interesses da maioria da população brasileira (Marques, 2007, p. 10). O Conselho Escolar, então, pode ser entendido e uti- lizado pelas escolas como espaço de formação para a ci- dadania e democracia. Porém, sua flexibilidade permite que seja também um lugar de tomada de decisões admi- nistrativas e disciplinares, configurando-se como um es- paço organizativo e informativo da vida escolar. Nessa ul- tima “feição”, o Conselho Escolar se aproxima bastante da proposta da Associação de Pais e Mestres – APM, ór- gão que geralmente controla a distribuição dos recursos e verbas que chegam à escola e que, algumas vezes, está hibridamente incorporado ao próprio Conselho Escolar, com os mesmos participantes em um ou outro. Consultando a bibliografia sobre o assunto, algumas definições de Conselhos Escolares podem ser apontadas como tentativa de adensamento da discussão aqui colo- cada, como esta de Luck e Parente: O conselho escolar [...] desempenha funções normativas, deli- berativas e de fiscalização das ações globais da escola (Luck e Parente, 2000, p. 157). Ou ainda, conforme Marques salienta: Estes são uma instância de decisão colegiada com a função de gerir a escola democraticamente, representando os diferentes segmentos da comunidade escolar, com papel ativo na construção de seu projeto político-pedagógico, em sua implantação, acompa- nhamento e avaliação sistemática (Marques, 2005, p. 580). Conselho Escolar Associação de Pais e Mestres – APM • Espaço de participação e deliberação da comunidade es- colar (alunos, pais, professores, funcionários e direção); • Possui caráter fiscalizador e consultivo. • É uma exigência legal estabelecida a partir da Constituição de 1988 e reforçada com a LDB 1996. • Não administra recursos financeiros. • Tem autoridade para dispor a respeito do projeto político- pedagógico adotado pela escola. • Não é uma entidade de existência obrigatória nas escolas, porém, por receber parte das verbas governamentais, está garantida na maioria delas. • Composto também por membros da comunidade escolar, mas com número mínimo de indivíduos nos cargos oficiais; • Não tem caráter deliberativo. • Recebe repasse de recursos do FDE (Fundo para o Desen- volvimento da Educação). 42 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Por dentro das escolas ESCOLA ESTADUAL PROF. JÁCOMO STÁVALE ESCOLA MUNICIPAL DES. AMORIM LIMA Número de alunos: aproximadamente 2300. Turnos oferecidos: matutino, vespertino e noturno. Região em que está localizada: zona Norte. Órgãos de representação que têm destaque: Conselho Escolar, Associação de Pais e Mestres e Grêmio Estudantil. Temas mais discutidos nos Conselhos: indisciplina dos alunos. IDEB : 4,7 (anos finais). Um pouco da história da escola: a Escola Estadual Jácomo Stávale tem uma tradição de ao menos 50 anos na região em que se localiza e é reconhecida como uma escola de qualidade. Com um corpo docente estável e uma relação de afinidade com a comunidade do bairro, chama atenção o fato de muitos de seus professores terem sido, um dia, seus alunos. Seu forte, de acordo com a comunida- de escolar ouvida, é o bom preparo dado aos alunos para o ingresso em instituições de ensino superior. A escola também se destaca na rede estadual pela boa qualidade do ensino de Educação Física, que é motivo de orgulho para os moradores do bairro da Freguesia do Ó. Número de alunos: aproximadamente 800. Turnos oferecidos: matutino e vespertino. Região em que está localizada: zona Oeste. Órgãos de representação que têm destaque: Conselho Escolar, Conselho Pedagógico e Assem- bléia de Pais. Temas mais discutidos nos Conselhos: indisciplina dos alunos e falta de professores. IDEB: 4,6 (anos finais). Um pouco da história da escola: a Escola Municipal Desembargador Amorim Lima vem se constituindo, no município e no bairro do Butantã, como uma es- cola que apresenta um projeto inovador, inspirado na Escola da Ponte, de Portugal. Entre os elementos que a diferenciam, está a derrubada das paredes das salas de aula, com o intuito de integrar o ensino dasdiferentesdisciplinas e incentivar a convivência entre alunosdas maisdiferentes faixas etárias. Com um forte enfoque na cultura popular brasileira, prima pelo desenvolvimento da autonomia e do espírito cidadão e democrático de seus alunos. Ao contrário da escola estadual, seu projeto pedagógi- co é mais recente, com cerca de cinco anos. Contudo, ainda há questões a serem respondidas para compreendermos melhor estes espaços sociais. • O que mais os conselhos trouxeram? • Como eles têm funcionado na prática ao longo des- ses 20 anos? • Qual é a contribuição desses espaços para o fortale- cimento da relação família-escola? • Como cada escola, dentro do seu bairro, enfrentan- do as dificuldades que lhes são particulares, incor- pora a legislação? • A escola usa o Conselho para trazer os pais para den- tro do espaço escolar? 43 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Algumas pistas para reflexão É possível dizer que as duas experiências de participação nos conselhosescolaresenoprojetopedagógicodasduas escolas se diferenciam em alguns aspectos, por exemplo, em relação à periodicidade com que os Conselhos acon- tecem; mas são muito semelhantes em relação a outros pontos, como osdilemas,temáticase limites com osquais se deparam no cotidiano institucional. No que se refere à periodicidade, a EE Jácomo Stáva- le reúne o Conselho duas vezes por ano ou, quando ne- cessita, de forma extraordinária; enquanto a EMEF Des. Amorim Lima reúne o Conselho mensalmente ou, se ne- cessário, também o convoca de forma extraordinária. São, portanto, escolas que, por caminhos diferentes, vêm obtendo êxito na busca da qualidade da educação, garantindo a participação nos Conselhos e criando outras formas de trabalho (festas, campeonatos, discussões di- versas...) para envolver alunos, pais, professores e outros membros da comunidade na dinâmica educacional. A despeito da beleza contida na idéia do Conselho Escolar, de acordo com os relatos ouvidos, ainda é difí- cil manter e mesmo promover uma comunidade partici- pativa na escola, especialmente no que diz respeito ao segmento de pais e alunos. Para os pais, há empecilhos diversos: impossibilidade de compatibilizar o tempo en- tre família/trabalho/escola, distância entre escola e casa e dificuldade de se locomover na cidade, desemprego, desconhecimento das possibilidades de participação, existência de problemas familiares que impedem a par- ticipação, como drogas, doença na família, outros filhos para criar, entre outros. Porém, mesmo que muitos pais ainda encontrem en- traves à participação mais ativa nos Conselhos e no coti- diano escolar, foi possível perceber que há interesses em relação à vida escolar dos filhos que os movem a ocupa- rem esses espaços. Sobre isso, vejamos alguns depoi- mentos dos alunos: Os pais trabalham, mas os pais se envolvem mais na escola. É uma escola em que os pais estão mais presentes. Aluno, sobre a EE Jácomo Stávale Os pais participam muito no projeto da escola. Tem reuniões, assembléia de pais e tem avaliação do plano de estudo para acompanhar mais de perto. Aluna, sobre a EMEF Des. Amorim Lima Quanto à sua entrada na escola como participantes dos fóruns decisórios, como os conselhos escolares e APM, alguns pais alegaram não terem, na ocasião, co- nhecimento sobre como fazer para participar; relataram, inclusive, que a intenção primeira, quando se aproxima- ram da escola, não era monitorar a qualidade da educa- ção e sim cuidar do filho, principalmente em questões ligadas à violência e à sexualidade, protegendo-o den- tro daquele ambiente “desconhecido”. Depreende-se disso que a aproximação dos pais de alunos da vida política e pedagógica da escola parece se concretizar quando eles entendem que,freqüentando dia- riamente esse espaço,podem obterinformaçõesmaispre- cisas sobre os processos de aprendizagem dos filhos e, então, compreendem que podem verificar mais de perto a qualidade da escola que escolheram para seus filhos. Em geral, a participação é limitada a um percentual pequeno da comunidade escolar, mas nem porisso é me- nos significativa. Conforme o projeto político-pedagógi- co da escola e, levando-se em conta as particularidades de cada instituição, é preciso que arranjos sejam feitos e outros espaços de participação sejam criados. Parece ser consenso entre as pessoas ouvidas que, embora sejam de extrema importância, os conselhos es- colares são ainda insuficientes para dar conta de todas as questões do cotidiano escolar, o que exige que estas sejam levadas para outras instâncias, seja a APM, como nos mostra a experiência extremamente rica e participa- tiva da EE Professor Jácomo Stávale, seja o Conselho Pe- dagógico, na EMEF Des. Amorim Lima, no qual os pais têm representação garantida. A chave da participação dos pais de alunos nos fóruns de decisão implantados nas escolas é a preocupação com o futuro dos filhos e da escola. Nota-se um desejo de melhorar a qualidade da educação em suas diversas formas e concepções. Os pais parecem entender o senti- do de estarem ali como forma de garantir a permanência da escola em um patamar aceitável de qualidade. A despeito da beleza contida na idéia do Conselho Escolar, ainda é difícil manter e mesmo promover uma comunidade participativa na escola. Cadernos Cenpec 2009 n. 6 O início da participação é motivado pelo interesse em ajudar o filho – olhar, cuidar, vigiar... Depois a participação torna-se mais voltada para a escola como um todo, o olhar se estende para todas as crianças da escola. Mãe de aluno Não é só para os filhos da gente que a gente pensa. A semente com certeza fica, porque se a gente fizer um trabalho bom, irá render frutos e muitos outros virão e aproveitarão. Mãe de aluno Nesse ponto, é possível salientar uma identificação direta entre os pais participantes dos conselhos escola- res e os princípios que asseguram certa continuidade das suas ações para além da vida escolar de seus filhos: Mesmo quando eu não tiver mais filho na escola, eu pretendo continuar participando. Mãe de aluno Uma conversa com os alunos sobre sua participação na escola Garantir a participação dos alunos não é propriamente o problema apresentado pelos conselhos que pudemos co- nhecer. O desafio é fazê-los freqüentar e contribuir para a discussão que nele é feita. Diretores, professores e pais são quase unânimes em dizer que a presença dos alunos costuma ser muito redu- zida, assim como sua participação, que acaba sendo mui- to mais formal do que efetiva, salvo em alguns momen- tos peculiares. Para os “adultos”, esse problema se deve à complexidade dos temas debatidos, como fluxo de ver- bas, demandas da comunidade escolar, encaminhamen- tos burocráticos etc.; enfim, assuntos que não estimulam o interesse dos alunos e inibem a discussão de outros as- pectos que poderiam motivar sua participação. É interessante, porém, ver que, embora os conselhos escolares sejam limitados à participação discente, os alunos encontram outros espaços para suas demandas e promovem a interlocução com a comunidade escolar, ao seu modo, engajando-se nos grêmios, por exemplo. O grêmio dá várias idéias para a direção [...] a gente discute com o grêmio. O grêmio leva pra direção e de lá saem as respostas do que a gente levou. Aluna da EE Jácomo Stávale Bateu o sinal: possíveis conclusões. É impossível responder a todas as questões sobre a existência dos conselhos escolares como espaços de participação neste breve relato, mas vale ressaltar aqui a pertinência desse tema diante da complexidade da re- alidade educacional do país, que reclama por avanços na melhoria do ensino público e está em constante bus- ca por novos espaços de participação social. De todo modo, vimos aqui que uma boa escola aca- ba criando novos espaços de participação, como lem- bra Bastos (2007): 44 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 REFERÊNCIAS BASTOS, João Baptista. É possível pensar e fazer escola pública com as classes populares? Jornal A página. 168. Portugal. Disponível em: . Acesso em: junho 2007. CAMARGO, Rubens Barbosa de; ADRIÃO, Theresa Maria de Freitas. Princípios e processos de gestão democrática do ensino: implicações para os Conselhos Escolares. Revista Chão de Escola, Curitiba, n. 2, p. 28-33, 2003. LUCK, Heloisa; PARENTE, Marta Maria de A. Mapeamento de estruturas de Gestão Colegiada em escolas dos sistemas estaduais de ensino. Revista Em Aberto, v. 17, n. 72, 2000. MARQUES, Luciana Rosa.O projeto político pedagógico e a construção da autono- mia e da democracia na escola nas representações sociais dos conselheiros. IV Jornada Internacional e II Conferência Brasileira sobre Representações Sociais, 2005, João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2005. _________.Os conselhos escolares e a construção de uma cultura democrática nas escolas. XXIII Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação, 2007, Porto Alegre. Por uma escola de qualidade para todos, 2007 MEC, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Conselhos Escola- res: democratização da escola e construção da cidadania. Brasília: 2004. PARO, Vitor Henrique. Estrutura da escola e educação como prática democrá- tica. In: CORREA, Bianca Cristina; GARCIA, Teise Oliveira. (Org.). Políticas educacionais e organização do trabalho na escola. 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São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 238.) cita o papel da escola como a instituição social que por excelência insere a criança, que é portadora do novo, da novidade, no mundo adulto, no mundo já construído e que precisa ser conhecido para continuar a ser mundo, para continuar a ser. É nesse momento que a amplitude da socialização dos indivíduos faz sentido, pois a escola é o espaço em que a criança, novamente aquela que traz o novo ao mundo, encontra-se com esse mundo e, ao descobri-lo, o recria, o reinventa, o perpetua. 5 O artigo 206 fala da gestão democrática como princípio da educação públi- ca. 6 Oartigo 3o, incisoVIII,reforça a gestão democrática como princípio norteador da educação e o artigo 17 dispõe sobre a autonomia da escola. 7 Trata dos objetivos da educação pública, entre os quais, a democratização da gestão, com a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. Ninguém simplifica a participação da comunidade apenas em conselhos de escola e comunidade, em grêmios escolares ou em eleições diretas para diretores. A participação é construída por processos complexos cotidianos centralizados em relações de sujeitos coletivos. As histórias dessas duas escolas apontam para uma multiplicidade de caminhos que podem levar à gestão democrática das relações escolares, fato que abre defi- nitivamente a possibilidade de pensar a escola como um local de encontro de diferentes, que precisa criar mais ca- nais de contato entre os de “dentro” e os de “fora” . As condições em que se encontra o ensino público no Brasil determinam os arranjos sociais para o funciona- mento dos conselhos escolares ou equivalentes e para a viabilização da participação da família e da comunida- de na escola. A realidade social e política atual têm mos- trado que uma democracia meramente representativa e com deliberação altamente concentrada nas mãos do Estado não é mais suficiente. Criar espaços que incenti- vem e fortaleçam a tomada de decisões no plano coleti- vo e que garantam a implantação e formulação de polí- ticas públicas elaboradas pela sociedade civil de forma mais direta parece ser o meio que confere maior legiti- midade a essas decisões. Embora existam muitas dificuldades ainda para que os modelos tenham um bom funcionamento, as experi- ências dos conselhos escolares das escolas consultadas nos permitem afirmar que a participação e representação da família e da sociedade na gestão dos espaços coleti- vos podem ser extremamente positivas. Retomando o início de nossa reflexão, a despeito da máxima de que pais e mães de alunos, dentro da esco- la, só se encontram por ocasião de reuniões de caráter informativo – mesmo que esta seja uma das funções do conselho escolar –, encontramos nas redes de ensino pú- blicas deSão Paulo experiências que revelam um relacio- namento construtivo entre escola e comunidade. A intensificação da comunicação e da convivência en- tre pais, alunos e equipe escolar dentro da escola dá si- nais concretos de que é possível pensar em formas mais democráticas de organização social, sendo, elas mes- mas, pensadas e implementadas por aqueles que cons- troem a educação de qualidade no cotidiano. 45 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 pesquisa Nilson Vieira Oliveira Patricia Mota Guedes* Mães e pais pedem melhores escolas públicas1 * Nilson Vieira Oliveiraé economista (PUC/SP),MBA(BBS) ediploma- do pela Escola deGoverno/SP. Coordenador e pesquisador do Institu- to FernandBraudel. Tem atuado em pesquisasde campo sobre educa- ção e segurança pública e sobre os avanços nas condições de vida na periferia. É organizador e co-autor de Insegurança pública – reflexões sobre a criminalidade e a violência urbana (Nova Alexandria, 2002). Patricia Mota Guedes é mestre em Administração Pública (Universi- dade de Massachussetts/Amherst) e em Políticas Públicas (Universi- dade de Princeton). Coordenadora dos programas de Educação e do projeto Círculos de Leitura do Instituto Fernand Braudel. Co-autora de Qualidade na Educação – a luta por melhores escolas em São Paulo e Nova York (Moderna, 2007). Junto com Nilson V. Oliveira, publicou A democratização do consumo na periferia (Braudel Papers, 2006). á um consenso dentro e fora do Brasil sobre a importân- cia da participação dos pais na vida escolar dos filhos. Ao mesmo tempo, várias pesquisas amplamente difun- didas no país têm reportado que os pais de famílias po- bres parecem dar pouca importância à qualidade da edu- cação pública dos filhos. Contudo, uma pesquisa de campo realizada pelo Ins- tituto Fernand Braudel, em 2006, com 1100 famílias na periferia da Grande São Paulo, revelou um segmento sig- nificativo de pais pobres que são críticos da qualidade do ensino público. Para definir melhor essa percepção, o Instituto Fer- nand Braudel realizou uma pesquisa de campo com 840 pais com filhos matriculados em escolas públicas na ci- dade de São Paulo, da primeira série do Ensino Funda- mental ao último ano do Ensino Médio. Em entrevistas domiciliares de cerca de 90 minutos de duração,realizadas entre abril e outubro de 2007, bus- camos investigar com mais detalhes: 47 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 1. as percepções e expectativas dos pais sobre a qua- lidade da educação de seus filhos e da rede pública em geral; 2. os diferentes níveis e formas de envolvimento na vida escolar dos filhos; 3. suas opiniões e recomendações a respeito de políti- cas em educação, incluindo temas como progressão continuada, gasto público, avaliação e remuneração diferenciada por desempenho. Políticos, educadores e lideranças da sociedade ci- vil precisam desenvolver estratégias mais criativas, que reconheçam a diversidade de pais e o potencial, ao me- nos de um segmento deles, como parceiros em esforços de melhoria da escola pública. Os dados e depoimentos aqui apresentados são uma parte dos resultados que ilustram o quanto esse poten- cial ainda é pouco explorado. Vera LúciaSantana só consegue ver seus filhos, as gê- meas Pâmela e Grace, 11 anos, e Wendel, 9, de sexta a domingo. Empregada doméstica, 30 anos, moradora da periferia, gastava antes cinco horas por dia no transpor- te público entre a casa e o trabalho. Agora, dorme de se- gunda a quinta na casa dos patrões. Mas criou um siste- ma próprio para acompanhar o estudo dos filhos duran- te a semana. Ela explica: Todo dia a gente conversa por telefone sobre o que aconteceu na escola, e eu falo para eles fazerem tudo direitinho. Quando Vera chega em casa, às dez da noite de sex- ta-feira, os três filhos estão acordados esperando “para contar o que aconteceu na escola, com o caderninho na mão para mostrar”. As gêmeas Pâmela e Grace estão na sétima série da rede estadual e Wendel, na segunda série de uma esco- la municipal. Eu acho que os pais têm que chegar em casa e olhar caderno, conversar sobre o que aconteceu na escola. Eu sou bem presente com essa história de estudar. Quando há reunião de pais, Vera Lúcia é liberada do trabalho para participar. Para ela, acompanhar o que os três filhos estão apren- dendo na escola não é fácil. Realmente o estudo que meus filhos têm eu não tive. Eu não sei se o dever que eles fazem está certo ou errado, mas dá para olhar se a letra deles está perfeita, se fizeram o exercício, conversar com eles, ver as notas e apontamentos no caderno. Para mães e pais como Vera Lúcia, quem se queixa da falta de interesse e envolvimento dospaisna escola públi- ca precisa conhecer mais de perto histórias como a sua. Criativos e críticos, apesar da baixa escolaridade. Vera Lúcia veio para São Paulo com 16 anos, de Jacaraci, interior da Bahia. Estudou só até a quarta série porque, na zona rural, só havia escola até aí. Sua mãe não con- cordava que fosse para a cidade continuar os estudos: “Ela achava que mulher não precisava”. Como 46% dos pais entrevistados, não completou o ensino fundamen- tal. A média de escolaridade do total de pais entrevista- dos é de sete anos, embora 26% já contem com o ensi- no médio completo. No ano passado, Vera soube que seu filho caçula, Wendel, estava com problemas para aprender. A profes- sora mandou um bilhete dizendo que Wendel é inteli- gente, mas tem preguiça de estudar. Vera concorda que o filho é inteligente e explica: [...] porque se ele vê uma reportagem na televisão ele sabe me contar, ele se interessa. Mas na escola ele não se interessa por nada. Preocupada e sem qualquer orientação prática de al- guém da escola, Vera Lúcia precisou pensar em algumas estratégias para acompanhar o estudo do filho em casa. Orientou as duas filhas para que acompanhem o que o irmão faz quando volta da escola e fiquem por perto en- Políticos, educadores e lideranças da sociedade civil precisam desenvolver estratégias mais criativas, que reconheçam a diversidade de pais e o seu potencial como parceiros em esforços de melhoria da escola pública. 48 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 quanto ele estuda. Se ele não obedecer, as irmãs estão autorizadas a colocá-lo de castigo. Vera não responsabiliza só o filho. Lembra-se de quando a professora resolveu não dar nota para um tra- balho de Wendel, porque achava que estava muito bom para ter sido feito por ele. Ela disse que foram as minhas filhas que tinham feito, mas eu estava do lado dele, eu vi, foi ele quem fez. Vera conta que o filho ficou muito triste e acha que o incidente só ajudou a desestimulá-lo ainda mais a es- tudar. A mesma professora também deu aula para suas filhas na quarta série, mas Vera acha que ela as tratava melhor porque se comportavam e tiravam boas notas. Já com o Wendel ela é diferente, chega a ser grossa até, chega a expulsar ele da sala porque ele não fez uma tarefa. Vera Lúcia foi reclamar na escola com a diretora, mas nada foi feito. Nem nas reuniões de pais conseguiu re- solver o problema. Eles não dão muita oportunidade para a gente falar, só querem quando a gente faz elogios. Quando a gente vai criticar, eles não deixam... O problema com Wendel a fez questionar até a qua- lidade do aprendizado das filhas. Elas tiram notas excelentes, eu sei. Mas será que isto quer dizer que elas estão aprendendo tudo o que alguém na sua série devia aprender? À medida que as secretarias municipal e estadual de educação publicaram suas expectativas de aprendiza- gem para cada série, o próximo desafio será garantir que pais interessados, como Vera, tenham acesso a essa in- formação e a compreendam. No ano passado, Vera foi conversar com a professora para pedir que ela reprovasseWendel, depoisde observar que o filho ainda não estava totalmente alfabetizado. Mas a professora me disse que ele não podia serreprovado...Oque adianta meu filho estar na quarta série se mal sabe ler e escrever? Parece que as escolas não se importam com a qualidade do ensino, só querem saber de números. 49 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Para ela, o problema da baixa qualidade de apren- dizado é que [...] tem professor que está lá na sala de aula por estar, só para ganhar o salário dele. Conta que ficou chocada quando, na primeira reunião de pais do ano, na escola do filho, os professores disse- ram aos presentes [...] que é a mãe que tem que ensinar. Se a mãe mandou o filho para a escola, é porque ela não sabe ensinar o que a criança precisa aprender na escola. É a professora que tem esse direito [...] argumenta Maria Cláudia, que planeja voltar a estudar no supletivo à noite, na própria escola dos filhos. Quando perguntados sobre qual fator mais ajuda um professor a ensinar melhor, os pais se mostraram bem di- vididos. Enquanto 21% acha que uma boa formação na faculdade é o mais importante, outros 16% consideram que seja um bom salário. São relativamente poucos os pais que dão um peso maior ao papel do diretor como líder que pode colabo- rar na qualidade do ensino, seja ajudando o professor a resolver problemas na sala de aula (8%), seja exigindo mais de professores e alunos (6%). A presença de um assistente para o professor, nas primeiras séries do Fundamental, prática em andamento tanto na rede municipal quanto estadual de São Paulo, foi escolhida por 11% do total de pais como o fator mais importante, e por 13% dos pais com filho no ciclo I. Apesar de críticos sobre a qualidade do ensino, os pais da rede pública têm uma opinião geral de que pro- fessores precisam ganhar mais. São altamente favo- ráveis à remuneração diferenciada por desempenho, com 83% deles sendo totalmente a favor de uma me- dida assim. Talvez, experiências como as de Vera expliquem por que 95% dos pais entrevistados declararam ser contra a progressão continuada. Os depoimentos mostram que o que parece estar por trás de sua forte rejeição não é uma oposição ao conceito de progressão continuada, e sim à forma como tem sido implantada. É uma crítica às bai- xas expectativas de aprendizagem e ao fracasso esco- lar, que desperdiçam a curiosidade e o talento de crian- ças como Wendel. Vera Lúcia é um exemplo de como já se pode encon- trar, na rede pública, um segmento de pais mais críticos. Somente 16% dos pais disseram que têm seus filhos ma- triculados na escola pública porque estão satisfeitos com a qualidade do ensino. Quando perguntados sobre que nota, em uma escala de 0 a 10, dariam à escola de seus filhos, deram 6,5. Para o ensino básico público como um todo, deram 6. Já a nota que dão para as escolas particulares é, em média, 8. A idade, renda ou gênero não contribuem para que os pais sejam mais críticos em suas notas. Mas, quanto mais anos de escolaridade, mais os pais tendem a dar notas abaixo de 5 para a escola de seus filhos. Quando analisam a escola de seus filhos, apenas 25% acha que maioria dos professores não sabe ensi- nar. Mas há outras críticas mais específicas sobre a es- cola do filho. Do total de entrevistados, 31% reclamam que tanto professores quanto diretores não exigem esforço dos alu- nos e 54% acham que os professores não sabem manter a disciplina na sala de aula. Seja causa, seja efeito da baixa qualidade do ensino, 51% dos pais acham que a maior parte dos alunos da es- cola de seus filhos não tem vontade de aprender. O papel do professor no aprendizado do filho Para Maria Cláudia Ferreira Lima, 33 anos, auxiliar de cozinha, não é certo culpar os pais ou os alunos pelo fra- casso escolar. Para ela, quem mais pode fazer diferen- ça é o professor. Maria Cláudia estudou até a oitava sé- rie e hoje tem dois filhos, Ingrid, 15, e Michael, 12, em escola pública. Acha que a escola dos filhos é boa, [...] mas, como em todo lugar, tem professor que não tem vontade de ensinar. São relativamente poucos os pais que dão um peso maior ao papel do diretor como líder que pode colaborar na qualidade do ensino. 50 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Acham que os melhores professores deveriam ganhar em média cerca de 2.450 reais. Esse valor cai para 1.375 reais quando perguntamos o que mereceria ganhar um professor “mediano”. Acham que os professores mais fracos deveriam ga- nhar não mais de 845 reais – 17% abaixo do valor médio do que acham ser o salário atual. Mas há pais, como Ma- ria Cláudia, que são ainda mais radicais: Quantodeveriaganharumprofessorfraco?Euvoufalaraverdadepara você.Não devia nem ser contratado.Antesde eu dar qualquer salário para um professor, eu queria saber se ele tem vontade de ensinar. Faz uma pausa e acrescenta: Se eu fosse governador ou prefeito, eu olharia bem qual é o pro- fessor que sabe e gosta de trabalhar. Maria Cláudia ainda não sabia que, semanas após sua entrevista, o governo do Estado iria passar um decreto- lei criando um período probatório de três anos para pro- fessores concursados. Com a medida, anunciada no fi- nal de 2007, os professores e gestores da rede passam a ser avaliados por três anos em categorias como assi- duidade, disciplina, capacidade de iniciativa, compro- metimento, eficiência e produtividade, antes de serem efetivados. Maria Cláudia pergunta se estamos anotando a sua recomendação e continua: Eu ia avaliar muito os professores. Porque não adianta só dar um salário bom. Nem todo mundo nasceu para ensinar. Nem todo mundo é bom professor. Mas o que é um bom professor? Pedimos aos pais que respondessem quais eram os principais atributos de um bom professor, em primeiro, segundo, terceiro e quarto lugares. • O atributo mais importante para 31% dos pais é ex- plicar de forma que todos entendam. • Outros 32% disseram que é tratar o aluno com res- peito ou de forma atenciosa. • Hábitos como “passar bastante dever de casa” ou “passar bastante matéria na lousa” foram citados como mais importantes somente por 13% e 3%, res- pectivamente. • Para a maioria dos pais, o principal motivo que leva alguém a ser professor não é o salário, mas a voca- ção para ensinar (36%) ou para trabalhar com crian- ças e jovens (28%). • Somente 16,3% dos entrevistados acham que o prin- cipal fator é a estabilidade no emprego. • Aposentadoria integral e salário foram citados por 4% e 5%, respectivamente, enquanto outros 5% acham que o principal motivo é falta de outras opções. O que faz uma boa escola Uma escola boa é uma escola com bons professores. Assim resume Jurandi Pereira da Silva, 38, que se diz muito satisfeito com a escola pública dos dois filhos. Ze- lador em um prédio na zona oeste, Jurandi veio do ser- tão de Pernambuco com 18 anos para a periferia norte de São Paulo. “Então brinco que já me naturalizei pau- lista”, diz, orgulhoso. E é com orgulho que conta que conseguiu matricular sua filha adolescente, Juliana, em uma escola no bair- ro da zona oeste onde trabalha, segundo ele, “a melhor da região”. A filha ainda mora com a mãe na zona nor- te, mas Jurandi faz questão de pagar o transporte públi- co. Antes de matricular a filha, ele procurou saber, por meio de amigos e conhecidos, sobre outra escola que fica quase ao lado. Falaram para eu não colocar nessa outra, quase do lado dessa boa, mas que é totalmente diferente, é mal administrada, tem mau ensinamento, má organização, rola droga, é meio pesado. Jurandi pode não ter tido acesso a dados de avalia- ção das escolas para guiar sua escolha, mas não ficou tão longe do apurado em exames como o Exame Nacio- nal do Ensino Médio – Enem e o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo – Saresp: a escola da filha ficou acima da média da região, enquan- to a escola vizinha, tida no boca-a-boca como mais vio- lenta e bagunçada, ficou abaixo da média. Em uma lista de itens, pedimos aos pais para apon- tar, do primeiro ao quarto lugar, os atributos de uma boa escola. Chama a atenção como os pais valorizam a qualidade dos recursos humanos da escola e, ao mes- mo tempo, como dão relativamente menos valor ao seu próprio papel. 51 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 O estereótipo de que pais de escola pública só valo- rizam infra-estrutura e merenda também precisa ser re- pensado: • Para 32% dos pais, o atributo mais importante é ha- ver professores que saibam ensinar. • Outros 18,3% acham que, em primeiro lugar, vem a presença de um diretor exigente. • A presença de policiamento foi citada por 15% como a qualidade mais importante. • Em contraste, apenas 6% dos pais vêem uma parti- cipação mais ativa e exigente dos pais como a carac- terística mais importante de uma boa escola. • Outros itens como infra-estrutura, material escolar de qualidade, esporteseatividades foradohoráriodeaula ficaram, cada um, com 5% da preferência dos pais. • A merenda escolar só ocupa o primeiro lugar para 1% dos pais. Os entrevistados em geral demonstraram alguma fa- miliaridade com exames de avaliação da qualidade de escolas: 69% disseram conhecer o Enem; 59%, oSaresp; e 34% sabiam do Prova Brasil e/ou do Sistema de Ava- liação da Educação Básica – Saeb. Praticamente todos – 97% dos pais – acham impor- tante saber os resultados da escola de seus filhos nes- sas avaliações. Para metade dos entrevistados, a melhor forma de acessar esta informação seria em reuniões com pais.Outros 27% preferem receber por correio e 15%, por um comunicado escrito da escola. A internet só foi citada por 6%, o que talvez explique em parte o baixo nível de conhecimento de avaliações como o Prova Brasil ou Saeb, cujos resultados podem ser acessados no site do Ministério da Educação. A participação dos pais na gestão da escola Para a maioria dos pais, a principal responsabilidade de melhorar o ensino é dos profissionais da escola – pro- fessores, gestores ou ambos. Mas há os que acreditam que o envolvimento de pais na gestão escolar pode me- lhorar o ensino e passam a participar mais ativamente da administração da escola. Ainda que minoria, esse segmento de pais precisa ser mais ouvido, compreendido e mobilizado em esforços de reformadoensino.Sãolideranças locais, compotencial ca- talisador, que precisam ser mais aproveitadas pela rede. É o caso de Conceição Elizabeth Aléo, 52, mãe de Cé- sar, 12, que faz parte de um grupo de pais, professores e alunos que conseguiram evitar o fechamento de uma es- cola pública, a E. E. Maximiliano, localizada na Vila Ma- dalena, um bairro de classe alta da cidade. O esforço acabou também por atrair o apoio de li- deranças e iniciativas do setor privado. Antes, a esco- la sofria com a perda de alunos, a maior parte, filhos de empregadas domésticas que trabalham na região. Mas, por conta das melhorias que se seguiram à mo- bilização, a escola já começou a atrair outros pais que não trabalham no bairro e moram em áreas distantes, como o município de Embu, ao sul; o bairro de Itaque- ra, na zona leste; e até do litoral sul paulista, como São Vicente. Beth, como Conceição gosta de ser chamada, ressalta que a participação de pais não basta. É necessário con- tar com a participação dos professores. Aqui tem vários professores que assumiram a escola, que agar- raram com unhas e dentes o trabalho e estão fazendo o melhor pelos alunos. Beth divide o dia entre o trabalho de voluntária na se- cretaria da escola e a produção de bijuterias e bolsas para sustentar a família. Membro eleito da APM e do conselho escolar,Beth acha que, apesar de todosos avanços, a par- ticipação dos pais ainda deixa muito a desejar. Você conta nos dedos quantos pais vêm. E olha que aqui pelo menos tem reunião de pais e mestres, comenta Beth, em alusão à escola anterior do filho, onde precisava cobrar para ficar sabendo quando haveria en- contros com pais. Mesmo agora, não acha que as for- mas de comunicação com os pais são as mais eficien- tes. Ela questiona: Os alunos levam um bilhetinho para os pais chamando para a reunião, mas... será que eles entregam? Beth recorda a primeira reunião com pais da turma do filho César, uma classe com 35 alunos: Nós estávamos somente em seis pais... E o meu filho é bom aluno, recebi muitos elogios.Mas os pais que têm filho com problema não vieram. Eles não assinam nem boletim. 52 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Beth também lembra que um dos esforços recentes para atrair os pais incluiu fazer uma reunião no sába- do, para aqueles pais que trabalham de segunda a sex- ta, durante o dia. Em nossa pesquisa, para 29% dos pais, o sábado foi apontado como o melhor dia para as reuniões na escola, as quais, por sua vez, tradicionalmente, ocorrem durante a semana, no horário em que seus filhos estudam. Gestores que se entusiasmem com esta demanda não atendidaprecisamsaber,alertaBeth,quemesmoreuniões aos sábados não vão garantir um grande contingente. O trabalho de Beth Aléo na escola do filho pode ser voluntário, mas já se tornou uma função essencial na opinião de professores e da direção. Mesmo com a bai- xa participação dos responsáveis nas reuniões de pais, da APM e do Conselho Escolar, há muito que pode ser feito em pequenos grupos, aproveitando pais com po- tencial de liderança como Beth. A importância de atrair pais com perfil de liderança para trabalhar como apoio na equipe da escola já é uma idéia que virou política pública em cidades com grandes problemas de aprendizado, como Nova York. Lá, o pre- feito Bloomberg criou a posição remunerada de “coor- denador de pais”, baseando um coordenador em cada escola da rede. Esses coordenadores, recrutados entre pais do bairro, funcionam como intermediários entre pro- fissionais da escola e pais de alunos, auxiliando a dimi- nuir o abismo entre eles, especialmente nas comunida- des mais pobres da cidade. Beth mostra a lista de sugestões para políticos e se- cretários de educação que preparou para a entrevista. Uma de suas recomendações é que as escolas tenham um sistema de supervisão “que venha em defesa das crianças que, ao contrário do meu filho César, não têm pais que podem cobrar mais qualidade”. Supervisão e avaliação Envolvida na organização da próxima reunião da APM, Beth precisa interromper a entrevista para fazer ligações para pais, reforçando com eles o convite e a pauta do próximo encontro. Com o caderno na mão, faz questão de acrescentar que não são somente os pais que deveriam vir mais às escolas de seus filhos, “os secretários de educação e supervisores de ensino também”. Mas com uma condi- ção: precisam vir sem aviso prévio, para pegar a escola de surpresa. E explica: Eles deviam chegar assim de surpresa, porque, se avisam, é tudo muito arrumado, muito organizado, muito “olha, meninada, o Sr. Fulano vai vir aqui amanhã, não quero papel jogado no chão, não quero barulho nem confusão”. Erli Rodrigues da Silva, 49, como Beth, também sen- te falta de um olhar externo que avalie e acompanhe o trabalho nas escolas. Coordenadora de uma entidade de bairro, na periferia sul de São Paulo, que distribui leite e oferece atividades fora do horário escolar para as crianças do entorno, Erli é mãe de dois filhos na rede pública. Eu noto que mesmo aqueles programas das Secretarias de Educa- ção que são dirigidos à escola não funcionam porque não tem uma fiscalização, um responsável de fora. Eu vejo que os professores deveriam ter uma cobrança maior atrás deles, alguém que fosse o gestor de tudo que acontece na sala de aula, que pudesse acom- panhar de perto o trabalho do professor. Para Erli, a direção da escola não dá conta de melhorar o ensino. Mas ressalta que é preciso haver alguém com autoridade para entrar na sala de aula, seja para ajudar, seja para cobrar mais do professor. Erli compara a auto- ridade dos professores à de juízes de futebol: Quando o juiz está dentro de campo, o espaço é dele, pode descer Deus do céu e entrar ali dentro porque Deus não vai mandar. Se o juiz errou, ninguém vai tirar um gol, o que ele falou, está falado. Assim é o professor na sala de aula. Ninguém manda ou pode interferir no que ele faz lá dentro. A importância de atrair pais com perfil de liderança para trabalhar como apoio na equipe da escola já é uma idéia que virou política pública em cidades com grandes problemas de aprendizado. 53 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Acompanhamento da aprendizagem dos filhos Sem um sistema de supervisão mais eficiente e ain- da sem um acesso fácil a resultados de avaliações ex- ternas por escola e por aluno, verificar o boletim é, ao menos por enquanto, a prática utilizada por mais pais – 82% dos entrevistados – para acompanhar o aprendi- zado dos filhos. Em contrapartida, somente 53% tem o hábito de cor- rigir ou revisar as lições feitas pelos filhos. Há outras es- tratégias citadas, como examinar o número de trabalhos escolares exigidos pelos professores (71%) e as anota- ções ou correções do professor no caderno (70%). Outra estratégia muito utilizada por 57% dos pais é a de olhar a quantidade de dever de casa. Pais com fi- lhos no Ciclo I do Fundamental se utilizam de um núme- ro maior de formas de acompanhamento do aprendizado dos filhos. A tendência é de um menor envolvimento no Ciclo II, e menor ainda no Ensino Médio. E 74% do total de entrevistados diz utilizar muito a estratégia de obser- var o que os filhos contam que aprenderam na escola. Já vimos que a maior parte dos pais não acha que a quantidade de exercícios seja o principal indicador de um bom professor, mas verificar os cadernos dos filhos para ter uma idéia do que ocorre na sala de aula é ainda uma das estratégias mais usadas para acompanhar a vida es- colar do filho, especialmente no Ensino Fundamental. É o caso de Edna Maria de Oliveira Gomes, 36 anos, de Pesqueira, Pernambuco. Diarista, Edna cursou até a sexta série. Meu marido que veio primeiro, falta de emprego, essas coisas, aí ele veio, arrumou emprego, depois mandou me buscar. Costuma checar três ou mais vezes por semana o ca- derno dos filhos, Diego, 14, e David, 10. No meio do ano, oDavid não tinha nada de lição feita no caderno. Aí ele falou que era a professora que não estava ensinando, ele falou: “ó, mãe, a professora chega lá e fica jogando joguinho no celular”. O filho gostava da professora porque “ela falou para a turma que eles podiam bagunçar, que ela não estava nem aí, estava ganhando o seu salário todo mês”. Apesar da indignação, Edna não foi reclamar da escola. “Eu ia com- binar com as mães para tirar as professoras de lá”, lem- bra, mas, antes do final do semestre, a professora saiu e foi substituída por outra, na opinião de Edna, “muito me- lhor, graças a Deus”. Oabsenteísmo de professores, outro problema muito citado tanto por secretários de educação como por outros gestores, chega ao conhecimento dos pais por meio dos próprios filhos. Sidilene Carvalho Rocha, 40, conta que tem o costume de perguntar ao filho Diogo, que está na sétima série, como foi a aula. É assim que soube do pro- blema de faltas dos professores. Ela conta: Pelo menos onde meu filho está estudando, todos os dias ele me conta que faltou um professor e nem sempre tem substituto. Sidilene sempre vai às reuniões de pais, mas não con- seguiu ainda ver o problema resolvido. Ela reclama tam- bém da qualidade das aulas dos substitutos: Muitas vezes eles colocam uma matéria na lousa e não explicam, os alunos saem da aula sem saber. Absenteísmo e carência de professores Quase metade – 45% – dos pais disse que a escola do filho sofre de falta de professores. Porém, quando per- guntados sobre os motivos e a freqüência de aulas va- gas por causa de falta de professores, os pais mostraram um conhecimento apenas parcial do problema. Isso tal- vez se deva, em parte, porque, mesmo com aulas vagas, os alunos permanecem na escola, no pátio ou na sala de aula, muitas vezes fazendo barulho e desordem que atra- palham outras turmas. • Para os pais, o número máximo aceitável de faltas para professores por ano deveria ser de seis dias, com quase nenhuma diferença entre os níveis de ensino. • Pouco menos de 14% dos pais disseram que os pro- fessores nunca poderiam faltar e cerca de metade (48%) disse que o aceitável seria somente entre um e cinco dias de faltas por ano. 54 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 • Apenas 12% dos pais acham que professores devem faltar mais de 10 dias por ano. Os pais entrevistados estimam que a escola dos fi- lhos perde, em média, 4,6 dias de aula no ano por cau- sa de faltas de professor, chegando a sete dias para alu- nos do Ensino Médio. Mas a Secretaria de Educação do Estado, por exemplo, estimou que os professores faltam em média 32 dias letivos por ano. Quase 30 mil, dos 230 mil professores da rede es- tadual de ensino paulista, faltam às aulas diariamen- te, segundo dados oficiais de 2006. Dos 30 mil, menos de 2.400 têm faltas que acarretam perda de salário. Na- quele ano, o absenteísmo de professores custou 235 mi- lhões de reais aos cofres públicos em pagamento de pro- fessores substitutos. Na rede municipal, o problema é semelhante. Com cerca de 50 mil docentes, a rede sofreu, somente de ja- neiro a agosto de 2007, 97,4 mil faltas sem perda de sa- lário e outras 11,9 mil que acarretaram perda de venci- mento. Gratificações por assiduidade, tanto na rede estadu- al quanto na rede municipal, ainda não conseguiram re- solver o problema. A principal recomendação apontada para coibir as faltas de professores é o desconto no salário, para 34% dos entrevistados. Outros 31% acham que a primeira medida deveria ser uma advertência e 19% acham que professores faltosos deveriam ter um desconto no seu tempo de férias. Se os pais de escolas públicas fossem comunicados, pela es- cola ou pela Secretaria de Educação, sobre exatamente quantas aulas seus filhos perdem por causa da falta de professores, talvez sua insatisfação fosse ainda maior. Quando perguntados sobre o que mais leva um pro- fessor a faltar, 28% dos pais citaram baixos salários; 22% culparam a jornada dupla ou tripla em mais de uma escola . Outros 18% dos pais acham o trabalho, de forma ge- ral, desgastante. Somente 11% dos pais acham que pro- fessores faltam porque não têm faltas descontadas no salário, e 7%, porque as leis simplesmente permitem. Somente 4% acha que o principal motivo por trás das faltas de um professor é que ele não gosta do que faz. Para os pais, o número ideal de alunos por sala seria 28, enquanto que as salas de aula de seus filhos têm, em média, 37 alunos. Considerações finais Os resultados dessa pesquisa demonstram que os pais de alunos das escolas públicas não podem mais ser re- presentados como uma massa homogênea, sem senso crítico e totalmente satisfeitos com a qualidade da es- cola. Há segmentos de pais mais críticos e interessados que precisam ser reconhecidos como aliados pelas es- colas e secretarias de educação. Não se deve esperar que a totalidade ou a maioria dos pais consiga ou saiba como melhor se envolver com a escola dos filhos. Tampouco que todos possam exercer pressão política pelas reformas necessárias. No entan- to, existe uma parcela de pais que só espera uma opor- tunidade e uma maior abertura das escolas para assu- mir o papel que lhes for possível. São uma liderança em potencial para estimular esforços de reforma do ensino, apoiando medidas arrojadas, como a remuneração por mérito e a avaliação externa do aprendizado. Esses pais compreendem que são poucas ou nulas as chances de mobilidade social de seus filhos no futuro, se prosseguirem numa escola pública fracassada. Elesprecisam ser mais ouvidos e incluídosna formula- ção e implantação das políticas públicas de educação. NOTA 1 Esta pesquisa com paisde alunosdas escolaspúblicasdeSão Paulo fazparte do programa Reforma do Ensino Público, conduzido pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial desde 2007. A pesquisa foi uma parceria do Instituto Fernand Braudel com a FundaçãoVictor Civita e também contou com o apoio operacional do Instituto de Pesquisas Estatísticas da Universidade de São Caetano do Sul. Gráficos e tabelas da pesquisa estão disponíveis no site: . 55 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 56 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 RELATO: PROGRAMA DE INTERAÇÃO FAMÍLIA ESCOLA DE TABOÃO DA SERRA, SÃO PAULO. Com os professores visitadores, a escola vai à família. Isa Maria F. Rosa Guará* O Programa de Interação Família Escola de Taboão da Serra, um município de 225 mil habitantes naGrandeSão Paulo, ganhoudestaque evisibilidadenacionalpor seuca- ráterinovador epor seus resultados.DesenvolvidopelaSe- cretariade Educaçãoda PrefeituraMunicipaldeTaboãoda Serra desde 2005, o Programa, bastante conhecido como Programa dos Professores Visitadores recebeu o Prêmio Objetivo de Desenvolvimento do Milênio 2007 oferecido pelo Programa dasNaçõesUnidas para oDesenvolvimen- to (PNUD) e pelo governo brasileiro para as melhores prá- ticas voltadas à construção de um mundo melhor. Hoje adotado como política pública, o Programa con- seguiu ser ousado na prática pedagógica, criando uma ponte entre a família e a escola sem diluir suas especifi- cidades ou confundir papéis. Neste sentido, reconhece que “cabe às escolas a tarefa de desenvolver habilidades e competências, construindo as áreas de saber conside- radas fundamentais para o convívio social, cultural e à prática da cidadania” e que cabe à família “o acolhimen- to a seus filhos num ambiente estável, provedor e afeti- vo”. Essa definição ajuda a estabelecer a parceria entre as instituições família e escola, compreendendo as dife- renças e reconhecendo as características de cada instân- cia e fazendo as pontes “sem perder de vista o objetivo de melhoria qualitativa no ensino”(SMETS,2007).1 Ester Grossi (2001),2 enfatiza a necessidade desta cla- reza de papéis entre escola e família, lembrando que as ta- refas complexas da aprendizagem devem ser exigidas da escola que, de modo profissional, responsável e compe- tente se organiza para este fim. Os pais devem ser apoia- dos e orientados para que garantam um ambiente de es- tímulo à aprendizagem e de afeto e segurança para que a criança possa aprender e se desenvolver como pessoa. Desde seu início, mais de 20 mil famílias foram visi- tadas pelos professores, o que vem permitindo uma in- tensa participação de pais no processo educativo com resultados muito positivos em relação ao rendimento escolar. A experiência tem favorecido a ampliação efeti- va do conhecimento sobre a realidade sociofamiliar dos alunos e a introdução de novas estratégias para alcan- çar uma boa aprendizagem para todos.3 Ofracasso escolar, como dizMario Cartella,4 é um pe- dagocídio. Evitá-lo, lembra o autor, exige considerar tan- to as condições extra-escolares, quanto as intra-escola- res, evitando preconceitos e discriminações. Portanto, a visita dos professores a casa dos alunos é algoplanejadocomcuidadoeseriedadeparaquetenhasig- nificado. SegundoaSecretariaMunicipal,asvisitasocorrem foradohorárioescolareosprofessoresparticipantesdoPro- grama trabalham com hipóteses e objetivos visando: • “ identificar no ambiente familiar as raízes das difi- culdades de aprendizagem de um aluno, por exem- plo, eventuais traumas de crescimento e desenvolvi- mento físico e emocional; • buscar maior parceria dos pais no processo de desen- volvimento educacional dos filhos; • esclarecerospaissobreametodologiadeensinoadota- do pela Escola, suas características e suas atividades; • compreender melhor as condições de vida da famí- lia e ajustar as metodologias educacionais à essa realidade”. Se, em geral, os movimentos da sociedade civil que trazem a educação como bandeira não lograram, ain- da, resultados animadores na aprendizagem dos alu- nos e na efetiva responsabilização social e comunitá- ria pela melhoria da educação, o exemplo de Taboão da Serra mostra que a iniciativa de aproximação que parte da escola e do sistema educacional local pode ter efei- tos muito positivos. * Isa Maria F. R. Guará é pedagoga, doutora e mestre emServiçoSocial (PUC-SP) e pós-graduada em Psicopedagogia; professora da Uniban, assessora do NECA e coordenadora editorial dos Cadernos Cenpec. 57 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Programa de Interação Família Escola: resultados das ações articuladas em torno do Programa Desafios Respostas Resultados Melhoria da Aprendizagem Instituição deGruposdeApoio Pedagógico para crianças com dificuldades de aprendizagem, no contra-turno escolar. Implantação de Laboratórios de Aprendizagem nas escolas para diagnóstico e orientação dos problemas de desenvol- vimento escolar. Duas mil crianças e jovens atendidos. Diagnósticos e orientações educacionais específicas para 140 alunos. Ampliação de oportu- nidades educacionais para a comunidade Oferta de Cursos de Informática e de Inglês para a Comuni- dade nos períodos noturnos e aos finais de semana. Ampliação da oferta de vagas para Educação de Jovens e Adultos. Oferta de atividades culturais para alunos e familiares por intermédio do Programa Fazendo Arte na Escola. Mais de 10 mil jovens e adultos atendidos. Dois mil alunos Cinco mil pessoas beneficiadas Ampliação da rede de proteção social Articulação com os programas das Secretarias de Saúde e Assistência Social, com objetivo de enfrentar problemas do ambiente familiar e de saúde. 342 encaminhamentos Inclusão de portadores de necessidades educa- cionais especiais Criação de equipe multidisciplinar, constituída de médico pe- diatra, psicólogos, professores especializados, com objetivo de apoiar os docentes das escolas, com especial atenção às crianças com necessidades especiais de aprendizagem. 292 alunos de inclusão freqüentando as escolas municipais. Fonte: Programa de Interação Família Escola – Documento Básico de Orientação – Smets. Mesmo que algumas pesquisas mostrem que o ba- ckground familiar é importante para o desempenho es- colar, é preciso reconhecer que a escola ainda tem uma grande possibilidade de fazer a diferença. Como funciona? Embora os professores não sejam obrigados a participar do Programa, há a adesão voluntária da maioria dos pro- fessores. A prefeitura oferece um pró-labore para cada professor que visitar um aluno e sua família. A visita é feita durante a semana ou nos finais de semana. A coor- denação do programa relata que o contato entre os pais ou responsáveis e os professores tem sido tranqüilo e a conversa sobre o desenvolvimento do aluno e seu apro- veitamento escolar agrega informações sobre os aspec- tos mais diversos da vida familiar que podem favorecer o estudo dos alunos. Os dados sobre a realidade dos alu- nos são consolidados num relatório e discutidos na es- cola com a equipe pedagógica para que sejam planeja- das novas abordagens educativas e eventuais encami- nhamentos para que o aluno seja beneficiado. Impacto positivo no desempenho dos alunos As primeiras avaliações diagnósticas promovidas pela Se- cretaria de Educação da cidade com os alunos cujos pro- fessores participam do programa indicaram resultados altamente positivos. O Ministério da Educação (MEC) tam- bém confirmou o êxito dos estudantesda cidade.Segundo dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), divulgados em junho de 2007, a cidade teve um au- mento de 14,3%, nos anos finais da educação básica (de 5a à 8a séries), com a média de 4,8, quando a previsão do MEC era de que Taboão da Serra só atingiria essa meta em 2012.Nos anos iniciais (da 1a à 4a séries), o município tam- bém teve um crescimento expressivo, de 8,9%, com a mé- dia de 4,9, acima da média nacional, que é de 4,2. Certamente, o Programa de Interação Família-Escola de Taboão da Serra ainda tem muitos desafios a enfrentar, mas já se pode perceber, nesta iniciativa, o cumprimen- to do artigo 57 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que indica a necessidade de o sistema escolar buscar novas propostas pedagógicas, visando à inclu- são educacional e à articulação entre o mundo da vida e o mundo do conhecimento. NOTA 1 Secretaria Municipal de Educação de Taboão da Serra. 2007. Programa Interação Família e Escola: ampliação e fortalecimento de uma iniciativa de êxito. Disponível na Internet: . Acesso em: 12 de janeiro de 2009. 2 Ester Pillar Grossi, Zero Hora, 25/04/2001 – Porto Alegre, RS. A família na escola. 3 No site da Secretaria Municipal de Educação de Taboão da Serra, pode-se acessar o documento básico de orientação sobre o Programa. Ver em: . 4 CORTELLA, M. S. A Escola e o conhecimento – fundamentos epistemológicos e políticos. São Paulo: Cortez, 1998. p.137-160 (Instituto Paulo Freire no 5). 58 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 s pais são ausentes da escola? Professores reclamam da ausência dos pais em reuniões ou de seu descaso em relação ao desenvolvimento dos alunos sob sua responsabilidade. Diversas pesquisas (Carvalho; Bhering e Siraj-Blatchford; e Tancredi e Reali) já registraram que os professores consideram que os pais são desinteressados em relação à vida escolar. Pergunta-se: que tipo de participação está na expec- tativa dos professores? • Em reuniões de pais? • Em eleição para diretor? • Na gestão da escola? • Em preocupações com a freqüência do aluno? Se verificarmos o significado de participação, na óti- ca dos professores, poderemos saber se há realmen- te alienação dos pais em relação à vida escolar ou se o chamado desinteresse é fruto de diferentes perspec- tivas no entendimento do que seja o papel dos pais no contexto escolar. Lúcia Velloso Maurício* Participação dos pais na escola: a representação dos professores. * Lúcia Velloso Maurício é professora-adjunta do mestrado em Edu- cação da Universidade Estácio de Sá (Unesa) e professora-adjunta da Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: luciavelloso@terra.com.br. O Artigo 59 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 É recente a retórica do Banco Mundial apontando a participação dos pais no processo educacional como um dos fatores determinantes da eficácia escolar. Essa re- lação pode levar à consideração de que melhores resul- tados escolares dos alunos estão vinculados a maior ní- vel de escolaridade dos pais. É necessário verificar se os professores incorporam esse discurso ou se contextuali- zam as condições educacionais brasileiras: grandes desi- gualdades sociais, altos índices de analfabetismo e dis- tância entre cultura escolar e cultura popular. Há estudos que indicam que, para funcionar a conten- to, a escola necessita da adesão de seus usuários (Paro, 2000 a). Assim, a escola, cuja preocupação é levar o alu- no a querer aprender, precisa buscar continuidade entre a educação familiar e a escolar. Segundo o autor, a prá- tica tem indicado que essa continuidade só é vista pelo ângulo dos pais, desconsiderando a necessidade de a escola dar seqüência à educação do lar. Investir na vontade de aprender implica tratar o edu- cando como sujeito, levando a escola a buscar conhecer os interesses dos pais como cidadãos. Entre as funções dos pais, estaria a de desenvolver valores favoráveis à produção do saber. Este texto apresenta o resultado de uma pesquisa re- alizada em dois municípios do Estado do Rio de Janeiro – um do interior e um do Grande Rio, em 2004, envolven- do 208 professores, 155 dos anos iniciais e 53 dos anos finais do Ensino Fundamental. Seu objetivo foi investigar as representações sociais construídas por professores de escolas públicas sobre a participação de pais nessa instituição. Procuramos veri- ficar se os professores desejam a participação dos pais na vida escolar, que tipo de participação esperam dos pais e em que medida se confirma, do ponto de vista dos professores, o desinteresse dos pais em relação à esco- la dos filhos. O que significa participar? A concepção de participação dos pais junto à instituição escolar abrange um leque bastante amplo de formas de inserção. Sá (2000) afirma que a participação dos pais na gestão da escola, na União Européia, apresenta diver- sas composições: variam no peso que a representação dos pais tem em decisões da escola, tanto administrati- vas quanto pedagógicas, e nos poderes que são conferi- dos aos organismos em que os pais participam. O autor relaciona exemplos de países em que a repre- sentação dos pais é minoritária; outros, em que é majori- tária; e ainda os que têm representação paritária. Acres- centa que esses órgãos em que os pais têm assento po- dem ser consultivos ou deliberativos e que estes últimos ainda podem se distinguir pelo tipo de decisão que lhes compete, mais operacionais ou de formulação de gran- des linhas para a instituição. Já em 1978 Horta considerava que A decisão de criar e ampliar os canais de participação no processo educativo é uma decisão política, como são políticas as opções por uma determinada pedagogia, por determinados objetivos, por um determinado método ou conteúdo programático. Não há neutralidade nestas opções, pois a educação não é neutra (Horta, 1978, p. 16). Horta distinguia a participação no nível da ação e no nível da política escolar. O nível da ação abrange atividades de ensino e de es- tudo, tanto sua preparação e execução como tudo que se relacione diretamente com elas. O nível da política es- colar envolve a participação em órgãos que exercem in- fluência oficial sobre o nível da ação: conselhos de pro- fessores, conselhos de estabelecimento, conselhos de administração. O autor ressalta que a participação no nível da polí- tica escolar deve levar à modificação nas relações e pro- cedimentos no interior da escola. Em pesquisa realizada sobre a opinião dos pais a res- peito das diferentes formas de seu envolvimento com a escola, Bhering e Siraj-Blatchford (1999) consideram que os pais brasileiros participam ativamente do processo es- colar, de forma direta ou não, conscientes ou não, mas acreditando que estão fazendo algo para que seus filhos sejam bem sucedidos na escola. Mas, talvez, a maneira pela qual participem não se enquadre na tipologia de participação que tem sido uti- lizada em alguns estudos. As autoras usaram as catego- rias comunicação, ajuda e envolvimento para analisar a relação entre pais e escola. Investir na vontade de aprender implica tratar o educando como sujeito, levando a escola a buscar conhecer os interesses dos pais como cidadãos. 60 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 A categoria envolvimento mostrou-se relacionada a atividades intelectuais, que requerem preparação dos pais, orientação constante dos professores e avaliação periódica. As atividades, iniciadas pelos próprios pais em casa ou sugeridas pelos professores, são abrangen- tes e incluem desde deveres de casa até a participação ativa dos pais na escola. A informação exerce papel cru- cial para que haja envolvimento. A categoria ajuda esteve relacionada com prestação de serviços, por exemplo, em eventos sociais, feiras, es- portes, passeios etc. Outra maneira de ajudar estava no fornecimento de materiais ou equipamentos. Os pais in- seridos nessa categoria sentiam-se mais à vontade para colaborar com atividades práticas do que com as que exigiriam esforço intelectual e mais tempo de prepara- ção. Claro que são necessárias informação e organiza- ção para que a ajuda seja incorporada produtivamen- te pela escola. A categoria comunicação é a base de tudo que pode ser criado e desenvolvido entre os pais e a escola, con- dição tanto para ajuda como para envolvimento. As reu- niões e circulares, formas mais comuns de comunicação com os pais, têm caráter informativo sobre assuntos liga- dos à rotina escolar. Os contatos individualizados costu- mam tratar de dificuldades para os professores ou para os alunos. Bhering e Siraj-Blatchford concluíram que a falta de conhecimento das possibilidades de existência da relação escola-família determina o escasso contato entre pais e escola. Tancredi e Reali (2000), em pesquisa sobre a intera- ção escola-família pela ótica dos professores, afirmam que, seja qual for a expectativa dos pais a respeito do papel da escola, consideram importante a escolarização dos filhos, mantendo-os na escola por longo tempo. Con- cluíram que a voz da família não repercute nas escolas, pelo menos no âmbito de seus anseios. Os pais podem participar da escola por meio de aspectos financeiros, or- ganizacionais ou pedagógicos ou podem ir além dessas atribuições, dependendo da proposta da escola. A pesquisa, feita em escola de educação infantil, mostrou que: • os professores parecem desconhecer as famílias aten- didas e até o próprio bairro em que a escola se insere; • eles consideram que os pais procuram a escola pela refeição oferecida, ou para que o filho não fique na rua: a escola seria um depósito seguro;1 • os professores consideram que a comunicação é boa e eficiente, apesar de se constatar que ela é de mão única, havendo pouco espaço institucional para a ma- nifestação dos pais; • famílias iletradas podem ser interpretadas como de- sinteressadas por não conseguirem ler os bilhetes, que são a base da comunicação. Em síntese, a pesquisa sugere que a escola não vai até os pais, e sim que eles são atendidos por conces- são pela escola. Concluiu-se que a maior parte dos pro- fessores estabelece interações com as famílias dos alu- nos, ancoradas em valores que as colocam em posição de inferioridade... [...] o que tende a afastá-las [...] Por meio desse processo de con- cordância silenciosa, mesmo sem o desejar, parte das famílias referenda a visão de “desinteressados e incompetentes” que os professores têm a seu respeito (Tancredi e Reali, 2000, p. 14). Paro (2000 b) corrobora essa visão sobre comunida- de. Considera que, em nossas escolas públicas, está dis- seminada a impressão de que as camadas populares, principais usuárias da escola pública, “por sua condi- ção econômica e cultural, precisam ser tuteladas, como 61 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 se lhes faltasse algo para serem considerados cidadãos por inteiro” (p. 305). Diante desta visão depreciativa da comunidade, mui- tos usuários se distanciam da escola, seja por se senti- rem diminuídos, seja por perceberem o preconceito com que são tratados. Segundo o autor, alegando baixo nível de escolari- dade e ignorância a respeito de questões pedagógicas, a escola deixa de contar com os pais que têm conheci- mentos suficientes para exercer fiscalização e contribuir para a tomada de decisões a respeito do funcionamento pedagógico da escola. Dessa forma, reduz-se a gestão escolar a um caráter es- tritamente técnico, quando a grande contribuição dos usu- ários é de natureza eminentemente política. Outro aspecto que destaca é a descrença sobre a possibilidade de partici- pação, fazendo com que os professores se sintam à vontade para defendê-la, pois não acreditam que ela se concretize. Dois fatores enfatizados como passíveis de aferir a in- tensidade das relações com a comunidade são: a utili- zação do espaço escolar pela comunidade em horários ociosos e o grau de depredação do patrimônio escolar. O autor refere-se a relatos que indicam que, quando a escola tem relações amistosas com a comunidade, in- clusive cedendo suas dependências para atividades em finais de semana, os usuários tendem a colaborar com a escola e as depredações diminuem: seja porque os pró- prios elementos que provocavam estes atos se sentem inibidos, seja porque os usuários interessados desen- volvem mecanismos de proteção à escola. O que são representações sociais? Como era objetivo deste estudo conhecer o que pen- sam os professores a respeito da participação dos pais no ambiente escolar, consideramos necessário anali- sar as representações sociais que os professores têm a esse respeito. A visão que externam sobre os pais vai influir na compreensão que têm a respeito de participa- ção e de que tipo. Configurada essa expectativa a respeito da inserção dos pais na vida escolar, é possível entender como agem os professores em relação aos pais e se o desinteresse alegado em relação à escola se confirma ou evidencia diferença de expectativas. A representação social é aqui entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilha- do, tendo um objetivo prático e concorrendo para a cons- trução de uma realidade comum a um conjunto social. De- signada como saber de senso comum” (Jodelet, 2001, p. 22), a utilização desse quadro teórico oferece instrumen- tal para apreender os conceitos que vão sendo construí- dos por grupos sociais por meio de suas interações. As representações partilhadas pelos grupos funcio- nam como teorias que orientam suas intervenções na sociedade. Aqui verificamos se o grupo de professores constituiu uma representação típica de sua profissão a respeito da participação dos pais e se ela determina a atitude dos professores de incorporação ou não dos pais ao cotidiano escolar. O ponto de partida da Teoria da Representação Social é o abandono da distinção entre sujeito e objeto, confe- rindo novo significado ao que chamamos “realidade ob- jetiva”, porque toda realidade é reconstituída pelo indi- víduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cogni- tivo e de valores. Essa realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a própria realidade. A representação é um guia para a ação, ela orienta as ações e as relações sociais. Ela é um sistema de pré-codificação da realidade porque ela determina um conjunto de antecipações e expectativas (Abric, 2000, p. 28). Segundo Abric, de acordo com a abordagem estru- tural das representações, elas são compostas por um núcleo central e por elementos periféricos. O núcleo cen- tral é determinado, de um lado, pela natureza do objeto representado; de outro, pelo tipo de relações que o grupo mantém com esse objeto (valores, normas sociais). O núcleo central tem duas funções fundamentais: • uma generadora, pois é por meio dela que se cria ou se transforma o significado dos elementos cons- titutivos da representação social; O ponto de partida da Teoria da Representação Social é o abandono da distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que chamamos “realidade objetiva”. 62 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 • uma organizadora, pois é ela que determina a natu- reza dos elos, unindo entre si os elementos da repre- sentação. Em torno do núcleo central, organizam-se os elemen- tos periféricos. Eles respondem por três funções: • de concretização, pois os elementos periféricos cons- tituem a interface entre o núcleo central e a situação concreta na qual a representação é colocada em fun- cionamento; • de regulação, já que os elementos periféricos têm papel essencial na adaptação da representação às evoluções do contexto, dando flexibilidade à representação; • de defesa, pois sendo o núcleo central resistente à mudança, é no sistema periférico que podem apa- recer contradições. É esse duplo sistema, composto por um núcleo cen- tral e por elementos periféricos, que permite compreen- der por que as representações sociais são simultanea- mente rígidas e flexíveis. Adotamos a Teoria do Núcleo Central porque nosso ob- jetivo privilegiava revelar a constituição da representação, seus componentes e a articulação entre eles, configuran- do seu significado. Não tínhamos interesse, nessa etapa do estudo, de investigar a gênese da representação dos profes- sores a respeito da participação dos pais na escola. A pesquisa passo a passo A pesquisa de campo foi realizada por meio de múltiplas técnicas, como requer a Teoria da Representação Social. Foram trabalhadas: ficha de caracterização socioprofis- sional; associação livre de idéias sobre a função dos pais na escola; e hierarquização de significados para reper- tório com 20 opções sobre a função dos pais na escola. A pesquisa foi aplicada em curso de atualização para professores de ensino Fundamental e Médio da rede pú- blica do Estado do Rio de Janeiro. Entre os 29 municípios participantes, foram selecionados dois, um da periferia do Grande Rio e outro do interior. O critério para seleção dos pólos foi a presença do maior número de professores de 5a a 8a séries e Ensino Médio envolvidos no curso. Assim, obtivemos, em apenas dois municípios, um grupo significativo de professores, tanto de primeiro seg- mento do Ensino Fundamental, como de professores espe- cialistas. A preocupação era verificar se havia diferenças na representação social construída pelos grupos a respei- to da participação dos pais na vida escolar, bem como se a representação construída por professores do Grande Rio diferia daquela dos professores do interior. Os municípios selecionados foram São Pedro da Aldeia, interior, e São Gonçalo, periferia do Grande Rio. Antes de- les, para ajustar os instrumentos da pesquisa, o estudo foi testado no pólo de Itaboraí. Na primeira aplicação, foi trabalhada a ficha de carac- terização, dividida em três blocos (identificação, forma- ção, profissão) e a associação livre de idéias. Nessa par- te, os professores completaram três vezes a mesma fra- se: “Os pais/mães estão participando da escola quando eles...” e, depois, numeraram em ordem de importância decrescente as três respostas dadas. A seguir, pedia-se, em resposta única, qual a atribuição que de forma algu- ma seria compatível com a função dos pais na escola. 63 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Na tabulação dos resultados, percebeu-se a ausência de respostas para determinadas funções que eram men- cionadas na literatura consultada. Decidiu-se, assim, além das perguntas livres, formular repertório com alternati- vas que apareceram no teste e outras oriundas da lite- ratura para serem hierarquizadas em ordem decrescen- te de importância afirmativa (12 alternativas) e negativa (8 alternativas diferentes). No momento da aplicação, primeiro eram pedidas as respostas livres e, só depois de recolhidas, era apresen- tado o repertório para ser hierarquizado, de forma a evi- tar o sugestionamento. Assim, foram obtidas condições para comparar respostas livres com estimuladas. A pesquisa envolveu 264 professores distribuídos em 15 turmas. Desse total, 211 eram de 1a a 4a série e 53, de 5a a 8a e Ensino Médio. Os resultados foram apurados apenas em 12 turmas, por diferenças de procedimentos na tabulação. Na tabela, está o quantitativo de profes- sores respondentes válidos, por segmento e por pólo. Os números entre parênteses correspondem ao quanti- tativo de turmas pesquisadas. plano, adotamos a visão de Horta (nível político ou nível de ação), conjugada à de Paro (tomada de decisões ou execução), para distinguir a função dos pais vista pelos professores; em segundo plano, desmembramos a exe- cução ou nível de ação tomando como referência a ca- racterização de Bhering e Siraj-Blatchord: comunicação, ajuda e envolvimento. Num terceiro momento, tendo em vista a homogenei- dade de resultados, decidimos compactar as categorias em cinco temáticas, para verificar se os resultados indi- cavam novas possibilidades. Para fazer a compactação das 12 categorias afirmati- vas e das oito negativas em cinco, sem alterar a hierar- quização, adotamos sempre o valor mais alto atribuído às categorias compactadas. A categoria prestar serviços voluntários, que pode- ria estar inserida no grupo envolvimento, ficou isolada como uma sexta temática denominada ajuda, tendo em vista a polêmica que sua especificidade causa. Perfil dos professores pesquisados O perfil socioeconômico traçado possibilita explicar diferenças identificadas nas respostas livres ou nas es- timuladas. • A caracterização feita mostrou, em primeiro lugar, que, no grupo de 208 respondentes, 63 não tinham se formado professores ainda, eram normalistas. • Do grupo, 88 são solteiros; supondo que as profes- sorandas, mais novas, sejam solteiras, ficaríamos com 25 solteiros, 97 casados e 10 divorciados; 90% do grupo é do sexo feminino. • Entre os 85 respondentes com filho em idade esco- lar, 52 estudam em escola particular e 32 em escola pública, indicando que, apesar da baixa renda, 60% dos professores colocam seus filhos em estabeleci- mento particular, indício de que não confiam na es- cola pública. • Interessante observar que os resultados do interior mos- tram equilíbrio entre filhos em escola pública (18) e em escola particular (19), o que não ocorreu na periferia do Rio de Janeiro, onde registramos 14 filhos de professo- res em escola pública e 32 em escola particular. • Não pudemos confrontar esses dados com o rendi- mento financeiro dos professores porque o índice de abstenção sobre esse tema foi alto. O universo de pro- fessores pesquisados na periferia se distingue daqueles Número de professores que participaram da pesquisa, por município Município 1a a 4a série 5a a 8a e E. Médio Total Itaboraí 47 (2) 06 (1) 53 (3) São Pedro 46 (2) 14 (2) 60 (4) São Gonçalo 62 (3) 33 (2) 95 (5) Total 155 (7) 53 (5) 208 (12) Num primeiro momento, os resultados tiveram como referência as 12 categorias afirmativas e as oito catego- rias negativas presentes nos repertórios apresentados. Na tabulação das respostas, foi atribuído peso de acordo com a posição na hierarquia, feito o somatório e dividido pelo número de respondentes válidos por turma. Estabe- lecida a ordem média por turma, os dados foram organi- zados por pólo e, depois, por segmento. Com as respostas livres, foi adotado procedimento semelhante para obter a ordem média, mas sem atribuição de peso. Num segundo momento, referenciamos nossa temati- zação a categorias encontradas na literatura. Em primeiro 64 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 do interior, pela presença significativa de professores estatutários e por tempo de serviço bem mais longo. Quem pertence ao Estado e tem tempo de vivência na escola pública parece ser exatamente quem não acredita nela. • Entre os professores em exercício, o número de con- tratados (62) quase alcançou o de efetivos (76). Como a inscrição nesse curso era optativa, podemos afirmar que os contratados estão investindo na sua formação, em geral têm pouco tempo de magistério; e os efe- tivos, apesar de carreira já longa, ainda não desisti- ram de buscar aprimoramento. • No grupo de professores com formação universitária, quase 1/3 deles tinha pós-graduação latu sensu e dois tinham mestrado. Dos professores pesquisados, 60% declararam rendimento abaixo de R$ 1.000,00, muitos com comentários de que era bem abaixo deste valor. • As diferenças entre os professores efetivos e os con- tratados são nítidas e inter-relacionadas. Primeiro, os contratados estão fortemente concentrados no primeiro segmento do Ensino Fundamental, em opo- sição aos efetivos que se dividem entre os dois seg- mentos e o Ensino Médio. • Os contratados se distribuem homogeneamente entre menos e mais de cinco anos de magistério e entre for- mação de nível médio e superior. • Entre os efetivos, 70% tem mais de dez anos de ma- gistério e 80% tem nível superior. Este último índi- ce se explica pelo fato de mais da metade deles tra- balhar com 5a a 8a ou Ensino Médio, cuja formação mínima é a universitária, e pelo plano de carreira do estado prever avanço no enquadramento, de acordo com a formação. Mas é uma surpresa positiva haver índice tão alto de professores com mais de dez anos de magistério freqüentando um curso optativo. Respostas dos professores pesquisados Na tematização das respostas estimuladas, em que foram hierarquizadas 12 alternativas afirmativas sobre a parti- cipação dos pais na escola, repetiram-se três categorias com pequena diferença entre seus índices: • acompanhar tarefas; • interessar-se pelo desenvolvimento escolar; • estimular freqüência e participação do aluno. As três categorias referem-se à execução/envolvi- mento. São categorias que os pais exercem na sua pró- pria casa. Num segundo patamar, apareceram duas categorias em ordem exatamente igual, seja por pólo ou por segmento: • freqüentar reuniões; • comparecer à escola quando chamado. Ambas se enquadram em execução/comunicação e são ações em que os pais atendem à escola, não é deles a iniciativa. As categorias referidas à tomada de decisão ficaram nos dois últimos patamares, ou seja, não se constituem em funções importantes, na ótica dos professores. A função prestar serviço voluntário ficou no último patamar, seja qual for o pólo ou o segmento. Na tematização das respostas estimuladas para hie- rarquização de oito alternativas do que não é função dos pais, num primeiro patamar, tivemos novamente três ca- tegorias, com diferença insignificante entre os índices dos pólos ou dos segmentos: • criticar professor; • fazer dever do aluno; • transferir responsabilidade da educação para a escola. São enquadradas no item execução. Elas, de certa forma, constroem limites à participação dos pais, pois não se admite criticar o professor ou atribuir à escola novas funções. Num segundo patamar, tivemos duas categorias or- denadas de forma idêntica por qualquer dos pólos ou segmentos: • interferir no conteúdo, atividades, horário, planeja- mento; • interferir na relação do filho com o colega. Essas categorias indicam que, na ótica do professor, os pais não devem opinar sobre a prática do professor em sala de aula. As categorias classificadas como to- mada de decisão e prestar serviço voluntário ficaram no último patamar, ou seja, não há uma recusa do pro- 65 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 fessor em relação a essas funções, os pais até podem votar, participar de conselhos ou prestar serviço volun- tário, mas essa função não acrescenta muito ao traba- lho da escola. O leque de variação de índices das respostas livres foi muito mais estreito, típico da pergunta aberta. As ca- tegorias que foram priorizadas nos três pólos e nos dois segmentos, para a definição afirmativa da função dos pais foram: • acompanhar desenvolvimento escolar; • freqüentar reuniões. A diferença entre o primeiro e o segundo segmentos não apareceu na ordem das alternativas, mas na ênfase. Os docentes de 1a a 4a se preocupam mais com desen- volvimento escolar que os de 5a a 8a e estes observam mais a freqüência a reuniões que aqueles. Outra pequena diferença entre os segmentos apare- ceu no segundo patamar de respostas, em que os profes- sores do primeiro elegeram comparecer à escola quan- do chamado e acompanhar tarefas, enquanto os do se- gundo indicaram participar de projetos. Outras categorias tiveram médias semelhantes, mes- mo que pequenas. Ficou claro que, excetuando-se acom- panhar tarefas, as demais categorias não são valoriza- das pelos professores. As opções que dizem respeito à tomada de decisões estiveram sempre entre os menores índices, por pólo ou por segmento. As respostas livres negativas indicaram que, segun- do os professores, não é função dos pais interferir no conteúdo, atividade, planejamento e horário. Essa ca- tegoria ficou em primeiro lugar em todas as ordena- ções. A periferia do Rio de Janeiro teve índice três ve- zes maior que os outros pólos. Essa diferença pode ser atribuída tanto ao tempo de serviço como à rela- ção profissional: • em São Gonçalo, havia o dobro de professores es- tatutários e de contratados em comparação com a presença de 59% de professorandas nos outros pó- los; • o universo de respondentes de São Gonçalo tinha tem- po de serviço quatro vezes maior que os outros pólos. Esses fatores talvez expliquem este excesso de pre- servação das tarefas típicas da profissão. Os professores do primeiro segmento apresenta- ram um segundo patamar de funções indesejáveis: criticar o professor e transferir responsabilidade para a escola. 66 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 No segundo segmento, nenhuma alternativa além da já apontada mereceu destaque. Resistência dos professores Ao confrontarmos os resultados das diversas cate- gorias afirmativas, seja da forma estimulada ou da for- ma livre, por turma de professores, podemos perceber uma tendência que se consolida através de índices pró- ximos e identificar diferenças que contrastam com essa tendência. Numa turma com predomínio de professorandas (22 em 25), a categoria comparecer quando chamado ficou abaixo da tendência no agrupamento por pólo e por seg- mento. Quem ainda não tem prática de professor não va- loriza esse atendimento do responsável. Nessa mesma turma, participar de projetos teve índi- ce superior à tendência predominante no segmento, in- dicando que os futuros professores estão mais preocu- pados com o envolvimento dos pais do que os profes- sores já em exercício. Nesse grupo, as respostas estimuladas não coinci- diram com as respostas livres: estas privilegiaram fre- qüentar reuniões, ou seja, espontaneamente, as pro- fessorandas acham importante que os pais participem de reunião; mas, na resposta estimulada, não se preo- cupam muito com seu comparecimento à escola quan- do chamados. Numa turma de segundo segmento e Ensino Médio, com 18 professores efetivos, em 20, e 16 com mais de dez anos de magistério, percebemos contradição entre as respostas livres e as estimuladas. Acompanhar tarefa destacou-se na resposta estimu- lada; entretanto, na resposta livre, essa mesma categoria chamou atenção por seu baixo índice, ou seja, por não ser lembrada como uma função importante do responsável. De forma semelhante, na resposta estimulada inte- ragir com a comunidade teve índice acima da tendência; mas, na resposta livre, participar de comemoração, que é uma forma de envolvimento, teve baixo índice. Numa outra turma de 5a , 8a e Ensino Médio, com ca- racterísticas semelhantes, predomínio de estatutários com mais de dez anos de magistério, verificou-se a con- sistência de respostas entre a forma livre e a estimula- da em relação à pouca importância da categoria intera- gir com a comunidade. Compactadas as categorias em seis temáticas, foram construídos quadrantes baseados na ordem média e na freqüência: tivemos como núcleo central das funções afirmativas apoiar pedagogicamente e atender comuni- cação (quadrante superior esquerdo). Em patamar bem abaixo (quadrante inferior esquer- do), temos as funções relacionadas a envolver-se e a demandar. E, no último quadrante, temos as categorias de in- tervir e ajudar. As prioridades não mudaram, mas as categorias com- pactadas revelaram com mais clareza a hierarquia esta- belecida pelos professores para a função dos pais na escola, das categorias menos ativas para as mais ativas dos pais na vida escolar: • em primeiro lugar, apoiar pedagogicamente de acor- do com as orientações emanadas da escola; • logo a seguir, atender as convocações da escola para reuniões ou encontros individuais para transmitir orientações emanadas da escola; • só então começam a aparecer categorias que reve- lam envolvimento, como participar de projetos, ou de comemorações (a rigor, aqui poderia ser incluída a prestação de serviço voluntário); • crescendo um pouco mais a iniciativa dos pais, e a incidência de respostas diminuindo, temos a deman- da por informações e serviços; • finalmente, no último patamar, todas as categorias em que o pai é ativo: participar de conselhos, de eleição e de gestão; • a prestação de serviço voluntário, isolada do envol- vimento, fica também no último patamar. Os quadrantes construídos com as funções que o pai não deve desempenhar na escola mostraram essencial- mente dois fatos: a resistência dos professores à parti- cipação ativa dos pais, seja votando ou fazendo parte da gestão, seja discutindo ou opinando sobre planeja- mento, conteúdo, horário e outras determinações con- sideradas exclusivas dos professores. Por lógica, a prestação de serviços deveria estar junto com as categorias ativas, no quadrante superior esquer- do, já que ambas estão no último quadrante das funções afirmativas. Mas este não foi o resultado encontrado. A prestação de serviço, tanto na função afirmativa quan- to na negativa, encontra-se no último patamar. Ou seja, Na ótica do professor, os pais não devem opinar sobre a prática do professor em sala de aula. 67 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 essa função está no final da escala de prioridades e tam- bém está no final da escala de recusa. Esse resultado sugere que a rejeição à prestação de serviço deve ter motivos muito diferentes daqueles rela- cionados à tomada de decisão. Pode-se supor que essa rejeição tenha relação com a crítica ao abandono, pelo Estado, da escola pública, levando à necessidade de se buscar serviço voluntário. Nas categorias compactadas, também não encontra- mos diferenças significativas entre os segmentos. Há pe- quenos detalhes. Por exemplo: os professores de primeiro e de segundo segmento e Ensino Médio priorizam apoiar pedagogicamente, seguido de atender a comunicações. A ordem foi a mesma nos dois segmentos. Mas os pro- fessores de 1a a 4a séries foram mais intensos na preocu- pação com o apoio pedagógico que os de 5a a 8a séries e Ensino Médio; e estes revelaram-se mais preocupados com atendimento a comunicações que aqueles. Outra pequena diferença foi registrada no segundo patamar de respostas, em que os professores de primei- ro segmento priorizam ações ligadas a envolvimento e os professores especialistas priorizam posturas mais ati- vas, como demandar informações e serviços. Representações dos professores sobre a participação dos pais O primeiro fato que chamou atenção foi a homoge- neidade dos resultados. Não foram constatadas dife- renças significativas entre os pólos. E também não fo- ram encontradas distinções que chamassem atenção entre a visão dos professores do primeiro segmento e a dos docentes do segundo segmento ou Ensino Médio sobre a função do pai na escola, diferentemente do que costuma ocorrer sobre outros assuntos. Ou seja, temos aqui uma questão cuja representação parece ser única para a corporação. Essa homogeneidade também ficou patente no paralelismo de resultados entre a maioria das respostas livres e a das estimuladas. Finalmente, a homogeneidade também se revelou na reincidência das categorias eleitas dentro de cada patamar de respostas: mesmo que um segmento ou pólo pudes- se ter estabelecido ordens diversas dentro daquele pa- tamar, as categorias eram as mesmas. Ficou evidenciado que a representação dos professores sobre as funções dos pais na escola privilegiou acompa- nhar o desenvolvimento escolar e freqüentar reuniões. Ambas as categorias dizem respeito à execução, uma voltada para o envolvimento e outra para a comunicação. As duas funções são decorrentes de determinações da escola: o pai acompanha aquilo que a escola propõe para o desenvolvimento do aluno e comparece às reu- niões convocadas pela instituição. Para desempenhar a primeira função, o responsável nem precisa sair de casa. A segunda exige a presença dele na escola; entretanto, ela está revestida de um ca- ráter de obrigação. Outras categorias que tiveram presença reincidente no primeiro e segundo patamares, tanto das respostas livres quanto das estimuladas, endossaram a mesma interpretação, pois acompanhar tarefas está dentro da mesma área de significação que acompanhar o desen- volvimento escolar e comparecer à escola quando cha- mado e mantém o mesmo teor de comparecer às reu- niões, com o mesmo caráter de exigência. Na compactação, isso ficou evidente, deixando iso- ladas no núcleo central as categorias apoiar pedagogi- camente e atender a comunicação. As categorias que envolvem iniciativa dos pais, seja para tomada de decisões, seja para estabelecer comu- nicação, nas respostas livres e nas estimuladas, não fo- ram privilegiadas pelos professores, pois tiveram os me- nores índices. A função que não compete aos pais concentrou pólos e segmentos em torno da mesma opção: não interferir no conteúdo, atividade, planejamento e horário. Ficou níti- do que o professor rejeita a intervenção do pai naquilo que considera a essência do seu trabalho. Essa compreensão foi reforçada pelas respostas es- timuladas. Criticar o professor, na resposta estimulada, superou a interferência na sua prática, pois o professor, espontaneamente, nem ousaria sugerir a possibilidade de ser criticado. As categorias que colocam iniciativa na mão dos pais – discutir a função da escola, questionar o professor ou As categorias que envolvem iniciativa dos pais, seja para tomada de decisões, seja para estabelecer comunicação, nas respostas livres e nas estimuladas, não foram privilegiadas pelos professores. 68 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 o dever – só podem ser rejeitadas nas respostas estimu- ladas, pois, na forma livre, nem seriam formuladas. Assim, confirmamos o que Täncredi e Reali afirmam: os professores parecem resistir às interferências fami- liares, especialmente ao seu fazer pedagógico, e ainda mais se a interação é iniciada pelos pais. As categorias participar de gestão e prestar serviço voluntário nem apareceram nas respostas livres sobre a função que não compete aos pais. Na respostas estimuladas, obtiveram os menores ín- dices. Ou seja, essas ações não são consideradas fun- ções típicas paternas e também não são recusadas como funções inadequadas. Conclui-se que o professor não está preocupado se os pais participam ou não da gestão, se votam ou se pres- tam serviço voluntário. E se os pais desempenharem essa função, aparentemente, nada muda, pois não há qual- quer reação consistente a essas funções. Pode-se supor, como indicou Paro, que os professo- res não acreditam que os pais vão desempenhar essas funções; portanto, podem responder sem qualquer com- promisso com coerência. Em suma, a representação dos professores parece indicar que a função dos pais na escola distancia-se do nível da política escolar, como quer Horta, ou da tomada de decisão, como afirma Paro. A função dos pais fica, então, circunscrita ao atendi- mento da escola: • os pais devem estimular a freqüência e a participa- ção do filho, acompanhar as tarefas, interessar-se pelo seu desenvolvimento, freqüentar as reuniões, comparecer à escola quando chamado; • mas o pai não deve solicitar informação ou serviços, opinar sobre aspectos pedagógicos, ou discutir a fun- ção da escola. Com essa visão a respeito da função dos pais na es- cola, é difícil acreditar no empenho dos professores em busca de sua participação. Segundo Paro, a participação democrática não se dá espontaneamente, há necessidade de mecanismos ins- titucionais que viabilizem e incentivem práticas partici- pativas na escola. Cabe aos educadores escolares erigirem esses canais. Infelizmente, nossa pesquisa referenda a observação de Paro, que esses profissionais não valorizam práticas que pressuponham o envolvimento do sujeito na solu- ção de seus problemas. REFERÊNCIAS BHERING, E.; SIRAJ-BLATCHFORD. 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NOTA 1 Esta mesma perspectiva por parte dos professores foi registrada em pesquisa sobre a demanda da escola pública de horário integral, indicando que não se trata de estigmatização desse tipo de escola. 69 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 1 ABDALAZIZ DE MOURA é presidente do Serviço de Tecnologia Al- ternativa – Serta. E-mail: ; tel: 081 9299.7775, Centro Tecnológico da Agricultura Familiar – CTAF 087.3932.5008. O Serviço de Tecnologia Alternativa – SERTA vem, desde 1993, tentando aproximar a família da escola e vice-ver- sa. Muito se tem descoberto nessa iniciativa. O objetivo deste texto é partilhar com os leitores as experiências e refletir sobre elas. 1. Uma relação de desconfiança Quando o SERTA insistia na aproximação da escola com as famílias, numa proposta de Educação do Campo, en- contrava uma resistência quase instintiva da parte das professoras. Era comum a professora dizer que os pais não viriam à escola, não atenderiam ao convite. Por trás dessa desconfiança, estava uma prática antiga de a fa- mília ser chamada à escola somente em casos de recla- mação a respeito do filho ou filha. Tratava-se de algum comportamento indesejado que a professora se via sem condição de resolver sozinha; então, chamava a família para reclamar, para cobrar, até mesmo para punir o filho. Essa atitude virou uma cultu- ra, de modo que ser chamado para comparecer à escola já deixava a família de “orelha em pé”: O que houve com meu filho? O ele aprontou dessa vez? Podia não ser nada disso, podia ser diferente, mas o pai ou mãe já iam inseguros. Além disso, no meio rural, muitas mães e pais não têm o domínio das letras, da escrita, da oralidade, como a escola tem. Vir discutir algum assunto na escola é como vir em desvantagem: As professoras sabem mais, falam melhor, eu lá entendo disso! Os meios de comunicação, os modos de travar uma conversa, os professores dominam muito melhor que os pais. Também enxergam a escola como se fosse uma auto- ridade que os convoca para algum “puxão de orelhas”. Um bilhete da escola vem carregado de cobrança: nota, comportamento, atraso de pagamento, alguma taxa. Exceção para os dias das mães e dos pais. Nesses dias, eles vêm com gosto, com prazer, pois sabem que vão ser homenageados, que as atenções se voltam para eles, que a escola prepara alguma surpresa agradável com seus filhos, para eles. Há um clima, uma ambiência agradável, favorável à presença e ao encontro. 2. Um olhar mais aguçado No debate com as professoras, o SERTA partia dessa experiência gostosa que é ser convidado para uma fes- ta em sua homenagem. Os pais se aproximam quando percebem que são importantes, quando sabem que o que lhes espera é algo bom! Distanciam-se quando des- confiam! Não sabem se vão ser chamados à atenção ou RELATO DE PRÁTICA Que relações de cooperação são possíveis entre a família e a escola? Abdalaziz de Moura 70 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 se vão ser elogiados! Há três coisas a considerar: a for- ma de convidar, a finalidade do convite e o papel que se atribui à família. A forma do convite Na Proposta de Educação trabalhada pelo SERTA, qual é a forma de convidar? Inicialmente, por meio de uma am- pla mobilização dentro e fora da escola, com os alunos participando da redação do convite, com os alunos in- formados e preparados para o que vai acontecer no en- contro, organizando equipes entre os que conhecem a mesma família, para reforçar o convite, ampliando o con- vite a outras lideranças comunitárias, tais como o agen- te comunitário de saúde, o dirigente da associação, do sindicato, do clube... Os estudantes vão vivenciando outra experiência: convidar a família já passa a ser um interesse deles e não só da escola. Já se sentem comprometidos com o resul- tado da mobilização. A professora aproveita as oportu- nidades para lembrar o dia, a hora, confirmar com o alu- no se já falou, se os pais já deram resposta. Tanto os es- tudantes quanto as famílias começam a se sentir valori- zados pela forma de operacionalizar o convite, uns já re- forçam aos demais para que não faltem. A finalidade do convite A escola, se não é, poderia e deveria ser um centro pro- dutor e difusor de conhecimento. Ela pode se propor a esse fim, mais do que qualquer outra instituição, pela tra- dição, pela legitimação, pelo reconhecimento, pela capi- laridade e presença nas menores comunidades. E, princi- palmente, pelo sistema e rede nos quais se insere. A escola tem uma atividade diária, consagra o míni- mo de quatro horas por dia ao estudo, usa avaliação, é progressiva, é financiada para esse fim. Porém, é fá- cil reconhecer que ela não é a única instituição que pro- duz conhecimento. Qualquer comunidade humana vive produzindo e ne- cessitando de conhecimento. Se essa comunidade é ru- ral ou urbana, da periferia ou do centro da metrópole, se pretende se desenvolver, só vai ser possível se mais co- nhecimentos forem construídos pelos seus habitantes. Mas não é só de conhecimento que a escola e as comu- nidades vivem e precisam. Necessitam tanto de valores e de crenças como de novas relações pessoais, institu- cionais e de produção. No meio rural e no campo, ou as comunidades incor- poram, resgatam, assimilam, constroem novos conheci- mentos, valores, relações, ou não saem do patamar no qual se encontram. Só que conhecimentos, valores, re- lações, muita gente que vive nas comunidades já tem de forma social, prática, o suficiente para sobreviver no seu dia-a-dia. Mas, na sociedade contemporânea, impôs-se a convicção de que esse tipo de conhecimento não é im- portante, nem muito verdadeiro. O conhecimento impor- tante é o científico. Essa convicção amplia o fosso entre a escola e a comu- nidade. Na hora em que ambos começarem a entender que 71 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 os conhecimentos são de diversos tipos e atendem a ne- cessidades diferentes, vão perceber que na comunidade há quem domine conhecimentos. E que poderiam ensi- nar na escola, compartilhar, num ambiente mais legiti- mado e reconhecido, os conhecimentos que têm. Quan- do isso acontece, muda radicalmente a relação entre a escola e as famílias. A escola vai entender que não sabe ensinar a cozi- nhar, tomar conta de criança, plantar, cuidar dos ani- mais, manejar o roçado e o criatório, fazer cerca, vacinar os animais, fazer uma feira, dividir o dinheiro do mês, ti- rar empréstimo, vender, organizar uma associação, pre- parar carne de sol, fazer queijo, manteiga. No entanto, são conhecimentos imprescindíveis que uma comunida- de rural precisa ter, entre tantos outros. Esses conhecimentos, considerados práticos, assimi- lados pela vivência e pelo trabalho no processo de de- senvolvimento, precisam elevar seu patamar, chegar a um nível mais técnico, mais científico. Esse, por sua vez, precisa ser dominado amplamente pelas pessoas da co- munidade, como acontece com a leitura, a escrita, a ma- temática e a informática. Se não houver esse avanço, a comunidade não sai do patamar em que se encontra. Os criatórios dos animais vão ficar sempre em um nível precário, pois os jovens que foram para a escola nada trouxeram para o avanço deles. Os filhos se formam, concluem o ensino básico e os pais continuam cuidando dos animais do mesmo jei- to de quando seus filhos não estavam na escola. Em outras palavras, a escola não trouxe para a famí- lia uma contribuição científica, técnica, para melhorar o seu rebanho. Nem valorizou o que as famílias já têm, nem acrescentou o novo que lhes falta. O pai, a mãe, as lideranças locais estão à margem do processo, como se o papel da escola fosse outra coisa, como se o conhe- cimento que ela cultiva fosse de outra ordem e nature- za, como se fosse para outro público. Os filhos são pre- parados para abandonar essa família, ir para a cidade, manejar outros conhecimentos, cuidar de outros valores e relações. Essa família está condenada a se manter no campo, sobreviver só com os conhecimentos já incorpo- rados ao senso comum! Evidente que, com esse pressuposto, a parceria entre a família e a escola não acontece, pois, o que está por trás é o resquício, alimentado pela cultura, de uma re- lação entre o ignorante e o sabido, em que ambas acei- tam os papéis tradicionalmente atribuídos pela socie- dade a uma e a outra. Uma domina o saber científico e técnico (e assim mesmo, com muitas reservas!) e a ou- tra, o saber prático. Ambas estão bem no lugar e no pa- pel que exercem. O papel que atribuem à escola e à família Se esses papéis são para permanecer, nem adianta fa- lar de cooperação entre escola e família, porque ela já está contaminada e viciada. Já vem com vírus e pode es- tragar. Uma já vai se apresentar melhor do que a outra, com mais autoridade sobre a outra, uma avaliando a ou- tra, uma sendo sujeito e outra sendo objeto, uma con- duzindo o processo e outra se adaptando. São relações de subordinação e não de cooperação. 3. Construindo novas relações As comunidades são como as pessoas: elas precisam evoluir, manter-se e perpetuar-se. Para isso, elas se apro- priam do patrimônio construído pela sociedade. As for- mas de apropriação e o nível variam muito de lugar para lugar. Mas não se pode negar que as comunidades pre- cisam cada vez mais de usar conhecimentos e cultivar valores e relações. Não podemos aceitar a idéia de que o filho chegou à universidade e a propriedade da famí- lia não tenha saído do Fundamental I. Podemos imaginar, então, um centro produtor e difu- sor desses conhecimentos e valores: é a escola intera- gindo com as famílias. Os alunos participando da cons- trução de conhecimentos úteis para melhorar a sua pro- priedade e o ganho de sua família, em que o nível de aproveitamento dos recursos da propriedade se amplia à medida que o filho avança na escola. Se não acontecer assim, para que serve o conheci- mento? Se ele não repercute nas casas, se não traz con- seqüência, se não é útil aqui e agora, se não melhora a vida, o meio ambiente, a natureza, os animais, a vegeta- ção, a água, a cidadania, o direito, a política, então, para que serve? Se servir para a vida, a escola passa a exer- cer a função de um grande laboratório, aberto à partici- pação dos mais diversos autores, atores e agentes so- ciais, aos técnicos da saúde, da agricultura, às lideran- ças, aos pais e às mães de alunos. Torna-se uma escola aberta não só nos finais de se- mana, não só com suas instalações, quadra de esporte e laboratório de informática, e sim com o seu projeto po- 72 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 lítico-pedagógico. Os pais passam a se sentir membros da escola, mesmo que não estejam no EJA, porque inte- ragem diretamente com seus filhos na propriedade. Os professores circulam nas propriedades e os familiares circulam nas escolas, numa relação de parceria, de in- tercâmbio, de troca de conhecimentos, experiências. A escola passa a pulsar com as demandas e necessidades da comunidade e vice-versa. Estou escrevendo este artigo na mesma semana que estão passando pelas minhas mãos alguns projetos dos municípios para concorrer ao Selo Unicef. É gratificante perceber que as escolas vivenciaram, experimentaram o sabor de uma escola pulsando com a comunidade. Seu desafio vai ser incorporar essa oportunidade no dia-a-dia da escola, como projeto político-pedagógico e não só para concorrer ao selo. 4. Concluindo Escolas com essa relação com a comunidade existem, têm nome e endereço: as que usam a Peads – Propos- ta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, criada pelo Serviço de Tecnologia Alternativa - Serta. Dez dessas escolas, no estado de Pernambuco, estão viven- ciando um processo de formação e capacitação em que participam familiares, gestores, educadores, alunos, e todos se envolvem nas práticas e conhecimentos úteis para as famílias. Esse trabalho articula-se com o Centro Tecnológico da Agricultura Familiar - CTAF, com sede em Glória do Goitá (Zona da Mata) e Ibimirim (Semi-árido), nas quais os sujeitos sociais recebem a primeira formação de dois dias; a partir daí, as formações na escola passam a con- tar sempre com alunos, familiares e educadores. O Uni- cef está patrocinando esse projeto, com uma rede de dez escolas, em dez municípios, e a Fundação Kellogg apóia a rede em mais dez escolas de dois municípios. Pais e mães foram convocados a participar pelas suas qualidades, seus valores e seus saberes. As rela- ções com a escola não são mais as mesmas; em casa, a relação com os filhos que estudam mudou, eles discu- tem e fazem juntos as ações discutidas na escola e na propriedade. BIBLIOGRAFIA MOURA, Abdalaziz de. Princípios e fundamentos da Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, uma proposta que revoluciona o papel da escola diante das pessoas, da sociedade e do mundo. 2. ed. Recife: 2003. MOURA, Abdalaziz de; VICENTE, Ilza André; SILVA, Socorro; MARIA, Iramaí (Org.) Múltiplos olhares de uma caminhada pedagógica: a Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável – Peads. Recife: 2006. MOC; SERTA, UEFS. Educação rural, sustentabilidade do campo. Feira de San- tana: 2003. CEE; MEC. Diretrizes Curriculares para a Educação Básica nas Escolas do Campo. BSB, 2002. DAMASCENO, Maria Nobre. A construção do saber social pelo camponês na sua prática produtiva e política. In: Sociedade civil e educação. Campinas: Papirus, 1991. p.35-56. 73 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 74 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 75 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 * Tânia de Freitas Resende é doutora em Educação, professora-adjunta da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadora do Observatório Sociológico Família-Escola (OSFE/FaE/UFMG). Artigo E Tânia de Freitas Resende* “Coragem para a luta”: desafios e potencialidades da relação escola-famílias. [...] expressamos nossos desejos de morte também quando sonha- mos com um espaço onde não existem conflitos, nem diferenças, nada em desequilíbrio, nada em movimento, processo, transfor- mação; tudo jaz na perfeita e absoluta calmaria do homogêneo massificado. [...] Paixão alegre, desejos de vida dão muito trabalho, porque gestados no conflito, nas diferenças, no heterogêneo, no desequilíbrio das hipóteses, no choque do velho e do novo, na mudança, na trans- formação, no enfrentamento do caos da ação criadora, na ação do imaginar, sonhar os desejos juntamente com os outros. [...] Estar vivo é estar em conflito permanentemente, produzindo dúvi- das, certezas sempre questionáveis. [...] Para permanecer vivo, educando a paixão, desejos de vida e de morte, é preciso educar o medo e a coragem. Medo e coragem em ousar. Medo e coragem em assumir a solidão de ser diferente. Medo e coragem em romper o velho. Medo e coragem em construir o novo. Medo e coragem em assumir a educação desse drama, cujos personagens são nossos desejos de vida e morte. [...] Somos sujeitos porque desejamos, sonhamos, imaginamos e criamos; na busca permanente da alegria, da esperança, do forta- lecimento da liberdade, de uma sociedade mais justa, da felicidade a que todos temos direito. Este é o drama de permanecer VIVO... fazendo educação! Madalena Freire, 1992, p. 13-14. 76 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Novos contornos da relação escola-famílias “Vais encontrar o mundo”, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. “Coragem para a luta”. Assim se inicia o livro O Ateneu, de Raul Pompéia, publicado em 1888. O narrador-personagem é Sérgio, garoto de 11 anos que acaba de ser deixado por seu pai em um internato para meninos. O gesto do pai de Sérgio, ao deixar o filho na esco- la e recomendar “coragem”, pode ser usado para sim- bolizar a relação estabelecida pelas famílias, na época, com a instituição escolar. Tanto no regime escolar de in- ternato, como era o caso do Ateneu, quanto no de exter- nato, o filho era, durante o período letivo, entregue aos cuidados e à autoridade dos professores. A família tinha pouca participação direta em sua vida escolar. Quando comparecia à escola era, geralmente, para resolver pro- blemas disciplinares e questões relativas a materiais e uniformes escolares, ou para participar de algum even- to. Em síntese, até meados do século XX, na sociedade ocidental, as relações entre escolas e famílias não envol- viam muitas interações diretas (Nogueira, 2006). Esse cenário começou a mudar a partir da segunda me- tade do século passado, no sentido de uma aproximação entre as duas instituições e de uma intensificação dos contatos entre elas. Mais do que isso, Terrail (1997, p. 68) afirma que ocor- reu uma “reestruturação histórica da divisão de tarefas educacionais entre a escola e a família”, a qual evoluiu no sentido de uma “imbricação crescente de territó- rios”: enquanto a escola atraiu para si funções antes re- servadas à família e passou a influenciar mais fortemen- te a vida familiar, os pais também passaram a interferir no sistema escolar, de formas diretas (como a partici- pação em órgãos de gestão da escola) ou indiretas (por exemplo, por meio do apoio mais intensivo à escolari- dade dos filhos). Segundo estudiosos, como Montandont (2001) e No- gueira (2006), essa mudança nas formas e na intensi- dade da relação entre escolas e famílias ocorreu em vir- tude de profundas transformações vividas pelas duas instituições durante o século passado. No âmbito da escola, verificou-se, entre outras trans- formações, uma importância crescente da escolarização, levando à democratização do acesso ao ensino e à ex- tensão da escolaridade obrigatória. A evolução dos prin- cípios pedagógicos fez surgir uma preocupação com a continuidade entre os processos educativos familiares e escolares e com o bem-estar psicológico e emocional do educando, gerando maior necessidade de aproxima- ção com as famílias. Do ponto de vista das famílias, as autoras apon- tam, além de outras, transformações como a participa- ção crescente da mulher no mercado de trabalho, a re- dução do número de filhos, o maior investimento edu- cacional em cada membro da prole, a mudança nas re- lações hierárquicas e afetivas, tudo isso contribuindo para uma tendência ao acompanhamento mais próxi- mo e sistemático do desenvolvimento do filho, incluin- do sua vida escolar. Assim, voltando à imagem usada no início deste ar- tigo, pode-se dizer que as famílias de hoje são bastante diferentes da família de Sérgio, que as escolas não são mais como o Ateneu e que as relações entre as duas ins- tituições intensificaram-se em conseqüência das mudan- ças vividas. Essa intensificação passou a ser alvo de po- líticas públicas educacionais voltadas para o incremen- to da cooperação entre famílias e escolas. Ao lado disso, difundiram-se “uma ideologia da co- laboração e um discurso – tanto por parte dos profissio- nais do ensino, quanto por parte dos pais – que pregam a importância e a necessidade do diálogo e da parceria entre as duas partes” (Nogueira, 2006, p. 156). Os motivos alegados para essa parceria vão desde os efeitos positivos para o desempenho escolar dos filhos – argumento clássico que, enfatizado em diversas pes- quisas, tem assumido os contornos de um dogma (Silva, 2003) − até a democratização da escola e da sociedade, passando pelo enfrentamento de múltiplas questões so- ciais, como a violência e o uso de drogas. Entretanto, para além dos discursos, a aproximação entre escolas e famílias não acontece sem conflitos, ten- sões e ambigüidades. Para Silva (2003, p. 23), trata-se de uma “relação armadilhada”, no sentido de que é “eivada de todo um potencial conjunto de efeitos perversos”. Montandon e Perrenoud (2001, p. 2) afirmam que o diálogo entre as duas instituições, o qual se preten- deria “permanente, aberto e construtivo”, é na verda- de “desigual e frágil”, quando não impossível. Santos (2001) identifica uma “proximidade distante” entre pais e educadores. 77 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Seja nos trabalhos acadêmicos, seja nas publicações da grande mídia, freqüentemente se evidenciam as difi- culdades da comunicação, os desafios em relação à par- ticipação efetiva dos pais na escola e na vida escolar dos filhos, a complexidade da divisão de tarefas entre as duas instâncias de socialização. Comumente, assiste-se a uma culpabilização recípro- ca entre pais e profissionais escolares, especialmente quando se trata de problemas como a indisciplina ou o baixo desempenho dos alunos nos estudos. O fato é que, mais próxima ou mais distante, mais conflituosa ou menos, mais direta ou indireta, a relação entre escolas e famílias é, atualmente − pelo menos no que se refere ao ensino fundamental, no caso brasileiro − obrigatória para ambos os seus pólos. Não há como escapar dela. A partir do momento em que os pais são obrigados legalmente a matricular o filho na escola e a assegurar sua freqüência às aulas, pode-se afirmar que um primeiro nível de relação entre família e escola está compulsoria- mente estabelecido. Por menos freqüentes que venham a ser os contatos diretos entre as duas instituições, a re- lação estará instituída e trará desdobramentos para as dinâmicas internas das duas. Nos dizeres de Perrenoud (2001, p.34), [...] mesmo quando as relações diretas se rompem ou se reduzem à sua expressão mais simples, pais e professores permanecem interdependentes e continuam a comunicar através da criança. No que se refere à escola, a obrigação legal vai além: o artigo 12 da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educa- ção Nacional (Brasil, 1996) atribui aos estabelecimentos de ensino as incumbências de “articular-se com as famí- lias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola” e de informar os pais sobre a freqüência, o rendimento do aluno e a execução da pro- posta pedagógica. Essas incumbências correspondem a uma das novas competências que Perrenoud (2000, p. 109) apresenta como prioritárias para a formação de professores/as do ensino fundamental: “informar e envolver os pais”. Ou seja, embora, como em qualquer relação, a quali- dade do vínculo entre escola e família dependa sempre de ambas as partes, considera-se caber à escola a inicia- tiva de promover a aproximação com as famílias e espe- ra-se dos profissionais escolares a proposição de estra- tégias de interação, a mediação de conflitos, a criação de processos colaborativos. Trata-se de atribuições que não eram esperadas de um educador do Ateneu ou de outra escola da época, e de habilidades que ainda hoje não são devidamente enfati- zadas nos cursos de formação inicial de professores. Pode-se afirmar que, no exercício de uma nova pro- fissionalidade docente (Nóvoa, 1992), requerida pelo mundo contemporâneo, os educadores escolares são chamados a um processo de reflexão crítica sobre sua experiência, à luz dos saberes das diversas ciências da educação, de forma a construir competências até en- tão não asseguradas e responder a desafios muitas ve- zes imprevistos. Para além da “ideologia da parentocracia” Em 2001, a ONG La Fabbrica do Brasil realizou, em parceria com o Ministério da Educação, uma pesquisa voltada para a relação escola-família, na qual foram en- trevistados 199 profissionais do Ensino Fundamental e 78 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Médio (professores e coordenadores) de todas as regi- ões do país. Registraram-se, entre outros, os seguintes resultados: • 99,5% dos entrevistados consideravam a integração família/escola muito importante, mas 70,3% dos pro- fissionais da escola pública e 48,4% dos que atuavam em escolas particulares consideravam insatisfatória a participação das famílias na vida escolar dos filhos; • 57,3% dos entrevistados atribuíam à família os pro- blemas de disciplina existentes na maioria das esco- las, afirmando que as famílias “são ausentes”, “não impõem limites”, “estão desestruturadas e com des- regramentos” (La Fabbrica, 2001). Em novembro de 2007, a revista Nova Escola publi- cou os resultados de uma pesquisa encomendada ao Ibope, envolvendo 500 professores das redes públicas de todas as capitais brasileiras (Gentile, 2007): 77% dos entrevistados assinalaram, como um dos principais pro- blemas da sala de aula, a ausência dos pais, ao lado da desmotivação dos alunos (70%) e da indisciplina e fal- ta de atenção (69%). Os números das duas pesquisas confirmam uma ten- dência insistentemente verificada nos contatos com os profissionais escolares, em diferentes ocasiões: a de um discurso que culpabiliza as famílias por problemas esco- lares como a indisciplina ou o baixo desempenho dos alu- nos, desqualificando-as como omissas, ausentes, deses- truturadas, desinteressadas, pouco participativas. Esse discurso pode ser relacionado ao que Brown (1990, apud Silva, 2003) chama de “ideologia da paren- tocracia”: a idéia de que o principal fator de influência nos resultados educacionais seria constituído pelo dese- jo e envolvimento dos pais. Para o autor, essa ideologia teria vindo substituir, no caso do Reino Unido, a ideolo- gia meritocrática, que associava o sucesso ou o fracasso escolar à aptidão e capacidade de cada aluno. A esse respeito, um primeiro aspecto a ser ponde- rado refere-se ao fato de que, se boa parte da literatura educacional vem apontando os efeitos benéficos do en- volvimento dos pais com a escolaridade dos filhos, essa ainda é uma questão em aberto, em relação à qual há várias polêmicas. Montandon (2001) alerta que os estudos que abor- dam esses efeitos − seja em relação aos próprios pais, aos professores, aos alunos ou ao funcionamento da escola − baseiam-se em correlações e não em relações causais. Silva (2003) faz um panorama de vários desses estudos, destacando, além daqueles que enfatizam os efeitos benéficos, outros que problematizam os resulta- dos desse envolvimento. Em pesquisa recente, em uma escola pública de Belo Horizonte, Diniz (2008) observa a prevalência da “ideo- logia da parentocracia”: nessa escola, a ficha avaliativa do aluno, entregue aos pais ao final de cada etapa letiva, inclui uma avaliação da participação familiar na escola- ridade dos filhos, pois os educadores consideram exis- tir uma correlação entre esta e o desempenho escolar. Entretanto, utilizando a classificação feita pelos próprios professores a respeito do envolvimento das famílias, a pesquisadora constata tanto crianças com bom desem- penho que têm pais classificados como pouco participa- tivos quanto o inverso. Ainda que se considere a mobilização familiar como um fator de influência importante no desempenho dos alunos, o que chama a atenção é a recorrência com que se centralizam os argumentos nesse fator, excluindo as interrogações sobre outros, inclusive relativos à própria atuação da escola. Uma coisa é considerar que o envol- vimento dos pais favoreça o sucesso escolar dos filhos; outra, é apontar como principal problema escolar a au- sência ou falta de participação das famílias. Diante da complexidade do problema do sucesso/fra- casso escolar, essa se revela uma abordagem reducionista, que mistifica a realidade ao camuflar outros possíveis fa- tores de influência. Cabe lembrar que, na história da edu- cação brasileira, isso já aconteceu em momentos anterio- res, nos quais se explicou o “fracasso da/na escola”, prio- ritariamente, pela ideologia do dom, depois pela ideologia da deficiência cultural (Soares, 1986), dentre outras. Segundo Silva (2003), a ideologia da parentocra- cia contribui para a reprodução das desigualdades so- ciais, ao responsabilizar as famílias pelo sucesso ou in- sucesso dos educandos, desresponsabilizando o Esta- do e culpando as vítimas. Do ponto de vista da relação entre escolas e famílias, essa ideologia encerra os edu- cadores escolares em uma visão homogeneizadora das famílias, dificultando o estabelecimento de um efetivo diálogo com elas. Superar essa visão e empreender um diálogo de fato exige abertura para compreender a reali- dade de diferentes grupos familiares, seus valores, pro- jetos, necessidades. Imagine-se uma escola em que o índice de participa- ção direta dos pais se mostre pequeno: baixa freqüência às reuniões de pais, convocações para vir à escola não 79 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 atendidas, bilhetes não respondidos, deveres de casa aparentemente não acompanhados... Quais os caminhos de ação para os profissionais? Rotular as famílias como pouco envolvidas, omissas ou pouco participativas é um deles. Essa opção signi- ficará encerrar as possibilidades de diálogo, encontrar uma justificativa relativamente simples e conservar o problema. Outro caminho, certamente mais complexo e desafiador, mas provavelmente também mais fecundo, é o que leva da ação à reflexão e à proposição. Refletir e buscar compreender ou interpretar o fenômeno é o pri- meiro passo dessa jornada. Alguns elementos de reflexão • Ofício de pai/mãe de aluno Uma primeira reflexão relevante, no caso, aponta para o fato de que, ao matricular seu filho na escola pela pri- meira vez, os pais são chamados a exercer um novo ofí- cio, um novo papel social, para o qual nem sempre estão preparados: o ofício/papel de “pai/mãe de aluno”, que é diferente do ofício de pai/mãe de criança ou jovem. Por um lado, os pais passam a dividir com a escola responsabilidades educacionais antes restritas a eles − desde a responsabilidade de guarda e vigilância dos fi- lhos até a de sua formação moral, por exemplo. Por ou- tro lado, são chamados, também, a desempenhar tare- fas, atender a demandas e assumir responsabilidades que antes não lhes eram imputadas. Perrenoud (2001) faz um instigante inventário dos impactos da escolarização sobre as famílias, os quais envolvem desde o gerenciamento do tempo e do orça- mento domésticos para enfrentar as necessidades liga- das à escola, até a atuação dos pais no acompanhamen- to à vida escolar da prole. O exercício desse ofício de “pai/mãe de aluno” e, con- seqüentemente, a intensidade e as formas de participa- ção dos pais na vida escolar dos filhos não ocorrem de forma idêntica em todos os casos ou em todos os gru- pos sociais. Ao contrário, dependem de uma variedade de fatores e condições: valores e projetos familiares, ex- periências anteriores de escolaridade vividas pelos pró- prios pais, experiências escolares do filho em questão, condições socioculturais, econômicas e até mesmo afe- tivas da família, formas de interação que a escola esta- belece, entre outras. • Continuidade ou descontinuidade cultural entre família e escola A escola, freqüentemente, espera e conta com a parti- cipação das famílias com base em um modelo idealiza- do que corresponde apenas a algumas delas. Entretan- to, as realidades dos grupos familiares são diversas e po- dem implicar continuidades ou descontinuidades cultu- rais entre família e escola. Diversos estudos no campo da sociologia das rela- ções família-escola têm contribuído para essa compre- ensão. A pesquisa de Nogueira (2000), por exemplo, fo- caliza um tipo de família que corresponde ao ideal dese- jado pela maioria dos professores: os pais são professo- res universitários, com escolaridade elevada e grande in- vestimento na vida escolar dos filhos, a qual é colocada como prioridade do grupo familiar e acompanhada por meio de estratégias diversificadas que incluem o apoio direto, a escolha do estabelecimento de ensino com base no critério de qualidade, entre outras.1 A mesma autora, entretanto, em outra investigação (Nogueira, 2002), focaliza famílias de empresários cujos valores e projetos, voltados prioritariamente para a con- tinuidade dos negócios da família, afastam os filhos, em alguma medida, do universo escolar, gerando certo de- sinteresse pelos estudos e uma relação predominante- mente utilitarista com o conhecimento. No que se refere às camadas populares, os estudos têm sido ainda mais numerosos e sinalizam, em grande parte dos casos, a descontinuidade cultural entre famí- lias e escolas, ou seja, a existência, entre as duas ins- tituições, de lógicas distintas, de padrões de socializa- ção que freqüentemente são não apenas diferentes e sim confrontantes ou dissonantes (Lahire, 1997; Thin, 1998; Nogueira e Abreu, 2004; Thin, 2006). As realidades dos grupos familiares são diversas e podem implicar continuidades ou descontinuidades culturais entre família e escola. 80 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Os diferentes trabalhos têm sido recorrentes em apon- tar que as famílias de camadas populares, na maior parte das vezes, atribuem valor à escola e à escolarização de seus filhos, mas nem sempre seguindo a mesma lógica e as mesmas estratégias de ação das famílias de cama- das médias. Elas teriam formas específicas de presença na vida escolar da prole, em geral, mais indiretas que as das famílias mais escolarizadas (Viana, 2000). • Entre a valorização da escola e as dificuldades da participação direta Lahire (1997) é categórico ao afirmar que a idéia da omissão dos pais de camadas populares é um mito. Ele argumenta que os professores, ignorando as lógicas pró- prias das famílias, deduzem, dos comportamentos e de- sempenhos escolares dos alunos e da invisibilidade ou ausência dos pais na escola, que esses pais seriam de- sinteressados em relação ao desenvolvimento e, princi- palmente, à escolaridade da prole. Na verdade, os pais podem se sentir desencorajados a comparecer à escola, até mesmo pelas diferenças so- ciais que os separam dos professores. Isso não signifi- ca, entretanto, que esses pais não participem, de formas próprias, da vida escolar dos educandos, como consta- tam Lahire (1997), Viana (2000) e outros. Para Lahire, mesmo quando as condições familiares realmente impedem qualquer tipo de atenção à escola- ridade dos filhos, o termo “omissão” não se mostra ade- quado, por pressupor uma escolha deliberada, o que não corresponde às constatações de sua pesquisa. Lareau (1989), em um estudo etnográfico em duas es- colas públicas da Califórnia, comparando pais de classe média superior e pais operários, constata que os primei- ros tinham contatos mais intensos e freqüentes com a escola. Entretanto, a autora conclui que, contrariamente à opinião dos professores, não havia diferenças signifi- cativas entre os dois grupos no que dizia respeito à va- lorização da educação escolar dos filhos. A principal explicação para a menor participação direta dos pais operários na escola encontrava-se nas dificulda- des destes, nas interações com os professores, em com- preender o que eles diziam e em ajudar os filhos como es- perado. Esses pais não confiavam na sua própria “compe- tência educacional” para o apoio escolar aos filhos. Em uma investigação sobre as concepções e práti- cas escolares e familiares em relação ao dever de casa, em Belo Horizonte, MG, também chegamos a conclusões equivalentes. Ao comparar o acompanhamento dos de- veres de casa feito por pais de camadas médias e de ca- madas populares, constatamos, por um lado, um con- senso entre os dois grupos quanto à importância desse acompanhamento e, por outro, uma grande desigualda- de nas condições de efetivá-lo, nas famílias populares (Resende, 2007). • Do “escolacentrismo” à busca de um diálogo efetivo Ao tomar contato com esses diferentes estudos, cabe lembrar: a instituição escolar, tal como a conhecemos hoje, como componente de um sistema nacional de en- sino, é uma construção social relativamente recente, a qual, a partir do século XIX, nos países desenvolvidos, e somente no século XX, no Brasil, progressivamente se impôs aos diversos grupos sociais, tornando-se legal- mente obrigatória. Isso significa que a escola não é detentora de um valor intrínseco universal e inquestionável. Ela não representa igualmente a cultura e os valores dos diferentes grupos sociais, o que gera níveis desiguais de adesão ao ethos escolar2 por distintas famílias, sem que isso signifique demérito para nenhuma delas – a não ser sob o ponto de vista estritamente escolar ou, mais do que isso, “es- colacêntrico” (Silva, 2003).3 Assim, é o autismo cultural da instituição escolar, ao pressupor e funcionar de acordo com um determinado padrão cultural, que coloca os alunos e suas famílias em situações mais ou menos vantajosas face aos seus requisitos (Silva, 2003, p. 106). Tais reflexões tornam-se relevantes para planejar e avaliar criticamente os projetos que buscam incentivar o envolvimento parental na vida escolar dos filhos. Stein (1988, apud Silva, 2003) propõe que, em vez de tentar mudar os estilos de vida das famílias da classe operária [...] a escola não é detentora de um valor intrínseco universal e inquestionável. Ela não representa igualmente a cultura e os valores dos diferentes grupos sociais. 81 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 de modo a ajustá-los aos padrões das classes médias, busque-se compreender e potencializar os pontos fortes do próprio modo de vida dessas famílias. Para o autor, os programas deveriam estimular, no caso das camadas populares, mais a orientação e o apoio – que seriam os pontos fortes de tais grupos − do que atividades siste- matizadas de ensino por parte dos pais. Porém, mais importante do que essa conclusão espe- cífica parece ser o princípio geral que orienta a propos- ta: uma escola capaz de dialogar com as famílias deve ser uma escola capaz de se descentrar, de ler a realidade do outro para, a partir daí, elaborar proposições que con- tribuam para estabelecer pontes entre essa realidade e os objetivos que se pretende alcançar. Silva (2003) chama a atenção para o fato de que, quando falam a respeito de parceria com as famílias ou de participação dos pais, a maioria dos educadores es- colares tende a pensar a família como extensão da escola e os pais como agentes dos professores, em vez de em- preender uma tentativa genuína de conhecimento mú- tuo, troca de saberes, conhecimentos e experiências. São os valores e as lógicas próprias da escola que ten- dem a dominar o pretenso diálogo, o qual não se rever- te, dessa forma, em diálogo verdadeiro. • “Famílias desestruturadas” ou novas formas de ser família? Um outro aspecto que merece reflexão, nesse sentido, são as recorrentes referências, entre os educadores es- colares, às “famílias desestruturadas” ou que “não im- põem limites” como causadoras de problemas na esco- la, especialmente os relativos à indisciplina. É fato que os professores muitas vezes enfrentam pro- blemas que, embora influenciem no processo pedagógi- co, vão muito além de suas esferas de atuação e têm ori- gem na família. É evidente que há famílias muito permis- sivas e outras cujas dinâmicas internas comprometem a qualidade de sua própria ação educativa. Porém, mais uma vez, utilizar as generalizações an- teriores para o conjunto das famílias significa adotar um discurso homogeneizador, normativo, o qual dificulta a construção de uma atitude propositiva da escola, a par- tir de um efetivo diálogo com as famílias. Os autores do campo das ciências sociais são unânimes ao afirmar que não há “família” e sim “famílias”, com diferentes arranjos e modos de funcionamento. O conceito é polissêmico, ganhando significados diferentes de acordo com a época histórica e o meio sociocultural considerado (Bruschini, 1989). Atualmente, vivemos um momento de grandes e pro- fundas transformações nas formas de organização e na própria concepção de família. Carvalho e Almeida (2003) citam, entre outras mudanças: • declínio do poder patriarcal e de controles religiosos e comunitários; • ampliação da autonomia dos membros da família; • aumento do número de separações, divórcios e no- vos casamentos; • maior diversidade de arranjos familiares, incluindo maior número de famílias recompostas, com filhos de casamentos diferentes, famílias monoparentais, uniões homossexuais; • redução do tamanho médio das famílias. Para os autores, [...] à primeira vista, essa nova realidade pode dar a impressão de que as famílias estão desestruturadas, ameaçadas, ou, até mes- mo, em vias de extinção. Uma leitura mais cuidadosa e acurada, porém, deixa patente sua plasticidade e sua enorme capacidade de mudança e de adaptação às transformações econômicas, sociais 82 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 e culturais mais amplas, bem como sua persistente relevância, notadamente como espaço de sociabilidade e socialização pri- márias, de solidariedade e de proteção social (Carvalho; Almeida, 2003, p. 112). No que tange às novas relações estabelecidas no seio das famílias, observa-se uma tendência a relações mais horizontais, menos hierarquizadas, substituindo-se “uma ‘educação retificadora’, corretora e moral das crianças, por uma ‘pedagogia da negociação” (Carvalho; Almeida, 2003, p. 112). Quanto a esse aspecto, o que se constata é que as mudanças não se restringem ao âmbito das famílias. Na sociedade como um todo, verifica-se uma nova relação com a autoridade, quando não uma “crise de autorida- de”; uma ênfase nos direitos individuais, inclusive das crianças e jovens; uma tendência à democratização das instituições e ao relaxamento das formas mais tradicio- nais de controle social sobre o comportamento. Esse é um processo também vivido pela escola, que já não pode recorrer a todos os métodos de disciplina- mento do “Ateneu” ou de outros colégios da época – onde, aliás, os atos de indisciplina e de desafio à autori- dade nem por isso estavam totalmente banidos, como de- monstra o relato de Sérgio, na obra de Raul Pompéia. Portanto, novamente o que se conclui é que o dis- curso estereotipado sobre as “famílias desestruturadas, que não impõem limites” é simplificador e reducionis- ta. A (in)disciplina escolar é um processo complexo e desafiador, relacionado a diversas causas, inclusive a processos macrossociais, bem como a fatores ligados à própria atuação da escola. Colocar as famílias como “bode expiatório” significa furtar-se a um efetivo enfrentamento da questão, que exigiria uma abordagem compreensiva para a qual a pró- pria família teria contribuições a oferecer, no contexto de um diálogo efetivo. Potencialidades de uma relação: “coragem para a luta”... As considerações feitas até o momento levam a indagar o que efetivamente se deseja quando se fala em relação entre escolas e famílias e usam-se termos como parce- ria, cooperação, participação, envolvimento. Deseja-se apenas criar formas de levar as famílias a contribuírem para o sucesso escolar dos filhos, a auxiliarem a escola no âmbito da lógica dessa instituição, ou tem-se dispo- sição para efetivamente aprofundar uma relação? Como lembra Silva (2002), o termo “relação” implica um continuum de interações que pode ir da cooperação ao conflito, sendo este último presente em qualquer re- lação humana, na forma de ambigüidades, tensões, em- bates, disputas, dificuldades de comunicação, confron- tos de interesses ou de pontos de vista. Fugir ao confli- to, esquivar-se da diferença, significa renunciar ao di- namismo da vida. Entrar de fato numa relação exige co- ragem para assumir as potencialidades e os desafios da abertura ao universo do outro, que pode enriquecer e complementar o meu, mas também pode questioná-lo e colocar em xeque alguns de seus fundamentos. Do ponto de vista da escola, isso significa que es- treitar a relação com as famílias supõe muito mais do que intensificar reuniões de pais, promover eventos ou projetos envolvendo as famílias ou “dias da família na escola” – embora possa incluir tudo isso. Significa, an- tes de tudo, ter disponibilidade para a mudança na pró- pria instituição escolar, em suas práticas, na relação pe- dagógica (Silva, 2003). Não há como alterar significati- vamente uma relação com mudanças em apenas um de seus pólos. Canário (2006) destaca um ponto importante a esse respeito: a abertura da escola à comunidade e, portan- to, às famílias, manifesta-se inicialmente pela forma como a instituição trata os próprios alunos. A família está sempre “presente” na escola e na sala de aula, na figura do aluno. Desde as presenças ou ausências des- te, sua pontualidade ou seus atrasos, até sua etnia, seu pertencimento de classe, os conhecimentos prévios que detém ou não, sua linguagem, seus valores, suas dispo- sições, são inúmeros os aspectos que têm grande rela- ção com a estrutura e as dinâmicas familiares. Portanto, o tipo de relação pedagógica que se esta- belece com esse aluno, o modo como é tratado, a for- ma como sua realidade é ou não levada em conta, o lu- gar que ele ocupa como sujeito no projeto pedagógico são importantes focos de atenção no que tange à rela- ção escola-famílias. Quanto às interações diretas com as famílias, uma ati- tude de vigilância em relação ao “escolacentrismo” pa- [...] a abertura da escola à comunidade e, portanto, às famílias, manifesta-se inicialmente pela forma como a instituição trata os próprios alunos. 83 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 rece essencial. Ou seja, cabe à escola interrogar-se em que medida, nas situações interativas que propõe, existe realmente espaço para esse “outro” que são as famílias. Nesse sentido, diversas questões podem emergir: • Quais os motivos pelos quais chamamos os pais à escola? • Há oportunidades para falar do que eles realmente gostariam de tratar? • As reuniões de pais, pela forma como são propos- tas e conduzidas, contribuem mais para encurtar ou para aumentar as distâncias sociais e culturais en- tre família e escola? • Como é distribuído o poder nos canais institucionais de participação dos pais, tais como conselhos, as- sembléias, colegiados? • A escola está aberta a formas “não-escolares” de en- volvimento com as famílias e com a comunidade? • Em que medida ela se envolve com as questões lo- cais? Enfim, inúmeras são as questões que poderiam ser levantadas a partir de uma ótica de verdadeira mudan- ça na relação escolas-famílias. São questões que indi- cam desafios, trabalho, possibilidades de resistências mútuas. O status quo pode ser mais cômodo, tanto para a família quanto para a escola. Entretanto, são questões que apontam, também, para potencialidades de uma relação que envolve as duas principais instituições responsáveis pela formação das novas gerações. Como tal, são instituições que enfrentam desafios comuns de formas diferentes, a partir de suas 84 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 próprias especificidades, e que certamente têm muito a aprender uma com a outra. Na pesquisa realizada pela ONG La Fabbrica, foi regis- trado o seguinte depoimento de uma professora: [...] Já ouvi alguém dizer que a luta entre família e escola, a escola já perdeu. Parece que a família coloca o filho na escola e acha que aquele momento é de total responsabilidade da escola. Eu também acho que essa luta a gente já perdeu porque a escola vai ter que assumir a responsabilidade porque senão ninguém assumirá. Professora de escola particular e pública, MG. (La Fabbrica, 2001, slide 80) O depoimento expressa um dos modos como freqüen- temente tem transcorrido a relação escolas-famílias: como uma “luta” entre os dois pólos, na qual está em jogo a atribuição de responsabilidades entre eles, “perdendo” aquele que fica mais sobrecarregado com as tarefas edu- cacionais. Entretanto, há outros “perdedores” quando a luta se dá nesses termos: o educando, seu processo for- mativo, a sociedade, a Educação e tudo o que dela depen- de... inclusive o pólo supostamente “vencedor”. Talvez haja uma outra “luta”, mais necessária e mais digna de ser empreendida: aquela que se refere à co- ragem de estabelecer relações autênticas, transitando entre cooperação e conflito, reconhecendo diferenças, aprendendo com elas, articulando parcerias, construin- do o novo e assumindo, de fato, a educação. Quando o pai de Sérgio o deixou na porta do interna- to e disse “coragem para a luta”, a mensagem subenten- dida era de que o menino estaria, dali em diante, sozinho para enfrentar seus desafios, desprovido do apoio direto da família e distante do aconchego do lar. Considerando a “luta necessária” aqui mencionada, pode-se pensar que, no primeiro dia de aula, em uma escola contemporânea, pais, professores e alunos po- deriam dizer, uns aos outros, “coragem para a luta”. E que a grande potencialidade dessa luta estaria no fato de que ninguém a enfrentaria só. 85 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 PERRENOUD, Philippe. 10 novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. RESENDE, Tânia F. Dever de casa, espelho de desigualdades. XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, Recife/PE, mai.-jun. 2007. Disponível em: . SANTOS, Raquel B. A comunicação entre pais e educadores: uma proximidade distante? Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 2001. 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Na pesquisa de Nogueira (2000), 14% dos sujeitos – 37 estudantes de cursos superiores da UFMG – apresentaram acidentes em seu itinerário escolar e 28% de seus irmãos apresentaram “atrasos, interrupções e, até mesmo, alguns casos de abandono de estu- dos” (p. 151). 2 A expressão “ethos escolar” designa aqui a totalidade dos traços que caracte- rizam a escola como instituição cultural e social, diferenciando-a das demais instituições. Por meio delas, busca-se fazer referência, especialmente, aos padrões, ideais e valores que dominam a cultura escolar e tendem a controlar o comportamento de seus membros (Silva, 1987). 3 Silva (2003) chama de “escolacentrismo” a perspectiva mais comum nas propostas de aproximação família-escola, as quais, segundo o autor, em geral mantêm a lógica da escola como dominante, procurando moldar o funcionamento da casa e da família, bem como o tipo de interações com a escola, de acordo com essa lógica. Não se observa, da parte da escola, uma atitude equivalente – ou seja, ouvir as famílias e proporem-se mudanças a partir disso. REFERÊNCIAS BRASIL. Congresso Nacional. Lei no 9.394, de 1996 – Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado, 1996. BROWN, Phillip. The “Thrid Wave”: Education and the ideology of parentocracy. British journal of sociology of education, 11 (1), p. 65-85, 1990. In: SILVA, Pedro. Escola-família, uma relação armadilhada – interculturalidade e relações de poder. Porto: Edições Afrontamento, 2003. BRUSCHINI, Cristina. Uma abordagem sociológica da família. Revista brasileira de estudos populacionais, v. 6, n. 1, p. 1-23, jan.-jun. 1989. CANÁRIO, Rui. A escola tem futuro? Das promessas às incertezas. Porto Alegre: Artmed, 2006. CARVALHO, Inaiá M. M; ALMEIDA, Paulo Henrique de. Família e proteção social. São Paulo em perspectiva, v. 17, n. 2, 2003, p. 109-122. Disponível em: . DINIZ, Elânia Duarte. 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Rabello é coordenadora do Centro de Referência Integral de Adolescentes – CRIA. tivo, lidando com os desafios dos seus próprios proces- sos de aprendizagem, das relações pessoais, da intera- ção com os temas trabalhados e com as realidades nas quais operam socialmente. A formação, no contexto do Programa de Educação para a Cidadania, é colocada em prática por meio de um currículo aberto e estruturada em três grandes eixos temá- ticos: educação, saúde e cultura. Também agrega as ques- tões que emergem do cotidiano e da atuação comunitá- ria dos jovens dinamizadores culturais e contribui para o desenvolvimento pessoal, para a construção de projetos de vida e para a constituição das identidades dos grupos artísticos partindo das questões chaves Quem sou eu? e Quem somos nós? – gerando a arte do CRIA, traduzida nas peças, nos recitais poéticos e, especialmente, na des- coberta de cada pessoa que a casa abriga. A formação também impulsiona a organização des- ses adolescentes, jovens e adultos que, agregados em grupos de atuação, constituem o que chamamos de Cria- Comunitário. Ele se revela nas ações dos dinamizadores culturais, nos seus territórios1 de atuação, com base em seus Planos de Atuação Comunitária. O Programa de Educação para a Cidadania integra a dimensão da formação para a atuação comunitária em produção cultural, comunicação, cultura da infância, saú- de e direitos sexuais e reprodutivos, articulação e mo- bilização social, entre outras áreas de conhecimentos e habilidades. O CRIA é um espaço de questionamento, de educa- ção para a autonomia2 de toda a sua equipe, que se per- cebe como um grupo coletivo disposto a participar e in- teragir com os novos grupos que são formados no con- texto de seu Programa ou fora dele, com outras redes e movimentos sociais, para o desenvolvimento sustentá- vel da sociedade. O Centro de Referência Integral de Adolescentes – CRIA é uma organização não governamental sediada no Pe- lourinho, na cidade de Salvador, Bahia. A casa que abri- ga essa organização se configura como um laboratório, onde são desenvolvidas práticas artístico-pedagógicas, a partir de experimentações criativas com crianças, ado- lescentes, jovens e adultos, moradores de comunidades situadas nas periferias de Salvador. O caminho do CRIA sempre foi marcado pela busca de múltiplas possibilidades de educar, interagir e criar coletivamente. Nesse caminhar, vamos, com uma equipe multidis- ciplinar de jovens e adultos, construindo e aperfeiçoan- do uma proposta educativa para e com crianças, ado- lescentes, jovens e adultos e também com suas referên- cias parentais e comunitárias. No encontro, todos e to- das estão completamente inseridos no processo educa- 87 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 O exercício criativo, pautado na coletividade e na mul- tiplicidade dos conhecimentos e habilidades de cada in- tegrante, é constante e acontece nos encontros de for- mação, planejamento, acompanhamento e avaliação. Esse exercício dos grupos gestores do CRIA e do Progra- ma de Educação para a Cidadania fortalece a sua voca- ção como uma casa de educação e como uma organiza- ção da sociedade civil, articuladora de redes de trocas e de construção de novos conhecimentos e de novas pos- sibilidades. A Rede Ser-tão Brasil3 e a Rede Latino-Americana de Arte e Transformação Social4 são dois dos principais gru- pos de atuação e dinamização do CRIA. Elas são tecidas por várias mãos de jovens e adultos que integram esses grupos, com um olhar aberto e sen- sível para os mestres populares, para as culturas tradi- cionais e para a grande riqueza presente na diversidade cultural de nossas comunidades. Incorporamos a isso, diálogos criativos e transformadores, pautados na eqüi- dade, tomando a arte como expressão das suas culturas, do seu fazer e do seu desejo de transformação. Na casa que abriga o CRIA, no Pelourinho, centro an- tigo de Salvador, encontra-se seu coração, como um la- boratório acolhedor da diversidade e de múltiplas possi- bilidades. Ele é também um ponto a partir do qual tudo se irradia para as comunidades, cidades, redes e parce- rias e para onde, depois, tudo converge, agregando no- vos saberes e aprendizados advindos dessas trocas, des- ses diálogos, fortalecendo e reafirmando a cada dia nos- sa missão institucional: [...] provocar nas pessoas, por meio da arte-educação e do desper- tar de sensibilidades, atitudes transformadoras de si mesmas e da sociedade em que vivem, de forma coletiva e comunitária. A família na CASA A família,5 nesta casa, tem seu lugar. Ela é o pon- to central na experiência educativa do CRIA, sobretudo porque entendemos que, nas famílias, encontram-se os padrões que direcionam também a formação dos dina- mizadores, e suas escolhas, interferindo na relação de- les com o mundo, baseados em seus valores, normas, ritos e hierarquias. Assim, no CRIA, a família é considerada um par- ceiro fundamental para a sustentabilidade institucio- nal. É com ela que acompanhamos o desenvolvimen- to pessoal dos jovens, escutamos sua história, registra- mos suas opiniões e compreendemos a dinâmica fami- liar dos adolescentes, o que amplia nossas possibilida- des de formação integral desses sujeitos. A família participa do Programa de Educação para a Cidadania em diversos momentos. A tônica sempre é o encontro, a aproximação. Por intermédio do diálogo, bus- 88 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 camos juntos respostas para tantas indagações. Temos formações específicas para as famílias (cerca de seis a oito anuais), nas quais são debatidos temas elegidos pelo grupo, junto com a equipe do CRIA. Nos últimos anos, foram priorizados temas relaciona- dos à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos. Nos ensaios abertos, quando são apresentados reci- tais poéticos e peças teatrais, as famílias são convidadas assisti-los e a opinar sobre eles para enriquecer o que se coloca em cena. Para quebrar mitos, preconceitos e este- reótipos herdados dos pais, avós e aproximá-los dos que os filhos e filhas estão aprendendo, descobrindo. Além disso, trata-se de um espaço de troca de impressões so- bre o desenvolvimento pessoal dos adolescentes. Nos marcos festivos, como o São João, o Caruru de Cosme e Damião, o Natal, juntos, jovens, educadores, mães, pais e amigos louvam a alegria de estarem juntos, reinventando momentos mais brincantes e provocadores de trocas, diálogos e afetividades. Também acontecem conversas individuais com as fa- mílias ou com elas e os adolescentes, seja por uma soli- citação dos educadores ou por uma demanda da família. Nessas conversas, são tratadas questões de conflitos fa- miliares e/ou dificuldades específicas do adolescente, O que é família? A peça Diálogos, criação coletiva en- cenada pelo grupo Pais e Filhos, 6 define coletivamente família como: [...] um composto de pessoas formado por pais, filhos, tios, tias, avós e tataravós. Pessoas unidas por vínculos sanguíneos ou não. É esse conceito que orienta o nosso trabalho. Para es- tar no CRIA, são realizados alguns acordos entre o ado- lescente/jovem e a instituição e entre esta e a família. Um deles é que esse adolescente tenha uma “referência familiar”. Na maioria das vezes, são mães, avós ou tias, mas estão presentes também madrinhas, vizinhas e ami- gas. Mulheres. A idéia de família está geralmente relacionada a um parentesco (vínculos sanguíneos) ou, segundo o IBGE, a uma “unidade doméstica residencial”. Segundo o historiador francês Jean-Louis Flandrin, o conceito de família mais restrito, que relaciona parentes- co com co-residência, não existia há poucos séculos. So- mente a partir do final do século XVIII foi que essa defi- nição ganhou força. A família dos adolescentes que participam do CRIA não difere muito daquela apresentada nas pesquisas. Uma das características atuais da família refere-se à re- dução do número de filhos. Isso se deve à redução da taxa da fecundidade de mulheres adultas, hoje, com mé- dia de 2,7 filhos. Notamos assim que a mulher tem conquistado outros espaços além da maternidade. Temos muitas famílias monoparentais chefiadas por mulheres,7 de classes po- pulares, com baixa escolaridade, trabalhadoras domés- ticas, diaristas, do lar e/ou desempregadas. A ausência do pai é freqüente. Em alguns casos, os/as filhos/as não conhecem seus pais. Às vezes, es- tes também não sabem que são pais. É a cultura do des- conhecimento. No entanto, os homens também buscam novos lugares e papéis sociais. Permitem-se experimen- tar novas formas de vivência da masculinidade. Já se fala em masculinidades, no plural, para dar conta dessa di- versidade do papel masculino. Assim, alguns vivenciam a paternidade de forma plena, embora em número mui- to reduzido. Meu sonho é conhecer meu pai, me formar e ser respeitada. Eliana, 15 anos/Grupo Pais e Filhos. A mulher aparece como a grande referência familiar. Apesar de todo o processo de emancipação, com a con- quista de direitos e a ocupação de espaços públicos, ela ainda é a rainha do lar, acumulando o que costumamos chamar de dupla jornada de trabalho. No entanto, essa nova mulher determinará modificações fundamentais na estrutura familiar. De tanto falarmos em família e em famílias deses- truturadas, avançamos para nos permitir interferir na constituição/construção de diferentes famílias, modifi- cando assim uma das mais fortes e tradicionais institui- ções sociais, responsável pela reprodução dos valores vigentes, entre eles, o modelo patriarcal ainda predomi- nante no Brasil. O aumento do número de separações, de re-casa- mentos, o reconhecimento do direito de casais homos- sexuais na adoção de crianças, um novo lugar social as- sumido pelo homem, são outros fatores que determi- nam novos arranjos familiares. Essas mudanças no formato familiar não devem, no entanto, modificar a função dos pais de proteger, aca- 89 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 lentar e prover seus membros. O artigo 22o do Estatuto da Criança e do Adolescente − ECA afirma: Aos pais, incumbe o dever de sustento, guarda e educação do filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Por outro lado, o Estado assume compromissos com a família, como prega a Constituição Brasileira de 1998: Capítulo VII Da família, da criança, do adolescente e do idoso Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 2o - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3o - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4o - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5o - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 8o - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e co- munitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Minha família é tão grande e tão pequena, e a minha tão complica- da. Neste momento aqui com vocês, eu me sinto em casa. Agora, aqui no mundo, de um jeito ou de outro, somos um família. Texto da peça Diálogos. Em relação à mulher, essa referência familiar perten- ce a uma categoria de gênero que por si só a coloca em uma condição social desfavorável. Junte-se a isso, sua et- nicidade (negras), classe social e grau de escolaridade e estamos diante de um quadro social bastante adverso. Neste lugar de mulher e referência familiar, as mu- lheres assumem uma infinidade de tarefas, o que pode, em alguns casos, resultar em certa negligência em rela- ção a seus filhos. Têm dificuldades em participar de reu- niões e comemorações de escolas ou outros espaços de acompanhamento de formação dos adolescentes. Essa ausência é compreendida pelo adolescente como falta de amor, de cuidado. Ser mulher é matar um leão todos os dias; é dormir e acordar num mundo cheio de preconceitos; isso é ser mulher... Mulher... anseios, desejos, expectativas, tabus, encontros e desencontros, medos, sonhos e fantasias... mulher, mulher, mulher... mães, filhas, tias, irmãs, avôs, buscas constantes. Projetos e sonhos a realizar, vontade de ser e de fazer, de se entregar e se soltar. Mas os desencontros traçam caminhos desconhecidos que se perdem com os desejos e fica a realizar [...] Texto da peça Diálogos. Entre outras pesquisas, a Gravad/20048 demonstra que, ao contrário do que diz o senso comum, que vê o adolescente como rebelde, em conflito com a família, esta é uma instituição fundamental para os adolescen- tes. Essa pesquisa evidencia que, ao lado da valoriza- ção da família, tornar-se mãe ou pai ainda se apresenta como um projeto de reconhecimento social. Quero ser advogada, juíza ou promotora; meu maior medo é perder meus pais, pois amo minha família. Daniela Oliveira, 12 anos/Grupo Pais e Filhos. Os problemas de moradia enfrentados por essa po- pulação vão também influenciar no arranjo das famílias e suas relações. São conhecidos os puxadinhos/laje que mantêm a família próxima, não necessariamente unida. As relações de vizinhança, de solidariedade, a necessi- dade de estar junto, para sobreviver diante de uma série de adversidades, criam laços familiares, vínculos entre as mulheres. Assim, amigas e vizinhas se juntam a mães ou as substituem para responder às demandas da mater- nidade. Vemos então que, às vezes, torna-se necessário mais de uma mulher para dar conta desse papel. 90 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 A família no centro da cena Buscando o diálogo com o outro, por meio de jogos teatrais, música e dança, os integrantes do grupo procu- ram situar suas realidades, em diferentes instâncias, tra- zendo questões fundamentais da sua existência: • Quem sou eu? • Por que nasci? • Será que viverei até os 80 anos? • Por que meu pai me rejeitou? • Será que meu filho vai se orgulhar de mim? Essas e outras questões são as chaves para se abrir, abrir o outro e poder dizer: “Eu estou aqui, existo, sou cidadão, quero e tenho o direito de ser feliz sendo o que sou”. A história de vida de cada um e de cada uma é trazida naturalmente, o que permite que, a cada dia, aprenda- se com a arte e a partir da arte. Falar de si, dividir apren- dizados e descobrir coisas novas tornam-se necessida- des e, naturalmente, nesse processo, eles e elas se des- cobrem artistas de uma arte maior, nunca percebida an- tes: a arte de viver e conviver, aceitando as diferenças e descobrindo objetivos comuns. Quero continuar com a coragem de ser eu mesma, realizei muitos sonhos e quero continuar a sonhar. Vera da Hora, 50 anos/Grupo Pais e Filhos. No cotidiano, música, dança, improvisação, histó- rias, criação de textos, acontecimentos importantes, tudo cabe no universo da criação, tudo está intimamen- te ligado ao universo da arte que traz desordem, ordem, organização e desprendimento para liberar as expres- sões; que se interligam e lentamente dão formas bonitas que traduzimos em um espetáculo teatral, com o suges- tivo nome de Diálogos, resultado de uma construção gra dual de ideologias e concepções diferentes de mundo, expressas em cena, democratizando saberes. Na elabo- ração da peça, cada pessoa é um elemento único e pri- moroso, com seu jeito e disposição de ser. O teatro realizado no CRIA apresenta possibilidades de reinventar a vida, aprendendo a fazer uma arte que tem características que permitem transcender e modi- ficar as realidades. Assim, as mulheres podem trazer para a cena, a mãe, a dona de casa que antes só tinha, O Grupo Pais e Filhos é composto por pessoas en- tre 10 e 62 anos. Fazer teatro com membros da mesma família, ou com pessoas que se sintam família (mãe e filho, irmão e irmã, primas, amigos e vizinhos), é um grande desafio: misturar diferentes gerações, pontos de vista, trazer à tona con- flitos vividos no dia-a-dia, enfrentar limites do corpo, da voz, da emoção, estando junto e sendo igual a crianças, adolescentes e a pessoas mais velhas. Despir os preconceitos e armaduras para se revelar ao outro, encontrar esse outro e poder dizer, em um cur- to espaço de tempo e com arte, coisas que em uma vida inteira no ambiente familiar, em virtude do corre-corre, dos papéis, das hierarquias, dos medos e dos receios, não foram ditas. Discutir a família, sua constituição, seu sentido e im- portância com pessoas do mesmo núcleo familiar e pes- soas que estão começando a se conhecer não é tarefa fácil. Requer atitude, desprendimento, sentidos aguça- dos e sensibilidade para escutar, falar, brincar, jogar e se arriscar a aprender, a ser e a conviver. Quando penso em família, penso que é tudo!. Às vezes eu me pergunto: será que eu consigo viver sem ela? Pai, mãe, irmão, vizinho pessoas unidas por vínculo sanguíneo. Ou não. Texto da peça Diálogos (criação coletiva). 91 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 como espectadores, suas panelas e fazeres domésticos, e agora se tornaram “atrizes” junto com seus filhos, fa- lando de seus direitos, questionando outras mulheres e homens sobre os papéis sociais à eles e à elas impos- tos, dançando, interpretando, despojando-se lindamen- te junto com outras pessoas no grupo. Marias, Celestes, Marinalvas... mulheres negras, brancas índias... mães, muitas vezes pais, arrimos de família. Trecho da peça Diálogos. Gislene Santana, 20 anos/Grupo Pais e Filhos. Por meio do entendimento da criação, os componen- tes do grupo descobrem-se criativos, experimentando a troca de papéis, comportamentos, atitudes que ligam o belo ao fazer artístico. A arte tem missão diversa e, por isso, é sagrada; tem relação direta com a vida e nos per- mite reinventá-la. Meu primeiro olhar para o mundo foi um pouco tarde, mas foi quando percebi que não era só mais uma no mundo. Trecho da peça Diálogos. Diz o ditado popular: “Quem casa, quer casa”. Porém, no contexto sociocultural em que vivem essas mulheres e meninas, esses homens e meninos, ao casarem e ge- rarem outras vidas, não encontram uma casa que possa abrigar suas angústias, medos, dúvidas. Assim, o CRIA, ao assumir que é um lugar de referên- cia para a educação de crianças, adolescentes e jovens e ao entender que a família e as referências parentais, consanguíneas ou não, são de fundamental importância como co-responsáveis por uma atenção integral à popu- lação infanto-juvenil, constitui-se também em uma casa- coração que acolhe. O CRIA procura, para eles e elas, uma educação para a constituição de sujeitos cidadãos e cidadãs compro- metidos com o desenvolvimento pessoal de cada um e a construção de uma sociedade mais justa, bela e feliz. REFERÊNCIAS ÁRIES, Philippe. Historia social da criança e da famíla. Rio de Janeiro: LTC, 2006. DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. 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A territorialidade refere-se às relações de poder espacialmente delimitadas e operando sobre um substrato referencial (SANTOS, 1998). 2 Emanuel Kant foi quem definiu o conceito de autonomia na modernidade e fez dele um conceito central em sua teoria. Nesse ideal, viu o fundamento da dignidade humana e do respeito, o que foi central para o desenvolvimento dos sistemas legais, dos sistemas educacionais e da sociedade moderna como um todo. A concepção kantiana de liberdade como autodeterminação influenciou muito a educação e o modelo escolar criado a partir da modernidade.Paulo Freire, retomando o conceito de autonomia, traz uma contribuição extre- mamente importante para a educação, especialmente de países em que as situações de opressão são características marcantes, como é o caso do Brasil. Ele formulou uma proposta educacional que procura transformar o educando em sujeito, o que implica a promoção da autonomia. 3 A Rede Ser – Tão Brasil é uma articulação entre 17 grupos comunitários da cidade de Salvador e núcleos de arte-educação de 19 municípios baianos, inicialmente provocados pelo CRIA, que busca a transformação social por meio da arte, revelando novas formas de desenvolvimento local baseadas na expressão das culturas tradicionais. 4 A Rede Latino -Americana de Arte e Transformação Social é formada por 24 organizações de sete países da América Latina: Brasil, Chile, Argentina, Bolívia, Costa Rica, Guatemala e Peru. É uma articulação de um conjunto de iniciativas que realizam, na América Latina, práticas artísticas de qualidade em torno da geração de uma cidadania efetiva, integração social, promoção dos direitos humanos, interculturalidade e sustentabilidade social global. 5 No CRIA, qualquer referência parental ou de vizinhança responsável é con- siderada família. Aquela pessoa que se dispõe, no diálogo com o CRIA, a acompanhar, cuidar, se co-responsabilizar pelas crianças, adolescentes e jovens que integram o Programa de Educação para a Cidadania. 6 O CRIA tem um repertório artístico composto de cinco peças educativas, recital poético e um grupo de clown. O Grupo Pais e Filhos foi formado em 2000, sendo composto por duplas familiare e surgiu para ressaltar a importância do diálogo na família para a conquista de relações mais igualitárias entre homens e mulheres. 7 O dado mais recente do IBGE informa que 29,2% dos lares são chefiados por mulheres. 8 Gravidez na Adolescência: estudo multicêntrico sobre jovens, sexualidade e reprodução no Brasil. Pesquisa realizada entre outubro de 2001 e janeiro de 2002 sobre a população juvenil em três municípios: Porto Alegre, Rio de janeiro e Salvador. 92 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 93 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 1. Introdução: quais as especificidades e limites da escola e da família? a minha prática de formadora e pesquisadora, tenho ouvido, durante décadas, as queixas de professoras, sobretudo das escolas públicas, sobre a “falta de coo- peração ou omissão dos pais”, quando se referem aos problemas corriqueiros de indisciplina e dificuldades de aprendizagem. É como se a educação familiar determi- nasse o comportamento escolar e a capacidade de apren- der dos/as alunos/as e os limites e as possibilidades do trabalho docente. Os alunos e alunas que não fazem o dever de casa são descritos como: • bagunceiros, desinteressados, não gostam de estu- dar; • indivíduos com deficiências de aprendizagem; • aqueles que têm pais/mães ausentes, analfabetos; • jovens que não têm ajuda em casa (CARVALHO; BU- RITY, 2006). Em 10 de setembro de 2008, a revista Veja veiculou, entre as “40 propostas para o Brasil”, a seguinte: Convencer os pais de que eles são parte da escola. Uma difícil e necessária parceria mediada pelo polêmico dever de casa Maria Eulina Pessoa de Carvalho* * Maria Eulina Pessoa de Carvalho é doutora em Educação e pro- fessora do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba. . Artigo 94 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Pais educam. Escolas ensinam. Esse provérbio cadu- cou. As pesquisas mostram que, além de um bom profes- sor, nada melhora mais o desempenho escolar do que o envolvimento dos pais no processo educacional. É uma guerra cultural que pode ser vencida com as armas cer- tas: a internet (os pais podem até acompanhar algumas aulas) e os cursos para pais. A chamada à participação familiar em prol do suces- so escolar e a culpabilização dos “pais” (de fato, mães) pelo fracasso escolar é uma velha cantilena que sugere uma série de questões: • Quais os as funções e limites específicos da escola e da família como instituições educativas? • Em que contexto e em que medida, o sucesso esco- lar depende ou deveria depender da contribuição da família? • Que formas de contribuição ou investimento familiar são desejáveis e viáveis? • Quem define essas formas de contribuição: escola, família, ou ambas, caso a caso, a partir do diálogo e da negociação? • Que formas de contribuição familiar/parental costu- mam ser prescritas pela escola? • Que formas de investimento na educação dos filhos e filhas são praticadas pelas famílias, considerando- se seus diversos arranjos, condições socioeconômi- cas e culturais? • Quais os desafios da escola para implementar eficaz- mente a parceria escola-família? • Quais as dificuldades da família para exercer essa parceria a contento? Desde a década de 1990, nas Américas, a parceria es- cola–família deixou de ser uma questão tácita, uma prá- tica informal de certas famílias/mães/pais (geralmente, 95 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 das camadas médias) e escolas/gestoras/professoras (particularmente, privadas), para se tornar objeto de po- lítica pública, mais precisamente da política educacio- nal em prol do sucesso escolar (CARVALHO, 1998; PRO- JETO NORDESTE, 1997; NATIONAL EDUCATION GOALS PA- NEL, 1995). Com efeito, a participação dos pais/mães na escola vem sendo enfocada como solução para a produtivida- de e elevação da qualidade escolar e para a melhoria da aprendizagem e desempenho acadêmico dos estudan- tes, com destaque dos grupos em desvantagem social. Tal participação se dá em dois lugares e momentos: • na escola, nas reuniões de pais e mestres, nas festi- vidades e, especialmente, nos Conselhos Escolares, por meio de representantes, na tomada de decisão e gestão compartilhadas e na avaliação escolar, in- clusive na avaliação docente; e • em casa, no cotidiano doméstico, por meio do acom- panhamento escolar, que inclui a realização do dever de casa (CARVALHO, 2001). Nessa direção, o MEC instituiu o Dia Nacional da Fa- mília na Escola e publicou a cartilha Educar é uma tarefa de todos nós: um guia para a família participar, no dia-a- dia, da educação de nossas crianças (BRASIL, 2002). O movimento da política educacional em direção à família como lugar de educação e sustentação da esco- la encontra simpatia de todos os lados: tanto de grupos conservadores, quanto de educadoras/es mais progres- sistas, que propõem a capacitação dos pais/mães como uma estratégia de reforma educacional, a partir das ba- ses e de empoderamento das famílias em situação de desvantagem social. Todavia, é importante distinguir entre o envolvimento dos pais/mães na escola, como prática individual dese- jável, evidente na tradição das camadas médias, e a es- tratégia política ou incentivo formal, visando promover essa prática onde ela se encontra ausente, a fim de me- lhorar os resultados escolares de modo indireto. Deve- se perguntar se tal política é ou seria eficaz, ao focar as famílias que não participam; investigar porque estão au- sentes da escola ou não investem na vida escolar dos/ as filhos/as; e que condições seriam necessárias para promover a participação. O aspecto menos discutido dessa política é o dever de casa, de fato, o principal meio de interação escola– família. Esse dispositivo pedagógico torna o lar uma ex- tensão da sala de aula, servindo para avaliar também a educação familiar e o desempenho parental, ao compor a avaliação do/a aluno/a. Contudo, a participação na gestão escolar é obvia- mente inviável para todos os pais/mães e a promoção de oportunidades diversificadas de participação indi- reta (por intermédio de consultas, por exemplo) neces- sitaria de muito investimento das/dos profissionais da escola. Já o acompanhamento escolar em casa é reque- rido de todos os “pais” ou responsáveis, na suposição de que todos desejam e podem efetuá-lo, embora tam- pouco seja viável para todos. Tradicionalmente, a escola tem contado com a edu- cação familiar de duas maneiras: • implicitamente, construindo a aprendizagem acadê- mica com base no capital cultural “herdado” pela/o aluna/o (BOURDIEU, 1977, 1986; BOURDIEU & PAS- SERON, 1975), ou seja, na afinidade entre o currículo escolar e a cultura familiar; e • enviando dever de casa, portanto, capitalizando ex- plicitamente o tempo e recursos materiais dos pais ou responsáveis (CARVALHO, 2001) — no caso brasi- leiro, compensando a jornada escolar de curta dura- ção, portanto, insuficiente. Por conseguinte, o sucesso escolar resulta, em parte, da contribuição direta ou ação compensatória da famí- lia, visando superar insuficiências escolares e/ou defi- ciências dos estudantes, geralmente pela dedicação da mãe, que assume o papel de professora-auxiliar dos fi- lhos; ou da contratação de aulas particulares (professo- ras de reforço escolar ou explicadoras). Evidencia-se, as- sim, a influência de fatores como classe (renda familiar) [...] o sucesso escolar resulta, em parte, da contribuição direta ou ação compensatória da família, visando superar insuficiências escolares e/ou deficiências dos estudantes, geralmente através da dedicação da mãe. 96 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 e gênero (disponibilidade materna) na configuração da contribuição familiar ao sucesso escolar. A problemática das relações escola–família é comple- xa. Para pensar suas configurações atuais e possibilida- des, deve-se inicialmente lembrar que família e escola são instituições históricas, mutantes: é preciso conside- rar a evolução da família e a mudança nos ritmos do tra- balho e da organização da vida cotidiana, paralelamen- te à evolução da escola, das questões curriculares e pe- dagógicas e da profissão docente. A proposta de parceria escola–família contém impli- cações e complicações não examinadas e grandes de- safios. Eis alguns: 1. O incentivo à participação dos “pais” na escola, so- bretudo via dever de casa, tende a aumentar as desi- gualdades de resultados educacionais, porque as fa- mílias têm condições materiais e culturais desiguais, e o dever de casa impacta direta ou indiretamente a aferição do aproveitamento escolar, isto é, as notas dos/das estudantes. Para promover a eqüidade educacional (a igualdade em meio às diferenças), em vez de contar com a contri- buição familiar, a escola deveria descontar a contribui- ção familiar, maximizando a aprendizagem que ocorre no tempo e espaço da sala de aula, e compensando as de- sigualdades dos alunos e alunas, quanto às condições para aprender, por meio de programas de reforço ofere- cidos na escola (CARVALHO, 2001). 2. O dever de casa, como estratégia de envolvimento e contribuição da família na aprendizagem do currícu- lo escolar, constitui violência simbólica, em alguns casos, porque impõe a cultura acadêmica ao lar, re- gulando a vida doméstica/privada, prescrevendo pa- péis parentais, segundo um modelo de família e va- lores das camadas médias e dominantes. A política educacional (que não se restringe à esco- la) deveria respeitar a autonomia da família e a liberda- de dos pais e mães quanto à escolha do currículo do- méstico ou de currículos alternativos ao currículo esco- lar (CARVALHO, 2001). Esses argumentos se baseiam na teoria da reprodu- ção social por intermédio da reprodução cultural, de Pier- re Bourdieu, destacando os conceitos de capital cultu- ral e violência simbólica, e apontam para a preocupação com a eqüidade e a diversidade cultural. Resumidamente, segundo essa teoria, o fracasso es- colar atinge aqueles estudantes que não adquiriram, na socialização familiar, o capital cultural valorizado pela escola e passível de troca pelo capital escolar (represen- tado pelo diploma). Esse capital cultural é corporificado no habitus, ou sistema de disposições psicossomáticas (BOURDIEU; PASSERON, 1975; BOURDIEU, 1986, 1977), que propiciam assumir com facilidade o ofício de estu- dante (PERRENOUD, 1995). Minha preocupação é apontar os efeitos perversos de políticas e práticas escolares bem intencionadas que, ao desconsiderar diferenças de classe e gênero e promover o padrão dominante ou idealizado de família e de esco- la (o das camadas médias), acabam reproduzindo as de- sigualdades de resultados educacionais: consolidam os benefícios de alguns grupos, enquanto excluem outros, em situação de vulnerabilidade ou desvantagem social, das promessas da escola. 2. Modos de educação, relações de gênero e classe social. Historicamente, educar não é atribuição exclusiva das mães e pais biológicos, da família ou da escola. Os mo- dos de educação das novas gerações, isto é, o cuidado dos pequenos, a transmissão da cultura do seu grupo social e a preparação para os papéis adultos têm sido assumidos por vários indivíduos, grupos e instituições: mães, pais, idosos/as, professores/as, famílias exten- sas, clãs, tribo, vizinhança, comunidade, corporações de ofícios, igrejas, escolas, por meio de uma variedade de arranjos, informais e formais, e conforme a fase da vida do aprendiz. Originalmente, educar significava criar crianças, res- tringindo-se aos cuidados físicos, um trabalho gendra- do (isto é, com característica de gênero) conforme a di- visão sexual do trabalho na sociedade patriarcal: traba- lho reprodutivo e sensível das mulheres e trabalho pro- dutivo e intelectual dos homens. Antes do surgimento da escola como um lugar separa- do e uma instituição especializada de instrução, as crian- ças e jovens se educavam pela convivência e participação na família, no trabalho e na comunidade: a educação era uma tarefa comunitária, informal e imersa na vida prática. A educação formal, letrada, reservada às elites, dava-se inicialmente em casa, com mestres ou mestras residen- tes, e, posteriormente, em colégios internos. 97 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Portanto, as maneiras de transmitir valores, senti- mentos, disposições, conhecimentos e habilidades so- cialmente valorizados (o currículo) têm variado em re- lação: • à organização e práticas − onde, quando, como, por quanto tempo; • aos conteúdos − quais os saberes que devem se tor- nar hábitos, habilidades, matérias escolares; • às agências e agentes encarregados − quem é res- ponsável pela organização e ensino; e • aos sujeitos-alvo − de acordo com categorias de ida- de, sexo, classe e raça ou etnia. Pessoas pobres, do sexo feminino, negras e indígenas foram, por mui- to tempo, excluídas da escola ou tiveram acesso a escolas e currículos diferenciados (e desvaloriza- dos). A escolarização tornou-se o modo de educação pre- dominante nas sociedades modernas, democráticas, com a generalização da escolarização compulsória em fins do século XIX, que tinha uma organização específi- ca: níveis, currículo seriado, sistema de avaliação, diplo- mas, professores, professoras e outros profissionais es- pecializados. Todavia, o sistema escolar moderno ainda reproduz a divisão de sexo e gênero no trabalho educa- cional, com a feminização do magistério infantil e das séries iniciais do ensino fundamental. Nas sociedades urbano-industriais-capitalistas, a educação, a família e o trabalho se diferenciaram e es- pecializaram. A transformação do modo de produção econômica, com a transferência da produção e contro- le econômico do domicílio para as fábricas e os merca- dos, acarretou drásticas mudanças na vida familiar e no modo de educação, com a organização do sistema es- colar e de seu corpo de profissionais. A família extensa, incluindo parentes e agregados, transformou-se em família nuclear, restrita a pai, mãe, filhos/as, perdendo parte de suas funções reproduti- vas, econômicas e educacionais. Conforme a tendên- cia secular moderna de diferenciação social-funcional e burocratização, instituições especializadas de traba- lho e educação surgiram fora da família, que perdeu controle sobre a produção econômica e sobre a edu- cação, passando a se relacionar com organizações es- pecializadas que lhe forneciam bens e serviços que ela não mais produzia (ABERCROMBIE et al., 1994; BI- DWELL, 1991). Com o advento da escola, a educação, que antes significava cuidado físico e emocional, nu- trição e atenção, expandiu-se de modo a incluir hábi- tos intelectuais. Nesse contexto, a constituição da escola moderna está relacionada à emergência da burguesia e das classes médias, que passaram a buscar a educação formal como sinal de distinção, identificando-se com a aristocracia ou as elites, e distanciando-se das classes baixas. As famílias pequeno-burguesas não podiam susten- tar professores particulares residentes e criaram as es- colas-internatos, que proviam educação coletiva aos filhos de várias famílias num local público; tal como se deu nos séculos XVI e XVII, na Inglaterra (BIDWELL, 1991), onde até hoje public school se refere ao que cha- mamos escola privada, e não a escola do Estado (state school). Nos Estados Unidos da América, a escola nasce com a denominação common school, isto é, escola co- mum, compartilhada, de uso geral, em contraste com a escola particular. Com a separação da vida pública e privada, a edu- cação pública então se distingue da educação domés- tica, encarregando-se da reprodução da cultura letrada (dominante), dos valores sociopolíticos e da qualifica- ção para o trabalho. Gradualmente, à medida que as famílias se nuclearizaram e se isolaram, e pais e mães passaram a trabalhar fora de casa, num movimento que reduzia suas funções reprodutivas socioculturais, a es- colarização se desenvolveu como um modo sistemáti- co e especializado de educação: e se tornou o contex- to central de desenvolvimento individual e coletivo das crianças e jovens, assumindo também funções psicos- sociais (assistenciais) adicionais para incluir as cama- das de baixa renda. Assim, a instituição de um sistema estatal de escolarida- de compulsória, de massa, a partir do final do século XIX, no mundo ocidental, representou o triunfo da influência forma- tiva das instâncias públicas sobre as privadas na vida social e no desenvolvimento individual, o reconhecimento da ob- [...] a constituição da escola moderna está relacionada à emergência da burguesia e das classes médias, que passaram a buscar a educação formal como sinal de distinção. 98 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 solescência da família como educadora, de sua inadequa- ção para cuidar e treinar as crianças na sociedade moder- na (TYACK, 1976). Na Sociologia, Durkheim também apon- tou a superioridade da escola sobre a família na função de socialização para a vida moderna (BIDWELL, 1991). E, de fato, tanto de uma perspectiva macro quanto micro, o advento da escola de massas representou uma solução para a reprodução social e educação individu- al, na nova ordem urbano-industrial, substituindo a fa- mília e a comunidade. Concretamente, a provisão escolar atendeu às necessi- dades de guarda, cuidado, instrução e liberação das crian- ças, à medida que o trabalho das mães afastava-as de casa, o trabalho infantil era erradicado e o ingresso dos jovens no mercado de trabalho era cada vez mais adiado, constituin- do, assim, uma solução tanto para a exploração dos nume- rosos pobres quanto para o lazer dos privilegiados. A bandeira da educação para todos — em fins do sé- culo XIX, nos países ricos, e em fins do século XX, nos paí- ses pobres — convida os excluídos a participarem do pro- jeto democrático pelo acesso ao conhecimento como con- dição para o usufruto pessoal, a participação política, a produtividade e a empregabilidade. A contrapartida da escolarização compulsória era a ideologia da educação como panacéia social, combinan- do progresso socioeconômico e mobilidade social ascen- dente, prometendo acesso ao mercado de trabalho e à ci- dadania, correspondendo às aspirações das classes bai- xas, trabalhadoras e urbanas a uma vida digna. Assim, a escola pública (compulsória) materializava um novo contrato social, oferecendo um terreno (supos- tamente neutro) para a aquisição de um conhecimento comum, secular, não-familiar, que apagaria as distinções culturais e sociais de origem (família, classe social, etnia, religião), consolidando a nova ordem democrática. A universalização da escola básica, onde ela acon- teceu, significou: • democratização (limitada) da cultura formal e tam- bém uniformização cultural; • democratização no nível inferior da escolaridade e seletividade (baseada em sexo/gênero, raça/etnia e classe) no nível superior, sob o lema da meritocracia como justificativa para a seleção; e • mobilidade social ascendente limitada a códigos cul- turais específicos. Depois de um século de escola para todos, mesmo nos países ricos, o sucesso escolar não está ao alcance de todos e a escolarização bem-sucedida não eliminou a desigualdade social. Portanto, grosso modo, há duas histórias da educa- ção relacionadas à classe social e às relações família- escola (CARVALHO, 2001, 1997). Uma história é a da criação do valor da escola como distinção cultural: a escola como extensão da família da burguesia e das classes médias, materializada entre nós, sobretudo, no modelo da escola privada. É, portanto, uma história de continuidade cultural família-escola, de inves- timentos familiares na preparação dos jovens para com- petir por diplomas e bons empregos, de escolha e paga- mento pelo serviço educacional (privado) — sem desco- nhecer que a escola (pública) também funcionou histo- ricamente para segmentos da classe trabalhadora, que dela se beneficiaram, e que, por meio dela, lograram mo- bilidade social ascendente. A outra história (sobretudo da escola pública) é de aculturação escola-família, via imposição do modo de educação escolar a uma classe ou a certos grupos sociais “carentes”, em situação de desvantagem social, gerando fracasso escolar e, posteriormente, políticas compensa- tórias (a exemplo do Programa Bolsa Escola). Diante da descontinuidade cultural entre família e es- cola, a família torna-se extensão da escola, portanto, ob- jeto de política educacional, de programas especiais (in- clusive de educação de “pais”), sendo ora responsabili- zada pelo fracasso escolar, ora incentivada a investir no sucesso escolar dos filhos e filhas (CARVALHO, 2004a). 3. Do modelo de delegação ao de parceria Lembremos que a escola surge como um modo de edu- cação não-familiar. No início da escolarização compul- sória, as relações escola-família fundavam-se no mode- 99 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 lo de delegação: os pais delegavam a tarefa de educar ao Estado/escola/professor/professora. Cabia à família garantir a freqüência do/a filho/a em boas condições físicas e psíquicas para aprender. Cabia à escola a tarefa específica de ensinar o currículo acadêmico, num contexto em que muitos pais e mães tinham pouca ou nenhuma escolaridade. Nesse modelo, as tarefas educati- vas da família e da escola são bem separadas e distintas. Lembremos, também, que a história da construção da escola pública é de luta pelo acesso e sucesso esco- lar. Nesse contexto, de luta pela inclusão em meio à per- sistente exclusão escolar, o pêndulo da responsabiliza- ção ou culpabilização pelo fracasso escolar tem se mo- vido entre família e escola. Aponta-se como responsável o descompromisso: ora escolar, ora familiar. As políticas e práticas educacionais que investem na efetividade es- colar ou no incentivo à colaboração dos pais expressam esse duplo movimento. Efetivamente, as relações escola-família são de divi- são do trabalho de educação de crianças e jovens, desde que baseadas em concepções educativas e valores com- partilhados, ou seja, numa certa continuidade cultural e metas comuns, condição para a parceria. Esta depende, portanto, de adesão dos pais/mães ao projeto político- pedagógico da escola, em cada caso concreto, bem como de relações de poder horizontais entre as partes. É importante considerar que as relações escola-família variam entre escolas públicas e privadas e diferentes comu- nidades escolares. Família, pais/mães, escola, professo- ras/es não são categorias homogêneas e suas relações po- dem envolver tensões e conflitos sobre concepções e prá- ticas educativas. Algumas famílias e pais/mães cooperam mais com a escola do que outras/os, conforme sua dispo- nibilidade de tempo e condições materiais e culturais. Por sua vez, as professoras encontram-se numa po- sição ambígua: desejam a ajuda dos “pais” e se ressen- tem quando eles interferem no seu trabalho e autoridade profissional. Além disso, há a delicada questão da ava- liação do desempenho docente pelos pais/mães, num contexto em que estes dependem do bom trabalho da professora, que ensina e avalia seu filho ou filha. Como o modelo de parceria, atualmente proposto pela política educacional dirigida ao sistema escolar público, poderia englobar a diversidade estrutural e cultural das famílias, que inclui núcleos bi-parentais e monoparen- tais, chefiados por mulheres, cujos adultos por vezes du- vidam das promessas da escola? O modelo de parceria/colaboração ecoa a tradição cul- tural da classe média que escolhe a escola dos filhos/as (confessional ou secular, mais ou menos conservadora ou progressista), no contexto da oferta de ensino privado, em que a relação entre pais-consumidores e diretores-proprie- tários-produtores é direta e a dependência mútua, clara. Ecoa também um modelo de família bi-parental e abasta- da, em que os adultos responsáveis têm tempo livre para participar das atividades escolares em casa e na escola. Considerando tais complexidades, a realização da parceria escola–família requer a consideração de algu- mas dinâmicas sociais: • As relações de poder variáveis e de mão dupla, relações de classe, raça/etnia, gênero e idade que, combinadas, estruturam as interações entre escola e família e seus agentes. Parceria supõe igualdade. Mas as relações escola– família são relações de poder em que as/os profissio- nais da educação (pesquisadoras/es, gestoras/es, es- pecialistas, professoras/es) exercem poder sobre os lei- gos (pais/mães), em maior ou menor grau, dependendo do seu nível de escolaridade. São relações também mediadas por outras relações de poder (de classe, raça/etnia, sexo/gênero, idade/ge- ração) que ora podem favorecer as/os professoras/es, ora os pais/mães/responsáveis. No modo de educação atual, a escola tem mais poder do que a maioria das famílias, com baixa escolaridade e usuárias da escola pública. Ademais, o poder dos pais/ mães é sempre limitado pelo poder da professora sobre seu filho/filha na sala de aula, expresso em avaliações negativas, ostensivas ou sutis. • A diversidade de arranjos familiares e as vantagens ou desvantagens materiais e culturais de certos grupos sociais para participarem do projeto de construção de uma educação pública de qualidade. Participar da educação dos filhos e filhas requer cer- tas condições: basicamente, capital econômico e cultu- ral (BOURDIEU, 1986), disponibilidade de tempo, vonta- de e gosto (CARVALHO, 2001). Capital econômico se traduz em tempo livre (após a jor- nada diária de trabalho remunerado fora de casa e após as tarefas domésticas e o atendimento às próprias necessi- 100 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 dades de descanso e lazer, possibilitado pela compra de produtos e serviços, como a contratação de empregadas domésticas) e boa qualidade de vida, para que o pai ou mãe, ou ambos, dedique(m)-se ao acompanhamento dos filhos ou, na falta de tempo, dinheiro para pagar uma pro- fessora particular ou aulas de reforço. Capital cultural significa cultura acadêmica/científi- ca, portanto, valorização da escola e familiaridade com as matérias escolares, além de habilidades pedagógicas para ensinar o dever de casa. Essas condições favoráveis à participação dos pais na educação escolar correspondem a um modelo de fa- mília particular, que conta com um adulto, geralmente a mãe, com tempo livre, conhecimento e uma disposição especial para educar. Tradicionalmente, a escola tem mantido uma parceria implícita com um único modelo de família, cujos filhos obtêm sucesso escolar. Trata-se do modelo familiar tradi- cional de classe média — pai provedor/mãe do lar — que historicamente não correspondia às condições de vida da maioria das famílias pobres, trabalhadoras, e que está desaparecendo na própria classe média, com o ingresso das mulheres em ocupações remuneradas. A esse modelo ideal de família, que permeia o ima- ginário docente, contrapõe-se a propalada “crise da fa- mília”: separações, divórcios, pais e mães estressados, mães trabalhadoras, mães chefes-de-família sobrecar- regadas, falta de tempo (em quantidade e qualidade) para a convivência com os/as filhos/as e o acompanha- mento escolar. Por um lado, a “crise da família” reduziu seu papel no cuidado físico e emocional, requerendo das escolas a extensão de seu tradicional papel de instrução acadê- mica e cívica para englobar a assistência biopsicosso- cial. Por outro lado, o envolvimento dos pais na educa- ção escolar ainda se limita à obrigação materna, no con- texto de uma divisão sexual do trabalho que persiste e é tomada como natural pela própria escola e por suas pro- fissionais do sexo feminino. • As relações de gênero que estruturam as relações e a divisão de trabalho em casa e na escola. O uso do termo genérico “pais” esconde a condição de sexo-gênero da participação familiar (CARVALHO, 2004b). As professoras de escolas públicas e privadas reportam a presença predominante, quando não exclu- siva, das mães nas reuniões de “pais e mestres”. Tam- bém são as mães que, geralmente, comparecem quando o responsável pela criança é chamado à escola, e acom- panham o dever de casa no dia-a-dia, empenhando-se em motivar ou estressando-se para obrigarem seus filhos e filhas a fazerem-no (CARVALHO; BURITY, 2006). • As mudanças nas condições de trabalho das professoras e na organização do trabalho pedagógico. Também as mudanças nas condições de trabalho das professoras e na organização do trabalho pedagógico afe- tam as relações escola-família. Muitas professoras tra- balham (às vezes também estudam) três turnos, não en- contrando tempo para comunicação e atendimento aos familiares de seus alunos e alunas. Tampouco têm tempo de planejar e avaliar o dever de casa como antigamente: pressionadas pelas exigên- 101 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 lhas faziam as tarefas escolares sem problemas, acabaram revelando que têm de forçar as crianças a fazerem-nas, por vezes recorrendo a ameaças e até castigos físicos. As crianças, por sua vez, omitem ou escondem as ta- refas, resistem e choram porque não querem ou não sa- bem fazê-las: Ele começa a chorar. Sempre se angustia com as tarefas. Quando ela não consegue, pense! Chora e diz que não quer mais estudar. Eu reclamo com ele. Só faz forçado. Ele só faz quando eu fico cobrando mesmo. Às vezes ele esconde. Ela fica calada, num me fala nada não. Sempre estou ameaçando ele. Se você não fizer, eu vou saber da professora como é que ta indo. Vai ficar de castigo. Quando ela não quer fazer, é preciso uma punição mais severa para que ela faça. Com certeza, ela não gosta de fazer o dever de casa. Ela faz obrigada e chora. Um dia ela rasgou até a folha para não fazer. Tem vez que bato até nela, porque ela chora, porque não sabe fazer o dever de casa. Elas também apontam que a escola responsabiliza e cul- pabiliza a mãe: A escola só culpa a mãe, nem adianta se a criança tiver pai. A reação da professora é colocar a culpa em mim, e ela nem sabe por que eu não ensinei a tarefa para ela. A professora disse: Sua mãe estava fazendo o que? Por que não lhe ajudou na tarefa? Estas mães prefeririam que a escola não enviasse dever de casa: Se os professores não passassem tanto dever de casa, seria muito mais fácil. Às vezes, penso sozinha: seria tão bom se as professoras não mandassem tarefas de casa porque imagine toda hora de tarefa de casa ser aquele barulho para poder a criança fazer o dever. Às vezes, eu acho que o dever de casa é sim um problema, porque os professores deveriam achar uma nova maneira sem passar tanto dever de casa. A única mãe que tinha escolaridade superior con- jecturou: [...] o dever de casa invade o cotidiano das famílias, aumentando o trabalho doméstico das mães ou responsáveis. cias escolares/curriculares, passam exercícios dispo- níveis no livro didático (na falta deste, distribuem fo- lhinhas com tarefas mimeografadas ou copiam as tare- fas no quadro) e se limitam a controlar a apresentação das tarefas realizadas em aula, quando fazem a corre- ção coletiva. • As mudanças curriculares e pedagógicas. Também as mudanças curriculares, nas matérias e méto- dos pedagógicos, tornam os adultos sempre defasados em relação ao que estudam as crianças, de forma que, para ensinar o dever de casa, as mães ou pais teriam pri- meiro de estudar o conteúdo escolar. Às vezes, é a própria família que exige tarefas de casa, conforme depoimentos de professoras e mães. Por ou- tro lado, o dever de casa invade o cotidiano das famílias, aumentando o trabalho doméstico das mães ou respon- sáveis (CARVALHO, 2001). Embora haja consenso sobre sua importância na vida escolar da criança entre mães e pais de escolas privadas e públicas (RESENDE, 2006), algumas mães e pais têm criticado essa prática, particularmente a quantidade de tarefas transferidas para casa e o des- gaste emocional para mães e filhos/as. Têm sugeri- do, por exemplo, que a professora aproveite melhor o tempo em sala de aula ou que a escola ofereça atendi- mento no turno oposto (CARVALHO; BURITY, 2006; RE- SENDE, 2006). As polêmicas “tarefas para casa” Na pesquisa realizada por Carvalho e Burity (2006, p. 40-41) em Campina Grande, Paraíba, junto a famílias de bai- xa renda, usuárias de escolas públicas, as mães entrevis- tadas, embora inicialmente dissessem que seus filhos e fi- 102 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Eu sei que tem mãe que trabalha o dia todo, às vezes o pai chega e o filho vai saindo pra escola, não vê nem o pai; nesse caso, em que a família não tem condições de dar assistência, eu acho o dever de casa um problema, e a solução seria a escola acabar com o dever de casa ou então colocar professores à disposição dos alunos nas horas vagas. No mesmo sentido, uma mãe de escola pública, com 33 anos e dois filhos, entrevistada por Resende (2006, p. 7-8) em Belo Horizonte, expressou-se assim: Quando meu filho era pequenininho, ele caiu, quebrou a cabeça em três lugares. Então eu vivo de psicólogo, de psiquiatra, de médico de cabeça, eu não tenho tempo de sentar e ensinar. (...) as crianças que tão aqui [na escola], é o seguinte: eles nem aprendeu a fazer o “a, e, i, o, u”, eles já tão mandando uns deveres que nem EU, nem EU sei explicar! Então eu fiquei tão nervosa com esse dever de casa que tava vindo, que eu não tinha tempo pra ensinar. E eles tava tomando nota baixa na escola! Porque dever de casa é normal, tem em todo colégio. Só que naquele instante que chegou aquela folha pra mim, tava muito tumultuada a minha vida... Eu achava que o dever de casa não era bom o professor mandar pra casa. Dever de casa devia ser agilizado na escola. Esse é o meu ponto de partida. Então agora, eu não tenho que reclamar do dever de casa, porque ele tem duas vezes na clínica da Fundação [reforço], terças e quintas, e tem a escola todos os dias aqui. Agora a dificuldade dele... quando ele tem aqui, ele aprende lá, quando ele aprende lá, quando eles começam a ensinar aqui, já tá sabendo. Agora, graças a Deus, eu já não tenho... aquele nervosismo no dever de casa, porque meu filho tá com assistência em outro lugar, que seria [deveria ser] aqui na própria escola, que eu não tive assistência aqui. Poderia ter uma professora, uma só de plantão na escola, pra ajudar aqueles que têm muita dificuldade, que a mãe não saiba ensinar em casa. Eu acho que o dever de casa devia ser mais... apropriado pra escola mesmo. Por exemplo, todo mundo entrou na sala, [a professora perguntaria] ”cadê seu dever de casa, Fulano?”. Todo mundo apresentava o seu, ”por que cê não fez, meu filho?”. Aí aquela criança ia falar: “Minha mãe é analfabeta. Minha mãe não sabe ensinar, professora. E eu não tenho quem me ensina”. Qual era os passo? Ela pararia uns dez minutinho, ensinaria aquela criança o dever de casa. Só depois ela ia pro quadro. Eu achava melhor assim. 103 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Concebido como uma política/prática curricular/pe- dagógica visando estender o tempo de aprendizagem e ajudar os/as estudantes a superarem suas dificuldades acadêmicas, é nas camadas mais pobres da população, atendidas pela escola pública, que se evidenciam os efei- tos perversos do dever de casa. As professoras reclamam da falta de cooperação das mães quando a criança não traz o dever de casa feito. As mães se frustram quando seu filho ou filha não sabe fazer o dever e elas não têm tempo ou conhecimento para ajudar: pensam que a criança não aprendeu por- que não prestou atenção à aula ou que a professora não ensinou direito. Muitas mães pobres pagam reforço escolar, cuja ofer- ta atende a todos os bolsos — R$ 15, 20 por mês! (CAR- VALHO, ARAÚJO; COSTA, 2008). As crianças apelam para a ajuda de tias, vizinhas, irmãs ou irmãos mais velhos. Temem ficar de castigo no recreio, fazendo as tarefas de casa, e, sobretudo, ficar sem a merenda! (CARVALHO; BURITY, 2006). A suposta eficácia do dever de casa depende não ape- nas da ajuda da família, e sim, sobretudo, do planeja- mento pedagógico empreendido pela professora. O de- ver de casa tanto pode ser concebido como uma ativida- de que requer supervisão dos pais, quanto como uma ta- refa que deve ser realizada com autonomia. Rebelo e Correia (1999), no contexto português, apon- tam a relatividade da eficácia do apoio familiar no desem- penho escolar dos/as alunos/as e os efeitos negativos do dever de casa na motivação do/a aluno/a, na relação aluno/a-escola, aluno/a-família e família-escola. Perrenoud (1995, p. 152), no contexto francês, tam- bém apresenta uma visão crítica das concepções e práti- cas tradicionais do dever de casa e de suas repercussões no clima das famílias, ao atribuírem aos pais/mães o pa- pel de “explicadores”, culpabilizá-los e colocá-los “em situação de incompetência ou impotência”. 4. Complicações e implicações das políticas de parceria família-escola A visão romântica da participação dos pais/mães na escola ora projeta a família unida em torno do dever de casa, adultos e crianças aprendendo juntos o currículo prescrito pela escola, ora projeta as/os representantes de diversas famílias harmoniosamente deliberando so- bre gestão escolar, currículo e qualidade do ensino. Além da promessa da “família aprendente” e da par- ticipação democrática dos pais/mães na definição das políticas/práticas educacionais, o alcance da política educacional sobre a família traz complicações e impli- cações que merecem cuidadoso exame. Quanto à participação escolar das mães/pais em casa, via dever de casa. a. Atribui-se às famílias a obrigação de propiciarem o de- senvolvimento emocional, social e também acadêmi- co das crianças, ampliando-se suas funções, omitin- do-se diferenças de capital econômico, social e cultu- ral entre elas (BOURDIEU, 1986), que se traduzem em vantagem ou desvantagem escolar (LAREAU, 1993). b. Nega-se a especificidade da educação escolar, o sta- tus profissional e o saber especializado da professo- ra, ao se atribuir aos responsáveis familiares o papel de “acompanhar” o dever de casa; mantém-se o mo- delo assistencial de escola e adota-se um modelo pe- dagógico de família, formalizando-se a educação do- méstica e confundindo-se papel parental com papel docente (CARVALHO, 2001). c. Impõe-se aos pais a concepção de que o lar deve ser um local para o desenvolvimento explícito e intencio- nal do currículo escolar, e a obrigação de converte- rem as atividades familiares em extensões das ativi- dades de sala de aula, em detrimento do pluralismo cultural e educacional e das opções de lazer e des- canso da família (CARVALHO, 2001). d. Impõe-se um modelo único de família, espelhando a família de classe média, com uma esposa e mãe em tempo integral, em tempos de aumento do emprego materno, estresse familiar, divórcio e mulheres che- fes-de-família, desconhecendo-se as mudanças nas formas de organização familiar, que vêm se distan- ciando do modelo patriarcal pai-provedor/mãe-do- méstica (CARVALHO, 2000). e. Privilegia-se um modelo parental e um estilo particu- lar de exercício da paternidade e maternidade, sem se problematizarem as desigualdades de gênero (CAR- VALHO, 2004b). f. Desvia-se o foco da melhoria educacional da sala de aula para o lar (CARVALHO, 2001). Pode-se lembrar que o dever de casa é também uma “janela” pela qual os “pais” podem acompanhar a apren- 104 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 dizagem de seus filhos e filhas e também fiscalizar a qualidade do ensino e o desempenho docente (CARVA- LHO, 1997, 2001). Há escolas particulares que disponibilizam o dever de casa em seus sites e fazem a comunicação escola-fa- mília pela internet; mas o acesso à internet e o letramen- to digital ainda não se generalizaram no país, particular- mente entre os usuários das escolas públicas. Realisticamente, quem são os pais/mães que podem acompanhar as aulas e conferir a prescrição e a avaliação das tarefas de casa de seus filhos pela internet? Quanto à participação dos responsáveis familiares na escola. a. Supõe-se que a re-educação dos pais/mães (para a participação na escola, controlando o currículo, o or- çamento escolar e o desempenho docente, além da participação no lar) é pré-condição para a educação das crianças, ampliando-se o escopo de obrigações da escola (CARVALHO, 2001). Como nossas escolas públicas dariam conta de assu- mir a oferta de cursos para pais? Quanto custariam tais cursos e quem estaria habili- tado para ministrá-los? b. Desconsideram-se as complicações e implicações que uma participação mais numerosa e intensa de pais/mães/responsáveis acarretaria para a organi- zação escolar e para o trabalho docente, em termos de tempo, espaço e novas tarefas. Como as escolas, sobretudo as públicas, planeja- riam e acolheriam uma participação familiar freqüen- te, cotidiana? c. Sugere-se que escolas/educadoras/es profissionais e famílias/pais/mães têm igual poder de decisão acer- ca da educação escolar, seduzindo-se pais e mães com a possibilidade de participarem da gestão es- colar, o que demanda tempo, conhecimento e orga- nização coletiva (CARVALHO, 2001). Efetivamente, quem são e quantos são os pais/mães em condições de participar dos Conselhos Escolares, por exemplo? d. Assinala-se aos pais/mães o papel de inspetores das escolas, da gestão, do orçamento escolar, do currículo e do ensino (isto é, do desempenho dos/das professo- res/as), minando a confiança, incitando conflitos la- tentes e, eventualmente, colocando pais/mães con- tra diretores/as e professores/as (CARVALHO, 2001). Lembremos que o sociólogo Willard Waller (1965) de- finiu pais/mães e professoras/es como “inimigos na- turais”, dos primeiros preocupados com as necessi- dades e características individuais de seus filhos ou filhas e os segundos comprometidos com o atendi- mento da turma e os interesses da instituição esco- lar, ou seja, as relações escola-família são sempre delicadas. e. Designa-se às diversas famílias a responsabilida- de de estabelecerem padrões educativos comuns e de (alta) qualidade, omitindo-se possíveis con- flitos sobre conteúdos e valores no currículo entre grupos de pais/mães diversos quanto a classe so- cial, etnia, religião e organização familiar, e com po- der diferenciado para influenciar as práticas escola- res (BLIKEN, 1995; CASANOVA, 1996; HENRY, 1996; SMREKAR, 1996). Imagine-se um cenário em que a escola (gestoras/es, especialistas, professoras/es) teria de gerenciar a com- 105 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 petição de grupos e/ou indivíduos representantes das famílias por influência sobre as práticas escolares, e ar- bitrar conflitos entre “pais”. A política de parceria família-escola expressa ambi- güidades: presume que a escola pode mudar a família e, ao mesmo tempo, a escola depende da família para me- lhorar; considera certas famílias deficientes e, ao mesmo tempo, responsáveis pela eficiência escolar. Depois das escolas terem expandido sua função psi- cossocial, assumindo a maternagem (ELKIND, 1995), pas- sam agora a cobrar das famílias apoio acadêmico, suge- rindo uma troca de funções. Ademais, a intrusão no cam- po das práticas educativas da família, via prescrição de tarefas de casa, tende a uniformizar a educação domés- tica (os vários currículos familiares), num momento em que a diversidade cultural é celebrada no currículo es- colar (CARVALHO, 2001). Efeitos perversos de tal política que cumpre evitar são: • o reforço da divisão social e sexual do trabalho de cuidado e educação das crianças que, tanto na es- cola quanto na família, relega essa responsabilida- de exclusivamente às mulheres, ampliando os deve- res domésticos das mães (CARVALHO, 2004b); • a discriminação de classe, etnia e gênero, por meio da criação de estruturas de participação escolar hierarqui- zadas e diferenciadas, com mães de baixa renda e mi- norias étnicas ajudando a servir a merenda escolar, por exemplo, enquanto mães e pais de classe média atu- am como voluntárias/os na sala de aula e membros dos conselhos escolares (CARVALHO, 1997, 2001); • finalmente, a persistência da culpabilização das fa- mílias pelo fracasso escolar de seus/suas filhos/as, mais ostensiva, no caso da formalização da partici- pação dos “pais”. 5. Desafios: programas, ações e estratégias de colaboração família-escola Para concluir, após esse percurso crítico, considerando que já há muitas prescrições de rotinas e atitudes familiares, ofereço sugestões de políticas e ações escolares que pro- movam o acolhimento, diálogo e apoio às famílias — parti- cularmente àquelas em situação de desvantagem social — em prol do sucesso escolar das crianças e jovens. Basicamente são três as sugestões: 1. Uma escola efetivamente aberta à família e à comu- nidade, por meio da oferta de diversas atividades de interesse das famílias, nos fins de semana, feriados e horários em que pais e mães não trabalham. Sei que é difícil a escola ampliar seu funcionamento e dispor de mais pessoal para trabalhar em dias e ho- rários extra-expediente. Mas as/os educadoras/es es- colares e formuladores de políticas educacionais de- vem levar em conta que é provavelmente mais difícil para pais/mães/responsáveis participarem nas atu- ais condições restritas de funcionamento escolar. Um cenário de colaboração escola-família mais atra- ente e inclusivo do que o atual estaria em uma esco- la acoplada ao centro comunitário, ao centro espor- tivo, ao pólo digital, tornando-se um local de lazer e aprendizagens para as famílias e a comunidade. Já que a dicotomia trabalho/estudo versus lazer e a dis- tinção entre educação de crianças/jovens e educação de adultos se desconstroem com a política do dever de casa, que se desconstruam também na escola! 2. Diversas estruturas e oportunidades de participação, com a criação de mecanismos ágeis e simplificados de consulta aos familiares dos estudantes, amplian- do-se as formas de participação que se encontram restritas à representação nos conselhos e a reuniões de pais e mestres bimestrais. É preciso criatividade para superar obstáculos, como a falta de tempo, de prática de diálogo e de uma cul- tura de tomada de decisão coletiva, para se garantir o exercício da representatividade dos “pais” no Con- selho Escolar, supondo-se que o representante dos “pais” no conselho deveria dialogar continuamente com seus representados. Por outro lado, reuniões bimestrais são insuficientes para o diálogo entre professoras/es e responsáveis familiares. Agendas escolares de comunicação casa- escola e boletins de notícias da escola são disposi- A política de parceria família-escola expressa ambigüidades: presume que a escola pode mudar a família e, ao mesmo tempo, a escola depende da família para melhorar. 106 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 tivos utilizados com certo proveito, mas também en- contram limites relativos a dificuldades dos respon- sáveis familiares. 3. Em se mantendo a prática tradicional do dever de casa, já que a jornada escolar é insuficiente e são poucas as escolas em tempo integral, sugiro o planejamento das tarefas, de modo que o estudante possa fazê-las sem a ajuda de familiares ou “explicadoras”. De fato, o dever de casa é uma prática negligenciada na formação docente, inicial e continuada, e no plane- jamento pedagógico escolar. Para que cumpra a pro- palada função de auxiliar no desenvolvimento de há- bitos de estudo e na construção da autonomia do es- tudante, o dever de casa deve ser objeto de planeja- mento sério por parte das educadoras profissionais. Deve ser planejado de forma que o/a estudante não dependa de ajuda dos familiares ou outros para rea- lizá-lo. Deve estimular o gosto pelos estudos: ser sig- nificativo, interessante e prazeroso. O dever de casa integra um modelo pedagógico, uma concepção particular de organização do ensi- no-aprendizagem e de trabalho docente: faz diferen- ça planejar e desenvolver o currículo e as atividades pedagógicas, bem como o tempo e a dinâmica da sala de aula, com ou sem o dever de casa. Considere-se o exemplo de uma aula que se resume a revisar e corrigir o dever de casa de ontem e passar o dever de casa de amanhã, portanto dependente de sua realização bem-sucedida e do apoio familiar. As- sim, a produtividade de classe pode depender mais ou menos da produtividade do dever de casa, con- forme o modelo pedagógico adotado; e a efetivida- de escolar poderia até mesmo dispensar o dever de casa, caso fosse adotado outro modelo pedagógico (CARVALHO, 2001, 1997) e se generalizasse a escola em tempo integral. Há ainda uma última sugestão de macropolítica edu- cacional, para os sistemas de ensino. 4. Em se mantendo o dever de casa, por que não usar a televisão para orientar o estudo doméstico atrelado ao currículo escolar? No Brasil, já se utilizou com sucesso, em educação de jovens e adultos, programas televisivos de ensino supletivo. Por que não utilizar a televisão com crian- ças do 1o ao 5o ano, para reforçar a base da escolari- dade e garantir o sucesso escolar? Em vez de competir com a televisão, que tanto atrai as crianças, de sugerir limitar o tempo de televisão em casa, por que a escola (o Ministério da Educa- ção, as Secretarias de Educação Municipais) não usa (usam) a televisão a favor do dever de casa? Imagino um programa interessante, de altíssima audi- ência infantil, chamado “hora do dever de casa” que mantivesse as crianças ligadas, revendo os conteúdos curriculares e preparando-se para a Prova Brasil. O dever de casa integra um modelo pedagógico, uma concepção particular de organização do ensino- aprendizagem e de trabalho docente. 107 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 REFERÊNCIAS ABERCROMBIE, N., HILL, S.; TURNER, B. S. Dictionary of Sociology. 3. ed. London: Penguin Books, 1994. BIDWELL, Charles. Families, Childrearing, and Education. In: Pierre Bourdieu and James S. Coleman (Ed.). Social Theory for a Changing Society. Boulder: Westview Press & New York: Russell Sage Foundation. 1991. p. 189-193. BOURDIEU, P. The forms of capital. In: RICHARDSON, J. G. (Ed.). Handbook of theory and research for the sociology of education. New York: Greenwood Press. 1986. p. 241-258. BOURDIEU, Pierre. Cultural Reproduction and Social Reproduction. In: Jerome Karabel; A. H. Halsey (Ed.). Power and Ideology in Education. New York: Oxford University Press. 1977. p. 487-511. BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. 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A família enquanto objeto de política educacional: crítica ao modelo americano de envolvimento dos pais na escola. 21a Reunião Anual da Anped, GT Estado e Política Educacional. Caxambu, 20-24, set. Disponível em: . 1998. _________. Family-School Relations: how enhanced parental participation in schooling reinforces social inequality and undermines family autonomy. Doctoral Disserta- tion, Department of Teacher Education, Michigan State University, 1997. CARVALHO, M. E. P. de; ARAÚJO, A. K. L. O de; COSTA, F. R. O de S. Investimentos familiares no sucesso escolar: o caso do reforço escolar. In: Conferência da International Sociological Association (ISA): Educação, Globalização e Cidadania: Novas Perspectivas da Sociologia da Educação, João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2008. CARVALHO, M. E. P. de; BURITY, Marta Helena. Dever de casa. Visões de mães e professoras. Olhar de Professor (UEPG), v. 9, p. 31-46, 2006. CASANOVA, Ursula. Parent Involvement: a call for prudence. 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Aos sábados e domingos, das 9 às 17 horas, 2.332 es- colas da rede estadual de ensino de São Paulo alargam seus limites cotidianos ao assumirem o papel de cen- tros de convivência. Pessoas da comunidade, os próprios alunos e seus fa- miliares são convidados a habitar espaços intencionalmen- te criados para o despertar de potencialidades diversas. Atividades voltadas ao esporte, à cultura, à saúde, ao mundo do trabalho e ao festejo são planejadas e ofereci- das por aproximadamente 4 mil profissionais da educa- ção, 18.600 estudantes universitários e 10.700 voluntá- rios. Com isso, mais de sete milhões de jovens têm tido oportunidades de compor e socializar seus saberes. Para conhecer de perto o Programa Escola da Famí- lia, visitamos a E. E. Prudente de Moraes, incrustada no Parque da Luz*, perto do Museu de Arte Sacra, da Pina- coteca e do Museu da Língua Portuguesa. Ou seja, um território em que parte significativa da vida cultural da cidade é tecida. O sábado acordou chuvoso, afastando a comunidade que, em geral, participaram muito das atividades. Che- gamos por volta das 11 horas e fomos recebidos por uma equipe de universitários bolsistas bastante envolvidos com o trabalho coordenado por Cláudia Cerri. 1. Graças aos cuidadosos registros que realizam, pu- demos ver a vida que por ali pulsa nos fins de sema- na: dança do ventre, desenho, basquete, caminha- da, futebol de botão, futsal, tênis de mesa, curso de hidráulica, panificação artesanal, almoços comuni- tários, Lien Ch ́i, ações preventivas, festa junina. E mais, muito mais: curso de música, teatro, voleibol, ginástica localizada, dança hip hop, orientação vocacio- nal, tapeçaria, curso de matemática, curso de manicure e pedicure, mutirões e cursos de línguas. É grande a ofer- ta e há atividades para todas as gerações. Integração de estrangeiros Façamos aqui uma pequena pausa para conversar sobre os cursos de línguas: inglês e espanhol estão lado a lado com português para estrangeiros. O que este último nos conta? Da grande presença de estrangeiros neste território. Habitado inicialmente por judeus, que aos poucos fo- ram dividindo espaço com coreanos, este pedaço da re- * Jardim público mais antigo da cidade, o atual Parque da Luz (1789) foi o primei- ro espaço de circulação pública de São Paulo. Depois dele, as ruas comerciais e, na década de 1960, surgem os shoppings como alternativa − no estado, há 123 e na cidade, 51. Abrindo aos finais de semana, as escolas oferecem opções que privilegiam a convivência em detrimento do consumo. 109 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 gião central recebe atualmente a influência dos bolivia- nos, que espelham condições semelhantes às de tantos outros grupos aqui nascidos: pequenas e grandes de- mandas de justiça; relações sociofamiliares e vínculos de pertencimento fragilizados; acesso limitado a serviços públicos; precariedade de moradia, renda e emprego. Vivendo quase sempre fora da legalidade da cidade e da cidadania − habitam territórios clandestinos (ocu- pações irregulares/invasões), têm problemas com docu- mentação, trabalham no mercado informal, não pagam impostos nem possuem seguros − forjam suas expecta- tivas e seus valores nessas circunstâncias, conformando, em última instância, suas escolhas e adesões. Para eles, a escola e os demais serviços públicos re- presentam circuitos de uma cidadania reconhecida (ter- ritório da legalidade), nos quais trafegam com alguma desconfiança, estranheza, como não pertencendo a eles dada à desqualificação que carregam como signo. Na busca de novos sentidos para a função socializa- dora e pedagógica das escolas, o Programa Escola da Fa- mília tem demonstrado potência para se desenhar como uma das práticas de suma importância ao enfrentamento da discriminação. Ao se abrirem para acolher famílias e comunidades, envolvendo-as como sujeitos que apren- dem e que também ensinam, escolas podem caminhar na direção de restaurar a confiança social perdida. Questões a superar Mary Kawauchi, coordenadora do Escola da Família, conta que a quantidade de relatos a respeito de brigas de alunos e depredação de patrimônio diminuiu 40% desde que o programa começou. Embora muitas sejam as conquistas, a coordenadora lembra três aspectos que ainda pedem investimentos: • escolas que precisam de maior adesão da comunidade; • desigualdade na oferta de atividades (algumas esco- las oferecem muitas possibilidades e outras não); e • regiões sem universidades, o que implica poucos uni- versitários no programa. 110 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 PROCURAM-SE UNIVERSITÁRIOS Os universitários que desejam participar do pro- grama se inscrevem. As instituições nas quais es- tudam precisam fazer parte do Escola da Família. O programa seleciona os que apresentam maior vulnerabilidade socioeconômica e os escolhidos decidem em qual região querem trabalhar. Recebem isenção nas mensalidades do curso universitário – o programa paga 50% da matrícula (até o valor máximo de R$ 267,00) e a universidade arca com o restante. Mary Kawauchi Soma-se às dificuldades apresentadas pela coorde- nadora, uma outra: inicialmente o Escola da Família de- veria acontecer em todas as escolas da rede, mais de 5.000, mas hoje apenas 41% das escolas da rede esta- dual participam do programa. Ana Maria Goulart, diretora da EE Dr. José Neyde Cé- sar Lessa, localizada em Itapevi, conta, com pesar, que, embora a escola lotasse aos finais de semana, foi reti- rada do programa: [...] fizemos um mutirão para pintar o pátio da escola com liberdade na escolha dos temas e cores. O resultado foi um muro absurda- mente colorido e o término completo de pichações e depredações dentro da escola. Como aconteceu com a maior parte das escolas, a nossa também foi retirada do Escola da Família e hoje voltamos a conviver com as pichações. Entre as escolas que se abrem, quisemos conhecer também uma com realidade bem diferente daquela in- crustada no Parque da Luz. Localizada no Jardim Aliança, território sem grandes opções culturais e de lazer, a E.E. Educador Paulo Freire1 tinha a única quadra da comunidade invadida nos fins de semana. Segundo o diretor Mário Soares, Depois que passou a abrir, as coisas melhoraram muito: os alunos passaram a valorizar mais a escola e muitos pais se envolvem com as atividades. Como a região não tem locais públicos, o espaço da comunidade é a escola. Em sua fala, Mário sintetiza uma questão fundamen- tal: quando as escolas se abrem, há um deslocamento do olhar − de equipamento da rede de ensino para aten- ção ao território, suas necessidades, saberes e possibili- dades de composição. A aposta é de que este movimen- to impacte significativamente o direito de aprender de to- dos e de cada um. Visite Outros roteiros para se visitar com alunos e pais. Consulte: • www.sampa.art.br/parques/jardim_daluz.php • www.saopaulo.sp.gov.br/saopaulo/cultura/museus_sacra.htm • www.pinacoteca.org.br/ • www.museudalinguaportuguesa.org.br/ REFERÊNCIAS CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. Discursos y prácticas de exclusión I: dis- criminación y violencia en las escuelas. Foro Internacional sobre Inclusión Educativa, Atención a la Diversidad y No Discriminación, Ciudad de México, 7, 8 e 9 de outubro de 2008. MATHIAS, Antonio Jacinto. É preciso uma aldeia para educar uma criança. Cader- nos Cenpec, São Paulo, n. 2, 2006. SITES PESQUISADOS www.escoladafamilia.sp.gov.br/apresentacao.html www.escoladafamilia.sp.gov.br/Escola%20em%20Números/CENTRO.pdf www.blognassif.blogspot.com/2007/02/parque-da-luz.html NOTA 1 Para saber mais, acessar o blog: 111 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 RELATO DE PRÁTICA: PROJETO AÇÕES EM REDE1 Família, comunidade e escola se encontram Adriano Vieira Maria José Reginato Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes A abertura da escola à família e à comunidade, há muito tempo considerada fundamental pelos bons educado- res e confirmada pelas recentes pesquisas sobre índi- ces de qualidade da educação, pressupõe convivência, reconhecimento mútuo, diálogo. Apesar de inúmeros esforços e conquistas nessa dire- ção, a realidade que temos ainda está distante da que dese- jamos, ficando tal proposta, muitas vezes, apenas nos dis- cursos e nas intenções, como visão romântica do assunto, trazendo quase sempre, experiências pontuais, descontí- nuas, de caráter assistencialista, afetivo ou conflituoso. É importante destacar que, quando nos referimos à importância da abertura da escola para os múltiplos con- textos do seu entorno, reafirmamos sua ampla capilari- dade na sociedade, seu forte poder de chegar às famí- lias e de mobilizar a comunidade. Podemos afirmar que a escola é um espaço concre- to da expressão do público porque atende a diferentes segmentos sociais. Para ela, dirigem-se todos os dias milhares e milhares de crianças, adolescentes e jovens, durantes anos seguidos de suas vidas. De acordo com Sacristán (2001), a escola tem como função social: • a fundamentação da democracia; • o estímulo ao desenvolvimento da personalidade do sujeito; • a difusão e o incremento de conhecimento e da cul- tura em geral; • a inserção do sujeito no mundo; e • a custódia da criança e ou adolescente por certo pe- ríodo da vida. Para isso, há que se dedicar especial atenção a algu- mas ações, como cuidar dessa criança e/ou adolescen- te, tarefa nada fácil, nem exclusiva da escola, que pre- cisa ser compartilhada com outras instituições sociais que também têm a educação como objetivo. Ao defender a abertura da escola para a família e a comunidade, não se pretende sobrecarregá-la com mais uma responsabilidade social, e sim convocar usuários e instituições públicas, governamentais ou não, do territó- rio em que está inserida, a compartilharem de seu proje- to, na elaboração, acompanhamento e avaliação do pro- cesso pedagógico. Afinal, por força constitucional, todos − estado, famí- lia e sociedade − são responsáveis pela educação das crianças e dos adolescentes. Por outro lado, a aproximação da família e da comu- nidade com a escola, incluindo as instituições do po- der público local e as entidades não governamentais, é primordial para que a rede de proteção e garantia dos direitos da criança e do adolescente seja tecida, de ma- neira a incluir todos, não permitindo nenhum tipo de exclusão. É assim que se impõem a necessidade e o desafio de a escola articular-se com diferentes setores públicos e privados do bairro e da cidade, sem fragmentar-se, sem perder sua identidade e função e, sobretudo, sem per- der seu caráter público e democrático. Quando a escola dialoga com outros espaços de edu- cação, buscando parcerias que têm os mesmos propó- sitos educacionais, sem intenção de substituir o poder público, começa a se empoderar. E professores, gesto- res, funcionários, pais, alunos e parceiros assumem pa- pel ativo na educação das futuras gerações. Nesse processo, a escola torna-se referência de fon- te de conhecimento e participação para as famílias e a comunidade. Sabemos, no entanto, que essa é uma construção histórica que precisa de tempo para se firmar e implica ensaiar diferentes arranjos educacionais locais, no de- safio de se avançar e aprender como fazer uma educa- ção de qualidade para todos. Em sintonia com esses pressupostos, foram concebi- dos, no contexto do projeto Ações em Rede, o Memorial das famílias e da cidade e o Seminário escola-família-co- munidade, que integram a metodologia do projeto, ao lado de um extenso programa de formação de gestores. 112 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 do projeto Ações em Rede e são propostas para serem desenvolvidas em cada unidade escolar do município onde atuamos em momentos diferentes. Os relatos não dizem respeito a momentos pontuais do projeto, e sim a momentos que animam o seu per- curso, sua caminhada, sempre na perspectiva de, gra- dativamente, conquistar novos avanços em relação aos objetivos que se propõe, amparados e fundamentados por um programa contínuo de formação e de acompa- nhamento das ações, in loco. A Escola, a Família e a Comunidade em Rede O Projeto Ações em Rede tem como proposta ampliar as oportunidades de aprendizagem existentes num de- terminado território, por meio da articulação da escola com outras organizações e iniciativas governamentais e não-governamentais, constituindo uma rede de base local, cujo objetivo é a educação integral de crianças e adolescentes. O projeto, com duração de três anos, é implementado pela ação conjunta de: • representantes da secretaria de educação municipal e de outras secretarias de governo, de alguma forma, ligadas à questão da educação, como secretarias de cultura, esporte, saúde, assistência social, infância e juventude; • gestores de escolas públicas; • lideranças de organizações governamentais e não governamentais de um determinado território do mu- nicípio, envolvidas com a atenção à criança e ao adolescente. Ele se realiza em etapas: • 1a etapa – implementação do projeto no microterritório; • 2a etapa – fortalecimento da relação escola/família/comunidade (rede local) por meio da realização de memoriais e seminários escola-família-comunidade; • 3a etapa – incorporação das propostas dos memoriais e seminários no PPP das escolas do município e irradiação do trabalho para outras regiões. Por isso, fazemos o convite para a leitura do relato que ora apresentamos, o qual aborda algumas experi- ências vividas em Bebedouro, na região norte do Esta- do de São Paulo, a 380 quilometros da capital, no perí- odo de 2007/08. Este trabalho é fruto de parceria que reúne o Departa- mento Municipal de Educação - DEMEC, o Centro de Estu- dos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitá- ria - Cenpec e a Fundação Volkswagen - FVW. Ressaltamos que tais ações integram a metodologia 113 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Sobre o Memorial A fim de se avançar na construção de uma efetiva articulação entre escola, família e comunidade, propôs- se, a cada unidade escolar: programar um conjunto de eventos que criasse espaço para que as famílias e a co- munidade trouxessem para a escola seus costumes, sua tradição, suas referências culturais, para construir o Me- morial das famílias, da escola e da cidade. Nesse processo, desenvolvido em certo período de tempo, foram realizadas, pelos alunos, pesquisas sobre a história do bairro e da cidade e entrevistas com mora- dores mais antigos. Além disso, promoveram-se oficinas diversas, rodas de leitura, brincadeiras, danças, teatro, exposições, contação de lendas e causos, enfim, ativi- dades que traduziam a memória das famílias, da comu- nidade e da cidade. Simultaneamente, foram apresentados às famílias, de forma não convencional, os parceiros que a escola fez no percurso do Ações em Rede: representantes dos outros segmentos do poder público e da sociedade ci- vil local, tanto do entorno quanto da cidade. A proposta, muito bem acolhida por todos, gerou um rico acervo de materiais de diferentes naturezas, contri- buindo para o resgate da memória da cidade e consti- tuindo fonte de conteúdos de estudo para o currículo es- colar, nas diferentes áreas do conhecimento. Ao mesmo tempo, a experiência propiciou aos parti- cipantes − pais, alunos, professores, funcionários e par- ceiros − a oportunidade de estabelecer uma nova rela- ção com a escola. Essa primeira aproximação da família com a esco- la, no âmbito do projeto, não se reduziu a um evento. Na verdade, o encontro foi precedido por um longo pla- nejamento que envolveu toda a equipe escolar: alunos, professores, funcionários e pais mais próximos, geran- do pesquisas e contato com outras instituições e pesso- as para além da escola. E não terminou aí. Cada escola se preparou para regis- trar todo o percurso feito e cuidou de sua sistematização em portfólio específico, que será objeto de estudo das áre- as do conhecimento e da equipe gestora, por ocasião da elaboração do projeto político-pedagógico em 2009. Outros ganhos do processo desencadeado: • o memorial permitiu à escola maior conhecimento das famílias e da comunidade onde se situa; • propiciou maior conhecimento, às famílias e à comu- nidade, sobre o trabalho da escola, revalorizando seu papel; • aproximou parceiros importantes: artistas locais, es- pecialistas das universidades, o poder público... • aguçou o espírito de trabalho coletivo; • propiciou novas perspectivas para a proposta peda- gógica da escola, com maior atenção para a cultura local; • resgatou ou deu mais ênfase ao papel da escola como um espaço de convivência na comunidade; • estimulou outros espaços de aprendizagem − facul- dades, bibliotecas − e executores de outros projetos sociais a adquirirem novas perspectivas no que diz respeito ao relacionamento com a escola. A fala de uma participante do Ações em Rede retrata bem o resultado dessa experiência: Olhando os depoimentos das escolas que fizeram o Memorial, eu consigo ver a riqueza de minha cidade e o quanto a escola é importante – eu descubro Bebedouro. Para nós, ficou claro que o Memorial diferenciou-se das festas ou reuniões costumeiras da escola, dado seus propósitos; foi um passo adiante na politização da rela- ção escola-família-comunidade. As escolas entraram no “espírito do projeto”, leva- ram muito a sério o que se pretendia, realizaram pes- quisas e envolveram os vários segmentos na realização do Memorial. A intenção é incorporar o acervo produzido no currí- culo. Esse é o próximo passo e, sendo assim, fica claro que o Memorial não é apenas uma estratégia para apro- ximar família e escola, é também uma estratégia para aproximar escola e práticas culturais locais. O processo de realização do Memorial pelas escolas também resultou no estabelecimento de outras parce- rias importantes. Como exemplo, citamos a necessidade despertada em uma das escolas-piloto de conhecer me- lhor seu entorno, o que provocou a procura do curso de Serviço Social da instituição municipal de ensino supe- rior de Bebedouro para elaborar e executar, em conjun- to, uma pesquisa socioeconômica do território. Seguindo essa mesma tendência, outras quatro es- colas desenvolveram instrumentos para coletar informa- ções, no sentido de conhecer melhor as famílias. O pró- prio Departamento de Educação se aproximou mais das 114 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 escolas, conhecendo melhor sua realidade e entenden- do mais suas demandas; artistas locais e organizações não governamentais também se aproximaram e agora estudam ações conjuntas. Sobre o Seminário No ano seguinte à realização de todo o processo do Me- morial, o desafio foi a realização dos Seminários escola- família-comunidade, que pretendiam promover um avan- ço de natureza política nessa relação. A intenção era dis- cutir a qualidade da educação com pais e parceiros, a partir da escola de seus filhos, e propor ações para me- lhorar essa qualidade da escola. Em 2008, de acordo com o desenho do projeto, os seminários aconteceram nas três escolas-piloto do mu- nicípio de Bebedouro: EMEBs Prof. Paulo Rezende Torres de Albuquerque, João Pereira Pinho e Profo Lellis do Ama- ral Campos. Essas escolas já haviam realizado o memo- rial em 2007. As outras escolas do município (escolas ir- radiadoras), que fizeram o memorial em 2oo8, realiza- rão os seminários em 2009. Cada seminário reuniu aproximadamente 150 pes- soas, entre familiares, alunos, parceiros, professores e funcionários, num dialogo coletivo sobre a construção de uma escola de qualidade para todos, configurando uma importante etapa na busca da integração escola, família e comunidade. Para criar um espaço de trabalho realmente produti- vo, no enfrentamento dos desafios e na busca de solu- ções para os problemas já historicamente estabelecidos, foi importante partir da abertura real de cada escola, do seu desnudamento no contexto atual, tanto quanto pos- sível, e formular indagações que pudessem trazer poste- riores encaminhamentos. Assim, considerou-se, nesse espaço, tanto a situação real da escola, quanto as propostas de ação que pudes- sem constituir metas e objetivos do Plano Político-Peda- gógico da escola (PPP). O planejamento e detalhamento desses eventos con- taram com a participação do Grupo Gestor2 e do Grupo Referência,3 orientando o processo de mobilização e sen- sibilização das pessoas da escola e do seu entorno, rom- pendo barreiras de idade e de formação, valorizando a di- versidade e a pluralidade existentes. Isso garantiu a pre- sença dos diferentes segmentos envolvidos com a edu- cação de crianças e adolescentes do território. Os seminários foram orientados por um roteiro cons- truído em comum acordo entre as escolas: • teve início com a fala institucional do gestor da esco- la, apresentando ao público o objetivo do evento e a situação atual da escola em relação aos seus indica- dores educacionais e aos desafios de melhorá-los; • em seguida, houve a apresentação de uma atividade cultural produzida pelos próprios alunos; • depois, os participantes foram divididos em grupos de discussão, cada grupo contava com a representa- ção de todos os segmentos. Mediada pelos parceiros do Grupo Gestor, a discussão desencadeou-se a par- tir da seguinte questão: Educação de qualidade para todos, como alcançá-la? • ao final do trabalho dos grupos, foi realizada a plenária final, com todos os participantes; cada grupo apresen- tou propostas viáveis para serem encaminhadas por todos na busca da melhoria da qualidade da escola. Foi importante a constituição, na plenária, de uma comissão composta por alguns representantes de pais, professores, funcionários, alunos e instituições parceiras para sistematizar as propostas de ações apresentadas por cada grupo de trabalho, as quais são apontadas logo abaixo. A esse grupo, chamamos de comissão mista. Destacou-se também o Grupo Gestor, no importante papel moderador dos grupos, como facilitador do diálo- go, de forma mais igualitária, e de pautar o levantamen- to das propostas, retomando, sempre que necessário, o objetivo do Seminário. Sabemos que não é tarefa fácil conjugar e integrar diferentes segmentos reunidos, com diferentes visões e opiniões, lidar com as contradições e equívocos,vencer os silêncios, as polêmicas, fazer o contraponto entre de- safios e condições existentes, entre limites e possibili- dades de ação. 115 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 DUAS INSTÂNCIAS DE GESTÃO DEMOCRÁTICA Como opção metodológica, a implementação do Projeto prevê a constituição de duas instâncias coletivas de gestão: o Grupo Gestor e o Grupo Referência, respectivamente das esferas central e local do município, para propiciar uma dinâmica de relacionamento ágil e flexível entre os responsáveis pelas políticas públicas e as lideranças locais, no desenvolvimento de ações integradas de atenção à criança e ao adolescente. A composição dos dois grupos é estratégica porque fortalece o protagonismo dos responsáveis pelas políticas públicas no município, ao mesmo tempo em que estabelece o suporte para a formação gradual da rede de base local no microterritório. O Grupo Gestor tem caráter intersetorial, integrando representantes de diferentes secretarias da adminis- tração municipal: sua função é coordenar a implementação do Projeto na cidade, mobilizando, apoiando e viabilizando as ações do Grupo Referência, tanto no que refere a seu planejamento quanto ao que se refere ao desenvolvimento e à avaliação. O Grupo Referência é composto por lideranças locais do território, de organizações governamentais e não-governamentais, como gestores, professores e outros profissionais de escolas, grêmios estudantis, as- sociações de pais e mestres, creches, serviços de saúde, associações de moradores, associações comerciais, bibliotecas, espaços culturais, conselhos tutelares, igrejas. São organizações e instituições que podem ser mobilizadas para desenvolver e apoiar projetos que visem enriquecer o repertório cultural das crianças e adolescentes do território, por meio de parcerias ou convênios. Não há hierarquia entre os grupos Gestor e Referência; o que se tem como perspectiva é a construção de uma relação horizontal de reciprocidade entre os participantes, de pertencimento e cooperação, como é próprio das redes eficazes. Por esta razão, embora o Grupo Gestor tenha papel próprio e definido como coordenador do projeto, ele é parte integrante do Grupo Referência, para que possa apreender o movimento da rede e se manter infor- mado, vendo e ouvindo os representantes das instituições locais, dialogando com os anseios, preocupações e propostas apresentadas. que significa trabalhar com as políticas públicas, tanto no que oferecem quanto no que podem vir a oferecer, e com a comunidade, como sujeito que pode e deve participar. Propostas e encaminhamentos A seguir, as principais propostas e encaminhamen- tos para viabilizá-las, vindas dos seminários. • Viabilização de reuniões de pais, com temas varia- dos: além do desempenho dos filhos, orientações e debate sobre aprendizagem e ampliação de repertó- rio das famílias para o diálogo mais apropriado com os filhos. - Tema incluído no agendamento no planejamento da escola. Ao final do seminário, buscou-se colocar no horizon- te de todos a importância da articulação dos diferentes segmentos e a necessidade da escolha criteriosa de par- cerias para a realização das ações,dentro de concepções e princípios discutidos e definidos: com quem realmen- te podemos contar nessa busca? É importante ressaltar que, na concepção do Ações em Rede, as parcerias não substituem o papel do poder públi- co na manutenção da infra-estrutura das redes de ensino, no desenvolvimento das condições de trabalho e salariais dos professores, na implementação de projetos e na ado- ção de materiais pedagógicos para docentes e alunos. Visam fortalecer a participação da comunidade na identificação e otimização de recursos existentes e não- existentes em favor da aprendizagem escolar e do desen- volvimento do repertório cultural das crianças e adoles- centes, para que usufruam da condição de cidadania, o 116 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 • Orientações às famílias e professores sobre as fases de desenvolvimento dos alunos, relacionando-as ao processo de aprendizagem, ao desenvolvimento da sexualidade, à resiliência e higiene pessoal infantil e juvenil. - Participação de profissionais da equipe multidis- ciplinar de Bebedouro − psicóloga, fonoaudióloga e enfermeira − em determinadas reuniões de pais e horários coletivos. • Orientações para pais e professores sobre hábitos ali- mentares saudáveis. - A sugestão é que a nutricionista da cozinha-piloto do município organize essa ação junto às escolas. • Ações para tratar possíveis problemas de acuidade visual dos alunos. - Realização de testes visuais na escola por profis- sionais especializados. • Segurança na entrada e saída dos alunos na escola, com a sinalização das ruas próximas à escola e a pre- sença da guarda de trânsito. - Estas demandas devem ser encaminhadas para os órgãos competentes do município. • Ações para que a comunidade educativa, inclusive pais e parceiros da escola, conheçam as reais atri- buições e competências do Conselho Tutelar. - Proposta encaminhada para a equipe do Conselho Tutelar. • Divulgação e esclarecimentos sobre o ECA a pais e professores. - Proposta encaminhada para que a Rede Criança e Adolescente pense em formas de viabilização junto com as escolas. • Formação de lideranças comunitárias, para que elas se qualifiquem no trabalho junto à escola e comuni- dade (normalmente são mães voluntárias). - A proposta é que o SENAC faça essa formação. • Promoção, pela escola, de cursos para identificar vo- cações dos alunos e cursos com caráter profissiona- lizante para alunos em idade propícia e para pais. - Estes poderiam ser oferecidos pelas faculdades lo- cais (Fafibe e Imesb), representadas nos diferentes cursos. • Formação para professores, pais e alunos interessa- dos sobre procedimentos e conduta no uso adequa- do da biblioteca, conhecendo o espaço, sua organi- zação e acervo. - Proposta para ser encaminhada às escolas pelos profissionais da Biblioteca Municipal. • Promoção de oficinas de educação ambiental para professores e alunos. - Esta proposta foi encaminhada para os profissio- nais da Estação Experimental da Citricultura de Bebedouro. No âmbito do Projeto, a realização dos seminários re- presentou um momento significativo, não só pelo compa- recimento e participação dos diferentes segmentos envol- vidos no atendimento de crianças e adolescentes desses territórios. Devem ser mencionados os produtos alcança- dos, que deverão ser incorporados no Projeto Político Pe- dagógico – PPP da escola em 2009, dando-lhe vida e sen- tido e constituindo referência para a avaliação do processo e dos resultados do trabalho pedagógico, com o comparti- lhamento de responsabilidades entre professores, gesto- res, funcionários, famílias e parceiros do entorno e da cida- de, pelos rumos da proposta educacional da escola. Cabe ressaltar que a realização dos seminários pe- las escolas foi antecedida por muitas discussões e re- flexões sobre seu caráter e sobre as formas de realizá- lo e por muito trabalho de toda a equipe escolar, em es- pecial da gestão da escola, para mobilizar as famílias e a comunidade para a participação; afinal, tratava-se de um evento que não é comum na realidade educacional. Este é um trabalho que não se encerra, como nos diz Maristela Michelam Pizzolato, coordenadora pedagógi- ca da E.M.E.B. João Pereira Pinho: Temos agora um resultado em mãos, que não nos permite a se- gurança de um trabalho concluído, mas nos mostra um caminho possível de ser trilhado. Considerações finais Esperamos ter aumentado aqui o leque de possibili- dades de aproximação entre a família, escola e comuni- 117 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 dade, com vistas à construção de propostas pedagógi- cas que promovam a qualidade da educação e fortale- çam a rede de proteção e garantia dos direitos da crian- ça e do adolescente. Muitas foram as conquistas desse processo, mas, como não é possível falar sobre todas elas no espaço deste depoimento, selecionamos algumas que merecem destaque para reflexão. Uma delas diz respeito à importância das políticas intersetoriais. Nesse processo, dialogaram vários departamentos do município, sendo propostas ações conjuntas, envolvendo departamentos municipais de educação e cultura, saúde e promoção social. Estão também sendo amadurecidas pro- postas para maior interação da escola com outros equipa- mentos públicos, como a biblioteca municipal, parques da cidade, teatro, o que vai requerer preparo conjunto para atender aos alunos, tanto num movimento de contextu- alização curricular quanto de formação de público. A bi- blioteca municipal já iniciou esse processo. Outra conquista foi a aproximação escola e faculda- des, escola e ongs, escola e movimentos ambientais, que discutirão propostas de atendimento a demandas reais dos alunos e da escola, na constituição do PPP, a fim de se integrarem à vida da escola, sem se tornarem apêndices do currículo. É importante notar que foi muito proveitosa a dis- cussão sobre a representação que os segmentos têm da família, desencadeada no processo. Pôde-se perce- ber que há equívocos e preconceitos por parte de pais, professores, gestores e muitos parceiros sobre o que vem a ser família. Dessa discussão, resultaram propostas de ações con- juntas entre instituições não governamentais que traba- lham com família e o poder público, em especial dos ór- gãos que trabalham com o serviço social, inclusive a fa- culdade, para ampliar a visão sobre o assunto. Podemos dizer o mesmo com relação ao entendimen- to sobre criança e adolescente. Os segmentos de pais, professores, gestores e muitos parceiros desconhecem a cultura da criança e do adolescente, seu processo de crescimento e desenvolvimento. Nesse caso, o departa- mento de educação e algumas instituições não governa- mentais se dispuseram a sugerir e implementar ações conjuntas de formação. Concluímos esse relato com a satisfação de poder compartilhar esta experiência, que muito nos ensinou e comoveu, e com a esperança de poder ajudar aqueles que trabalham com os mesmos propósitos que nós. Um passo à frente e já não estaremos mais no mesmo lugar. Chico Science REFERÊNCIAS SACRISTÁN, J. Gimeno. A educação obrigatória: seu sentido educativo e social. Tradução de Jussara Rodrigues. Porto Alegre: Artimed, 2001. NOTAS 1 O projeto Ações em Rede faz parte do Programa Território Escola, parceria do Cenpec com a Fundação Volkswagen. 2 Participam do Grupo Gestor as três escolas-piloto da experiência e as seguin- tes instituições de governo e instâncias centrais: E.M.E.B. Paulo Rezende; E.M.E.B. João Pereira Pinho; E.M.E.B. Profo Lellis do Amaral; Departamento Municipal de Educação e Cultura − Educação; Departamento Municipal de Educação − Cultura; Departamento Municipal de Educação − Biblioteca Municipal; Departamento de Ação Social; Departamento Municipal de Saúde; Vetores e Zoonoses; Ambulatório de Saúde Mental; Departamento Municipal de Esporte ; Rede Criança e Adolescente; Conselho Tutelar; Imesb − Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro; Fafibe – Faculdades Integradas de Bebedouro; Senac − Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial; CMDCA − Conselho Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente; Conselho da Cidade; Conselho Municipal de Educação; APAE- Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais; DCA − Desenvolvendo a criança e o adolescente; Instituto Cerbel de Desenvolvimento Humano; Câmara Municipal; Diretoria de Ensino Regional. 3 Fazem parte do Grupo Referência todas as instituições do Grupo Gestor além das lideranças locais das instituições e serviços do entorno das três escolas- piloto e todas as outras escolas municipais ( irradiadoras do projeto): USF Tropical-Unidade da Saúde da Família; Mercado Pratbom; E. E. José Francisco Paschoal; CRAS − Centro de Referência da Assistência Social; Comunidade Jesus Caminho Seguro; CEFA − Comunidade Educativa Figuls Assunção; E.E. Jardim Souza Lima; Colégio Paidéia; Grupo de Mães da EMEB Paulo Rezen- de; indústria de óleo; Agropecuária; Educandário Santo Antonio; Tiro de Guerra; Instituto Romã-Mata Viva; Cooperlimpo; Casa do Adolescente; ADB − Associação dos Deficientes Físicos de Bebedouro; A VIDA – deficientes auditivos; Artsol; AAE Casa de Maria. Escolas irradiadoras: E.M.E.B. Alfredo Naime; E.M.E.F. Yolanda Carolina; E.M.E.F. Conrado Caldeira; E.M.E.B. Octavio Guimarães de Toledo; E.M.E.B. Stelio M. Loureiro; E.M.E.F. Augusto Vieira; E.M.E.B. Maria Fernanda L. Piffer; E.M.E.B. José Caldeira Cardoso; E.M.E.F. Profa Isabel Motta S. Cardoso; E.M.E.B. Arnaldo de Rosa Garrido; E.M.E.B. Aparecida Z. Molinari. * Maria Alice Setubal é presidente do Conselho Administrativo do Cenpec e da Fundação Tide Setubal. Socióloga e mestre na área de Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Integrante do Colegiado de apoio do Movimento Nossa São Paulo. 118 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Estudos recentes têm demonstrado que os papéis sociais desempenhados pelas mulheres no passado brasileiro, incluindo o paulista, matizam enfaticamente a total con- dição de submissão que até há poucas décadas preva- lecia na bibliografia. Seja nas elites, seja nas camadas intermediárias ou populares, seja na condição escrava ou forra, a mulher paulista constituiu-se em sujeito de sua própria história lutando nas tensas redes sociais ou mesmo nos matrimônios. No tocante aos segmentos de elite, a autoridade pú- blica e formal do homem tem, como contrapartida, o pa- pel estratégico da mulher no grupo familiar. De fato, a mulher branca é valorizada como fulcro do projeto so- cial de dominação portuguesa: imagem da grande dama que exercia limpeza de sangue, socializadora dos filhos e dos escravos. Era ela quem assegurava a formação, harmonização e perpetuação dos valores familiares. Também exercia o comando das atividades produtivas, função essencial para que o homem pudesse se ausentar na abertura de novas fronteiras, na comercialização e na ocupação de cargos públicos. As mulheres compartilhavam o status dos maridos no controle da casa e em todas as atividades aí envolvidas. Ao assumirem distintos papéis sociais, as mulheres pau- listas das elites tiveram uma função decisiva na continui- dade dos clãs familiares e nos bastidores dos processos que contribuíram para o desenvolvimento do território. As mulheres na família e na sociedade paulistanas MARIA ALICE SETUBAL * documento Trecho do texto FAMÍLIAS PAULISTAS, FAMÍLIAS PLURAIS, que consta da COLEÇÃO TERRA PAULISTA: HISTÓRIA, ARTE, COSTUMES, volume 2, MODOS DE VIDA DOS PAULISTAS: IDENTIDADES, FAMÍ- LIAS E ESPAÇOS DOMÉSTICOS, páginas 76 a 81. Editada pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – Cenpec, em 2004. 119 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Mulheres chefes de família A chefia de unidades domésticas por mulheres parece ter sido muito comum no Brasil colonial, especialmente em São Paulo, que teve suas fronteiras abertas desde o século XVII pelas bandeiras e pelo tropeirismo, pela mi- neração e pelo açúcar, no século XVIII, e pelo café, no sé- culo XIX. Esse fenômeno perpassa tanto as elites quanto as camadas populares nas zonas rural e urbana, embora a existência de mulheres sozinhas no campo só aconte- cesse quando os filhos já estavam em idade produtiva, ou se ela contasse com escravos e/ou agregados. Maria Odília Dias assinala que nos finais do século XVIII e início do século XIX, com a urbanização da capital paulista, cresce o número de mulheres pobres: escravas e forra, sobrevivendo de artesanato caseiro e pequeno co- mércio ambulante, são parte da economia escravista e da concentração da terra e, com o final da escravidão, vêem- se expulsas do centro para a retaguarda da cidade.1 A autora observa que já nos finais do século XVII des- tacava-se a liderança das mulheres no artesanato casei- ro – panos de algodão, redes, chapéus de feltro, marme- lada -, enquanto os homens se ocupavam com ativida- des finais de transporte e comercialização. Essas ocupa- ções os levavam a se ausentar para o sertão ou a ado- tar uma vida andeja como intermediários de firmas co- merciais entre Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Gros- so e Goiás. Assim, as mulheres tiveram de assumir pa- péis masculinos de administração dos bens, entre eles a roça e a criação de gado. Paralelamente, mulheres sós, chefes de família, ocu- pavam posições de lavadeiras, quitandeiras, roceiras, costureiras e comerciantes de gêneros como frango, ovos, toucinho, fumo etc. Dias ressalta também a existência de uma organização familiar matrifocal, ou seja, de laços pri- mários extremamente fortes entre mães e filhas. Embora se detectasse uma certa tensão em movimen- tos cíclicos, pois filhas e netas se afastavam da casa em decorrência do casamento ou de uniões informais, mui- tas vezes elas retornavam trazendo filhos ilegítimos. Re- afirmava-se, desse modo, o modelo matrifocal. Os concubinatos efêmeros e as mães solteiras mos- travam-se bastante comuns e as relações de vizinhança e parentela eram condições essenciais para a organiza- ção de serviços e agências do comércio local. As estradas de ferro transformaram o sistema local de acesso a gêneros alimentícios e o comércio de am- bulante foi recuando para os limites da pobreza urbana. Com a crescente urbanização, a capital assistiu ao au- mento do número de mulheres pobres que gravitavam às margens da classe dominante e conviviam com vizi- nhas mestiças, pardas, mulatas, forras, fenômeno que, em alguma escala, reproduzia-se nas maiores vilas e ci- dades do interior paulista. Trabalho, liderança e capacidade de comando No campo, a vida das mulheres também não era fácil, acompanhando as atividades do marido, principalmen- te quando os filhos eram muito pequenos e ainda não podiam contribuir. Como atestam os documentos, o tra- balho de crianças era bastante comum, especialmente nos séculos XVIII e XIX. Elizabeth Kuznesof considera que “O trabalho da mulher era tão importante quanto o do homem e freqüentemente se sobrepunha a ele. Em ge- ral, tarefas relacionadas com a produção doméstica de utensílios, roupas, sabão, óleo para combustível e luz, lenha, água e trabalhos relacionados com cozinhar, lim- par, cuidar de crianças eram e são a principal responsa- bilidade de mulheres e crianças. Ambos, homens e mu- lheres, trabalhavam nos campos com divisões dos ti- pos de trabalho, dependendo mais da idade e força que do sexo”2. A imagem das mulheres da elite paulista difundiu- se amplamente no imaginário brasileiro, muitas vezes apoiada em pinturas, nos relatos de viajantes, como Saint-Hilaire, e em outros documentos, como as cartas da educadora alemã Ina Von Binzer3 . As senhoras paulistas do século XIX são percebidas até os dias atuais como reclusas, sem educação formal, só pensando em luxo e festas e tendo à sua volta escra- vos para todo tipo de trabalho. No entanto, estudos recentes4 têm apontado o im- portante papel desempenhado por mulheres da oligar- quia rural paulista na gerência de suas fazendas, ten- do-se em conta, especialmente, as longas ausências dos maridos. Marina Maluf 5 analisa os diários de Floriza Barbosa Ferraz e Brazilia Oliveira Franco de Lacerda, ambas nas- cidas nos finais do século XIX, casadas com fazendeiros que abriram terras no Oeste Paulista. Os afazeres do- mésticos assumiam enormes proporções e complexida- de, considerando-se a auto-suficiência das propriedades 120 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 rurais e o grande número de escravos: pode-se dizer que a fazenda era uma empresa doméstica que exigia capa- cidade de administração e liderança. No caso de Ana Carolina de Arruda Botelho, esposa do conde do Pinhal, além dos cuidados com os 12 filhos e todos os afazeres domésticos, cabia-lhe a supervisão dos 300 escravos da fazenda, o que implicava confecção de roupas, alimentação, cuidados com saúde, elabora- ção de remédios com ervas medicinais. “Se no mundo urbano, principalmente, a mulher da classe dominante se deslocava da atividade direta dos negócios da casa para o gerenciamento desses negócios, em certas zonas mais distantes do mundo agrário esse fenômeno deve ser relativizado. Aqui, a proprietária, a um só tempo fazendeira e dona de casa, era compelida a cumprir um extenso conjunto de obrigações. Nas fa- zendas – e não só nas regiões inóspitas – tudo estava para ser feito e implantado, o que tornava obrigatório o redimensionamento dos encargos da casa. Além dos cui- dados cotidianos com a família, a mulher ainda se res- ponsabilizava pela criação de porcos, galinhas e outros animais domésticos... Supervisionava e controlava o co- nhecimento do processo de trabalho envolvido em to- das as atividades da casa grande, como cozinha, costu- ra, bordado e a produção de compotas, doces, geléias, pão, broas, biscoitos, sabão e velas. Afinal, aquela não era apenas a sua família, era também o negócio, a pro- priedade da qual era sócia.” 6 Assim, no século XIX, com os maridos ausentes – abrindo fronteiras do café, conduzindo tropas de mulas ou comercializando produtos na capital paulista ou na Corte, a submissão ao esposo, traço dominante na épo- ca, não excluiu a capacidade feminina de comandar e de- sempenhar atividades, o que acabou matizando a pró- pria submissão. Maria Odila Dias sustenta que, por força de fenôme- nos demográficos e da ausência dos maridos, as mulhe- res tiveram que assumir papéis masculinos e também de liderança social: eram fundadoras de capelas, curadoras, mulheres de negócio, administradoras de fazendas e lí- deres políticas locais. Essa liderança tanto nas fazendas quanto nas vilas exigia das mulheres um papel de coe- são e harmonização, estampado no estereótipo de ma- triarcas hospitaleiras e generosas. Paralelamente, hou- ve também a influência de senhoras prepotentes, em de- corrência do status familiar. Embora não exercessem car- gos na administração pública, na qualidade de proprie- tárias e herdeiras, elas se intrometiam constantemente na política: um exemplo bastante claro é o da marquesa de Santos, durante o Primeiro Império. NOTAS 1 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. 2 KUSNESOF. Apud MARTINS, Valter. Nem senhores, nem escravos – os peque- nos agricultores em Campinas, 1800-1850. Campinas: Centro de Memória; Unicamp, 1996. p. 48 (Coleção Campiniana, 10). 3 BINZER, Ina Von. Os maus romanos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 4 Ver, entre outros, os trabalhos de VAZ, 1995; ALGRANTI, 1997; e NAZZARI, 2001, citados na bibliografia. 5 MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995. 6 MALUF, Marina, op. Cit., p. 282. 121 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 O que é a família? Para que serve a família? O que é a escola? Para que serve a escola? O que existe em comum entre famílias brasileiras (e falamos dos vários Brasis) e as famílias africanas (quantas Áfricas existem?), européias, asiáticas, canadenses, árabes, etc. etc. etc.? O que existe de comum entre as escolas espalhadas pelo mundo? É possível desenhar um modelo universal de família? E de escola? A sociedade contemporânea se acostumou à velocidade e à velocidade da mudança. Mas parece não se ter dado conta de que a mudança é o fato social mais presente na história da humanidade. Família e escola, como instituições sociais criadas e consen- tidas pelo contrato social, não poderiam fugir à regra. E mais, cada família e cada escola se estruturam, exercem-se e se apresentam em suas particularidades. Família e escola são, foram e serão sempre instituições em mu- tação. Elas estão em processo de transformação, como de resto toda a sociedade. Por mais que mentalidades fundamentalistas pretendam definir compulsoriamente comportamentos sociais e engessá-los em regras imutáveis. Família e escola são muito mais dinâmicas do que qualquer decá- logo normativo. Pelo fato de elas acontecerem diante de nossos olhos, em situações nas quais estamos inseridos, não costuma- mos perceber as inúmeras transformações que elas registram. É como se olhássemos apenas para um espelho, sem registrarmos nossas imagens passadas. O espelho não revela a mudança. Por isso, o apelo à história da família, à história da educação. Há uma longa trajetória de incríveis mudanças desde a primeira família e a transmissão dos primeiros conhecimentos humanos e a família e a escola contemporâneas. Certamente, caberá ao poder público adequar as legislações às novas formas de convivência, aprendizagem e socialização. Mas os especialistas em educação e relações familiares têm um papel fundamental nesse processo. Cada família e cada escola se constituem em universos particu- lares. E como tal, merecem respostas particulares. Esse parece ser o grande desafio da contemporaneidade. Para iniciar um processo de reflexão que nos ajude a res- ponder às questões do início deste texto, vamos recorrer a dois autores absolutamente díspares: o promotor de justiça baiano Cristiano Chaves de Farias, no seu texto “Direito à Família”, e Bill Gates, o poderoso criador da Microsoft, no capítulo 9 − Educação: o Melhor Investimento − de seu livro A estrada do futuro. Primeiro, o promotor Cristiano de Farias: [...] hoje a família é núcleo descentralizado, igualitário, de- mocrático e, não necessariamente heterossexual. Trata-se de entidade de afeto e entre-ajuda, fundada em relações de índole pessoal, voltadas para o desenvolvimento da pessoa humana, que tem como diploma legal regulamentador a Constituição da República de 1988. Na medida em que a família deixa de ser encarada sob a ótica patrimonialista e como núcleo de reprodução e passa a ser tratada como instrumento para o desenvolvimento da pessoa humana, realçados seus componentes mais próximos à condição humana, tem-se, sem dúvida, uma democratização da estrutura familiar. São diversas as inquietantes questões que se apresentam no ambiente familiar moderno, gerando perplexidades. A socie- dade contemporânea aberta, plural, dinâmica, multifacetária e globalizada não permite mais a afirmação de um modelo fechado de estruturação familiar. Para finalizar, Bill Gates: Os educadores, como tantos profissionais na economia atual, são, entre outras coisas, facilitadores. Como muitos outros trabalhadores, terão de se adaptar e readaptar à mudança das condições. Põem, ao contrário de outras profissões, o futuro do magistério parece extremamente promissor. À medida que as inovações melhoraram o padrão de vida, houve um crescimento no segmento de força de trabalho dedicada à educação. Os educadores Mosaico Fernando Rios* * Fernando Rios é jornalista, publicitário, antropólogo e consultor em Comunicação Organizacional Integrada. De que família e de que escola estamos falando? 122 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 LIVROS FAMÍLIA: REDES, LAÇOS E POLÍTICAS PÚBLICAS Ana Rojas Acosta, Maria Amalia Faller Vitale (Organizadoras) Instituto de Estudos Especiais da PUC-SP, 2003. Esta publicação, atualíssima, é a transcrição do seminário com o mesmo título do livro. Com uma grande riqueza de detalhes, esta obra relata reflexões, pesquisas, estudos de caso, agrupados em três vertentes: Vida em Família, Trabalhando com Famílias; Famílias e Políticas Públicas. Constituiu-se numa realização do IEE-PUCSP; Oficina Municipal da Fundação Konrad Adenauer; Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – Cenpec; Universidade Cruzeiro do Sul – Unicsul; e contou com o apoio da Fundação Prefeito Faria Lima – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal – Cepam e Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef. A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO Friedrich Engels Trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan Tradução de Leandro Konder, 14a edição, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1997. O texto também pode ser acessado pelo endereço: http://www.moreira.pro.br/classcent.htm Friedrich Engels (1820/1895) e Karl Marx (1818/1883) formam uma das mais famosas duplas de filósofos de todos os tempos que se complementam. Foram amigos, colaboradores entre si, influenciaram-se mutuamente. Com a falência da antiga União Soviética e queda do muro de Berlim, no dia 9 de novembro de 1989, aumentaram as virulentas e violentas contestações às suas propostas socialistas. Contudo, continuam ícones do pensamento político e econômico. Não é necessário concordar com suas propostas, porém, não se pode ignorá-las. É o que acontece com este clássico A origem da família..., cuja primeira edição surgiu em 1884. Com base nos estudos e nas teorias do antropólogo americano Lewis Henry Morgan (1818/1881), ele traça um perfil histórico da família desde os tempos das sociedades pré-letradas até o final do século XIX. Um trabalho instigante e que nos ajuda a entender a formação da sociedade ocidental contemporânea. Seu texto é bastante contundente. que trouxerem energia e criatividade para a sala de aula prosperarão. O mesmo acontecerá com os professores que estabelecerem r elações fortes com as crianças, pois elas adoram aulas dadas por adultos que se preocupam genuinamente com elas (p. 235). [...] De início, a nova tecnologia da informação apenas in- crementará as ferramentas de hoje. Lousas eletrônicas de parede substituirão a escrita a giz da professora por fontes legíveis e imagens coloridas tiradas de milhares de ilustrações educativas, animações, fotografias e vídeos. Documentos de multimídia assumirão alguns dos papéis hoje desempenhados por livros de textos, testes e outros materiais pedagógicos. E, tendo em vista que os docu- mentos de multimídia estarão conectados a servidores da estrada, eles estarão sempre atualizados (p. 241). [...] Diferentes ritmos de aprendizagem serão contemplados, pois os computadores serão capazes de dar atenção indivi- dual a cada um de seus alunos. As crianças com deficiências de aprendizado estarão particularmente bem servidas. Independentemente de sua capacidade ou deficiência, cada aluno poderá trabalhar em seu ritmo próprio (p. 244). Compare sua reflexão com a deles. E experimente uma conclu- são. Evidentemente, além dos textos desta edição de Cadernos Cenpec, os livros, os filmes, os artigos e os sites que sugerimos aqui poderão ajudar. 123 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 A POLÍCIA DAS FAMÍLIAS Jacques Donzelot Prefácio de Gilles Deleuze Tradução de M. T. da Costa Albuquerque, 3a edição, Edições Graal Ltda., Rio de Janeiro, 2001. O livro apresenta uma história social da família do século XVIII ao início do século XX. O autor analisa a definição de família, construída pelas camadas burguesas do Antigo Regime, as formas pelas quais essa definição se estendeu a outras classes sociais, o conjunto de tecnologias po- líticas que investiram sobre o corpo, a saúde e as condições de vida a partir do século XVIII e as transformações no seu conceito, considerando as práticas de atendimento às crianças, a posição da mulher e suas atribuições e a função política do chefe de família. O livro permite ao professor discutir os papéis familiares e sua relação com as políticas sociais e as formas históricas de organização familiar. FAMÍLIA & ESCOLA – TRAJETÓRIAS DE ESCOLARIZAÇÃO EM CAMADAS MÉDIAS E POPULARES Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (organizadores). 3a edição, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2007. Na apresentação desta coletânea de textos, os autores comentam: “As famílias, assim como a escola, não podem ser consideradas de forma abstrata, dissociadas de suas condições históricas e socioculturais. Como já tem sido apontado por vários pesquisa- dores, variam consideravelmente as formas de interação que as camadas médias e as camadas populares estabelecem com os professores e – de modo geral – com a instituição onde estudam seus filhos, ou ainda as práticas que adotam para favorecer a escolarização deles. Explicitar algumas dessas variações é um dos propósitos dos trabalhos aqui reunidos”. Outros temas complementam os objetivos do livro: a escolha do estabelecimento ensino pelas famílias; a divisão do trabalho educativo no seio do casal; a tensão dos pais entre a realização pes- soal e a competitividade escolar do filho; o extra-escolar e o lazer dos jovens em suas relações com o mundo escolar; as estratégias familiares de internacionalização dos estudos, verificadas em certos meios sociais. A RELAÇÃO FAMÍLIA/ESCOLA – DESAFIOS E PERSPECTIVAS Heloisa Szymansky 2a edição atualizada, Líber Livro, Brasília, 2007. Um pequeno livro, bem escrito, que serve muito bem às pessoas que estão buscando as primeiras informações ou iniciando seu trabalho no relacionamento escola, família, comunidade, ou para aqueles que pretendem sistematizar seus conhecimentos. É um livro útil até para especialistas. HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA Philippe Ariès Tradução de Dora Flaksman, 2a edição, LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S. A., Rio de Janeiro, 2006. Mesmo refletindo bastante sobre as transformações da criança, da família e da educação nos nossos dias, o título desta obra deveria incluir o complemento que existe no título em francês: L ́enfant et l avie familiale sous l’ancien regime. Isso significa que as principais referência de Áries remontam dos séculos XV ao XVIII. Nem por isso, porém, este livro deixa de ser instigante, questionador, indignado. Áries nos diz que, durante muitos séculos, “a criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazê-las”. Esta obra do grande historiador é um momento de ilustração para quem gosta de educação. Percorrem-se alguns séculos de importantes exemplos familiares e pedagógicos, nem sempre edificantes, por exemplo, “a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado”. Um alerta: este trabalho poderá aumentar algumas indignações. 124 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 SITES http://escoladafamilia.fde.sp.gov.br/apresentacao.html A ESCOLA DA FAMÍLIA O Programa Escola da Família é uma iniciativa que une mais de 4 mil profissionais da educação, 18.548 estudantes universitários e 20.885 voluntários para criar uma cultura da paz, despertar potencialidades e desenvolver hábitos saudáveis junto aos mais de 7 milhões de jovens que vivem no Estado de São Paulo. O objetivo do Programa é a abertura, aos finais de semana, de 2.334 escolas da Rede Estadual de Ensino, trans- formando-as em centro de convivência, com atividades voltadas às áreas esportiva, cultural, de saúde e de trabalho. http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/pesquisas/ IBGE PESQUISAS O IBGE produz uma quantidade e uma variedade enorme de informações sobre o Brasil. Dê um passeio por estas páginas! Você vai encontrar o Brasil em números, gráficos e mapas. Nesta página, é possível acessar Educação no Brasil e A Família Brasileira. Há textos e números bastante elucidativos. http://www.brasilia.unesco.org/ Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Unesco (sigla do original em inglês: United Na- tions Educational, Scientific, Cultural Organization) O site da UNESCO é sempre uma referência quando o assunto é educação. E os trabalhos que o organismo patrocina sempre trazem uma contextualização que contempla a sociedade e a família. ARTIGOS HISTÓRIA DA ESCOLA DIÁRIO DO GRANDE ABC, p. 3, SEXTA-FEIRA, 7 DE FEVEREIRO DE 2003. http://www.redenoarsa.com.br/biblioteca/07se03_3649.pdf Em uma página de jornal, uma interessante história da escola. Super-resumida, é verdade, mas útil para se ter uma idéia bem geral. PARCERIA ESCOLA-FAMÍLIA TVE BRASIL SALTO PARA O FUTURO http://www.tvebrasil.com.br/SALTO/boletins2002/pef/pef0.htm A TV Escola, canal educativo do Ministério da Educação, produziu uma série de programas sobre a necessidade da Parceria Escola-Família, em 2002. Aqui, são apresentados os textos utilizados nos programas, divididos em: • Apresentação; • Nova Família, Nova Escola? – O que há de Novo nas Famílias; • Sobre Filhos e Alunos – Família: o Ausente Presente dentro da Instituição Escolas; • Sobre Pais e Professores – Relação família e escola na Educação Infantil: algumas reflexões • Currículo, escola & Sociedade – Currículo: um elo importante na parceria escola/família? • Escola: um espaço em Transformação – Uma visão de futuro 125 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 COMUNIDADE É A MELHOR PARCEIRA CONVERSAS NA TV ESCOLA http://mecsrv04.mec.gov.br/seed/tvescola/revistas/Revista20/Pdf/entrevista.pdf A Secretaria de Educação a Distância, do Ministério da Educação, para apoiar o Programa TV Escola, publica bimes- tralmente a Revista da TV Escola, distribuída para cada escola integrada ao Programa. No número 20, a publicação discute a importância de a comunidade estar presente na escola. Na apresentação da reportagem, seu propósito: Sua presença fortalece a escola, rompe o isolamento dos professores, aperfeiçoa a qualidade do ensino, consolida o pro- jeto pedagógico e dá aos alunos um exemplo de prática da cidadania. Mas como se abre a escola à comunidade? O QUE MUDOU NA FAMÍLIA BRASILEIRA? (DA COLÔNIA À ATUALIDADE) Eni de Mesquita Samara Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642002000200004 O artigo tem por objetivo fazer uma análise comparativa da família brasileira do período colonial até a atualidade, observando as mudanças e as continuidades ao longo do tempo. Tomando como base os recenseamentos da po- pulação manuscritos e impressos nos últimos 150 anos, verifica o que realmente ocorreu na sociedade brasileira quanto ao processo de formação de famílias, desenvolvimento econômico e crescimento populacional. A FAMÍLIA NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA BASES E PERSPECTIVAS TEÓRICAS Marisa Tayra Teruya http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2000/Todos/A%20Fam%C3%ADlia%20na%20Historiografia%20Br asileira....pdf “A História da Família, que no início da década de setenta se apresentava com contornos mal definidos e freqüente- mente confundidos com o que poderia ser considerado alguma de suas partes, chegou aos anos noventa renovada, movimentando-se de uma visão limitada da família, como uma unidade estática no tempo, para ser examinada como um processo ao longo da vida inteira de seus membros. Passou do estudo das discretas estruturas domésticas para a investigação das relações da família nuclear com o grupo de parentesco mais vasto e do estudo da família, como uma unidade doméstica distinta, para um exame da interação familiar com os mundos da religião, trabalho, edu- cação, instituições correcionais e sociais e com processos tais como de migração, industrialização e urbanização” (trecho da apresentação do artigo). DIREITO À FAMÍLIA Cristiano Chaves de Farias http://www.facs.br/revistajuridica/edicao_marco2004/docente/doc04.doc Em seu texto objetivo e contundente, o autor nos apresenta uma visão contemporânea do fenômeno familiar; as transformações sociais no novo milênio e seus reflelxos na vida familiar; a família na visão jurídica, destacando o tratamento dispensado pela Constituição da República; e propõe um olhar sobre os novos paradigmas da família. AS OUTRAS FACES DA FAMÍLIA BRASILEIRA Dora Isabel Paiva da Costa Resenha R. bras. Est. Pop., Campinas, v. 21, n. 2, p. 349-351, jul. dez. 2004 http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/rev_inf/vol21_n2_2004/vol21_n2_2004_12resenha_p349a351.pdf A professora da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – Unesp, Campus Araraquara, faz uma cuidadosa resenha do livro do Professor Paulo Eduardo Teixeira, O outro lado da família brasileira (Editora Unicamp, 2004). Ao mesmo tempo em que comenta o livro, apresenta um belo percurso das transformações da família no Brasil. 126 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Cadernos Cenpec Ano 4 Número 6 Primeiro semestre de 2009 Cadernos Cenpec é uma publicação do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Dante Carraro, 68 05422-060 – São Paulo – SP Brasil Telefax: (55) (11) 2132 9000 cenpec@cenpec.org.br www.cenpec.org.br Os artigos assinados não representam necessariamente os pontos de vista do Cenpec. As opiniões e idéias expressas neles são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Cadernos Cenpec / Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. – N. 6 (2009) – São Paulo: CENPEC, 2006 ISSN 1808-9631 Semestral 1. Educação 6. CENPEC CDD 370 Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura Ação Comunitária Presidente Maria Alice Setubal Conselho de Administração Maria Alice Setubal Antônio Carlos Caruso Ronca Bernardete Angelina Gatti Cleuza Rodrigues Repulho Ladislau Dowbor Marta Pavese Porto Rosangela Dias Oliveira da Paz Conselho Fiscal Odilon Guedes Pinto Junior Reginaldo José Camilo Superintendente Maria do Carmo Brant de Carvalho Coordenadora Técnica Maria Amabile Mansutti Coordenadora de Documentação e Informação Maria Angela Leal Rudge Coordenadora de Desenvolvimento Metodológico Maria Cristina Schilling Zelmanovits 127 Cadernos Cenpec 2009 n. 6 Coordenador Administrativo Walter Kufel Junior Créditos desta edição Organização e Coordenação Isa Maria Ferreira da Rosa Guará Comitê Editorial Ana Regina Carrara Eloísa de Blasis Fernando Rios Isa Maria Ferreira da Rosa Guará Maria do Carmo Brant de Carvalho Conselho Editorial Âmbar de Barros Antonio Jacinto Mathias Bernardete Gatti Fernando Almeida Fernando Rossetti Gilda Portugal Gouveia Isa Maria Ferreira da Rosa Guará Marco Aurélio Nogueira Maria Alice Setubal Maria do Carmo Brant de Carvalho Vera Maria Masagão Ribeiro Colaboram nesta edição Abdalaziz de Moura Adriano Vieira Ana Luiza Mendes Borges Bia Lomonaco Carla Lopes Fernanda Andrade Santos Fernando Rios Irene Piñeiro Isa Maria Ferreira da Rosa Guará Lúcia Velloso Maurício Maria Alice Setubal Maria Cristina Schilling Zelmanovits Maria Eleonora L. Rabêllo Maria Eulina Pessoa de Carvalho Maria José Reginato Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes Nilson Oliveira Otoniel Niccolini Patrícia Mota Guedes Tânia de Freitas Resende Thais Christofe Garrafa Preparação de textos, redação e edição Fernando Rios Revisão Sylmara Beletti e Dora Helena Feres Projeto gráfico original Homem de Melo & Troia Design Diagramação, editoração eletrônica e ilustrações Fonte Design Fotos Verônica Manevy Arquivo CRIA Arquivo SERTA Marcela Ronca Gilberto Tomé Tiragem 2000 exemplares 128 Cadernos Cenpec 2009 n. 6

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Artigo de opinião: pontos de vista

Nesta edição dos Cadernos Docentes, do programa Escrevendo o Futuro, explore as oficinas práticas para trabalhar o gênero Artigo de Opinião em sala de aula com sua turma do 9º ano, além de estratégias que fortalecem a argumentação das(os) estudantes e tornam as aulas mais dinâmicas e significativas.

O que são os Cadernos Docentes? Os Cadernos Docentes são materiais de orientação para a prática destinados a professoras e professores de Língua Portuguesa que, estruturados de forma sistemática a partir da noção de sequência didática, propõem um trabalho com os gêneros textuais, com o objetivo de desenvolver a aprendizagem da leitura e da escrita por estudantes. Esses materiais foram organizados em oficinas para que professo ras e professores desenvolvam com suas turmas atividades com os gêneros Poema, Memórias literárias, Biografia, Crônica, Documentário e Artigo de opinião. São, portanto, seis Cadernos Docentes elaborados, originalmente, para o trabalho com estudantes desde o 5º ano do Ensino Fundamental até a 3ª série do Ensino Médio, da seguinte forma: Caderno Poetas da Escola: atividades do gênero poema desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental I. Caderno Se bem me lembro: atividades do gênero memórias literárias desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental II. Caderno Biografia: a tessitura da vida : atividades do gênero biografia desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental II. Caderno A ocasião faz o escritor: atividades do gênero crônica desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental II. Caderno Pontos de vista: atividades do gênero artigo de opinião desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental II. Caderno Olhar em movimento: cenas de tantos lugares: atividades do gênero documentário desenvolvidas preferencialmente para estudantes da 1ª e 2ª séries do Ensino Médio. Apesar de serem indicados para determinadas oficinas, anos e séries, as sequências didáticas podem ser adaptadas para outros anos e séries, conforme a turma de estudantes, a necessidade e a criatividade de professoras e professores. Diálogos com a BNCC Na página inicial de cada oficina, são apresentados seus objetivos e dicas de preparação para os temas e atividades que serão trabalhados com as turmas de estudantes. Também encontramos ali uma seleção de habilidades para o componente de Língua Portuguesa, mapeadas na Base Nacional Comum Curricular e acionadas no desenvolvimento de cada oficina, indicando como cada proposta se aproxima das expectativas anunciadas pela BNCC. É importante lembrar que, segundo a BNCC, as habilidades, quando bem articuladas e trabalhadas nos espaços de aprendizagens da escola, têm por objetivo desenvolver as competências às quais estão relacionadas. Clique no botão em vermelho para ler as competências para a componente de português do Ensino Fundamental. Por fim, ainda sobre a aproximação dos Cadernos Docentes com a BNCC, ressaltamos que, no que diz respeito à articulação de Língua Portuguesa com outros componentes curriculares, é possível o diálogo com Artes, História e Geografia para conferir maior consistência e densidade à experiência formativa vivida na escola. A sequência didática A sequência didática é a principal ferramenta proposta pelos Cadernos Docentesesse dispositivo como modelo e desenvolvem com seus alunos as atividades aqui propostas: Cinco conselhos me parecem importantes para os professores que utilizam iniciais. Observar o que eles já sabem e assinalar as lacunas e os erros me parece fundamental para escolher as atividades e para orientar as intervenções do professor. Uma discussão com os alunos com base na primeira versão do texto é de grande eficácia: o aluno descobre as dimensões que vale a pena melhorar, as novas metas para superar, enquanto o professor compreende melhor as necessidades dos alunos e a origem de alguns dos erros deles. Fazer os alunos escreverem um primeiro texto e avaliar suas capacidades necessidades dos alunos, pois a sequência didática apresenta uma base de materiais que podem ser completados e transformados em função dessa situação e dessas necessidades. Escolher e adaptar as atividades de acordo com a situação escolar e com as ou por outros alunos. Diversificar as referências e apresentar um conjunto variado de textos pertencentes a um mesmo gênero, propondo sua leitura e comparação, é sempre uma base importante para a realização de outras atividades. Trabalhar com outros textos do mesmo gênero, produzidos por adultos em língua portuguesa. Não se conformar apenas com o entusiasmo que a redação de um texto para participar de uma competição provoca e sempre buscar estratégias para desenvolver a linguagem escrita. Trabalhar sistematicamente as dimensões verbais e as formas de expressão auxílios externos, os suportes para regular as primeiras oficinas da escrita são muito Estimular progressivamente a autonomia e a escrita criativa dos alunos. importantes, mas, pouco a pouco, os alunos devem aprender a reler, a revisar e a melhorar os próprios textos, introduzindo, no que for possível, um toque pessoal de criatividade. Escrita e cidadania transgênicos? E o que você pensa a respeito da igualdade de direitos e deveres para homens e mulheres? Você acha injusto que as universidades públicas reservem 50% das vagas para estudantes negros, indígenas e egressos de escola pública? O aumento da criminalidade teria alguma relação com a injustiça social? Você é contra ou a favor do incentivo à produção e ao consumo de alimentos e outras questões nos instigam, pois envolvem fatos socialmente relevantes: a escassez e a distribuição desigual de alimentos no planeta; o papel e o comportamento do homem e da mulher na sociedade; o “funil” do vestibular e o sistema de cotas para ingresso na universidade; ou, ainda, a insegurança cotidiana de nossas grandes cidades. Desde a hora em que nos levantamos até a hora em que vamos dormir, essas a (re)conhecer questões polêmicas que atravessam nosso cotidiano. Afinal, entender o que está em jogo em cada caso, perceber “quem é quem”, certificar-se de interesses em disputa, estratégias em ação etc. são formas eficazes de se envolver nas questões Um dos objetivos principais deste Caderno é motivar alunas/os e professoras/es Estado, no país ou no mundo –, essas e muitas outras questões são de interesse público. Referem-se, em geral, a problemas que demandam soluções mais ou menos consensuais, decisões a serem tomadas, rumos a serem seguidos, valores a serem discutidos e/ou relembrados etc. E a resposta que se der a cada caso afetará a vida de populações inteiras, fechando ou abrindo possibilidades, estabelecendo rumos, fixando parâmetros para as escolhas e ações das pessoas. São, portanto, questões polêmicas: estão em aberto, em processo de ampla discussão social. Como afetam direta ou indiretamente a vida de todas/os – na cidade, no Estado, no país ou no mundo –, essas e muitas outras questões são de interesse público. Referem-se, em geral, a problemas que demandam soluções mais ou menos consensuais, decisões a serem tomadas, rumos a serem seguidos, valores a serem discutidos e/ou relembrados etc. E a resposta que se der a cada caso afetará a vida de populações inteiras, fechando ou abrindo possibilidades, estabelecendo rumos, fixando parâmetros para as escolhas e ações das pessoas. São, portanto, questões polêmicas: estão em aberto, em processo de ampla discussão social. Um dos objetivos principais deste Caderno é motivar alunas/os e professoras/es a (re)conhecer questões polêmicas que atravessam nosso cotidiano. Afinal, entender o que está em jogo em cada caso, perceber “quem é quem”, certificar-se de interesses em disputa, estratégias em ação etc. são formas eficazes de se envolver nas questões que movem a vida em sociedade. Debatê-las, colaborando para a formulação coletiva de respostas, é parte da vida política cotidiana numa sociedade democrática. É parte, portanto, do pleno exercício da cidadania. É nesse âmbito do interesse público e da construção da cidadania que o jornalismo se movimenta. As matérias dos mais diferentes veículos ditos “de imprensa” – jornais, revistas, sites e redes sociais, telejornais etc. – pretendem nos contar o que acontece à nossa volta. Analisar e comentar esses fatos faz parte dessa função tipicamente jornalística, que é oferecer ao público em geral um retrato o mais objetivo possível da realidade, colaborando para sua análise, discussão e transformação. Retratar a realidade e contribuir para a reflexão a seu respeito são, portanto,as duas intenções básicas do jornalismo. De forma geral, as matérias não assinadas, especialmente a notícia, procuram nos dar, na medida do possível, uma descrição objetiva e imparcial dos fatos que relatam. Já as matérias assinadas, como os editoriais, os artigos de opinião, as críticas, as resenhas, as grandes reportagens etc., se esforçam para analisar e discutir esses mesmos fatos. Assim, matérias jornalísticas como a notícia apresentam-se ao público como “anônimas” e “neutras”. Não possuem marcas explícitas de autoria, como o verbo em primeira pessoa e ideias ou preferências individuais; por isso mesmo, evitam emitir opiniões explícitas, assumir um ponto de vista. Na notícia, é como se os fatos falassem por si: “Aconteceu, virou Manchete”, dizia, muito sintomaticamente, a publicidade de uma revista semanal já fora de circulação. Evidentemente, fatos não falam por si. Portanto, toda matéria jornalística, por mais objetiva e imparcial que se pretenda, manifesta uma versão particular dos fatos. Basta ler a mesma notícia publicada em diferentes veículos de imprensa para se dar conta disso. Seja como for, o foco do interesse, numa matéria não assinada, é a informação, e não o que determinada pessoa ou órgão de imprensa pensa a respeito dela. Já as matérias assinadas, como o próprio nome indica, são autorais. Os fatos chegam ao público “filtrados” pelo ponto de vista do articulista (autor do artigo), que opina sobre eles, comentando, discutindo, avaliando etc. E quem as lê quer saber, com muita clareza, o que quem escreve pensa a respeito de determinado assunto, bem como por que pensa nesses termos, e não em outros. Este Caderno trabalha com um dos gêneros mais conhecidos de matéria assinada: o artigo de opinião. Ele pode ser publicado em jornais, revistas ou internet; e é assinado por uma/um articulista que, jornalista profissional ou não, normalmente é uma autoridade no assunto ou uma “personalidade” cujas posições sobre questões debatidas publicamente interessam a muitos. É o que explica a relativa frequência com que celebridades da cultura pop, por exemplo, são convidadas a se pronunciar sobre o que pensam a respeito de questões sobre educação, saúde pública etc., mesmo quando estão longe de ser especialistas no assunto. Não por acaso esse conjunto de protagonistas dos debates públicos faz parte de um grupo a que se dá o nome de “formadores de opinião”. Sem as questões polêmicas de que já falamos, não existe artigo de opinião Elas geram discussões porque há diferentes pontos de vista circulando sobre os assuntos que as envolvem. Assim, a/o articulista, ao escrever, assume posição própria nesse debate, procurando justificá-la. Afinal, argumentos bem fundamentados têm maior probabilidade de convencer as/os leitoras/es. Ao escrever seu artigo, a(o) articulista toma determinado acontecimento, ou o que já foi dito a seu respeito, como objeto de crítica, de questionamento e até de concordância. Ela/ele apresenta seu ponto de vista inserindo-o na história e no contexto do debate de que pretende participar. Por isso mesmo tende a incorporar ao seu discurso a fala dos participantes que já se pronunciaram a respeito do assunto, especialmente os mais marcantes. Aprender a ler e a escrever esse gênero na escola favorece o desenvolvimento da prática de argumentar, ou seja, anima a buscar razões que sustentem uma opinião ou tese. Os temas aqui propostos – focados em questões da adolescência e do território em que as/os jovens vivem – estimulam a participação nos debates da comunidade, ajuda a formar opinião sobre questões relevantes e a pensar em como resolvê-las. Portanto, escrever artigos de opinião pode ser um importante instrumento para a formação do cidadão.

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A produção textual do relato de prática

A escrita do relato de prática não é apenas um registro, mas um poderoso instrumento de formação e transformação. Confira este especial, feito pelo programa Escrevendo o Futuro, para apoiar educadoras(es) na construção de seus próprios relatos de prática.

Boas-vindas ao percurso “A produção textual do relato de prática”! Por que escrever um relato de prática? O que narrar? Para quem? Para quê? Que formato tem esse texto? Essas são algumas das questões sobre as quais você poderá refletir por aqui. A proposta foi desenhada para você conhecer relatos de prática, vivenciar as etapas de produção textual do seu próprio relato e compartilhar sua trajetória com colegas. Além de ensinar e aprender, faz parte do nosso cotidiano na escola comentar com colegas o que vivenciamos com nossos alunos e alunas para pensar sobre o quê e sobre como ensinar e aprender. Vamos aqui refletir sobre como podemos ampliar essa interlocução. Vamos conhecer e comentar relatos de prática, destacar pontos fortes e pontos que poderiam melhorar, refletir sobre o que contar e como narrar experiências, preparar nossas narrativas e compartilhá-las com um coletivo de professoras e professores. Este conteúdo foi concebido e desenhado para que você possa realizá-lo no seu ritmo e a partir de sua experiência, organizando o seu percurso e calibrando a extensão de leitura e de produção escrita. Experiências compartilhadas têm potencial para ampliar a aprendizagem, construir parcerias e participar do coletivo. Por isso, desde o início, propomos que você convide um/a colega para trilhar essa trajetória com você.

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Cadernos Cenpec (nº 5, 2008): Juventudes urbanas

Esta edição trata de um tema instigante e relevante: a juventude dos grandes centros urbanos. Nela, você encontrará opções metodológicas, estratégias processuais e tecnológicas adotadas na ação com as juventudes. Acompanhe!

5 Juventudes urbanas 2 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 m 2003, descortinava-se no País, como questão e apelo social, a implementação de programas voltados à juven- tude. Essas iniciativas traduziam a dramática constata- ção da existência de enormes contingentes de jovens em situação de vulnerabilidade, risco, e exclusão. 3 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Editorial sta edição especial de Cadernos Cenpec trata de um tema instigante, envolvente e relevante: a juventude dos grandes centros urbanos. Consideramos importante que experiências significati- vas no campo da formação de jovens possam ser compar- tilhadas e socializadas. Aqueles que criam e implementam projetos no campo da educação brasileira têm o compro- misso social e político de disseminar, espalhar e colocar à disposição, os saberes que produzem. Não obstante o reiterado discurso da falta e da carên- cia, que muitas vezes imobiliza a ação, porque se encer- ra na denúncia, apresentamos aqui uma iniciativa que aposta na potência, na possibilidade real de despertar o desejo e a vontade de futuro dos jovens moradores de regiões de grande risco social. Lugares que escancaram sua precariedade local, sua vulnerabilidade social, seus riscos ambientais. Depois de muitas experiências em projetos sobre a juventude, o Cenpec, em parceria com a Fundação Itaú Social, inaugurou em 2004 o programa Jovens Urbanos, que privilegia uma forte articulação com agências gover- namentais (nos âmbitos municipal e estadual), centros tecnológicos e ONGs que atuam com jovens nas perife- rias das cidades. Inovador na oferta de experimentações vinculadas ao mundo da tecnologia, aos desejos dos jovens e às de- mandas das cidades, o programa estimula a circulação e intervenção na cidade e modifica a vida dos jovens e de sua comunidade. Experiências com aquecedores solares, intervenção e melhoria de espaços coletivos, tramas cul- turais as mais diversas exigiram dos jovens a problema- tização e a busca de soluções para questões que nunca tinham tido a oportunidade de resolver. Encará-las e en- frentar os desafios impostos pela realidade ampliou sua inventividade a um nível sem precedentes. Queremos multiplicar com nossos leitores as opções metodológicas, estratégias processuais e tecnológicas adotadas na ação com a juventude. Mas também apre- sentamos nosso mergulho no conhecimento mais refle- xivo sobre o universo juvenil que nos levou a procurar entender a complexidade e velocidade de sua vida em mutação e as novas formas de sociabilidade nos circui- tos onde transitam. Construímos com eles cartografias reais e simbólicas do possível que revelam as condições nas quais as juven- tudes das cidades se movem e desenvolvem suas trajetó- rias. Na periferia das duas maiores cidades do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo, pudemos nos aproximar dos jo- vens e estimulá-los a apropriarem-se de modo novo das tecnologias da cidade, criar e recriar imagens, comuni- carem-se com mais competência e alegria. Esperamos que todos possam navegar conosco nes- tes canais abertos pelos jovens e ampliar espaços de ação com e para eles. Apostamos que eles podem che- gar onde querem, se sociedade organizada e governos estiverem juntos nesta caminhada. #OMO MULTIPLICAR BOAS EXPERIÂNCIAS DE JOVENS URBANOS Maria Alice Setubal Diretora Presidente do Cenpec % editorial Como multiplicar boas experiências de jovens urbanos Maria Alice Setubal 3 apresentação Jovens urbanos, um programa no qual todos aprendemos Antônio Jacinto Matias 6 artigo Um disparador da reflexão teórico–metodológica Equipe Educação e comunicadade 9 Uma rede de ação para formação de jovens 13 Maria do Carmo Brant de Carvalho relato de prática E surgiu uma praça no Recanto Verde Real Panô Programa Jovens Urbanos 18 entrevista Esforço de articulação e parceria Uma conversa com Wagner dos Santos, coordenador do Programa Jovens Urbanos 20 relato de prática Projeto SOHAB: um aquecedor solar de baixo custo. 23 Programa Jovens Urbanos artigo Juventudes contemporâneas 25 Aline Andrade e Mônica Mussi 1. Vida contemporânea: alguns pontos de partida para pensar as juventudes. 26 2. Novas formas juvenis de sociabilidade: biossociabilidades. 32 3. Mudanças na paisagem urbana: formas de circulação contemporânea & as novas trajetórias juvenis. 36 programa jovens urbanos Cultura e subjetividade na juventude Núcleo de Pesquisa do Programa Jovens Urbanos 45 I. Reconstruindo-se cartograficamente 46 II. Rotas possíveis para a formação de juventudes 54 relato de prática Luz: tecnologia da imagem. Programa Jovens Urbanos 60 Do sujeito para o mundo, ser ou não ser. Depoimento de Carlos Sabino Dantas 61 4 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 3UM1RIO relato de prática Nas fotos, múltiplos olhares da Brasilândia. Programa Jovens Urbanos 63 artigo Jovem e trabalho 65 Cley Scholz; Maria do Carmo Brant de Carvalho; Maria Julia Azevedo; e, Wagner Santos relato de prática Projeto Caju: como formar bons artesãos. 72 Programa Jovens Urbanos artigo Nossas cidades são tecnologicamente mediadas 75 Núcleo de Pesqusia do Programa Jovens Urbanos relato de prática Projeto Arte Sem Parar! Programa Jovens Urbanos 82 relato de prática O Brócolis: a força da comunidade. Programa Jovens Urbanos 83 pesquisa Um retrato dos jovens urbanos que participaram do programa 85 Simone Aparecida Jorge e Irineu Francisco Barreto Jr. artigo Uma renovação curricular muito além do currículo 93 Maria Helena Guimarães de Castro e Maria Inês Fini relato de prática Aliados do RAP Programa Jovens Urbanos 98 artigo Ação pública para a juventude 101 José Eduardo de Andrade e Júlia Alves Marinho Rodrigues relato de prática Blogs: territórios virtuais de aprendizagem, 108 comunicação e sociabilidade. Programa Jovens Urbanos artigo Políticas para e com a juventude 111 Equipe Educação e Comunidade mosaico 117 Fernando Rios e Isa Maria F. Guará 5 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 6 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 m 2003, descortinava-se no País, como questão e apelo social, a implementação de programas voltados à juven- tude. Essas iniciativas traduziam a dramática constata- ção da existência de enormes contingentes de jovens em situação de vulnerabilidade, risco, e exclusão. Esse quadro, particularmente grave na periferia dos grandes centros urbanos, nos motivou, na Fundação Itaú Social, a oferecer nossa contribuição. Já sabíamos, na épo- ca, que propostas de formação profissional, assim como recomendações de viabilização da inserção de jovens no mercado de trabalho, apresentavam inúmeras dificulda- des e limites. Não obtinham a efetividade desejada. Vá- rias conversas e debates ocorreram então para desenhar um programa que fosse consistente, efetivo, replicável e aberto à participação de outras organizações. Foi assim que a Fundação Itaú Social, apoiada pelo Cenpec, iniciou em 2004 o Programa Jovens Urbanos. Vol- tado para jovens na faixa etária de 16 a 21 anos, residen- tes nas periferias das cidades de São Paulo e Rio de Janei- ro, o Programa nasce em estreita articulação com agên- cias governamentais (nos âmbitos municipal e estadual), centros tecnológicos e ONGs que atuam com jovens. Alguns importantes pressupostos nortearam sua ló- gica programática: • os jovens precisam aumentar sua escolaridade; con- cluir o ensino médio; se inserir no mundo das tecno- logias; conquistar uma “alfabetização científica”; apresentação *OVENS 5RBANOS UM PROGRAMA NO QUAL TODOS APRENDEMOS % 7 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 • os jovens precisam aumentar seu repertório cultural e comunicativo; ganhar inserção na cidade, saindo do confinamento social a que ficam submetidos nas periferias de megacidades como São Paulo; • os jovens precisam de muitas entradas no campo cultural, econômico, comunitário para obter inclu- são social com melhor qualidade de vida e no mun- do do trabalho; • os jovens precisam menos de um curso profissiona- lizante e mais de repertórios, competências e habili- dades facilitadoras de seu ingresso no mundo do tra- balho complexo. A garantia dessas possibilidades significou pensar e implementar um programa-rede que articulasse e enlaças- se a vida na cidade, a tecnologia, a cultura e a escolarida- de. Ao mesmo tempo, o método escolhido deveria produzir uma formação eficaz aos jovens, contemplando pesquisa, circulação, experimentação, exploração e produção. Um único projeto não permite tal movimento; daí o conceito de programa-rede, envolvendo um conjunto de organizações e a possibilidade de transitar entre elas. Muitos encontros, estudos e parcerias ocorreram, des- de as primeiras conversas em 2003, quando nos propuse- mos a estabelecer um diálogo que contemplasse a diver- sidade do contexto social em que estamos e que aproxi- masse diferentes organizações, a partir dessa causa co- mum: contribuir para a emergência de uma vida digna e significativa para jovens brasileiros que vivem em situa- ções sociais precárias. A sociedade de hoje é, ao mesmo tempo, da escas- sez e da abundância. Mantém enormes desigualdades sociais; forte apelo ao consumo de massa que, muitas vezes, sobrepõe o desejo à necessidade. Vivemos numa sociedade do conhecimento, da infor- mação e da contínua inovação tecnológica. Uma socieda- de que se desfez do modelo tradicional de emprego e con- clama os cidadãos a reinventarem o trabalho, seja pela in- dução contínua à novas ocupações, pela necessidade de cada indivíduo se constituir em empreendedor, seja por modelos de emprego autônomo, virtual, precário. Gilberto Dupas, argumenta que num mundo totalmente estruturado em redes (networks) pelas tecnologias da informação, a vida social contemporânea passa a ser composta por uma infinidade de encontros e conexões temporárias. O projeto é a ocasião única e o pretexto da conexão; os indivíduos que não tem projetos e não exploram as conexões da rede estão ameaçados de exclusão permanente, já que a metáfora de rede torna-se progressivamente a nova representação da sociedade. (Tensões contemporâneas entre o público e o privado. Gilberto Dupas. Editora Paz e Terra. 2005) Para a Fundação Itaú Social, esta publicação tem um significado muito especial, pois, com ela, apresentamos alguns dos importantes aprendizados que vivenciamos no Programa Jovens Urbanos. Antonio Jacinto Matias Vice-Presidente da Fundação Itaú Social 8 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 9 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 5M DISPARADOR DA REÚEX»O TEËRICO METODOLËGICA Viver é, de alguma maneira, buscar um lugar. É circular por um espa- ço e tratar de encontrar rincões, pontos no espaço. Nesse sentido o tema habitar é tema da cidade. Muito mais além, habitar é sinônimo de produzir a vida. Assim, enfrentar o tema da cidade é enfrentar o tema da vida. Miguel Laborde m 2004, a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – Cenpec iniciam o Programa Jovens Urbanos, destinado a jovens na faixa etária de 16 a 21 anos, residentes em regiões metropolitanas1 . Nasceu como iniciativa do Itaú Social, em forte articulação com agências governamen- tais, nos âmbitos municipal e estadual, com centros tec- nológicos e ONGs que atuam com jovens. Tal programa permitiu pensar, formular e implementar uma matriz socioeducativa e cultural para a juventude. A formação dos jovens no escopo do Programa tem como cenários a Cidade, a Cultura e a Tecnologia, privi- legiando a interferência desses aspectos na vida cotidia- na dos jovens participantes do Programa. Nessa perspectiva, a formação fomenta a inserção dos jovens em espaços e fatos urbanos desconhecidos, pro- piciando a ampliação de repertórios culturais, o usufru- to de direitos e acesso a saberes e culturas em movimen- to nos cenários urbanos, não só do mundo do trabalho. Ao partilharem o espaço da cidade com outros, ao visi- tarem edifícios, investigarem o funcionamento de empre- sas e instituições, ao circularem pela complexa geografia * Equipe Educação e comunidade realiza projetos e ações de forta- lecimento das capacidades de organizações e sujeitos envolvidos com ações sócio educativas com crianças, adolescentes e jovens. ARTIGO % Equipe Educação e Comunidade* 10 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ! QUALIÙCA¿»O DAS RELA¿ÍES JUVENTUDE E CIDADE JUVENTUDE E TECNOLOGIA JUVENTUDE E CULTURA CONTRIBUI PARA A DIMINUI¿»O DAS SITUA¿ÍES DE VULNERABILIDADE JUVENIL NO CAMPO ESCOLAR PROÙSSIONAL PÒBLICO RELACIONAL E CULTURAL urbana, ao reconhecerem as linguagens dos museus, dos teatros, dos cinemas, das ruas... as juventudes são inter- peladas pelas potências, diferenças, problemas e enun- ciados múltiplos em ação nas cidades. Estudos demonstram que a ampliação de experiên- cias de circulação e apropriação da cidade por jovens, cujas vidas estão concentradas nos bairros periféricos onde residem, colabora para a diversificação e amplia- ção de seus campos relacionais e repertórios culturais, aumenta as expectativas individuais e sociais de vida e os afasta do confinamento social e intelectual a que mui- tas vezes estão subordinados e os aproxima do mundo produtivo, não só consumidor. Além disso, ao entrarem em contato com a multiplici- dade cultural em ação nas cidades e com diferentes mo- dos de vida juvenil, os jovens ampliam suas capacida- des de pensar e agir sobre e no mundo. Por outro lado, as imersões nos territórios tecnológi- cos sustentam novos desempenhos individuais e respon- sabilidades sociais dos jovens, em especial no mundo do trabalho e nos locais onde eles mantêm vínculos. Ação pública em rede A elaboração de produtos e projetos de intervenção na cidade potencializa as subjetividades juvenis, pois os jo- vens aprendem a atuar com autonomia e a construir um projeto para compor perspectivas individuais e sociais. Por meio da produção, os jovens adquirem maior confian- ça sobre si mesmos e exercitam a partilha social. A qualificação das relações juventude e cidade, juven- tude e tecnologia, juventude e cultura contribui para a dimi- nuição das situações de vulnerabilidade juvenil no campo escolar, profissional, público, relacional e cultural. Os diferenciais do Programa Jovens Urbanos concen- tram-se em sua lógica programática e arquitetura de ação em rede. Seu arranjo institucional compõe-se de parce- rias com órgãos públicos, empresas públicas, privadas e de economia mista, organizações da sociedade civil, ins- tituições representantes do campo das artes, do mundo do trabalho e da produção de tecnologias. As relações institucionais mobilizadas pelo Programa sustentam-se numa perspectiva de ação pública em rede e na necessidade de legitimidade de suporte institucional e político às ações de intervenção perante o público juvenil. Nesse contexto, é diferencial o investimento constante para formação de arranjos institucionais e redes sociais2 comprometidas socialmente com a juventude, além de um exercício rigoroso para elaboração de uma proposta forma- tiva que considere as juventudes em seu presente. Essa perspectiva dispara a função política das “ju- ventudes”, requisitando dos jovens suas capacidades de contribuição e avaliação ante o que vivem e naquilo em que se engajam. O Programa Jovens Urbanos pretende, também, fun- cionar como um vetor social que acione a expansão do repertório sociocultural e a ampliação da circulação e das relações dos jovens com e na cidade, garantindo aces- so às culturas urbanas e bens tecnológicos, de modo a movimentar e abrir canais para processos de produção e atuação das juventudes na cidade. Escolhas Nas cidades se fazem perguntas que nunca foram feitas, surgem proble- mas que em outras condições as pessoas nunca tiveram oportunidade de resolver. Encarar problemas e questionar trazem desafios e ampliam a inventividade humana a um nível sem precedentes. Bauman Encarar a cidade significa, na pauta do Programa Jovens Urbanos, reconduzir aos jovens o direito à circulação na cidade, garantir acesso qualificado, em tempo real, aos equipamentos materiais e imateriais em ação no fluxo urbano, intensificar a sensibilidade pelo diferente e pe- los problemas relevantes de nosso tempo, porque é nas cidades de hoje que os problemas mais cruciais de nos- so tempo se cruzam e se manifestam. 11 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Cabe ainda destacar que as significativas mudanças ocorridas no ambiente produtivo urbano, em especial das forças produtivas, em função das invenções técnicas e da globalização dos mercados, põem em funcionamento al- terações radicais nos sistemas de empregos contempo- râneos. Além disso, projetam socialmente uma série de exigências formativas de difícil tangenciamento e regula- ção institucional, pois o capitalismo recente tem no prin- cípio de fluxos a condição de seu próprio exercício. Assim, sistemas de trabalho, de emprego e de forma- ção profissional passam a carecer de rumo predeterminável, adquirindo um sentido algo caótico, com intensas transições entre situações ocupacionais, já que as trajetórias profissionais não são mais previsíveis a partir de mecanismos de regulação socialmente institucionalizados (Guimarães, 2006, p. 175-6). Uma formação de jovens não pode nem dar as costas a essa nova configuração do capitalismo contemporâneo nem assimilar tal mudança com um otimismo formativo que se limitaria a celebrar as virtudes das técnicas pro- dutivas e a conjugá-las em uma didática profissional. Uma formação nesses moldes residiria ainda num oti- mismo formativo não-crítico, pois não haveria garantias contínuas de inserção nos sistemas de empregos nesse tipo de interação formativa com uma maquinaria técni- ca em contínuo fluxo. Tampouco haveria como endossar garantias sociais apressadas, tão facilmente associadas a programas for- mativos profissionalizantes, como a garantia de maior justiça social ou de redução de desigualdades. Pelo me- nos não por um tipo de argumento linear, imediato, sus- tentado num raciocínio de causa e efeito para um cam- po social marcado pela impossibilidade de uma tradu- ção didática fixa. Uma formação das juventudes desse tempo deverá instalar-se nos próprios jogos de fluxos contemporâne- os, ali onde eles acontecem, no solo das cidades, nos espaços construídos, nas indústrias, nas ruas, nos co- mércios, nos espaços de artes. Recentrar a formação profissional das juventudes na cidade significa uma abertura direta para o desenvolvi- mento das práticas sociais de trabalho e a promoção de encontros ativos com as populações e produções desse campo social (empresários, trabalhadores de todos os tipos, maquinários, técnicas, tecnologias etc.). Uma formação nesses moldes convoca a mobilização do contexto social ligado aos fluxos do trabalho, envol- vendo os contextos na criação de condições favoráveis para transformações reais nos repertórios de referência das juventudes (o que não impede que condições parti- culares de formação profissional sejam obtidas por ou- tras vias). Uma formação nesses moldes invoca também uma ética social, pois que força deslocamentos em estruturas institucionais que segregam no geral o estranho, o des- conhecido, o estrangeiro, aquele que sai de casa para entrar na aventura própria das cidades. NOTAS 1 A edição experimental do Programa Jovens Urbanos foi implementada em 2004/2005 na cidade de São Paulo, nos distritos de Brasilândia (Zona Norte) e Campo Limpo (Zona Sul). Em 2006/2007 foi desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro nos distritos de Santa Cruz: Paciência e Antares (Zona Oeste) e nos distritos de Manguinhos e Jacarezinho (Zona Norte). Em São Paulo encontra-se no 4o mês de implementação da 3a edição 2007/2008, nos distritos de Lajeado (Zona Leste) e Grajaú (Zona Sul). 2 O que os recentes analistas de redes apontam é para a necessidade de uma mudança no modo como se compreende o conceito de comunidade: novas formas de comunidade surgiram, o que tornou mais complexa nossa relação com as antigas formas. De fato, se focarmos diretamente os laços sociais e sistemas informais de troca de recursos, ao invés de focarmos as pessoas vivendo em vizinhanças e pequenas cidades, teremos uma imagem das relações interpessoais bem diferente daquela com a qual nos habitua- mos. Isso nos remete a uma transmutação do conceito de “comunidade” em “rede social”. Se solidariedade, vizinhança e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava definir uma comunidade, hoje eles são apenas alguns dentre os muitos padrões possíveis das redes sociais. Atualmente, o que os analistas estruturais procuram avaliar são as formas nas quais padrões estruturais alternativos afetam o fluxo de recursos entre os membros de uma rede social. Estamos diante de novas formas de associação, imersos numa complexidade chamada rede social, com muitas dimensões, e que mobiliza o fluxo de recursos entre inúmeros indivíduos distribuídos segundo padrões variáveis. (COSTA, Rogério). Por um novo o conceito de comunidade: redes sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.235-48, mar/ago 2005. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. (2004) Amor líquido: sobre a fragilidade das relações huma- nas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. GUIMARÃES, Nadya Araújo. (2006). Trajetórias inseguras, autonomização incerta: os jovens e o trabalho em mercados sob intensas transições ocupacionais in: CAMARANO, Ana Amélia. (org). Transição para a vida adulta ou vida adulta em transição? Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2006. p. 171-198. (url: http://www.ipea.gov.br). geografia 13 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 5MA REDE DE A¿»O PARA FORMA¿»O DE JOVENS ARTIGO & Maria do Carmo Brant de Carvalho* MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO é coordenadora Geral do Cenpec - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária e ex-professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP. alamos hoje, e muito, sobre parcerias na condução de pro- jetos sociais. Essa vocalização social em torno de termos como ação em rede, cooperação, articulação... expressa um valor sociopolítico na condução de ações públicas. Enfatizamos nesta revista uma formação de jovens tendo como cenários Cidade, Cultura e Tecnologia. Nessa perspectiva, a formação fomenta a inserção dos jovens em espaços e fatos desconhecidos da cida- de , propiciando a ampliação de repertórios culturais, o usufruto de direitos e o acesso a saberes e culturas em movimento nos cenários urbanos. Essa lógica programática só é exeqüível com o envolvi- mento de múltiplos parceiros comprometidos com a ofer- ta conjunta de oportunidades de aprendizagem que com- ponham com o tripé Cidade, Cultura e Tecnologia. Essas oportunidades estão espalhadas pela cidade, descentralizadas em agências governamentais, empresas públicas, empresas privadas, organizações da sociedade civil, instituições representantes do campo das artes, do mundo do trabalho e da produção de tecnologias. Assim, uma real oferta de formação para juventudes urbanas só é sustentável numa perspectiva de ação pú- blica em rede e na necessidade de legitimidade de su- porte institucional e político às ações de intervenção jun- to ao público juvenil. Mas, o que são redes? A rede sugere uma teia de vínculos, relações e ações en- tre indivíduos e organizações. As redes se tecem e se dis- solvem continuamente em todos os campos da vida so- 14 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 cietária. Elas estão presentes na vida cotidiana - nas re- lações de parentesco, nas relações de vizinhança, nas re- lações comunitárias -, no mundo dos negócios, na vida pública e se realimentam e se reconstroem internamen- te. As redes podem assumir características mais dura- douras ou efêmeras, vínculos mais densos ou mais tê- nues, simples ou complexos. No passado, o conceito de rede já era utilizado na ges- tão dos serviços sociais públicos. Acompanhava o mo- delo de gestão da época, ou seja, um modelo centraliza- do, setorial e caracterizado pela hierarquização e padro- nização na oferta de serviços. Falávamos em rede esco- lar, rede de unidades básicas de saúde, rede hospitalar, todas elas, no geral, subordinadas a uma organização– mãe. A rede era então percebida como uma cadeia de serviços similares tal qual na gestão empresarial. O termo rede não é novo, mas na vida contemporânea expressa um novo conceito. Esse novo conceito de rede usufruiu em sua formulação dos avanços tecnológicos e, ao mesmo tempo, pode ser expresso no campo legal, de- mandando intersetorialidade às políticas públicas. Os avanços tecnológicos, digitais e de linguagens multi- mídias agilizam e ampliam os fluxos de informação e comu- nicação entre seus integrantes. Tais ferramentas potenciali- zam e democratizam o universo das redes. Outra novidade é a mudança de perspectiva, antes uma estrutura hierárquica vertical, hoje uma estrutura flexível e horizontal; antes uma ligação entre iguais, hoje uma relação entre diferentes. Atualmente, a utilização do conceito de rede ajuda a caracterizar a sociedade contemporânea e os novos modelos de gestão dos negócios privados ou públicos, em escala local ou global. Para alguns estudiosos, a so- ciedade contemporânea conforma-se como sociedade em rede (Manuel Castells, 1998; Ruth Cardoso, 2001; G.Dupas, 2003). Como bem afirma Cardoso, não desapareceu a velha sociedade civil, mas tornou-se mais com- plexa a dinâmica de apresentação dos interesses coletivos. Essa complexidade decorre do fato de que a sociedade de hoje se apresenta tecida pela fragmentação de inte- resses e espaços de ação política. Não são mais as gran- des narrativas e utopias coletivas que agregam, mas sim os micro-discursos identitários. Daí a imagem de uma so- ciedade multifacetada. A sociedade se fragmentou em espaços de ação po- lítica que não mais se confundem com as formas tradi- cionais de representação, mas que podem formar redes que conectam, solidariamente, os vários núcleos que as formam. E não se pense que esses núcleos têm perspec- tivas e objetivos não-conflitivos. A grande característica dessas sociedades é a diversidade de pontos de vista que acolhem, e é legítima a manifestação dessas posi- ções” (Cardoso. 2001). Dupas (2003, p.17) nos lembra que (...) passamos de uma sociedade política a uma sociedade organizacional, entendida essa última como uma sociedade de gestão sistêmica e tecnocrática que pretende legitimar os direitos da pessoa.1 A fruição da ação em rede provoca uma retomada da totalidade. Isto é, exige apreender a realidade social e nela agir como um complexo, um todo que é tecido jun- to. Impõe uma perspectiva que integre, organize e tota- lize (Nogueira, 2001, p.35). Os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são constituídos por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles. (Santos, 2000, 73) Tecnologias, relações face a face e articulação. Agir em redes multi-institucionais altera radicalmente a arquitetura da gestão pública tradicional: • Derruba as fronteiras da setorialização da ação públi- ca e reforça uma nova tendência: a da emergência de programas-rede que agregam diversos serviços, proje- tos, sujeitos e organizações no âmbito do território. • Introduz nova cultura política no fazer social públi- co, que se caracteriza por: socializar o poder, nego- ciar, trabalhar com autonomias, flexibilizar, compa- tibilizar tempos heterogêneos e múltiplos dos atores e processos de ação. • Participação, articulação, integração, complementa- ridade, cooperação e parcerias são conceitos chaves na ação em rede. Por isso mesmo, aumenta a ênfase em processos de circulação e socialização de infor- mações e conhecimentos. • Exige a definição de eficazes fluxos de circulação no relacionamento de serviços e programas. • As novas demandas de gestão assentada em redes tam- bém alteram o modo de atuação dos profissionais da 15 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ação pública. Há novas habilidades e competências em discussão - competência comunicativa e relacional, com- petência articuladora - assentadas em um olhar multi- dimensional, multisetorial, transdisciplinar. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) cons- tituem-se em um elemento importante na circulação de informações e interatividade entre os sujeitos e institui- ções que integram as redes. Elas se agregam às relações face a face dos sujeitos, portanto não as substituem, mas as modificam. Antecedem, precedem, sucedem e man- tém as relações, criando memória e identidade. A articulação, outro elemento indispensável ao tra- balho social em rede, costura a oferta de oportunidades e de acesso a serviços e relações no território; conjuga e integra a população-alvo a uma cadeia de programas e serviços ligados entre si. Uma ação de formação com juventudes exige articu- lação e forte investimento na comunicação e planeja- mento de ações conjuntas, além de requerer um esfor- ço por parte de cada um dos parceiros em compartilhar princípios e objetivos comuns, agregando valor e agili- zando as diversas ações desenvolvidas num programa movido em rede. É uma ação que toma direção agrega- dora e retotalizante do social, para produzir desenvolvi- mento, pertencimento e emancipação. A ação interprogramas, intersetorial, interdisciplinar permite potencializar o agir porque retira cada ação do seu isolamento e assegura uma intervenção agregado- ra e includente. Para mobilizar e agir em parceria é necessário: • Reconhecer que a participação dos diversos atores é o que garante adesão, cor, identidade e legitimida- de às ações implementadas. • Favorecer e assegurar co-autoria com o poder públi- co e demais parceiros. • Proporcionar a continuidade das ações. A persistên- cia e o investimento técnico e político de longo prazo criam condições de sustentabilidade para as ações em parceria. Esse fator é talvez um dos maiores res- ponsáveis por uma ação compartilhada e exitosa nas intenções e utopias postas em movimento. • Promover contínua socialização de conhecimentos, sistematizando o conhecimento produzido e investin- do na estratégia de sua disseminação. Dessa forma, transforma a reflexão teórico-prática em ferramentas e metodologias que tenham sentido e significado na prática social. • Manter conduta institucional de mútua cooperação e partilhamento com outras organizações e redes de projetos. Deve-se investir na ação em parceria com organizações governamentais e não-governamen- tais, fundações empresariais e comunidades locais, na perspectiva de construir participação, mobilizar vontades, implementar pactos de complementarida- de entre atores sociais, organizações, projetos e ser- viços. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer o pa- pel regulador do Estado e fortalecer sua condição de intelligentsia do fazer social público. • Estabelecer parcerias entre público-privado. Para isso, exige-se, no mundo atual, reconceitualização, já que essa relação costuma vir contaminada pelo receitu- ário neoliberal e, em conseqüência, pode gerar des- confianças sobre seu possível efeito desresponsabi- lizador da ação do Estado. • Realizar projetos com parcerias externas. Porém, isso só ganha cor e identidade local, quando redesenha- dos com a participação de seus atores principais. A adoção de programas–rede, permitindo a cons- trução de lógicas combinatórias interpolíticas setoriais, programas e instituições de natureza diferenciada, fa- vorece ao grupo juvenil escolhas múltiplas e desenvol- vimento integral. Uma rede dispara outras redes. No programa Jovens Urbanos, parcerias iniciais para o conjunto do programa resultaram em novas parcerias na base. NOTAS 1 Dupas, em seu livro Tensões contemporâneas entre o público e o privado, acrescenta que “num mundo totalmente estruturado em redes (networks) pelas tecnologias da informação, a vida social contemporânea passa a ser composta por uma infinidade de encontros e conexões temporárias. O pro- jeto é a ocasião única e o pretexto da conexão; os indivíduos que não têm projetos e não exploram as conexões da rede estão ameaçados de exclusão permanente, já que a metáfora de rede torna-se progressivamente a nova representação da sociedade”. REFERÊNCIAS CARDOSO, Ruth. A construção de um novo diálogo. In Gestão de Projetos Sociais. São Paulo: AAPCS. 3a edição revisada. 2001 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede (A era da informação: economia, socie- dade e cultura; Volume 1, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2a. ed., 1999. DUPAS, Gilberto – Tensões contemporâneas entre o público e o privado – São Paulo: Paz e Terra, 2003 NOGUEIRA, Marco Aurélio. Em defesa da política. São Paulo: Editora Senac, 2001 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, Vol 1, 2000. 16 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 1a EDIÇÃO SÃO PAULO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens COOPERAÇÃO TÉCNICO FINANCEIRA ICE – Instituto de Cidadania Empresarial PARCERIAS INSTITUCIONAIS Secretaria Municipal da Assistência Social Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social e PRODESP IBEAC – Instituto Brasileiro de Estudos e Apoios Comunitários PARCERIAS TECNOLOGICAS Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária ONGS EXECUTORAS ZONA SUL ACB - Associação Beneficente Provisão Associação Comunitária Monte Azul Associação de Moradores Jd. Rosana Serviço Social Bom Jesus Turma de Touca ICE - Projeto Casulo ONGS EXECUTORAS ZONA NORTE Ação Comunitária Todos os Irmãos Assoc. de Moradores Vale Verde Assoc. Cultural e Desportiva Bandeirantes Creche Nova Esperança Amigos de Pianoro PARCERIAS DO PROGRAMA JOVENS URBANOS 480 480 2a EDIÇÃO SÃO PAULO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens PARCERIAS INSTITUCIONAIS Secretaria Municipal da Assistência Social Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social e PRODESP Secretaria Municipal do Trabalho PARCERIAS TECNOLOGICAS SABESP Séc. Municipal do Verde e do Meio Ambiente Escola da Cidade Tv Cultura Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária REDE DE APOIO Cursinho da Poli ONGS EXECUTORAS ZONA SUL ACB - Associação Beneficente Provisão Associação Comunitária Monte Azul Serviço Social Bom Jesus ICE - Projeto Casulo ONGS EXECUTORAS ZONA LESTE Ação Comunitária Todos os Irmãos Assoc. de Moradores Vale Verde Assoc. Cultural e Desportiva Bandeirantes Creche Nova Esperança Amigos de Pianoro 17 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 480 480 3a EDIÇÃO SÃO PAULO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens PARCERIAS INSTITUCIONAIS SEADS - Secretaria Estadual da Assistência e Desenvolvimento Social SMTrab - Secretaria Municipal do Trabalho da Cidade de São Paulo SME - Secretaria Municipal de Educação/ CEUs da Cidade de São Paulo Subprefeitura Guaianases Subprefeitura Capela do Socorro Instituto Sou da Paz PARCERIAS TECNOLOGICAS Instituto Tomie Ohtake Centro Universitário Maria Antônia/ USP Cidade Escola Aprendiz Fundação Padre Anchieta - Rede Cultura de Televisão Instituto Criar ISA - Instituto Socioambiental CPC - Centro de Preservação Cultural/ USP ONGS EXECUTORAS ZONA SUL Comunidade Nova Civilização (Comunidade Cidadã) Sociedade Comunitária do Jardim Monte Verde União dos Moradores da Comunidade Sete de Setembro Projeto de Vento em Popa ONGS EXECUTORAS ZONA LESTE Associação de Voluntários Integrados no Brasil (AVIB) Ação Social Comunitária do Lajeado Joilson de Jesus (Casa dos Meninos) Comunidade Kolping São Francisco de Guaianases Plugados na Educação ASSESSORES TECNOLOGICOS PROFISSIONAL e EXPERIMENTAÇÃO OFERECIDA Alexandre Perocca - JOVENS URBANOS TEM MODA Anderson Rei/ Guilherme - LAMBE LAMBE Carla Tennenbaum - ORA- OFICINA DE REVALORAÇÃO ARTÍSTICA DO GRAJAÚ Carolina Nakagawa - COMUNIQUE César Negro - NÓS NA CENA Clarice Clara - MÍDIA URBANA Conrado Augusto - GIRAMUNDO Diego Itu / Carlos Souza - AGRICULTURA URBANA Ivy Silva - VIVENCIAS SOCIOAMBIENTAIS José Machado - DESIGN MARCINEIRO Marisa Martins - RECREOTECA Nizinga - CAPOEIRA ANGOLA Paula Autran - LITERATURA EM AÇÃO Marcio greyk - MOVIMENTO URBANO Tomás - VIVENCIAS DE TRADIÇÕES PAULISTAS Waldir Hernandes - ESPAÇO URBANO Meta Ambiental - ÁGUA, LIXO E TECNOLOGIAS LIMPAS Novolhar - OFICINA DE VÍDEO Midiativa MOSTRA DE TV DE QUALIDADE PARA CRIANÇAS 1a EDIÇÃO RIO DE JANEIRO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens PARCERIAS EXECUTIVAS PCRJ-SMAS / RJ (Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro) FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz) Canal Futura PARCERIAS TECNOLOGICAS Secretaria Municipal de Esporte e Lazer – SMEL FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz) Canal Futura / Geração Futura Canal Futura / Nós do Morro TVE / Rádio MEC CIEZO - Conselho das Instituições de Ensino Superior da Zona Oeste Observatório de Favelas Spectaculu Kabum CECIP (Centro de Criação de Imagem Popular) REDE DE APOIO Secretaria Municipal de Educação Secretaria Estadual de Educação UFRJ – PACC ESPRO ONGS EXECUTORAS ZONA NORTE UADEMA Rede CCAP Ação Alternativa Ass. Família Saúde e Cidadania ONGS EXECUTORAS ZONA OESTE CAMPO CIEZO ACAPS São Cipriano A partir da constatação de que, na comunidade do Real Parque, existiam poucas áreas de lazer e convívio nas quais os moradores pudessem se encontrar e conver- sar, os participantes do Projeto Jovens Urbanos elabo- raram a proposta Recanto Verde Real Panô. Ela foi de- senvolvida na primeira edição do Projeto, junto com a ONG Casulo Os jovens queriam “transformar uma área subutilizada, que abriga- va insetos, emanava mau cheiro, sem calçamento e iluminação, em uma porta de entrada para a comunidade, um espaço bem-cuidado, com área verde e uma passagem segura e iluminada.” Justificativa produzida pelos jovens do Projeto Recanto Verde Real Panô. A área estava localizada entre o ponto de ônibus e a rua principal do Real Parque e era motivo de insistentes contatos com o poder local para melhorar a iluminação e recolher o lixo. Essa construção só será possível com envolvimento de todos. Con- tamos com a nossa força para envolver a comunidade em mutirões de limpeza e construção. Acreditamos que assim a comunidade possa entusiasmar-se e cuidar do local onde vive, contribuindo para uma qualidade de vida melhor. O que todos merecem! Justificativa produzida pelos jovens do Projeto Recanto Verde Real Panô. Apresentada a proposta de revitalização nas reuniões da Rede Real Panô, instituição que congrega diversas entidades da região, conseguiu-se apoio direto da orga- nização local SOS Juventude, de lideranças locais e en- volvimento de diversos moradores nos mutirões de lim- peza, plantação de mudas e pintura de grafites no lo- cal escolhido. Além disso, foram articulados contatos com a Sub- prefeitura do Butantã para a aprovação do projeto ar- quitetônico de intervenção espacial, idealizado pelos jovens e desenhado pela arquiteta Bárbara Toaliar, as- sessora do projeto. Também buscou-se apoio da Leroy Merlin, Pão de Açúcar e Decatlon, todas empresas fronteiriças à comu- nidade. Orientados pela elaboração do projeto arquite- tônico, contataram a Cooperativa Recicla Real1 , para a realização de pesquisa de materiais a serem reutiliza- dos no espaço. Mobilizando a comunidade e organizações locais, a re- gião ganhou uma praça, um espaço de encontro, logo na principal entrada do Real Parque e Jardim Panorama. Alterar o uso dessa área significou não apenas deixar de jogar lixo no local mas também transformar um espa- ço informal em uma passagem que até então não havia sofrido nenhuma ação, pública ou privada, de manuten- ção ou cuidado. NOTA 1 Cooperativa local de reciclagem e catadores. RELATO DE PRÁTICA E surgiu uma praça no Recanto Verde Real Panô Programa Jovens Urbanos 18 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 apoio Leroy, Casulo, Objetivo, D.P.R.N, Visconde, Decathlon, Voluntários, Recicla Real, Subprefeitura, Pão de Açúcar, SOS Juventude, Conselho Tutelar, União de Moradores, Rede Real Panorama, Q.D. Jardim Panorama, Recanto da Alegria, Centro Comunitário, C.J. Ice, E.M.E.I, Cenpec, Habitação, C.J. Panorama, Igreja N.S.D.P, Posto de Saúde, Associação Pankararu. público-alvo Crianças, Jovens, Adultos, Idosos (Real Parque, Jardim Panorama) comunidade Dora, Boca, Rosy, Jasir, Body, Guiné, Duda, Vera, Regina, Nívea, Manoel, Marcos, Careta, Bahia, Mandão, Zequinha, Cigano-Cícero, D.B. Voluntários, Padre da Igreja Real, Pitu, Rosa, Paulo, Bethy, Marilu, Mônica, Labamba,Verônica, Paulo Adan, São Paulino, Marcos (Panorama). Cadernos Cenpec - Que importância tem a articulação para o Programa? Wagner dos Santos - A articulação é um componen- te muito forte do Programa Jovens Urbanos. Nosso foco são as relações institucionais, e sabemos que a articu- lação não é apenas algo técnico. embora a gente tenha isso como base. A articulação é uma atitude, é uma ação eminentemente política e requer um olhar mais amplo sobre o campo das relações. Articulação exige planeja- mento, presença, amarração, negociação e registro do processo, para não perder o sentido e saber onde se quer chegar. CC - Que papel têm os parceiros1 nesse Programa? WS - Nossos parceiros ajudam a ampliar o campo de re- lações para os jovens e a apresentar a eles outras pos- sibilidades. Na visita à TV Cultura, em São Paulo, por exemplo, os jovens conheceram o espaço e puderam participar de ex- perimentações, vivenciaram desde a montagem até a edi- ção final de um programa televisivo. A partir dessa arti- culação, abriram-se novas perspectivas de participação para os jovens. No Instituto Criar, outra parceria, patrocinamos a for- mação oferecida aos jovens na área de cinema e TV. Na primeira edição do Projeto Jovens Urbanos, tive- mos também uma parceria com a Embrapa para atender a uma reivindicação sobre hortas comunitárias. Trou- xemos a Escola da Cidade – uma escola de arquitetura como parceira – em razão da necessidade de preparar os jovens para as intervenções urbanas, que precisavam ser qualificadas. Por isso buscou-se também uma nova parceria com a Secretaria do Verde, do município de São Paulo, para o desenvolvimento de atividades de arbori- zação e paisagismo. O programa também contribuiu para a ação social dos parceiros: a TV Cultura começou a atuar com favelas no ENTREVISTA 1 Esforço de articulação e parceria Uma conversa com Wagner dos Santos, coordenador do Programa Jovens Urbanos. Jaguaré, levando em conta o que conseguimos transmi- tir sobre os Jovens Urbanos. CC - E as parcerias na área pública? WS - Tivemos duas parcerias fundamentais: com a Secre- taria de Assistência Social do Estado, que ofereceu uma bolsa de R$ 60,00 para cada jovem, na primeira edição do programa. Na segunda edição, ampliamos o leque de alianças com o Poder Público, com uma bolsa da Secretaria do Tra- balho do Município de R$ 140,00. Somando-se os dois be- nefícios, cada jovem pôde receber R$ 200,00. O Setor Público tem sido muito receptivo ao Progra- ma, mas as Secretarias têm restrições burocráticas e po- líticas. Há alterações no comando que resultam em mu- dança de equipes inteiras, em que corremos o risco de voltar à estaca zero. Mas isso não nos desanima, vamos em frente. Outra dificuldade é trazer o Poder Público para uma discussão de avaliação e conseguir sustentar o programa num processo de monitoramento contínuo. CC - O que as parcerias ensinaram? WS - Aprendemos que parceria exige processo e tempo. Não é do dia pra noite que se consegue. O sucesso das parcerias do Programa Jovens Urbanos exigiu um tempo de construção da legitimidade e de estabelecimento da confiança mútua entre os parceiros. A primeira edição foi muito mais difícil do que a segunda porque, no início, é preciso ganhar confiabilidade. Tínhamos que provar que nós conseguíamos realizar o Programa. Descobrimos também, como conseqüência de nos- sa “trama de parcerias”, que o jovem, muitas vezes, não agüenta ficar num mesmo programa por 16 meses para cumprir o trajeto que propomos. Essa ampliação de contatos diversos permitiu cruzar um novo conceito – a idéia de projetos-rede, programas- 20 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 rede. Não são mais apenas redes de parceiros, mas re- des de programas também. Significa dar condições para que o jovem possa sair quando seus interesses vão além das oportunidades oferecidas pelo Programa. Pode-se encaminhá-lo para outro programa, garantin- do a continuidade de sua formação. Isso exige uma aber- tura e uma flexibilidade muito grande de quem está ge- renciando o projeto. É preciso pensar que o projeto não é apenas seu e que seu projeto não irá perder a identidade se os recursos forem repassados para outros parceiros. CC - Como é a negociação com os parceiros? WS - Há um “núcleo nervoso” do programa – aquilo que a gente não negocia: a idéia de circulação na cidade e de produção com os jovens. Outros aspectos são nego- ciados com cada parceiro dentro da sua especificidade. Por exemplo, a Escola da Cidade tem um potencial de dar base técnica para a intervenção urbana e pode dis- cutir com os jovens a questão do urbanismo, da cidade, da circulação. Alguns parceiros são mais reticentes na negociação, e essa é uma arte que estamos aprendendo sempre, pois é preciso saber negociar sem abrir mão dos seus propó- sitos principais. Tanto o Cenpec quanto a Fundação Itaú Social estão abertos a novas possibilidades se as bases do programa puderem ser garantidas. Há problemas que são comuns a todos os parceiros e a discussão coletiva facilita a busca de soluções. O Pro- grama investe na criação de espaços de discussão sobre questões importantes da juventude. Nós fizemos uma pra- ça e um show no Morro do Piolho em parceria com a sub- prefeitura. Iluminação, banco, árvores... só foram possí- veis por causa da parceria com a subprefeitura. A praça tem um sentido fortíssimo de convivência, de redução da violência, de cuidado com o bem público. CC - Quais foram os maiores desafios para fazer a arti- culação? WS - O grande desafio é trabalhar com os parceiros pú- blicos, porque eles têm uma estrutura tão engessada 21 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 que construir uma agenda comum exige muito esforço. Outro desafio é a administração da ampliação do núme- ro de parceiros. Nós entendemos que não dá para contemplar todos os jovens numa única parceria. O ideal é ampliar ao má- ximo o número de parcerias, o que possibilita dar aces- so a um número maior de recursos em termos de tecno- logias ou serviços. Essa diversidade ajuda nas escolhas de projetos no futuro. Para facilitar essa interação pre- cisamos ampliar a comunicação, mas ainda estamos to- dos aprendendo a nos comunicar melhor. O campo da articulação de parcerias não é positivo em todos os casos. Às vezes, há muito discurso e pouca efetivação. Por isso, para colocar o jovem em movimen- to na parceria é preciso ter certeza de que o acordo vai se concretizar. CC - Como é a relação com as ONGs? WS - Nós fazemos uma articulação forte com as ONGs, com um termo de cooperação que respalda o trabalho con- junto. Esse acordo possibilita definir responsabilidades para que não haja dúvida sobre o que cada um pode fazer e, a partir daí, poder discutir resultados e metas. As ONGs que são executoras do Programa participam do planejamento da ação com os jovens. Seu corpo téc- nico se encarrega de mobilizar os jovens e de oferecer as condições para que participem ativamente do Programa. Mas essas organizações também têm que conquistar um campo de articulação, e essa é uma estratégia que o Pro- grama Jovens Urbanos ajuda a fomentar. Na capacitação, as ONGs são estimuladas a operar as articulações no local, pois em geral sentimos que elas ain- da não avançaram na construção de uma rede local que dê sustentação aos projetos sociais. Cada organização está em um estágio diferente e é preciso ter flexibilidade para aceitar o parceiro com seus avanços e dificuldades. Tudo tem que ser negociado cla- ramente, com transparência. O conselho de acompanha- mento é um grande momento para dar segurança aos par- ceiros, é onde eles se sentem protagonistas. Esses mo- mentos são importantes, mas a articulação precisa ser continuamente alimentada para ganhar densidade e sus- tentação ao longo do processo. CC - Que outras articulações o Programa desenvolveu? WS – Há um campo de articulação que o Programa pro- moveu também e que tem a ver com uma não-institucio- nalidade, que é a articulação nessas comunidades onde ele acontece, com as lideranças locais, com os próprios jovens. Há ainda os pequenos comerciantes locais, que apoiaram a ação dos jovens. Essas são ações prepara- tórias, mas se não se promove essa articulação o tempo todo, o programa fica mais frágil. Investimos muito na democratização das informações com todos os dirigentes de ONGs. O planejamento é um dos temas constantes de nossas conversas com eles. O resultado dessa articulação é que as organizações que se localizavam em ruas próximas no mesmo território e não se conheciam passaram a se conhecer. CC - Que recado você daria para quem pretende trabalhar com parcerias e precisará fazer muitas articulações? WS- A ação de articulação precisa estar planejada para produzir algum resultado concreto – se possível, uma in- tervenção conjunta. Sem isso, os participantes perdem a motivação para continuar juntos. Articular não é fazer média, é estreitar relações com o sentido de complementaridade, com compromisso éti- co. Além disso, é preciso que se tenha também o com- promisso com critérios técnicos mais claros, socializa- dos e transparentes. Trazer o poder público para compor uma parceria com diversas organizações é um desafio que precisa ser en- frentado, pois a presença do Estado é fundamental para tornar a ação mais legítima e, se possível, institucionali- zada como política pública. Nota 1 O artigo REDES (p.13 ) contém o conjunto de todas as parcerias das 4 edições do PJU. 4RAZER O PODER PÒBLICO PARA COMPOR UMA PARCERIA COM DIVERSAS ORGANIZA¿ÍES Á UM DESAÙO QUE PRECISA SER ENFRENTADO POIS A PRESEN¿A DO %STADO Á FUNDAMENTAL PARA TORNAR A A¿»O MAIS LEGÅTIMA E SE POSSÅVEL INSTITUCIONALIZADA COMO POLÅTICA PÒBLICA 22 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 O Projeto SOHAB, realizado na primeira edição do Pro- grama Jovens Urbanos, pretendeu diminuir a conta de energia dos moradores da Cohab Adventista, localizada no bairro Capão Redondo. Pesquisas indicam que o Aquecedor Solar de Baixo Custo econo- miza até 25% da energia que o chuveiro elétrico consome – sendo o chuveiro elétrico o utensílio doméstico que mais gasta energia, perdendo apenas para o ferro elétrico. Entendemos ser uma alter- nativa viável para a nossa comunidade! Justificativa elaborada pelos jovens do Projeto SOHAB Durante as explorações e experimentações mobiliza- das pelo PJU, os jovens, acompanhados pela ONG Servi- ço Social Bom Jesus, fizeram uma oficina na qual conhe- ceram a tecnologia e o processo de produção do aque- cedor solar de baixo custo – ASBC2 . O Aquecedor Solar de Baixo Custo (ASBC) vai ajudar a disseminar o conhecimento de uma das tecnologias solares para a Cohab, levando em conta que o petróleo já foi muito usado para gerar energia elétrica sempre poluindo. O aquecedor solar de baixo custo não polui, não faz barulho e a fonte de energia é gratuita e os equipamentos usados duram muitos anos e são facilmente encontrados no ramo da construção civil. Colaboram ainda para evitar inundações causadas pelas usinas hidroelétricas na sua construção. Justificativa elaborada pelos jovens do Projeto SOHAB Inicialmente, os jovens planejavam alcançar oito resi- dências como efeito demonstrativo das economias propi- ciadas pelo aquecedor. Para isso, articularam com a Sub- prefeitura do Campo Limpo o acompanhamento da expe- riência pela COHAB3 , visando estender o uso do aquece- dor a todo o condomínio. RELATO DE PRÁTICA Projeto SOHAB1 : um aquecedor solar de baixo custo. Programa Jovens Urbanos O projeto SOHAB mobilizou moradores para o uso de tecnologias benéficas ao meio ambiente, promoven- do economia, com tecnologia acessível e a baixo custo. Nas palavras dos próprios jovens: queremos um projeto diferenciado que busque a satisfação da comunidade, transformando a visão do bairro e do meio ambiente que os moradores têm. Este projeto instalou energia solar em 3 residências, depois de discutir com as famílias o valor pago de ener- gia elétrica e a redução no uso de energia solar. NOTAS 1 O nome do projeto foi definido em alusão a COHAB, como ficou conhecido o Conjunto Habitacional Adventista, primeiro conjunto habitacional público vertical da cidade. SOHAB significa a intenção dos jovens de recriar o bairro, conhecido como COHAB. 2 A ONG Sociedade do Sol, sediada no CIETEC/IPEM da USP, foi responsável pela oficina, assessorou o projeto e acompanhou a instalação dos aquecedores. 3 Empresa pública ligada à Secretaria da Habitação da PMSP. 23 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 24 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 25 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ste texto expõe recortes analíticos de formas de vida contemporânea e destaca, em espe- cial, forças sociais que atuam nos modos de vida de juventudes urbanas. Apontamos dois processos que marcam, em grau dominante, a constituição das sub- jetividades juvenis: a biossociabilidade e a intensificação da circulação de informação e bens tecnológicos nas cidades. As questões e problematizações apresenta- das no texto resultam de fundamental impor- tância para proposição de políticas de forma- ção juvenis que se pretendem afinadas e com- prometidas com as juventudes deste tempo. * Aline Andrade é pedagoga (PUC–SP) e integrante do Núcleo de Pesquisa do Programa Jovens Urbanos – Cenpec. * Mônica Mussi é pedagoga (PUC-SP), mestre em Filosofia da Educação (USP) e doutora em Psicologia da Educação (USP). Atuou como profes- sora universitária. É supervisora escolar da rede municipal de ensino de São Paulo e assessora do Programa Jovens Urbanos – Cenpec. % Aline Andrade Mônica Mussi * 25 *UVENTUDES CONTEMPORoNEAS artigo 6IDA CONTEMPORoNEA ALGUNS PONTOS DE PARTIDA PARA PENSAR AS JUVENTUDES Se tomarmos como referência modos de funcionamen- to das sociedades do século 19 e de pelo menos da pri- meira metade do século 20, verificaremos que novas con- figurações de vida estão em ação nas sociedades con- temporâneas, algumas delas bem distintas das que vi- goravam anteriormente: • abandono de explicações universais; • novas práticas de trabalho; • adoção de estratégias pluralistas para a abordagem do desenvolvimento urbano; • velocidade e efemeridade intensas nas novas formas de experiências sociais e afetivas; • parafernália de ícones, informações, códigos e sen- tidos; • valorização do localismo; • capitalismo pós-industrial; • avanços tecnológicos nas áreas de informações e co- municações; • partidos políticos de massas substituídos por movi- mentos sociais baseados em raça, localização, sexu- alidade, grupos ecológicos, idade... As configurações mencionadas anteriormente são apenas algumas das características que persistem nas vidas atuais. Aproximar-se de algumas dessas configu- rações é uma das portas de entrada para acessar os con- textos em que as juventudes movimentam seus cotidia- nos. Habitantes especiais do presente, as juventudes não escapam de testemunhar e experimentar os efeitos das mudanças atuais. Os autores1 que se dedicam a analisar as práticas hu- manas contemporâneas compartilham que há em curso na vida atual uma notável e rápida mutação dos valores, Artigo Juventudes Contemporâneas 27 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 crenças, idéias, hábitos, formas de poder, enfim, modos de organização da vida que orientavam o período prece- dente, ou seja, o período moderno. Complexidade e velocidade: a vida em mutação Interessa destacar para os contornos iniciais do pre- sente documento três importantes idéias que acompa- nham as análises das transformações vividas na con- temporaneidade: • defesa do pluralismo analítico; • descontinuidade das tradições; • rejeição das grandes narrativas. A defesa do pluralismo analítico é uma idéia que apaga qualquer linha divisória entre os diferentes rei- nos da sociedade – político, econômico, social e cultu- ral. De acordo com ela, não seria mais possível analisar, ou buscar compreender, as sociedades contemporâneas – suas novas configurações – pela via de alguma força controladora isolada ou totalizante. Devido ao pluralismo imanente na formação dos mo- dos de vida, a vida concreta só poderia ser acessada por fragmentos, visto que processos múltiplos podem atuar na constituição de determinado fenômeno ou situação. Essa idéia sem dúvida ganha relevância em estudos que se dedicam a configurar os movimentos e vidas das juventudes atuais. Diagnósticos e análises da vida juve- nil exigem o abandono de explicativas sustentadas em forças sociais unilaterais. Nessa perspectiva, não seria mais tão tranqüilo expli- car a violência que atinge juventudes na atualidade uni- camente pela via cultural – por exemplo, ausência de es- colarização – ou pela via econômica – por exemplo, con- dição da pobreza. Com certeza a condição de pobreza e a ausência de es- colarização combinadas são forças vitais para compreen- der formas de violência que atingem jovens ou as violências entre jovens, porém não são suficientes para expressar a problemática juvenil nas suas tão diversas dimensões. Assim, considerar outras linhas de forças atuantes em situações de violência juvenis pode dar visibilidade a campos de forças plurais e por vezes insuspeitos que redesenham as violências a cada dia. Outra idéia em destaque é a descontinuidade das tradições. A explosão de informações e das comunica- ções mundiais dispara processos de misturas e combi- nações entre modos de vida, com base no alto e rápido fluxo de bens simbólicos e produtos por todos os luga- res-relações do planeta. O fluxo de informações, de bens culturais e de signi- ficados nas sociedades atuais debilita o anseio por iden- tidades nacionais e a própria noção de identidade indi- vidual. Alimentados por fontes múltiplas, os indivíduos tornam-se tão fluidos e mutáveis quanto os produtos sim- bólicos e materiais que atravessam suas vidas. Olhando por essa perspectiva, o mundo no qual as juventudes tentam inscrever-se e pelo qual procuram se orientar é vivido como em constante movimento. Um mundo onde não estão mais disponíveis valores fixos, ritos de passagem predeterminados, futuros previsíveis, ao menos como idéias que antes eram confiadas como verdades a toda uma geração. Na atualidade, múltiplas referências podem coabi- tar uma única vida, exigindo uma determinação colos- sal dos indivíduos para o empenho em idéias-projetos no decorrer da vida. Nesse contexto de descentramento dos sujeitos, cabe a pergunta: • Como as juventudes podem vincular-se aos aconte- cimentos ordinários da vida e neles investir sem ter de recorrer a identidades que durem para sempre? .A ATUALIDADE A COMPOSI¿»O DA VIDA TORNOU SE EXTREMAMENTE COMPLEXA .ESSE SENTIDO QUALQUER ESFOR¿O DE APRISIONAR A VIDA CONCRETA NUMA EXPLICATIVA ÒNICA E COERENTE SER1 CONSIDERADO REDUCIONISTA E SIMPLIÙCATËRIO 27 28 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Uma terceira idéia em ação na atualidade é a rejei- ção das grandes narrativas que até há poucas décadas informavam as políticas do mundo ocidental. De acordo com Kumar (1997), as grandes narrativas deram (...) aos modernos a confiança de que poderiam igualar e mesmo ultrapassar as realizações dos antigos. Dessa confiança nasceram os grandes temas e teorias de progresso, razão, revolução e eman- cipação. Em uma forma ou outra, disfarçada ou explicitamente, elas lastrearam a maioria das políticas do mundo ocidental desde fins do século XVIII até meados do século XX. (p. 145). Efeitos A recente perda de credibilidade nas grandes narrativas não apenas desmobiliza a confiança nas políticas públi- cas desenvolvidas nos sistemas democráticos como tam- bém parece deixar as juventudes atuais desprovidas de utopias e ideologias às quais queiram aderir. Por outra perspectiva, a ausência de grandes narrati- vas faz proliferar na atualidade narrativas de grupos mi- noritários, como de mulheres, de homossexuais, de eco- logistas, de moradores de bairro... de grupos musicais etc., abrindo a vida social, como antes nunca visto, a um caleidoscópio de vozes. O esmorecimento das grandes narrativas, segundo al- guns analistas sociais, também modifica o papel dos inte- lectuais na vida social. Citando Kumar (1997) os intelectu- ais devem utilizar “[...] suas habilidades para ajudar comu- nicadade a se entenderem reciprocamente. (p. 151)”. Percorrer as transformações que atravessam a vida contemporânea parece ser fundamental para reconhe- cer em quais contextos culturais, sociais e econômicos as juventudes do presente se movimentam, constituem- se subjetivamente e organizam suas vidas e desempe- nham expressividades. De acordo com Bauman (2004) as gerações atuais, ra- pazes e moças nascidos a partir da década de 70, experi- mentam situações e recebem orientações desconhecidas das gerações anteriores. A baixa expectativa de trabalho entre os jovens é uma dessas situações, acompanhada pela idéia-pacote de desemprego. Nesse universo, diz o autor, (...) uma das recomendações oferecidas com mais freqüência aos jovens é serem flexíveis e não muito seletivos, não esperarem demais de seus empregos, aceitá-los como são, sem fazer muitas perguntas, e tratá-los como uma oportunidade a ser usufruída de imediato, enquanto dure (...) Jurandir Freire Costa, médico psiquiatra e psicana- lista brasileiro, num texto intitulado Perspectivas da ju- ventude na sociedade de mercado, publicado em 2004, referenda as análises de Bauman ao marcar as atitudes e disposições psicológicas requeridas dos indivíduos na atualidade. Diz o autor: As disposições e atitudes que contribuem para a reprodução da sociedade de mercado atual são, em linhas gerais, as seguintes: o sujeito 1) deve se deixar seduzir pela propaganda de mercado- rias; 2) deve possuir uma identidade flexível, compatível com as novas relações de trabalho; 3) deve estar convertido à moral das sensações, ou seja, ter pretensões e satisfações a curto prazo em detrimento de satisfações que exigem projetos de longo alcance. (p. 76 – grifos nossos) Vinculada ao que Freire Costa chama de moral das sensações, culturalmente a experiência da incerteza pa- rece arrebatar as vidas juvenis atuais. A idéia de satis- fação de curto prazo ramifica-se para vários setores da vida social, instalando nas juventudes identidades que assumem vivências fugazes. Desestimulados a projetar ações de longo prazo, jo- vens movimentam suas vidas num horizonte de incerte- zas quanto às ações do presente e às do porvir. Perante estruturas sociais cada vez mais fluidas, os jovens sentem a sua vida marcada por crescentes inconstâncias, flutuações, des- continuidades, reversibilidades, movimentos autênticos de vaivém: saem da casa dos pais para um dia qualquer voltarem; abandonam os estudos para os retomar tempo depois; encontram um emprego N»O SERIA MAIS T»O TRANQÔILO EXPLICAR A VIOLÂNCIA QUE ATINGE JUVENTUDES NA ATUALIDADE UNICAMENTE PELA VIA CULTURAL POR EXEMPLO AUSÂNCIA DE ESCOLARIZA¿»O OU PELA VIA ECONÌMICA POR EXEMPLO CONDI¿»O DA POBREZA 28 29 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 e em qualquer momento se vêem sem ele; suas paixões são como “vôos de borboleta”, sem pouso certo; casam-se, não é certo que seja para toda a vida... (Machado Pais, 2006, p. 8). Incerteza também acirra o sentimento de medo. No artigo Os jovens de hoje (2006), Regina Novaes2 , ao citar pesquisa realizada sobre os medos que acompanham a juventude brasileira atual, declara que o medo do futu- ro aparece entre os destacados pelos pesquisados. De acordo com a autora, “o medo do futuro é quase um si- nônimo do medo de ‘sobrar’ e está muito relacionado à inserção no mundo do trabalho”. Pode também estar implicado com as incertezas que rondam as novas gerações: (...) ter estudo não garante que se vá trabalhar, e ter trabalhado não garante que se continuará trabalhando. Enquanto a geração anterior pensava “eu vou me aposentar assim ou assado”, esta geração diz palavras vagas sobre o futuro (p. 110). A disseminação acelerada de informações de todas as ordens e procedências no cotidiano quebra com o prógnostico de uma vida pautada em saberes seguros, duradouros e unitários. Atua igualmente na constituição de sujeitos de con- sumo – indivíduos são convocados diariamente a expe- rimentar novos produtos, cujas informações remetem a alguma forma de bem-estar ou performance social posi- tivo, mesmo que de durabilidade precária ou fugaz. Vivemos na atualidade numa sociedade de consu- mo, ao contrário da sociedade de produtores que vigo- rava anteriormente. Bauman afirma que a posição de consumidores, na qual são instalados os indivíduos, não só vincula o con- sumo ao ideal de uma vida bem-sucedida como também, do ponto de vista da vida social, seu exercício compulsi- vo desencoraja a esperança em ações coletivas. Para o autor, o consumo é uma atividade inteiramen- te individual, a qual coloca os indivíduos em campos 29 30 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 opostos, em que freqüentemente se atacam. Sob outra perspectiva, o autor irá relacionar o domínio do merca- do consumidor e o aumento do setor improdutivo da po- pulação ao aumento da criminalidade e o conseqüente crescimento da população carcerária. A presença de informações variadas no cotidiano das vidas atuais pode desencadear uma nova frente para as juventudes: a experiência com o múltiplo. A experiên- cia com a multiplicidade de informações e saberes que fluem nos circuitos sociais pode concorrer para intensi- ficar o sentido de diferença no universo juvenil, dispon- do os jovens com maior freqüência ao outro, de modo a se verem convocados a produzir novas situações de al- teridades em suas vidas. A experiência com o múltiplo também pode atuar como uma blindagem, detendo tipos de forças que pre- tendem fixar subjetividades padrões nas existências, as quais no geral inviabilizam a emergência de singularida- des e constrangem atos de criação. Situações na contemporaneidade devem ser anali- sadas por um polígono de inteligibilidade, cujo princi- pal crivo talvez seja a questão de como está funcionan- do tal acontecimento na vida das pessoas – que efeitos de expansão ou retração propõem, em última instância, para as vidas atuais. 0OR OUTRA VIA ANALÅTICA PODEMOS RELACIONAR A EXPERIÂNCIA ECONÌMICA DO DESEMPREGO E A EXPERIÂNCIA CULTURAL DA INCERTEZA ̧ FORMA¿»O DE NOVAS FOR¿AS NA ORGANIZA¿»O DO TRABALHOE ̧ ACELERADA E DIVERSIÙCADA PRODU¿»O E CIRCULA¿»O DE CONHECIMENTOS NO MUNDO CONTEMPORoNEO 30 31 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Selecionamos algumas linhas de transformações culturais, sociais e econômicas que afetam mais inci- sivamente modos de vida e performances juvenis atu- ais, com vistas a delimitar algumas das condições nas quais as juventudes das cidades se movem e desenvol- vem suas trajetórias. ! EXPERIÂNCIA COM O MÒLTIPLO TAMBÁM PODE ATUAR COMO UMA BLINDAGEM DETENDO TIPOS DE FOR¿AS QUE PRETENDEM ÙXAR SUBJETIVIDADES PADRÍES NAS EXISTÂNCIAS AS QUAIS NO GERAL INVIABILIZAM A EMERGÂNCIA DE SINGULARIDADES E CONSTRANGEM ATOS DE CRIA¿»O 32 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 .OVAS FORMAS JUVENIS DE SOCIABILIDADE BIOSSOCIABILIDADES No artigo “Das utopias sociais às utopias corporais” Francisco Ortega3 analisa as novas formas de sociabili- dades juvenis, apontando que a maneira dominante de as juventudes constituírem relações sociais no presente são aquelas organizadas em torno de ão aquelas organizadas em torno de práticas ou atribu ticas ou atribu- tos corporais. O corpo, na atualidade, ganha uma im o, na atualidade, ganha uma importância exa ncia exa- gerada e são multiplicadas as exigências que cada indiví- duo tem em relação a si mesmo: desem uo tem em relação a si mesmo: desempenho físico, cu sico, cui- dados estéticos, personalização do corpo, modificações corporais passam a ocu assam a ocupar o universo ar o universo das preocupações, necessidades e empenhos juvenis, afastando-os, como sublinha o título do artigo em tela, de desejos e motiva- ções coletivas. A essa forma de socialização em que o corpo ocupa lu- gar de destaque, dá-se o nome de biossociabilidade. Tra- ta-se de uma forma de socialização em que os vínculos são estabelecidos tendo como critério seletivo algum de s - sempenho, mérito ou atributo corporal apresentado por s cada indiv ada indivíduo como duo como passagem ou ingresso assagem ou ingresso para tipos de pertencimento grupal. Diz Ortega (2006), (...) a biossociabilidade é uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos se- gundo critério de agrupamento tradicional – raça, classe, estamento, orientação política –, mas segundo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas, longevidade etc. (p. 43). Os processos de biossociabilidade constituem-se e são constitu onstituídos por ideais e ações sobre o cor or ideais e ações sobre o corpo, almejados e o, almejados e exercita xercitados respectivamente pelos jovens os respectivamente pelos jovens de varia e variadas ma- neiras. Tais eiras. Tais processos adquirem es rocessos adquirem especificidades de acor ecificidades de acor- do com as posições socioeconômicas e culturais em que se situam e se movimentam as juventudes. Entre esses ideais e ações, dois assumem forte apelo no conjunto o conjunto da população juvenil na atuali ulação juvenil na atualidade. O primeiro deles seria o ideal de eu centrado na per primeiro deles seria o ideal de eu centrado na per- formance e/ou prazer corporal. 32 Artigo Juventudes Contemporâneas 33 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 O valor atribuído às sensações físicas e a atributos cor- porais é hiperdimensionado na vida atual, conduzindo jo- vens a apoiarem-se nesses ideais para constituírem suas subjetividades e qualificarem identidades pessoais. Demonstração de força física, experiências com drogas, desempenho sexual, melhoria da aparência, boa forma fí- sica, habilidades motoras podem expressar performances e vias de prazeres corporais almejados e admirados por jovens nos dias de hoje, em contraposição a prazeres e performances requeridos em outros tempos. Freire Costa, no artigo “Perspectivas da juventude na sociedade de mercado” (2004, p. 81) diz: (...) hoje procuramos os prazeres sensoriais como há dois ou três séculos perseguíamos os prazeres sentimentais do romantismo e da vida familiar; os prazeres do reconhecimento pela operosidade e pela honestidade do trabalho; os prazeres da admiração pelos grandes feitos políticos e militares; os prazeres da alma no exercício das virtudes religiosas etc. O segundo ideal-ação mobilizado nas juventudes atuais pode ser sintetizado na associação entre a ideolo- gia do corpo perfeito e a austeridade corporal. A busca de um modelo ideal de corpo age na deter- minação de esforços, conduzindo jovens a ações como dietas, malhações intermináveis, uso contínuo de fárma- cos etc. Essa busca também ocupa espaço privilegiado no universo de conversação entre jovens, principalmen- te em jovens-mulheres que, por algum atributo, se vêem aproximadas de padrões de beleza femininos expostos pelas mídias. O ideal do corpo perfeito pode agir de forma tão radi- cal sobre o universo de atenção e preocupação juvenis que pode se tornar fonte privilegiada para fornecimento de critérios de avaliação de si e do outro, promovendo, muitas vezes, o descarte ou desmerecimento de quais- quer outros atributos que não combinem com as ideali- zações corporais. Ainda, como nos informa Ortega, a supremacia do cor- po perfeito pode desencadear uma ressignificação de ou- tros tipos de atividades desempenhadas pelos jovens. Assim é que atividades lúdicas, religiosas, esportivas, se- xuais são transmutadas em práticas de perda de peso, práticas de saúde, práticas que auxiliam nas privações alimentares, práticas de exposição etc. Essa nova configuração de relações baseadas em inú- meras exigências feitas ao corpo encontra suas bases de formação numa nova ordem de poder-saber em ação na atualidade, surgida a partir da interação do capital com as biotecnologias e as tecnologias de comunicação4 . Exercitados pela população sob variadas formas e pe- culiaridades, o ideal de corpo perfeito e a busca de per- formances corporais admiradas socialmente não cessam de produzir seus efeitos. O lugar da biossociabilidade Destacamos os efeitos que nos parecem essenciais para acessar a complexidade em que se situa a biossociabilida- de no circuito das relações juvenis contemporâneas: • Produção de estigmas e de processos de exclusão, na medida em que esses ideais constituem ou se ba- seiam em padrões estéticos que a maioria da popu- lação não alcança ou não se iguala; • Potencialização de atitude consumista entre jovens. As necessidades dos corpos são conectadas direta- mente às necessidades do mercado global, de ma- neira que os ideais de performances e prazeres cor- porais e de corpo perfeito são estimulados em ciclos de consumo intermináveis – a maioria de produtos adquiridos oferecem respostas fugazes e são rapida- mente descartados em sua utilidade5 . Vale dizer que o vínculo dos corpos às necessidades do mercado empobrece a sensibilidade dos indivíduos em relação às necessidades singulares de seus corpos, fazendo desaparecer ou degradando suas outras sem- pre possíveis potências. • Incremento da indústria de auto-ajuda, a qual gera receitas poderosas para manter indivíduos fiéis aos ideais em voga. As receitas de auto-ajuda atuam no fortalecimento do controle dos indivíduos sobre si ou, por uma via crítica mais radical, atuam no forta- lecimento da crença dos indivíduos sobre o controle que julgam possuir de si. Nesse sentido, as receitas de auto-ajuda oferecem fórmulas de aquisição de sucesso pessoal em ações voltadas para o corpo, impedindo que os indivíduos possam esmorecer diante de esforços e perseveran- ças incansáveis que os ideais da biossociabilidade lhes delegam. • Esvaziamento de mobilizações por questões coletivas. A centralização de atenção sobre conquistas, prazeres e desempenhos corporais tende a situar jovens num campo de indiferença em relação ao mundo. 33 34 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Deter-se em demasia sobre o corpo cultiva práticas de atuação individual, mesmo quando pessoas estão a jogar juntas, caminhar juntas, realizar compras conjuntamen- te, a freqüentar a mesma escola ou a participar de proje- to social comum. Os indivíduos podem permanecer exilados cada qual em si, impedindo que questões coletivas outras tenham visibilidade e força convocatória. Nós nada somos e valemos nada se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e valor. (Soares, 2004) Freire Costa situa o problema do ideal dos prazeres cor- porais não nos pretensos e possíveis excessos sensuais de seus partidários, mas na questão de que esse “ideal pro- mete o que não dá e dificulta a participação e o compro- misso do sujeito com objetivos do Bem Comum” (p. 82). Sensíveis à denúncia sobre formas de sociabilidades que afunilam o horizonte de ação juvenil; atentos à do- minância de certos tipos de vínculos sociais que afastam as juventudes de ações coletivas; e em defesa de novas experiências relacionais para as juventudes, apresenta- remos a seguir cenários que evidenciam relações vividas atualmente pelos jovens que produzem efeitos de destrui- ção e negação da vida. Num cenário mais drástico de afunilamento de socia- bilidades juvenis, temos jovens envolvidos com o tráfico: sem perspectivas de formação de vínculos sociais que ofereçam sustentação ou aberturas renovadas para a or- ganização de sua vida, jovens pobres são nas grandes ci- dades brasileiras recrutados pelo tráfico de armas e dro- gas ou por outras dinâmicas criminais. No texto “Juventude e violência no Brasil contemporâ- neo”, Luiz Eduardo Soares6 afirma: (...) parece lógico que jovens carentes de tudo o que a participação em um grupo pode oferecer procurem aderir a grupos cuja identidade se forja na e para a guerra. Entende-se, assim, o sucesso das facções do tráfico no recrutamento de jovens (2004, p. 151). O autor discute as relações de violência em que jo- vens envolvidos com o tráfico são simultaneamente al- vos e protagonistas. A convivência com o tráfico, por expressar uma forma específica de sociabilidade, remete os jovens a uma ex- periência relacional em que, além de situá-los num cir- cuito de criminalidade e risco iminente de vida, os fazem exercitar tipos de linguagens que capitalizam processos de subjetivação específicos, transmutando-os em sujei- tos de violência. De outro modo, no curso de relações cujo objeto or- ganizador é o tráfico, jovens aprendem a ser sujeitos de determinada maneira: (...) no tráfico, regras há, e muitas: turnos de trabalho, hierarquias, processos decisórios, divisão de tarefas, distribuição complemen- tar de responsabilidades, códigos de comportamento, tudo isso é disciplinado (Soares, 2004, p. 151)7 . Nessa perspectiva, a violência expressaria uma lin- guagem na qual é possível organizar certas experiências de sociabilidade. Num texto posterior, Soares acrescenta: (...) ao contrário do que sugere o senso comum, a violência não é uma explosão, em nós, de natureza passional, selvagem, animal, mas uma formação cultural, (...) uma certa modalidade disciplinada de auto-realização, de produção de si e de relacionamento (2006, p. 126). Ao situar sua analítica sobre os modos de funciona- mento de relações experienciadas pelos jovens, o autor alerta para os efeitos da vivência de sociabilidades sobre a produção de subjetividades. Daí talvez as dificuldades enfrentadas nos processos de rompimento de jovens com o tráfico. O ato de afastamento não é suficiente para reme- tê-los a novos horizontes de vida, é preciso ir além e des- construir o sujeito que foi inventado nessa experiência. ! CENTRALIZA¿»O DE ATEN¿»O SOBRE CONQUISTAS PRAZERES E DESEMPENHOS CORPORAIS TENDE A SITUAR JOVENS NUM CAMPO DE INDIFEREN¿A EM RELA¿»O AO MUNDO 34 35 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Além dos jovens cujos vínculos relacionais se orga- nizam em torno da atividade do tráfico, temos aqueles que organizam suas vidas num horizonte de sociabili- dades esvaecidas. Diminuídas as possibilidades de exercer diferentes vínculos sociais, em função do baixo acesso, participa- ção e inserção nas instituições sociais, econômicas, cul- turais, jovens brasileiros vagam invisíveis por um mundo restrito de significados e programas de vida futuros. Marcados pela exclusão relacional, jovens transitam numa faixa de vida desprovida de sentidos e valores. Diante do exposto, parece não haver dúvida de que, para avaliar as possibilidades de expansão/retração da vida de um jovem, é preciso considerar as condições atu- ais que possuem para inventar-vivenciar múltiplas ma- neiras de sociabilidades. De outro lado, é preciso que as juventudes tenham garantias concretas de integração e pertencimentos so- cietários, como a integração às instituições de ensino; às instituições vinculadas ao mundo do trabalho, às ins- tituições de saúde; às instituições político-culturais dis- poníveis nas sociedades democráticas. Cabe ainda marcar que a ampliação e multiplicação de relações pode atuar como uma micropolítica de resis- tência nas vidas juvenis. Um bom exemplo de uma micro- política de resistência pode ser buscado nas sociabilida- des juvenis ligadas ao movimento hip-hop, dando mos- tras vivas de que determinadas relações podem funcio- nar como potentes territórios de lutas e transformações nas trajetórias juvenis contemporâneas. 35 36 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 -UDAN¿AS NA PAISAGEM URBANA FORMAS DE CIRCULA¿»O CONTEMPORoNEA AS NOVAS TRAJETËRIAS JUVENIS Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os chips da informática, as filiais industriais e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar (...). Assim, a subjetividade se en- contra ameaçada de paralisia. Felix Guattari Para com ara compreendermos o amb reendermos o ambiente urbano das grandes ente urbano das grandes metrópoles, retomemos uma forte configuração da vida contemporânea: a intensificação de circulação de infor nea: a intensificação de circulação de infor- mações e produtos materiais. Essa nova configuração concorre ssa nova configuração concorre para a com ara a complexifica lexifica- ção da vida urbana na medida em que produtos materiais e simbólicos, cada vez mais heterogêneos, participam e atuam na formação da coletividade das cidades8 . A pulverização de produtos tecnológicos na vida coti- diana das cidades, como computadores e telefones mó- veis, assume um poderoso papel na regulação da condu- ta de populações e na a ulações e na administração ministração do tempo de suas vidas. Não seria exagero afirmar que muitos jovens em- penham expectativas de mudanças de vida vinculando-as diretamente iretamente à aquisição de bens tecnol aquisição de bens tecnológicos ou ocu gicos ou ocupam seu tempo coti eu tempo cotidiano na entra iano na entrada em mun a em mundos virtuais os virtuais de um computador e na mani utador e na manipulação de telefones celulares. ulação de telefones celulares. O excessivo investimento no uso desses bens pode reduzir a produção de sentidos e desejos situados para fora dos visores de tais máquinas ou afunilar referências de socialização. Do mesmo modo, a presença ostensiva de produtos tecnológicos no cotidiano pode estar acompanhada por diversas iversas práticas de invenção, quando as tecnologias ticas de invenção, quando as tecnologias deixam de assumir apenas uma função comercial e lu- crativa para fazer funcionar outras ara fazer funcionar outras potências, como, otências, como, por exemplo, a produção de imagens; a produção de prát xemplo, a produção de imagens; a produção de práti- cas de socialização inusitadas, como as interatividades virtuais entre grupos distantes geográfica e socialmen- 36 Artigo Juventudes Contemporâneas 37 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 te; a produção de novas práticas de utilização da mídia, como acesso a bancos de dados, videotecas etc. (Guat- tari, 1992, p. 15-16). A intensificação de circulação de informações e pro- dutos materiais e a organização da vida das popula- ções da cidade compõem o conjunto de condições que torna possível a criação de territórios existenciais con- temporâneos9 . Vivemos em cidades de fluxos globais de informa- ções, produtos, bens, imagens, mensagens, tecnologias – e o porvir das juventudes encontra-se inseparável des- sa condição. Jovens põem em cena expressões estéticas, compor- tamentos, estilos de vida, projetos de futuro que assina- lam a presença de todo um sistema de referência que se integra a uma cidade orientada para um modelo de circu- lação cuja noção de trânsito extrapola a de mobilidade fí- sica de pessoas. Podemos nos mover sem sair do lugar – pelas redes de informática, pelas antenas de televisão, pelas linhas telefônicas. É o caso da mobilidade imaterial de informa- ções, mensagens, imagens. Simultaneamente, temos a mobilidade limitada es- pacialmente, na medida em que a circulação está con- centrada em projetos arquitetônicos fechados, solução que minimiza a ocupação e as experiências com o espa- ço público10. Ambas as formas de circulação parecem prescindir da mobilidade física dos habitantes urbanos. As formas virtuais de informação e de comercialização de produtos, seguindo os argumentos de Janice Caiafa, não se produzem sem subtrair algo das cidades: Comprar via computador ou via telefone envolve ausentar-se da caminhada das ruas, a televisão retém em casa e trabalha em algum grau contra a cidade (...) (Caiafa, 2007, p. 25) A intensificação da circulação de informações e pro- dutos opera efeitos tanto nas subjetividades de indivídu- os e grupos humanos como na recodificação da cidade: espaços, tempos, linguagens, relações. Com base nos estudos etnográficos de Caiafa na ci- dade do Rio de Janeiro, temos que a força mais marcante da cidade está na sua potência de dispersão de grupos humanos. O aparecimento de cidades convoca a mobili- dade humana em contrário à concentração proposta pe- las aldeias, ingressando nos costumes da cotidianidade urbana o desejo de trânsito e o exercício ativo de aban- donar o lar para ir a outro lugar. Na perspectiva dessa força de circulação presente nas cidades, habitantes metropolitanos teriam como possibi- lidade incessante o convite a processos de desterritoria- lizações subjetivas. Pelo movimento físico de deslocamentos, engendram- se encontros e a intercessão de uma pluralidade de sis- temas de significação – interesses afetivos, intelectuais, estéticos, sistemas de pensamentos e de ações múltiplos e não coincidentes entre si – invocando convites a modi- ficações e a expansões de pontos de referências subjeti- vos, um convite à experiência de alteridade, como afirma Caiafa neste trecho: De diferentes maneiras em cada configuração urbana, a história das cidades envolve o povoamento, a ocupação do espaço. Trata- se de uma ocupação coletiva, da produção de espaços públicos. Parece-me que esse coletivo urbano se caracteriza por possibilitar, de alguma forma, uma experiência com a alteridade. Nesse espaço coletivo se dá a mistura propriamente urbana e em alguma medida uma dessegregação, mesmo que sempre provisória e local. Cria- se um espaço de contágio com outros e estranhos onde há uma imprevisibilidade que o confinamento familiar não permite, onde há mesmo ou pode haver uma criatividade maior dos processos subjetivos. (2007, p. 20-21) Entretanto, a força de circulação em ação nas cidades não pode ser tomada nem positiva nem negativamente per si, tampouco abstratamente, pois ela depende dos gestos que a fazem, da implicação com o ato, das técni- cas de regulação e quadro de poderes em que está envol- vida. Em suma, de elementos que conjugam a forma que a própria circulação adquire em cada tempo e os tipos de fluxos que ela faz funcionar. Como propõe Guattari, o desempenho dessa força ci- tadina estaria em relação direta com agenciamentos polí- ticos, econômicos, legais, sociais, artísticos. Uma cidade orientada para uma forma de circulação em que a dinâ- mica dos espaços construídos é preterida pelos espaços virtuais ou espaços fechados, como os shopping centers, resultaria em efeitos distintos daqueles anunciados por uma perspectiva de experiência da alteridade, uma pers- pectiva de experiência de outros mundos. Num artigo intitulado “Restauração da cidade subjeti- va”, Guattari enfatiza a existência de um paradoxo na for- ma que a circulação assume nas cidades: a ampliação e 37 38 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 velocidade de circulação de informações, imagens e pro- dutos, entre outros, parecem petrificar as atividades humanas, tanto os níveis mais sin- gulares da pessoa quanto os níveis mais coletivos (p. 169-170). Trata-se de uma ordem dominante que põe em ação não somente um imobilismo físico mas um imobilismo criativo, mental, perceptivo. De acordo com o autor, tal circulação lança as atividades humanas num nomadismo selvagem, pois ao mesmo tempo que incita a entrada de pessoas numa circulação veloz, deixa homens, mulheres, juventudes desse tempo no mesmo lugar. Para Guattari, essa ordem dominante poderá ser con- trariada na medida em que a circulação se destacar des- se falso nomadismo e retomar a polifonia dos espaços, sejam eles virtuais ou não. A compressão do espaço coletivo e a restrição da circulação Para Lyotard, a presença de informações multiplicadas na vida social propõe como desafio às populações a or- ganização de interações sociais localizadas e provisórias (em contraposição a tipos de sociabilidades totalizadoras, como as sociabilidades protagonizadas por instituições), como estratégia para reconhecimento, assimilação e va- lidação de saberes globalmente circulantes. Lyotard argumenta que a diversidade e o afluxo dos saberes hoje são tais que nenhum indivíduo, e principalmente nenhum grupo fechado, pode mais possuir o conjunto dos conhecimentos como ainda era possível nas sociedades arcaicas ou tradicionais. A inteligência, o pensamento, o conhecimento estão condenados à partilha, à abertura. (apud Kumar, 1997, p.136). Alguns pensadores, como Jean Baudrillard e Mark Pôs- ter, apontam para o desaparecimento dos indivíduos nas redes de informação. Para Baudrillard, citado por Kumar, “o indivíduo deixou de existir em um relacionamento objetivo com seu ambiente. Ele não é mais um ator do mundo, mas um terminal de redes múltiplas. Com a imagem da televisão – que é objeto final e perfeito desta nova era – nosso próprio corpo e todo o universo cir- cundante tornam-se uma tela de controle”. (Kumar, 1997, p. 137). Sobre a noção de lugares e comunidades, Massey, no artigo intitulado “Um sentido global do lugar”, afirma que na atualidade as noções idealizadas de uma época em que os lugares eram supostamente habitados por comunida- des com identidades delimitadas se contrapõem a análi- ses críticas que concebem os lugares e as comunidades como formações múltiplas, em que relações econômicas, políticas e socioculturais globais têm atuação. Tal perspectiva é referendada por Bauman, quando afir- ma que a característica mais vital da vida urbana contem- porânea, e provavelmente a mais influente a longo prazo, é a íntima interação entre as pressões globalizantes e o modo como as identidades locais são negociadas, cons- truídas e reconstruídas (2004). Para Massey, embora os lugares e as comunidades de- senvolvam uma constelação particular de relações sociais, não é mais possível estabelecer fronteiras simbólicas blin- dadas entre um lugar e outro, uma comunidade e outra, um lugar e a sua cidade, um lugar e outros lugares. Nessa perspectiva, a relação comunidade–lugar tam- bém é expandida: as comunidades podem existir sem estar no mesmo lugar, como, por exemplo, rede de amigos com interesses comuns e rede de pessoas que comungam cren- ças religiosas afins formam comunidade citadinas que não se restringem a um lugar demarcado geograficamente. (...) em vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se imaginá-los como momentos articulados em redes de rela- ções e entendimentos sociais (...) (Massey, 2000, p. 184). A autora, ao caracterizar o lugar e a comunidade pela rede de relações sociais que articulam e fazem funcionar, chama ainda a atenção para o movimento contínuo que guia essas noções, considerando-se a plasticidade que as relações, no fluxo de seus acontecimentos – podem experimentar. Se os lugares podem ser conceituados em termos das interações sociais que agrupam, então, essas relações em si mesmas não são inertes, congeladas no tempo: elas são processos. (Massey, 2000). É nesse contexto de alta disseminação de informações, implosão espacial e mudanças na noção de lugar-comuni- dade que as juventudes moradoras das cidades parecem organizar e sustentar suas vidas. Com base nas análises desenvolvidas por Massey, é importante observar que as juventudes moradoras das 38 39 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 cidades relacionam-se de diferentes maneiras com as in- formações, significados e bens materiais que atravessam o ambiente urbano e que a experiência da compressão de tempo-espaço não ocorre de uma mesma forma para toda população juvenil. A mesma observação é válida quando pensamos nas possibilidades de mobilidade física das juventudes. Con- dições de classe social, raça, gênero, idade cruzadas à questão de segurança das cidades, às tecnologias e mí- dias dominantes – entre outras –, devem ser visitadas para compreender a vivência de espaço e lugar experimentada por grupos humanos. O acesso aos fluxos informacionais entre os jovens brasileiros dá-se, sobremaneira, pela televisão, sendo que a maioria vê-se isolada de outras redes de comuni- cação. Pela televisão, as informações acessadas pelos jovens adquirem o caráter de indiferenciadas. A indiferenciação das informações sobrevém da frag- mentação, condensação e velocidade com que, no geral, as informações são veiculadas no formato televisivo. Daí a dificuldade de os expectadores lembrarem as informa- ções ou realizarem distinções entre elas. Ressalte-se que raramente as informações com as quais jovens mantêm contato via televisão têm força convocatória para serem cruzadas com outros repertórios de saberes. A manipulação intelectual de informações vê-se no geral obstruída ou diminuída em função prioritariamente da passagem veloz de uma imagem para outra, caracterís- tica da linguagem televisiva. Além disso, as informações acabam por se diluir na estrutura televisiva, pois dispu- tam espaço com a forte presença icônica; com o tipo de estilística televisiva, expressa prioritariamente pelo for- mato show; com a recorrente convocação a sentimenta- lismos, entre outros elementos (Beatriz Sarlo, 2006). Em relação à capacidade de ingresso dos jovens em outras formas de sociabilidade-relações em ação no ambiente urbano, as possibilidades para as juven- tudes pobres vêem-se bastante diminuídas, por não te- rem acesso a serviços públicos e a recursos materiais e simbólicos que sustentem o deslocamento a diferen- tes lugares da cidade. Sem dúvida, as desigualdades socioeconômicas per- sistentes na sociedade brasileira justificam em grande parte as restrições de mobilização de jovens. Mas não só! Se levarmos em consideração o recorte de gênero, verificamos um outro campo de restrições, agora liga- do especificamente à condição feminina. Por esse crivo, jovens mulheres teriam mobilidades muito mais constrangidas do que jovens do sexo mas- culino. De acordo com Massey, (...) pesquisas mostram de que modo a mobilidade das mulheres sofre restrições de inúmeras maneiras diferentes: da violência física ao fato de ser assediada, ou de ser simplesmente obrigada a sentir “fora do lugar” – não pelo “capital”, mas pelos homens. (2000, p. 178). Se tomarmos como referência a segurança urbana, te- mos que cidades que apresentam alto índice de violência interferem sobremaneira na mobilidade (física e simbóli- ca) de sua população. No caso de juventudes associadas a contextos de violência, no geral moradores de bairros pobres, a restrição é aviltante e ocorre por meio de con- junto complexo de forças. A inexistência de serviços públicos de qualidade, par- ticularmente de transportes coletivos eficientes e de lo- cais públicos livres para circulação (em lugares não mui- to distantes de seus bairros) é um exemplo de força atu- ante na restrição dos deslocamentos juvenis. No entanto, práticas segregacionistas que agem na maioria das metrópoles mostram-se como a força mais brutal no confinamento das juventudes pobres, moradoras de bairros ligados socialmente a contextos de violência. Os efeitos imediatos da segregação podem ser perce- bidos no fato de jovens identificados com o perfil de mo- rador de bairro violento, serem reiteradamente preteri- dos quando pleiteiam ingresso em instituições de traba- lho, além de serem alvo, em outras instituições, de dis- criminação, desconfiança e temor, ao revelarem seus lo- cais de residência. As juventudes, pelo que revela pesquisa realizada por Regina Novaes com jovens moradores da cidade do Rio de Janeiro, não permanecem indiferentes ao grave problema das violências nas grandes metrópoles, transmutando-o num dos objetos principais de suas preocupações. A CARACTERÅSTICA MAIS VITAL DA VIDA URBANA CONTEMPORoNEA Á A ÅNTIMA INTERA¿»O ENTRE AS PRESSÍES GLOBALIZANTES E O MODO COMO AS IDENTIDADES LOCAIS S»O NEGOCIADAS CONSTRUÅDAS E RECONSTRUÅDAS 39 40 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Metade dos jovens etade dos jovens pesquisados esquisados pela autora afirma te ela autora afirma ter medo da morte, indicando que o temor pela própria vida ocupa lugar de destaque no imaginário de garotas e ga- rotos, in rotos, independentemente entemente da classe social a que perten a classe social a que perten- cem. Segundo a autora, jovens t em. Segundo a autora, jovens têm medo: de bala m medo: de bala perdi- da, da polícia, do aumento de violência, de o tráfico de drogas dominar tu ominar tudo, de tiro, e tiro, de ser es e ser espancada e ente a e enter- rada viva, de violência e injustiça. Ambientes urbanos marcados por violências – de va- riados tipos – acirram o crescimento de outro fenômeno em ação nas grandes cidades contemporâneas: o anseio (desenfreado) por segurança. A busca frenética de segurança – acionada por habi- tantes de alto tantes de alto poder aquisitivo e ca oder aquisitivo e capitalizada italizada pelo merc elo merca- do imobiliário e de tecnolo o imobiliário e de tecnologias de vi ias de vigilâncias, entre outros ilâncias, entre outros – faz com que es faz com que espaços de cidades densamente ensamente povoadas sejam interditados e tornados inacessíveis para grupos po- pulacionais pulacionais desprovi esprovidos financeiramente, con os financeiramente, condição que ição que ocasiona, conforme Bauman, uma desintegração da vida comunal sem prece omunal sem precedentes na atuali entes na atualidade. Ele ainda argumenta: (...) os que podem, vivem em “condomínios” planejados como se fosse uma ermi osse uma ermida: fisicamente a: fisicamente dentro, mas social e es entro, mas social e espiritualmente iritualmente fora da cidade. Espaços inter aços interditados são es os são espaços planejados para interce ara interceptar, repelir ou filtrar os usuários potenciais. Explicitamente, o propósito dos espaços interditados aços interditados é dividir, segregar e excluir – e não con dividir, segregar e excluir – e não cons- truir pontes, passagens acessíveis e locais de encontro, facilitar a comunicação ou, de alguma outra forma, aproximar os habitantes da cidade. Como todos sabemos, as cercas têm necessariamente dois lados. Dividem es Dividem espaço, que so aço, que sob outros as outros aspectos seriam uniformes, em ectos seriam uniformes, em “dentro“ e “fora“; mas o que é “dentro“ para os que estão de um lado é “fora“ “fora“ para os que estão do outro. Os moradores dos cond ara os que estão do outro. Os moradores dos condo- mínios cercam-se para ficar “fora“ da excludente, desconfortável, vagamente ameaçadora e dura vida da cidade – e “dentro“ do oásis de calma e segurança. (...) A cerca separa o “gueto voluntário“ dos ricos e ricos e poderosos dos muitos guetos forçados que os des oderosos dos muitos guetos forçados que os despossuídos habitam. Para estes, a área a que estão confinados (por serem ex- cluídos de todas as outras) é o espaço do qual não têm permissão de sair ( 2004, p. 130-131) Em defesa da circulação ... não poder mover-se ou fazê-lo com dificuldade é estar desprovido numa cidade, é ser destituído da principal senha para a vida urbana. (Caiafa, 2002, p. 21). A questão da mobilidade física é aspecto de grande relevância na ex ncia na experimentação das cidades. Seguindo erimentação das cidades. Seguindo os argumentos apresentados no início do texto, temos que a id que a idéia de circulação-deslocamento est ia de circulação-deslocamento está irredut irreduti- velmente ligada elmente ligada à função das cidades e função das cidades e à expressão de expressão de suas potências. Ao impulsionar a circulação, a cidade exerce uma ação de dispersão nos seus habitantes, pois permite às popu- lações o ingresso em universos de significados estranhos aos seus habituais. Ao sairmos das redondezas familia- res damos in es damos início a uma cio a uma jornada de encontros com estr ornada de encontros com estra- nhos, às misturas que se fazem no trânsito caracteristica- mente ur ente urbano. Desse modo, a cidade inter ano. Desse modo, a cidade interpela continu ela continua- 40 41 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 mente seus transeuntes, suas populações, particularmen- te, suas juventudes. Ao produzir um espaço uzir um espaço de exteriorização, e exteriorização, de diferen- ça em relação a si mesma, as cidades desem a em relação a si mesma, as cidades desempenham uma forte função subjetiva11: (...) o espaço construído chega a nós e tem o poder de nos afetar. A relação com a cidade modeliza faculdades psíquicas, mobiliza relação com a cidade modeliza faculdades psíquicas, mobiliza impulsos afetivos e cognitivos, ulsos afetivos e cognitivos, produz desejo roduz desejo (Caiafa, Caiafa, 2002, p. 35) Para Guattari, (...) quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, fun- cional, afetivo... (...) O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação. (...) A cidade, a rua, o ...) A cidade, a rua, o prédio, a rédio, a porta, o corredor .... modelizam, cada orta, o corredor .... modelizam, cada um por sua parte e em composições globais, focos de subjetivação. (1992, p.157-158-161). No livro Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos, Bauman chama a atenção para a função de dispersão das cidades que se dá pelo encontro inces- sante com o estranho: (...) qualquer que seja a história das cidades, e independentemente das drásticas mudanças que possam ter afetado sua estrutura espacial, aparência e estilo ao longo dos anos e dos séculos, uma característica se mantém constante: são espaços em que estranhos permanecem e se movimentam em íntima e recíproca proximidade (2003, p. 129). No mesmo texto, Bauman referenda a idéia de que se deve atrib e deve atribuir “a vivacidade intrínseca e a criativida- de da densa vida urbana de da densa vida urbana à incerteza que adv incerteza que advém dos r m dos re- lacionamentos pouco coor lacionamentos pouco coordenados e eternamente m os e eternamente mu- táveis” que a cidade veis” que a cidade propõe. Sob uma terceira perspectiva, Paul Virilio, um dos mais originais e consistentes analistas mais originais e consistentes analistas da socie a sociedade tecnologizada, afirma que a implosão dos espaços, dis- parada pelos a pelos diversos meios iversos meios de comunicação insta e comunicação instan- tâneos, faz com que o mundo externo sofra uma grave desqualificação esqualificação de sua “profun e sua “profundidade de campo”. Fato e campo”. Fato que, por sua vez, degrada as relações entre o homem e a cidade. $IANTE DA SUPERPOTÂNCIA DOS MEIOS DE COMUNICA¿»O O MUNDO EXTERIOR DIMINUI RAPIDAMENTE E H1 UMA PERDA CONSIDER1VEL DA mNARRATIVA DO TRAJETOn NARRATIVA ESSA APENAS MATERIALIZADA PELO DESLOCAMENTO CONCRETO EM DETRIMENTO DO DESLOCAMENTO VIRTUAL 41 42 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Diante da superpotência dos meios de comunicação, o mundo exterior diminui rapidamente e há uma perda considerável da “narrativa do trajeto”, narrativa essa apenas materializada pelo deslocamento concreto em detrimento do deslocamento virtual. Este último incita- do por um mundo que se organiza cada vez mais em sin- tonia e dependência com a difusão e produção de ima- gens e informações. De acordo com Virilio, a revolução nas comunicações afeta sobremaneira a característica de transeunte – ser do trajeto – que definiria a espécie humana. Janice Caiafa, Paul Virilio, Zygmunt Bauman, Felix Guattari, por caminhos diferentes, mas não antagôni- cos, denunciam o quanto a restrição da mobilidade físi- ca ou de circulação podem desmontar e debilitar as fun- ções primordiais das cidades e dos homens, qual seja, experimentar trajetórias múltiplas. Notas 1 Alguns autores, como Zygmund Bauman, sociólogo polonês que vive na Inglaterra, analisam as transformações atuais da vida social como uma intensificação de aspectos do período moderno, denominando o período atual de modernidade líquida. Jean-François Lyotard (1924-1998), um dos criadores da noção de pós- modernismo, ao analisar os elementos artísticos da pós-modernidade, também estabelece vínculos entre os dois períodos, identificando pontos de intersecção entre eles. De acordo com Lyotard, a experimentação e a rejeição do conforto e do consolo do realismo e da arte representativa seriam a essência do pós- modernismo. Sustentando-se nessa afirmação, pode-se dizer que a pós- modernidade recuperaria com maior vigor as subversividades conduzidas pelo movimento artístico modernista. Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão, considerado o mais influente pensador social da segunda metade do século 20, avalia que o projeto da modernidade estaria incompleto e defende em suas obras o fortalecimento nas sociedades contemporâneas de algumas das características constituin- tes do período, como a tentativa de ser crítico e racional. Para Habermas, a vida social deverá ser regulada pela obtenção de um consenso racional alcançado por intermédio do diálogo entre atores livres e iguais. Fredric Jameson, crítico literário e teórico marxista, identifica os movimen- tos atuais na vida cultural, social e econômica como decorrentes de uma modificação sistêmica do próprio capitalismo. Para Jameson, as sociedades contemporâneas estariam vivendo um estágio particular do capitalismo, que ele chama de “capitalismo tardio”. Entre as principais características do capitalismo tardio estaria a posição domi- nante ocupada pela tecnologia da informação-comunicação na infra-estrutura econômica, relegando à tecnologia de manufatura um papel subordinado. A tecnologia da informação-comunicação, segundo Jameson, cria uma rede global de poder e controle de difícil apreensão para as mentes humanas, tornando possível o alcance global do capital. 2 Subsecretária da Secretaria Nacional de Juventude. Professora adjunta do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 3 Professor adjunto do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 4 Cf. também trabalhos de Foucault sobre o biopoder e as reflexões de Deleuze sobre a sociedade de controle. 5 Sobre as diferenças de atitude de consumo entre jovens de classes sociais distintas, Freire Costa relaciona diretamente a insaciabilidade de consumo com a ação de descarte: no Brasil, a maioria tem uma renda pessoal ou familiar desprezível, mas, mesmo assim, se comporta como se tivesse uma renda alta, quando se trata de usar objetos como coisas descartáveis. 6 Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e diretor do Instituto pela Promoção do Sistema Único de Segurança Pública. Participou do governo do estado do Rio de Janeiro, de 1999 a março de 2000, na con- dição de subsecretário de Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania. Foi secretário nacional de Segurança Pública do governo federal de janeiro a outubro de 2003. 7 Na análise que o autor empreende, é interessante conferir a função que as armas utilizadas por jovens na ação do tráfico desempenha na construção de suas performances corporais. O autor afirma que a posse de armas su- blinha simbolicamente a virilidade de jovens do sexo masculino e calçam a identidade de um macho violento, arrogante, poderoso e armado junto a moças, as quais, usando os termos do próprio autor, mostram-se encantadas pela estetização do mal. 8 De acordo com Guattari (1992), produtos materiais e sistemas de significação concorrem excepcionalmente para a produção de subjetividades e novas configurações identitárias, atuando na reconstrução de formas de pensar e falar, de desejos e aspirações, projetos de vida individuais e coletivos. Para o autor, do mesmo modo que equipamentos coletivos, “as máquinas tecnológicas de informação e comunicação operam no núcleo da subjetivi- dade humana, não apenas no seio de suas memórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes” (p. 14). 9 A noção de territórios existenciais está sendo entendida aqui como o conjunto de relações e sistemas de referências que delimitam modos de ser e de viver, desembocando “toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 388). Mesmo que um território exis- tencial contenha linhas de constituição definidas, elas são, na atualidade, constantemente provocadas ao movimento. Vale a pena retomar os autores: “O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar, cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais”. (ibid.) 10 Caiafa, ao analisar o processo de suburbanização de cidades americanas, destaca como a entrada do automóvel na organização da vida de grupos sociais é importante na realização de um despovoamento das cidades, par- ticularmente dos espaços públicos. Diz a autora, “(...) a ocupação do espaço público se torna um mero intervalo de tempo entre a partida e a chegada com tendência a se eclipsar” (2007, p. 22). Talvez o mesmo poderíamos afirmar em relação à circulação orientada para centros fechados de comércio, onde o deslocamento físico transmuta-se em um meio apenas intervalar. 11 É importante destacar a concepção de subjetividade presente no texto da autora, pois se aproxima bastante da noção de juventude expressa no Programa “Jovens Urbanos”. Seguindo a perspectiva de Guattari, Deleuze e Foucault, a autora afirma: “a subjetividade tem um caráter processual – ela não é um resultado, mas constantemente se engendra – e se produz por componentes heterogêneos: componentes sociais, materiais, sexuais, de poder, de mídia etc.” (2002, p. 35) 42 43 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Referências BAUMAN, Zygmunt. (2004) Amor líquido: sobre a fragilidade das relações huma- nas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. CAIAFA, Janice. (2007) Aventura das cidades: ensaios e etnografias. 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Tomaz Tadeu da Silva PROGRAMA JOVENS URBANOS Núcleo de pesquisa do programa Jovens Urbanos* ! 46 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Programa jovens Urbanos Cultura e Subjetividade na Juventude 2ECONSTRUINDO SE CARTOGRAÙCAMENTE No quadro das perspectivas almejadas pelo Programa Jovens Urbanos duas merecem destaque. A primeira refere-se à expectativa de ação sobre si mesmo, ou de processos de alterações subjetivas juve- nis que o Programa espera mobilizar. A segunda trata do investimento na expansão das relações, da aposta em novas performances relacionais dos jovens nos territórios urbanos. As noções de subjetividade e de relações estão impli- cadas com uma concepção de cultura que orienta o Pro- grama. A cultura, aqui entendida como prática de signi- ficação, atuaria diretamente na produção de sujeitos, ao mesmo tempo que mobilizaria incessantemente o acon- tecimento de relações sociais. Do ponto de vista do acontecimento das relações so- ciais, a cultura expressaria a zona de produção de signi- ficados, representações, regras, códigos, controles exer- cidos dinamicamente por elas. Os significados que configuram as relações, por sua vez, sugerem, orientam e muitas vezes impõem manei- ras de ser para as pessoas. Os significados atuariam nas relações pondo em exer- cício modelos subjetivos (identidades), os quais serão, em gradações variadas, adotados pelas pessoas como consciência de si. Em muitas situações relacionais os mo- delos subjetivos chegam a ser reconhecidos pelos envol- vidos como verdades naturais e indissolúveis. Quando falamos sobre quem somos, expressamos um tipo de consciência que adquirimos sobre nós mesmos. Normalmente as pessoas adotam essa concepção de subje- tividade, mais habitual, sem muitas tensões ou conflitos. ) 47 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 No contexto do Programa Jovens Urbanos, nos deslo- camos dessa concepção para abrigar o termo subjetivida- de nas modelagens culturais. A subjetividade não desig- naria mais algo que possuímos (uma substância) ou re- temos definitivamente (uma essência), mas sim um esta- do de possibilidade produzido sempre nos agenciamen- tos culturais, mais especificamente nas coordenadas dos sentidos, dos poderes, das relações sociais. Na perspectiva de expressão cultural não haveria uma forma única e permanente para designarmos nossa sub- jetividade, pois há sempre a possibilidade de traçarmos uma diferenciação de nós mesmos e nas relações em que nos envolvemos. Eu chamaria de subjetivação o processo pelo qual se obtém a cons- tituição de um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si. Michel Foucault (2004b, p.262). Quando falamos de diferenciação, não se trata de nossa subjetividade ser aberta às mudanças ou ao novo, do tipo que permitiria a entrada de coisas novas para um receptáculo nuclear estável. Trata-se de uma subjetivi- dade-forma, cujas linhas de composição, sendo de um jeito, podem vir a tornar-se uma outra coisa, um outro, uma forma distinta da anterior (se disso for capaz). A penetração da cultura em nossas vidas é tão evidente que ela não pode mais ser estudada como uma variável secundária ou dependente. Ela não é um componente subordinado, ela é emi- nentemente interpelativa, constitutiva das nossas formas de ser, de viver, de compreender e de explicar o mundo. Marisa Vorraber Costa (2002). Assim, nossas formas de ser, o jeito como pensa- mos, agimos e nos reconhecemos, estão altamente in- vestidas pelas modelagens culturais que incessante- mente nos atravessam e dependem dos entrecruzamen- tos de forças sociais (mídias, tecnologias, consumo etc.) que nos atingem com maior vigor em determinado tem- po de nossa vida. Se as forças se alteram, se outras alianças culturais são realizadas, se outras pertinências urbanas são experiencia- das, novas maneiras de ser também podem se constituir. Isso quer dizer, em particular, que as modelagens culturais não são lineares, pois é em seus próprios movimentos de desalinhamento que entramos em novas possibilidades subjetivas. Novas possibilidades de vir a ser diferentes e de habitar a vida pública de formas também diferentes. 48 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 referente estrutural geral, mas estão implicados com pla- nos dinâmicos e capilares. Seguindo esse argumento, é possível considerar que modificações e transformações nos modos de vidas juve- nis – foco subjetivo no Programa – passam pela abertura dos jovens às potências da cidade, de modo que aquilo de reiterativo e rotineiro que habita as relações juvenis atuais possa abrir-se a processos outros. Estar atento e abrir-se às potências da cidade aliam- se às possibilidades de expandir campos de relações, de criar outras e novas performances relacionais das juven- tudes entre pessoas, lugares, idéias, objetos. A idéia de relação proposta pelo Programa ressignifi- ca a noção de encontro, retomando-a como uma ocasião experimental de vínculos com outros corpos – de mistu- ra com múltiplos intercessores, de abertura para outros interesses e sentidos. O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas: para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais (...) fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível. (Deleuze, 1992, p.156). As relações, como afirma o trecho anterior, mobili- zam intercessores em nossa existência. São elas, as re- !S RELA¿ÍES EXPERIMENTADAS PELAS PESSOAS PODEM EXPANDIR A VIDA 3»O RELA¿ÍES QUE FAZEM COM QUE A VIDA GANHE MAIS INTENSIDADE E PRODUZA NOVOS DESEJOS p VONTADES DE TRANSFORMA¿ÍES DE RENOVA¿ÍES DE SI E DAS COISAS NO MUNDO No caso de jovens em situação de vulnerabilidade, o próprio ato de habitar – estar em um lugar a que antes não se tinha acesso, explorar e experimentar outros lu- gares – pode possibilitar mudanças nos modos de vida juvenis e em suas capacidades de ação pública. Na atualidade, a subjetividade da juventude é alvo especial de sistemas de significação e de produções ma- teriais em ação nas sociedades, que geram modelos de juventudes a ser consumidos ou adotados por grupos de pessoas, bem como disputas discursivas em torno de identidades juvenis. Nesse sentido, a produção das subjetividades das juventudes encontra-se em plena ex- pansão em nossa atualidade e aos grupos de jovens é endereçada uma série de expectativas sociais e, por que não dizer, formas de controle. As ações formativas realizadas com populações jo- vens também ativam modos de ser juvenis, que podem tanto fortalecer a reprodução de certos modelos de ju- ventude já em circulação e seus feixes de controle como apostar em novos processos de singularização juvenil que escapem de axiomáticas de controle.1 O Programa Jovens Urbanos situa seu plano de ação na aposta de novos processos de singularização juvenil. Relações e singularidades Os modos de experimentar condições e estados de ju- ventude não são vividos da mesma forma pelos grupos juvenis. Contanto que atravessadas por modelações cul- turais dominantes que colocam, por exemplo, no centro da vida juvenil o ideal de corpo perfeito ou a vontade de consumo, as subjetividades juvenis desdobram-se em múltiplas experiências, considerando-se as variadas po- sições sociais em que jovens estão situados. Por exemplo, jovens mulheres, estudantes; jovens pobres, brancos, doentes; jovens negros, trabalhadores, músicos; jovens de rua, jovens internados, jovens evangélicos etc., e as respostas inusitadas que jovens são capazes de produzir ante os agenciamentos culturais em que se vêem envolvidos. Nessa perspectiva, os modos de experimentar a con- dição de juventude e seus estados não se reduzem a um 49 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 lações, que podem pôr em movimento encontros multi- facetados com a vida, possibilitando às juventudes re- novarem-se uma-e-outra-vez. As relações não devem ser entendidas como derivações da soma de seus termos ou produto das características e quantidade de seus elementos (Quem sou eu? Quem é ele? Que coisa é essa? Quantos nós somos?). O que define uma relação é o entre, que é o lugar das afecções – da dissolução de “eus” –, alguma coisa que ocorre entre os elementos. O entre não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (Deleuze, 1995, p.37). As relações experimentadas pelas pessoas podem expandir a vida. São relações que fazem com que a vida ganhe mais intensidade e produza novos desejos – von- tades de transformações, de renovações de si e das coi- sas no mundo. Mas nem sempre as relações experimentadas pelas pessoas atingem esse efeito, ou seja, afetam no senti- do de expandir a vida. As relações podem nos afetar de inúmeras maneiras, produzindo inclusive menos vida, perda de potências, reatividades e até mesmo atitudes esvaziadas de sentidos. As relações afetam as pessoas, tanto retraindo como expandindo a vida. Embasado nesse pressuposto, o Programa Jovens Urbanos realiza suas ações apoiando-se nas seguintes perspectivas micropolíticas: • Ao abrir possibilidades de jovens urbanos experimen- tarem relações diferenciadas, o Programa se torna uma força que desvaloriza as sociabilidades juvenis que produzem apatias, violências, restrições de vá- rias ordens. • A abertura para relações múltiplas expande os reper- tórios juvenis, impulsionando novas formas de parti- cipação social. • A experimentação de relações variadas concorre para desacomodar padrões culturais – modos de ser, agir, pensar modelados rigidamente –, podendo conduzir os jovens a novas disponibilidades inventivas de si, a cunhar novas matérias de expressão, a criar lingua- gens. • A experimentação de relações variadas expõe os jo- vens a encontros com outras subjetividades, com ou- tras linguagens, com outras manifestações de expres- são, outros intercessores, de modo que possam ser envolvidos em outros enredos e narrativas de vida, implicando-se produtivamente com estas. • Os jovens são convidados a adotar atitudes de cartó- grafos, de modo a se inserirem em novas relações, a utilizarem ferramentas cartográficas para olhar as re- lações da cidade: modos de funcionamento, o que de- terminadas relações provocam, reconhecer saberes, hábitos; ver como as relações acontecem no mundo do trabalho, das ciências e tecnologias, das artes. Exploração, experimentação e produção: Uma experiência cartográfica. A importância atribuída às relações e às partilhas em contextos plurais sustenta-se no fato de as sociedades contemporâneas viverem uma retração do espaço com- partilhado e das possibilidades de trajetosb e um afuni- lamento de sociabilidades, considerando especialmen- te a confluência do olhar juvenil para a tela da tevê e a limitação das opções de circulação e convivência das ju- ventudes em diferentes domínios da existência, princi- palmente das juventudes moradoras de regiões metro- politanas pobres e periféricas. Ao focar seu plano formativo na relevância das rela- ções e partilhas em contextos geo-simbólicos plurais o Programa Jovens Urbanos tem como finalidade, sobretu- do, a abertura de novos horizontes de sociabilidades e trajetos juvenis, abertura que concorreria positivamente para recomposições de modos de viver, movimentadas por alterações em repertórios culturais e nos desempe- nhos social e político de jovens. Para persistir nessas metas e atuar em consonância com as juventudes atuais, o Programa trabalhou na ela- boração de três estratégias metodológicas: exploração, experimentação e produção, tomando a cartografia como seu principal operador conceitual. A cartografia é um método que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. (Virgínia Kastrup, 2007, p.2). 5 Juventudes urbanas 2 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 m 2003, descortinava-se no País, como questão e apelo social, a implementação de programas voltados à juven- tude. Essas iniciativas traduziam a dramática constata- ção da existência de enormes contingentes de jovens em situação de vulnerabilidade, risco, e exclusão. 3 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Editorial sta edição especial de Cadernos Cenpec trata de um tema instigante, envolvente e relevante: a juventude dos grandes centros urbanos. Consideramos importante que experiências significati- vas no campo da formação de jovens possam ser compar- tilhadas e socializadas. Aqueles que criam e implementam projetos no campo da educação brasileira têm o compro- misso social e político de disseminar, espalhar e colocar à disposição, os saberes que produzem. Não obstante o reiterado discurso da falta e da carên- cia, que muitas vezes imobiliza a ação, porque se encer- ra na denúncia, apresentamos aqui uma iniciativa que aposta na potência, na possibilidade real de despertar o desejo e a vontade de futuro dos jovens moradores de regiões de grande risco social. Lugares que escancaram sua precariedade local, sua vulnerabilidade social, seus riscos ambientais. Depois de muitas experiências em projetos sobre a juventude, o Cenpec, em parceria com a Fundação Itaú Social, inaugurou em 2004 o programa Jovens Urbanos, que privilegia uma forte articulação com agências gover- namentais (nos âmbitos municipal e estadual), centros tecnológicos e ONGs que atuam com jovens nas perife- rias das cidades. Inovador na oferta de experimentações vinculadas ao mundo da tecnologia, aos desejos dos jovens e às de- mandas das cidades, o programa estimula a circulação e intervenção na cidade e modifica a vida dos jovens e de sua comunidade. Experiências com aquecedores solares, intervenção e melhoria de espaços coletivos, tramas cul- turais as mais diversas exigiram dos jovens a problema- tização e a busca de soluções para questões que nunca tinham tido a oportunidade de resolver. Encará-las e en- frentar os desafios impostos pela realidade ampliou sua inventividade a um nível sem precedentes. Queremos multiplicar com nossos leitores as opções metodológicas, estratégias processuais e tecnológicas adotadas na ação com a juventude. Mas também apre- sentamos nosso mergulho no conhecimento mais refle- xivo sobre o universo juvenil que nos levou a procurar entender a complexidade e velocidade de sua vida em mutação e as novas formas de sociabilidade nos circui- tos onde transitam. Construímos com eles cartografias reais e simbólicas do possível que revelam as condições nas quais as juven- tudes das cidades se movem e desenvolvem suas trajetó- rias. Na periferia das duas maiores cidades do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo, pudemos nos aproximar dos jo- vens e estimulá-los a apropriarem-se de modo novo das tecnologias da cidade, criar e recriar imagens, comuni- carem-se com mais competência e alegria. Esperamos que todos possam navegar conosco nes- tes canais abertos pelos jovens e ampliar espaços de ação com e para eles. Apostamos que eles podem che- gar onde querem, se sociedade organizada e governos estiverem juntos nesta caminhada. #OMO MULTIPLICAR BOAS EXPERIÂNCIAS DE JOVENS URBANOS Maria Alice Setubal Diretora Presidente do Cenpec % editorial Como multiplicar boas experiências de jovens urbanos Maria Alice Setubal 3 apresentação Jovens urbanos, um programa no qual todos aprendemos Antônio Jacinto Matias 6 artigo Um disparador da reflexão teórico–metodológica Equipe Educação e comunicadade 9 Uma rede de ação para formação de jovens 13 Maria do Carmo Brant de Carvalho relato de prática E surgiu uma praça no Recanto Verde Real Panô Programa Jovens Urbanos 18 entrevista Esforço de articulação e parceria Uma conversa com Wagner dos Santos, coordenador do Programa Jovens Urbanos 20 relato de prática Projeto SOHAB: um aquecedor solar de baixo custo. 23 Programa Jovens Urbanos artigo Juventudes contemporâneas 25 Aline Andrade e Mônica Mussi 1. Vida contemporânea: alguns pontos de partida para pensar as juventudes. 26 2. Novas formas juvenis de sociabilidade: biossociabilidades. 32 3. Mudanças na paisagem urbana: formas de circulação contemporânea & as novas trajetórias juvenis. 36 programa jovens urbanos Cultura e subjetividade na juventude Núcleo de Pesquisa do Programa Jovens Urbanos 45 I. Reconstruindo-se cartograficamente 46 II. Rotas possíveis para a formação de juventudes 54 relato de prática Luz: tecnologia da imagem. Programa Jovens Urbanos 60 Do sujeito para o mundo, ser ou não ser. Depoimento de Carlos Sabino Dantas 61 4 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 3UM1RIO relato de prática Nas fotos, múltiplos olhares da Brasilândia. Programa Jovens Urbanos 63 artigo Jovem e trabalho 65 Cley Scholz; Maria do Carmo Brant de Carvalho; Maria Julia Azevedo; e, Wagner Santos relato de prática Projeto Caju: como formar bons artesãos. 72 Programa Jovens Urbanos artigo Nossas cidades são tecnologicamente mediadas 75 Núcleo de Pesqusia do Programa Jovens Urbanos relato de prática Projeto Arte Sem Parar! Programa Jovens Urbanos 82 relato de prática O Brócolis: a força da comunidade. Programa Jovens Urbanos 83 pesquisa Um retrato dos jovens urbanos que participaram do programa 85 Simone Aparecida Jorge e Irineu Francisco Barreto Jr. artigo Uma renovação curricular muito além do currículo 93 Maria Helena Guimarães de Castro e Maria Inês Fini relato de prática Aliados do RAP Programa Jovens Urbanos 98 artigo Ação pública para a juventude 101 José Eduardo de Andrade e Júlia Alves Marinho Rodrigues relato de prática Blogs: territórios virtuais de aprendizagem, 108 comunicação e sociabilidade. Programa Jovens Urbanos artigo Políticas para e com a juventude 111 Equipe Educação e Comunidade mosaico 117 Fernando Rios e Isa Maria F. Guará 5 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 6 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 m 2003, descortinava-se no País, como questão e apelo social, a implementação de programas voltados à juven- tude. Essas iniciativas traduziam a dramática constata- ção da existência de enormes contingentes de jovens em situação de vulnerabilidade, risco, e exclusão. Esse quadro, particularmente grave na periferia dos grandes centros urbanos, nos motivou, na Fundação Itaú Social, a oferecer nossa contribuição. Já sabíamos, na épo- ca, que propostas de formação profissional, assim como recomendações de viabilização da inserção de jovens no mercado de trabalho, apresentavam inúmeras dificulda- des e limites. Não obtinham a efetividade desejada. Vá- rias conversas e debates ocorreram então para desenhar um programa que fosse consistente, efetivo, replicável e aberto à participação de outras organizações. Foi assim que a Fundação Itaú Social, apoiada pelo Cenpec, iniciou em 2004 o Programa Jovens Urbanos. Vol- tado para jovens na faixa etária de 16 a 21 anos, residen- tes nas periferias das cidades de São Paulo e Rio de Janei- ro, o Programa nasce em estreita articulação com agên- cias governamentais (nos âmbitos municipal e estadual), centros tecnológicos e ONGs que atuam com jovens. Alguns importantes pressupostos nortearam sua ló- gica programática: • os jovens precisam aumentar sua escolaridade; con- cluir o ensino médio; se inserir no mundo das tecno- logias; conquistar uma “alfabetização científica”; apresentação *OVENS 5RBANOS UM PROGRAMA NO QUAL TODOS APRENDEMOS % 7 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 • os jovens precisam aumentar seu repertório cultural e comunicativo; ganhar inserção na cidade, saindo do confinamento social a que ficam submetidos nas periferias de megacidades como São Paulo; • os jovens precisam de muitas entradas no campo cultural, econômico, comunitário para obter inclu- são social com melhor qualidade de vida e no mun- do do trabalho; • os jovens precisam menos de um curso profissiona- lizante e mais de repertórios, competências e habili- dades facilitadoras de seu ingresso no mundo do tra- balho complexo. A garantia dessas possibilidades significou pensar e implementar um programa-rede que articulasse e enlaças- se a vida na cidade, a tecnologia, a cultura e a escolarida- de. Ao mesmo tempo, o método escolhido deveria produzir uma formação eficaz aos jovens, contemplando pesquisa, circulação, experimentação, exploração e produção. Um único projeto não permite tal movimento; daí o conceito de programa-rede, envolvendo um conjunto de organizações e a possibilidade de transitar entre elas. Muitos encontros, estudos e parcerias ocorreram, des- de as primeiras conversas em 2003, quando nos propuse- mos a estabelecer um diálogo que contemplasse a diver- sidade do contexto social em que estamos e que aproxi- masse diferentes organizações, a partir dessa causa co- mum: contribuir para a emergência de uma vida digna e significativa para jovens brasileiros que vivem em situa- ções sociais precárias. A sociedade de hoje é, ao mesmo tempo, da escas- sez e da abundância. Mantém enormes desigualdades sociais; forte apelo ao consumo de massa que, muitas vezes, sobrepõe o desejo à necessidade. Vivemos numa sociedade do conhecimento, da infor- mação e da contínua inovação tecnológica. Uma socieda- de que se desfez do modelo tradicional de emprego e con- clama os cidadãos a reinventarem o trabalho, seja pela in- dução contínua à novas ocupações, pela necessidade de cada indivíduo se constituir em empreendedor, seja por modelos de emprego autônomo, virtual, precário. Gilberto Dupas, argumenta que num mundo totalmente estruturado em redes (networks) pelas tecnologias da informação, a vida social contemporânea passa a ser composta por uma infinidade de encontros e conexões temporárias. O projeto é a ocasião única e o pretexto da conexão; os indivíduos que não tem projetos e não exploram as conexões da rede estão ameaçados de exclusão permanente, já que a metáfora de rede torna-se progressivamente a nova representação da sociedade. (Tensões contemporâneas entre o público e o privado. Gilberto Dupas. Editora Paz e Terra. 2005) Para a Fundação Itaú Social, esta publicação tem um significado muito especial, pois, com ela, apresentamos alguns dos importantes aprendizados que vivenciamos no Programa Jovens Urbanos. Antonio Jacinto Matias Vice-Presidente da Fundação Itaú Social 8 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 9 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 5M DISPARADOR DA REÚEX»O TEËRICO METODOLËGICA Viver é, de alguma maneira, buscar um lugar. É circular por um espa- ço e tratar de encontrar rincões, pontos no espaço. Nesse sentido o tema habitar é tema da cidade. Muito mais além, habitar é sinônimo de produzir a vida. Assim, enfrentar o tema da cidade é enfrentar o tema da vida. Miguel Laborde m 2004, a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – Cenpec iniciam o Programa Jovens Urbanos, destinado a jovens na faixa etária de 16 a 21 anos, residentes em regiões metropolitanas1 . Nasceu como iniciativa do Itaú Social, em forte articulação com agências governamen- tais, nos âmbitos municipal e estadual, com centros tec- nológicos e ONGs que atuam com jovens. Tal programa permitiu pensar, formular e implementar uma matriz socioeducativa e cultural para a juventude. A formação dos jovens no escopo do Programa tem como cenários a Cidade, a Cultura e a Tecnologia, privi- legiando a interferência desses aspectos na vida cotidia- na dos jovens participantes do Programa. Nessa perspectiva, a formação fomenta a inserção dos jovens em espaços e fatos urbanos desconhecidos, pro- piciando a ampliação de repertórios culturais, o usufru- to de direitos e acesso a saberes e culturas em movimen- to nos cenários urbanos, não só do mundo do trabalho. Ao partilharem o espaço da cidade com outros, ao visi- tarem edifícios, investigarem o funcionamento de empre- sas e instituições, ao circularem pela complexa geografia * Equipe Educação e comunidade realiza projetos e ações de forta- lecimento das capacidades de organizações e sujeitos envolvidos com ações sócio educativas com crianças, adolescentes e jovens. ARTIGO % Equipe Educação e Comunidade* 10 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ! QUALIÙCA¿»O DAS RELA¿ÍES JUVENTUDE E CIDADE JUVENTUDE E TECNOLOGIA JUVENTUDE E CULTURA CONTRIBUI PARA A DIMINUI¿»O DAS SITUA¿ÍES DE VULNERABILIDADE JUVENIL NO CAMPO ESCOLAR PROÙSSIONAL PÒBLICO RELACIONAL E CULTURAL urbana, ao reconhecerem as linguagens dos museus, dos teatros, dos cinemas, das ruas... as juventudes são inter- peladas pelas potências, diferenças, problemas e enun- ciados múltiplos em ação nas cidades. Estudos demonstram que a ampliação de experiên- cias de circulação e apropriação da cidade por jovens, cujas vidas estão concentradas nos bairros periféricos onde residem, colabora para a diversificação e amplia- ção de seus campos relacionais e repertórios culturais, aumenta as expectativas individuais e sociais de vida e os afasta do confinamento social e intelectual a que mui- tas vezes estão subordinados e os aproxima do mundo produtivo, não só consumidor. Além disso, ao entrarem em contato com a multiplici- dade cultural em ação nas cidades e com diferentes mo- dos de vida juvenil, os jovens ampliam suas capacida- des de pensar e agir sobre e no mundo. Por outro lado, as imersões nos territórios tecnológi- cos sustentam novos desempenhos individuais e respon- sabilidades sociais dos jovens, em especial no mundo do trabalho e nos locais onde eles mantêm vínculos. Ação pública em rede A elaboração de produtos e projetos de intervenção na cidade potencializa as subjetividades juvenis, pois os jo- vens aprendem a atuar com autonomia e a construir um projeto para compor perspectivas individuais e sociais. Por meio da produção, os jovens adquirem maior confian- ça sobre si mesmos e exercitam a partilha social. A qualificação das relações juventude e cidade, juven- tude e tecnologia, juventude e cultura contribui para a dimi- nuição das situações de vulnerabilidade juvenil no campo escolar, profissional, público, relacional e cultural. Os diferenciais do Programa Jovens Urbanos concen- tram-se em sua lógica programática e arquitetura de ação em rede. Seu arranjo institucional compõe-se de parce- rias com órgãos públicos, empresas públicas, privadas e de economia mista, organizações da sociedade civil, ins- tituições representantes do campo das artes, do mundo do trabalho e da produção de tecnologias. As relações institucionais mobilizadas pelo Programa sustentam-se numa perspectiva de ação pública em rede e na necessidade de legitimidade de suporte institucional e político às ações de intervenção perante o público juvenil. Nesse contexto, é diferencial o investimento constante para formação de arranjos institucionais e redes sociais2 comprometidas socialmente com a juventude, além de um exercício rigoroso para elaboração de uma proposta forma- tiva que considere as juventudes em seu presente. Essa perspectiva dispara a função política das “ju- ventudes”, requisitando dos jovens suas capacidades de contribuição e avaliação ante o que vivem e naquilo em que se engajam. O Programa Jovens Urbanos pretende, também, fun- cionar como um vetor social que acione a expansão do repertório sociocultural e a ampliação da circulação e das relações dos jovens com e na cidade, garantindo aces- so às culturas urbanas e bens tecnológicos, de modo a movimentar e abrir canais para processos de produção e atuação das juventudes na cidade. Escolhas Nas cidades se fazem perguntas que nunca foram feitas, surgem proble- mas que em outras condições as pessoas nunca tiveram oportunidade de resolver. Encarar problemas e questionar trazem desafios e ampliam a inventividade humana a um nível sem precedentes. Bauman Encarar a cidade significa, na pauta do Programa Jovens Urbanos, reconduzir aos jovens o direito à circulação na cidade, garantir acesso qualificado, em tempo real, aos equipamentos materiais e imateriais em ação no fluxo urbano, intensificar a sensibilidade pelo diferente e pe- los problemas relevantes de nosso tempo, porque é nas cidades de hoje que os problemas mais cruciais de nos- so tempo se cruzam e se manifestam. 11 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Cabe ainda destacar que as significativas mudanças ocorridas no ambiente produtivo urbano, em especial das forças produtivas, em função das invenções técnicas e da globalização dos mercados, põem em funcionamento al- terações radicais nos sistemas de empregos contempo- râneos. Além disso, projetam socialmente uma série de exigências formativas de difícil tangenciamento e regula- ção institucional, pois o capitalismo recente tem no prin- cípio de fluxos a condição de seu próprio exercício. Assim, sistemas de trabalho, de emprego e de forma- ção profissional passam a carecer de rumo predeterminável, adquirindo um sentido algo caótico, com intensas transições entre situações ocupacionais, já que as trajetórias profissionais não são mais previsíveis a partir de mecanismos de regulação socialmente institucionalizados (Guimarães, 2006, p. 175-6). Uma formação de jovens não pode nem dar as costas a essa nova configuração do capitalismo contemporâneo nem assimilar tal mudança com um otimismo formativo que se limitaria a celebrar as virtudes das técnicas pro- dutivas e a conjugá-las em uma didática profissional. Uma formação nesses moldes residiria ainda num oti- mismo formativo não-crítico, pois não haveria garantias contínuas de inserção nos sistemas de empregos nesse tipo de interação formativa com uma maquinaria técni- ca em contínuo fluxo. Tampouco haveria como endossar garantias sociais apressadas, tão facilmente associadas a programas for- mativos profissionalizantes, como a garantia de maior justiça social ou de redução de desigualdades. Pelo me- nos não por um tipo de argumento linear, imediato, sus- tentado num raciocínio de causa e efeito para um cam- po social marcado pela impossibilidade de uma tradu- ção didática fixa. Uma formação das juventudes desse tempo deverá instalar-se nos próprios jogos de fluxos contemporâne- os, ali onde eles acontecem, no solo das cidades, nos espaços construídos, nas indústrias, nas ruas, nos co- mércios, nos espaços de artes. Recentrar a formação profissional das juventudes na cidade significa uma abertura direta para o desenvolvi- mento das práticas sociais de trabalho e a promoção de encontros ativos com as populações e produções desse campo social (empresários, trabalhadores de todos os tipos, maquinários, técnicas, tecnologias etc.). Uma formação nesses moldes convoca a mobilização do contexto social ligado aos fluxos do trabalho, envol- vendo os contextos na criação de condições favoráveis para transformações reais nos repertórios de referência das juventudes (o que não impede que condições parti- culares de formação profissional sejam obtidas por ou- tras vias). Uma formação nesses moldes invoca também uma ética social, pois que força deslocamentos em estruturas institucionais que segregam no geral o estranho, o des- conhecido, o estrangeiro, aquele que sai de casa para entrar na aventura própria das cidades. NOTAS 1 A edição experimental do Programa Jovens Urbanos foi implementada em 2004/2005 na cidade de São Paulo, nos distritos de Brasilândia (Zona Norte) e Campo Limpo (Zona Sul). Em 2006/2007 foi desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro nos distritos de Santa Cruz: Paciência e Antares (Zona Oeste) e nos distritos de Manguinhos e Jacarezinho (Zona Norte). Em São Paulo encontra-se no 4o mês de implementação da 3a edição 2007/2008, nos distritos de Lajeado (Zona Leste) e Grajaú (Zona Sul). 2 O que os recentes analistas de redes apontam é para a necessidade de uma mudança no modo como se compreende o conceito de comunidade: novas formas de comunidade surgiram, o que tornou mais complexa nossa relação com as antigas formas. De fato, se focarmos diretamente os laços sociais e sistemas informais de troca de recursos, ao invés de focarmos as pessoas vivendo em vizinhanças e pequenas cidades, teremos uma imagem das relações interpessoais bem diferente daquela com a qual nos habitua- mos. Isso nos remete a uma transmutação do conceito de “comunidade” em “rede social”. Se solidariedade, vizinhança e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava definir uma comunidade, hoje eles são apenas alguns dentre os muitos padrões possíveis das redes sociais. Atualmente, o que os analistas estruturais procuram avaliar são as formas nas quais padrões estruturais alternativos afetam o fluxo de recursos entre os membros de uma rede social. Estamos diante de novas formas de associação, imersos numa complexidade chamada rede social, com muitas dimensões, e que mobiliza o fluxo de recursos entre inúmeros indivíduos distribuídos segundo padrões variáveis. (COSTA, Rogério). Por um novo o conceito de comunidade: redes sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.235-48, mar/ago 2005. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. (2004) Amor líquido: sobre a fragilidade das relações huma- nas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. GUIMARÃES, Nadya Araújo. (2006). Trajetórias inseguras, autonomização incerta: os jovens e o trabalho em mercados sob intensas transições ocupacionais in: CAMARANO, Ana Amélia. (org). Transição para a vida adulta ou vida adulta em transição? Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2006. p. 171-198. (url: http://www.ipea.gov.br). geografia 13 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 5MA REDE DE A¿»O PARA FORMA¿»O DE JOVENS ARTIGO & Maria do Carmo Brant de Carvalho* MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO é coordenadora Geral do Cenpec - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária e ex-professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP. alamos hoje, e muito, sobre parcerias na condução de pro- jetos sociais. Essa vocalização social em torno de termos como ação em rede, cooperação, articulação... expressa um valor sociopolítico na condução de ações públicas. Enfatizamos nesta revista uma formação de jovens tendo como cenários Cidade, Cultura e Tecnologia. Nessa perspectiva, a formação fomenta a inserção dos jovens em espaços e fatos desconhecidos da cida- de , propiciando a ampliação de repertórios culturais, o usufruto de direitos e o acesso a saberes e culturas em movimento nos cenários urbanos. Essa lógica programática só é exeqüível com o envolvi- mento de múltiplos parceiros comprometidos com a ofer- ta conjunta de oportunidades de aprendizagem que com- ponham com o tripé Cidade, Cultura e Tecnologia. Essas oportunidades estão espalhadas pela cidade, descentralizadas em agências governamentais, empresas públicas, empresas privadas, organizações da sociedade civil, instituições representantes do campo das artes, do mundo do trabalho e da produção de tecnologias. Assim, uma real oferta de formação para juventudes urbanas só é sustentável numa perspectiva de ação pú- blica em rede e na necessidade de legitimidade de su- porte institucional e político às ações de intervenção jun- to ao público juvenil. Mas, o que são redes? A rede sugere uma teia de vínculos, relações e ações en- tre indivíduos e organizações. As redes se tecem e se dis- solvem continuamente em todos os campos da vida so- 14 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 cietária. Elas estão presentes na vida cotidiana - nas re- lações de parentesco, nas relações de vizinhança, nas re- lações comunitárias -, no mundo dos negócios, na vida pública e se realimentam e se reconstroem internamen- te. As redes podem assumir características mais dura- douras ou efêmeras, vínculos mais densos ou mais tê- nues, simples ou complexos. No passado, o conceito de rede já era utilizado na ges- tão dos serviços sociais públicos. Acompanhava o mo- delo de gestão da época, ou seja, um modelo centraliza- do, setorial e caracterizado pela hierarquização e padro- nização na oferta de serviços. Falávamos em rede esco- lar, rede de unidades básicas de saúde, rede hospitalar, todas elas, no geral, subordinadas a uma organização– mãe. A rede era então percebida como uma cadeia de serviços similares tal qual na gestão empresarial. O termo rede não é novo, mas na vida contemporânea expressa um novo conceito. Esse novo conceito de rede usufruiu em sua formulação dos avanços tecnológicos e, ao mesmo tempo, pode ser expresso no campo legal, de- mandando intersetorialidade às políticas públicas. Os avanços tecnológicos, digitais e de linguagens multi- mídias agilizam e ampliam os fluxos de informação e comu- nicação entre seus integrantes. Tais ferramentas potenciali- zam e democratizam o universo das redes. Outra novidade é a mudança de perspectiva, antes uma estrutura hierárquica vertical, hoje uma estrutura flexível e horizontal; antes uma ligação entre iguais, hoje uma relação entre diferentes. Atualmente, a utilização do conceito de rede ajuda a caracterizar a sociedade contemporânea e os novos modelos de gestão dos negócios privados ou públicos, em escala local ou global. Para alguns estudiosos, a so- ciedade contemporânea conforma-se como sociedade em rede (Manuel Castells, 1998; Ruth Cardoso, 2001; G.Dupas, 2003). Como bem afirma Cardoso, não desapareceu a velha sociedade civil, mas tornou-se mais com- plexa a dinâmica de apresentação dos interesses coletivos. Essa complexidade decorre do fato de que a sociedade de hoje se apresenta tecida pela fragmentação de inte- resses e espaços de ação política. Não são mais as gran- des narrativas e utopias coletivas que agregam, mas sim os micro-discursos identitários. Daí a imagem de uma so- ciedade multifacetada. A sociedade se fragmentou em espaços de ação po- lítica que não mais se confundem com as formas tradi- cionais de representação, mas que podem formar redes que conectam, solidariamente, os vários núcleos que as formam. E não se pense que esses núcleos têm perspec- tivas e objetivos não-conflitivos. A grande característica dessas sociedades é a diversidade de pontos de vista que acolhem, e é legítima a manifestação dessas posi- ções” (Cardoso. 2001). Dupas (2003, p.17) nos lembra que (...) passamos de uma sociedade política a uma sociedade organizacional, entendida essa última como uma sociedade de gestão sistêmica e tecnocrática que pretende legitimar os direitos da pessoa.1 A fruição da ação em rede provoca uma retomada da totalidade. Isto é, exige apreender a realidade social e nela agir como um complexo, um todo que é tecido jun- to. Impõe uma perspectiva que integre, organize e tota- lize (Nogueira, 2001, p.35). Os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são constituídos por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles. (Santos, 2000, 73) Tecnologias, relações face a face e articulação. Agir em redes multi-institucionais altera radicalmente a arquitetura da gestão pública tradicional: • Derruba as fronteiras da setorialização da ação públi- ca e reforça uma nova tendência: a da emergência de programas-rede que agregam diversos serviços, proje- tos, sujeitos e organizações no âmbito do território. • Introduz nova cultura política no fazer social públi- co, que se caracteriza por: socializar o poder, nego- ciar, trabalhar com autonomias, flexibilizar, compa- tibilizar tempos heterogêneos e múltiplos dos atores e processos de ação. • Participação, articulação, integração, complementa- ridade, cooperação e parcerias são conceitos chaves na ação em rede. Por isso mesmo, aumenta a ênfase em processos de circulação e socialização de infor- mações e conhecimentos. • Exige a definição de eficazes fluxos de circulação no relacionamento de serviços e programas. • As novas demandas de gestão assentada em redes tam- bém alteram o modo de atuação dos profissionais da 15 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ação pública. Há novas habilidades e competências em discussão - competência comunicativa e relacional, com- petência articuladora - assentadas em um olhar multi- dimensional, multisetorial, transdisciplinar. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) cons- tituem-se em um elemento importante na circulação de informações e interatividade entre os sujeitos e institui- ções que integram as redes. Elas se agregam às relações face a face dos sujeitos, portanto não as substituem, mas as modificam. Antecedem, precedem, sucedem e man- tém as relações, criando memória e identidade. A articulação, outro elemento indispensável ao tra- balho social em rede, costura a oferta de oportunidades e de acesso a serviços e relações no território; conjuga e integra a população-alvo a uma cadeia de programas e serviços ligados entre si. Uma ação de formação com juventudes exige articu- lação e forte investimento na comunicação e planeja- mento de ações conjuntas, além de requerer um esfor- ço por parte de cada um dos parceiros em compartilhar princípios e objetivos comuns, agregando valor e agili- zando as diversas ações desenvolvidas num programa movido em rede. É uma ação que toma direção agrega- dora e retotalizante do social, para produzir desenvolvi- mento, pertencimento e emancipação. A ação interprogramas, intersetorial, interdisciplinar permite potencializar o agir porque retira cada ação do seu isolamento e assegura uma intervenção agregado- ra e includente. Para mobilizar e agir em parceria é necessário: • Reconhecer que a participação dos diversos atores é o que garante adesão, cor, identidade e legitimida- de às ações implementadas. • Favorecer e assegurar co-autoria com o poder públi- co e demais parceiros. • Proporcionar a continuidade das ações. A persistên- cia e o investimento técnico e político de longo prazo criam condições de sustentabilidade para as ações em parceria. Esse fator é talvez um dos maiores res- ponsáveis por uma ação compartilhada e exitosa nas intenções e utopias postas em movimento. • Promover contínua socialização de conhecimentos, sistematizando o conhecimento produzido e investin- do na estratégia de sua disseminação. Dessa forma, transforma a reflexão teórico-prática em ferramentas e metodologias que tenham sentido e significado na prática social. • Manter conduta institucional de mútua cooperação e partilhamento com outras organizações e redes de projetos. Deve-se investir na ação em parceria com organizações governamentais e não-governamen- tais, fundações empresariais e comunidades locais, na perspectiva de construir participação, mobilizar vontades, implementar pactos de complementarida- de entre atores sociais, organizações, projetos e ser- viços. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer o pa- pel regulador do Estado e fortalecer sua condição de intelligentsia do fazer social público. • Estabelecer parcerias entre público-privado. Para isso, exige-se, no mundo atual, reconceitualização, já que essa relação costuma vir contaminada pelo receitu- ário neoliberal e, em conseqüência, pode gerar des- confianças sobre seu possível efeito desresponsabi- lizador da ação do Estado. • Realizar projetos com parcerias externas. Porém, isso só ganha cor e identidade local, quando redesenha- dos com a participação de seus atores principais. A adoção de programas–rede, permitindo a cons- trução de lógicas combinatórias interpolíticas setoriais, programas e instituições de natureza diferenciada, fa- vorece ao grupo juvenil escolhas múltiplas e desenvol- vimento integral. Uma rede dispara outras redes. No programa Jovens Urbanos, parcerias iniciais para o conjunto do programa resultaram em novas parcerias na base. NOTAS 1 Dupas, em seu livro Tensões contemporâneas entre o público e o privado, acrescenta que “num mundo totalmente estruturado em redes (networks) pelas tecnologias da informação, a vida social contemporânea passa a ser composta por uma infinidade de encontros e conexões temporárias. O pro- jeto é a ocasião única e o pretexto da conexão; os indivíduos que não têm projetos e não exploram as conexões da rede estão ameaçados de exclusão permanente, já que a metáfora de rede torna-se progressivamente a nova representação da sociedade”. REFERÊNCIAS CARDOSO, Ruth. A construção de um novo diálogo. In Gestão de Projetos Sociais. São Paulo: AAPCS. 3a edição revisada. 2001 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede (A era da informação: economia, socie- dade e cultura; Volume 1, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2a. ed., 1999. DUPAS, Gilberto – Tensões contemporâneas entre o público e o privado – São Paulo: Paz e Terra, 2003 NOGUEIRA, Marco Aurélio. Em defesa da política. São Paulo: Editora Senac, 2001 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, Vol 1, 2000. 16 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 1a EDIÇÃO SÃO PAULO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens COOPERAÇÃO TÉCNICO FINANCEIRA ICE – Instituto de Cidadania Empresarial PARCERIAS INSTITUCIONAIS Secretaria Municipal da Assistência Social Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social e PRODESP IBEAC – Instituto Brasileiro de Estudos e Apoios Comunitários PARCERIAS TECNOLOGICAS Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária ONGS EXECUTORAS ZONA SUL ACB - Associação Beneficente Provisão Associação Comunitária Monte Azul Associação de Moradores Jd. Rosana Serviço Social Bom Jesus Turma de Touca ICE - Projeto Casulo ONGS EXECUTORAS ZONA NORTE Ação Comunitária Todos os Irmãos Assoc. de Moradores Vale Verde Assoc. Cultural e Desportiva Bandeirantes Creche Nova Esperança Amigos de Pianoro PARCERIAS DO PROGRAMA JOVENS URBANOS 480 480 2a EDIÇÃO SÃO PAULO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens PARCERIAS INSTITUCIONAIS Secretaria Municipal da Assistência Social Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social e PRODESP Secretaria Municipal do Trabalho PARCERIAS TECNOLOGICAS SABESP Séc. Municipal do Verde e do Meio Ambiente Escola da Cidade Tv Cultura Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária REDE DE APOIO Cursinho da Poli ONGS EXECUTORAS ZONA SUL ACB - Associação Beneficente Provisão Associação Comunitária Monte Azul Serviço Social Bom Jesus ICE - Projeto Casulo ONGS EXECUTORAS ZONA LESTE Ação Comunitária Todos os Irmãos Assoc. de Moradores Vale Verde Assoc. Cultural e Desportiva Bandeirantes Creche Nova Esperança Amigos de Pianoro 17 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 480 480 3a EDIÇÃO SÃO PAULO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens PARCERIAS INSTITUCIONAIS SEADS - Secretaria Estadual da Assistência e Desenvolvimento Social SMTrab - Secretaria Municipal do Trabalho da Cidade de São Paulo SME - Secretaria Municipal de Educação/ CEUs da Cidade de São Paulo Subprefeitura Guaianases Subprefeitura Capela do Socorro Instituto Sou da Paz PARCERIAS TECNOLOGICAS Instituto Tomie Ohtake Centro Universitário Maria Antônia/ USP Cidade Escola Aprendiz Fundação Padre Anchieta - Rede Cultura de Televisão Instituto Criar ISA - Instituto Socioambiental CPC - Centro de Preservação Cultural/ USP ONGS EXECUTORAS ZONA SUL Comunidade Nova Civilização (Comunidade Cidadã) Sociedade Comunitária do Jardim Monte Verde União dos Moradores da Comunidade Sete de Setembro Projeto de Vento em Popa ONGS EXECUTORAS ZONA LESTE Associação de Voluntários Integrados no Brasil (AVIB) Ação Social Comunitária do Lajeado Joilson de Jesus (Casa dos Meninos) Comunidade Kolping São Francisco de Guaianases Plugados na Educação ASSESSORES TECNOLOGICOS PROFISSIONAL e EXPERIMENTAÇÃO OFERECIDA Alexandre Perocca - JOVENS URBANOS TEM MODA Anderson Rei/ Guilherme - LAMBE LAMBE Carla Tennenbaum - ORA- OFICINA DE REVALORAÇÃO ARTÍSTICA DO GRAJAÚ Carolina Nakagawa - COMUNIQUE César Negro - NÓS NA CENA Clarice Clara - MÍDIA URBANA Conrado Augusto - GIRAMUNDO Diego Itu / Carlos Souza - AGRICULTURA URBANA Ivy Silva - VIVENCIAS SOCIOAMBIENTAIS José Machado - DESIGN MARCINEIRO Marisa Martins - RECREOTECA Nizinga - CAPOEIRA ANGOLA Paula Autran - LITERATURA EM AÇÃO Marcio greyk - MOVIMENTO URBANO Tomás - VIVENCIAS DE TRADIÇÕES PAULISTAS Waldir Hernandes - ESPAÇO URBANO Meta Ambiental - ÁGUA, LIXO E TECNOLOGIAS LIMPAS Novolhar - OFICINA DE VÍDEO Midiativa MOSTRA DE TV DE QUALIDADE PARA CRIANÇAS 1a EDIÇÃO RIO DE JANEIRO JOVENS PARTICIPANTES 480 jovens PARCERIAS EXECUTIVAS PCRJ-SMAS / RJ (Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro) FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz) Canal Futura PARCERIAS TECNOLOGICAS Secretaria Municipal de Esporte e Lazer – SMEL FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz) Canal Futura / Geração Futura Canal Futura / Nós do Morro TVE / Rádio MEC CIEZO - Conselho das Instituições de Ensino Superior da Zona Oeste Observatório de Favelas Spectaculu Kabum CECIP (Centro de Criação de Imagem Popular) REDE DE APOIO Secretaria Municipal de Educação Secretaria Estadual de Educação UFRJ – PACC ESPRO ONGS EXECUTORAS ZONA NORTE UADEMA Rede CCAP Ação Alternativa Ass. Família Saúde e Cidadania ONGS EXECUTORAS ZONA OESTE CAMPO CIEZO ACAPS São Cipriano A partir da constatação de que, na comunidade do Real Parque, existiam poucas áreas de lazer e convívio nas quais os moradores pudessem se encontrar e conver- sar, os participantes do Projeto Jovens Urbanos elabo- raram a proposta Recanto Verde Real Panô. Ela foi de- senvolvida na primeira edição do Projeto, junto com a ONG Casulo Os jovens queriam “transformar uma área subutilizada, que abriga- va insetos, emanava mau cheiro, sem calçamento e iluminação, em uma porta de entrada para a comunidade, um espaço bem-cuidado, com área verde e uma passagem segura e iluminada.” Justificativa produzida pelos jovens do Projeto Recanto Verde Real Panô. A área estava localizada entre o ponto de ônibus e a rua principal do Real Parque e era motivo de insistentes contatos com o poder local para melhorar a iluminação e recolher o lixo. Essa construção só será possível com envolvimento de todos. Con- tamos com a nossa força para envolver a comunidade em mutirões de limpeza e construção. Acreditamos que assim a comunidade possa entusiasmar-se e cuidar do local onde vive, contribuindo para uma qualidade de vida melhor. O que todos merecem! Justificativa produzida pelos jovens do Projeto Recanto Verde Real Panô. Apresentada a proposta de revitalização nas reuniões da Rede Real Panô, instituição que congrega diversas entidades da região, conseguiu-se apoio direto da orga- nização local SOS Juventude, de lideranças locais e en- volvimento de diversos moradores nos mutirões de lim- peza, plantação de mudas e pintura de grafites no lo- cal escolhido. Além disso, foram articulados contatos com a Sub- prefeitura do Butantã para a aprovação do projeto ar- quitetônico de intervenção espacial, idealizado pelos jovens e desenhado pela arquiteta Bárbara Toaliar, as- sessora do projeto. Também buscou-se apoio da Leroy Merlin, Pão de Açúcar e Decatlon, todas empresas fronteiriças à comu- nidade. Orientados pela elaboração do projeto arquite- tônico, contataram a Cooperativa Recicla Real1 , para a realização de pesquisa de materiais a serem reutiliza- dos no espaço. Mobilizando a comunidade e organizações locais, a re- gião ganhou uma praça, um espaço de encontro, logo na principal entrada do Real Parque e Jardim Panorama. Alterar o uso dessa área significou não apenas deixar de jogar lixo no local mas também transformar um espa- ço informal em uma passagem que até então não havia sofrido nenhuma ação, pública ou privada, de manuten- ção ou cuidado. NOTA 1 Cooperativa local de reciclagem e catadores. RELATO DE PRÁTICA E surgiu uma praça no Recanto Verde Real Panô Programa Jovens Urbanos 18 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 apoio Leroy, Casulo, Objetivo, D.P.R.N, Visconde, Decathlon, Voluntários, Recicla Real, Subprefeitura, Pão de Açúcar, SOS Juventude, Conselho Tutelar, União de Moradores, Rede Real Panorama, Q.D. Jardim Panorama, Recanto da Alegria, Centro Comunitário, C.J. Ice, E.M.E.I, Cenpec, Habitação, C.J. Panorama, Igreja N.S.D.P, Posto de Saúde, Associação Pankararu. público-alvo Crianças, Jovens, Adultos, Idosos (Real Parque, Jardim Panorama) comunidade Dora, Boca, Rosy, Jasir, Body, Guiné, Duda, Vera, Regina, Nívea, Manoel, Marcos, Careta, Bahia, Mandão, Zequinha, Cigano-Cícero, D.B. Voluntários, Padre da Igreja Real, Pitu, Rosa, Paulo, Bethy, Marilu, Mônica, Labamba,Verônica, Paulo Adan, São Paulino, Marcos (Panorama). Cadernos Cenpec - Que importância tem a articulação para o Programa? Wagner dos Santos - A articulação é um componen- te muito forte do Programa Jovens Urbanos. Nosso foco são as relações institucionais, e sabemos que a articu- lação não é apenas algo técnico. embora a gente tenha isso como base. A articulação é uma atitude, é uma ação eminentemente política e requer um olhar mais amplo sobre o campo das relações. Articulação exige planeja- mento, presença, amarração, negociação e registro do processo, para não perder o sentido e saber onde se quer chegar. CC - Que papel têm os parceiros1 nesse Programa? WS - Nossos parceiros ajudam a ampliar o campo de re- lações para os jovens e a apresentar a eles outras pos- sibilidades. Na visita à TV Cultura, em São Paulo, por exemplo, os jovens conheceram o espaço e puderam participar de ex- perimentações, vivenciaram desde a montagem até a edi- ção final de um programa televisivo. A partir dessa arti- culação, abriram-se novas perspectivas de participação para os jovens. No Instituto Criar, outra parceria, patrocinamos a for- mação oferecida aos jovens na área de cinema e TV. Na primeira edição do Projeto Jovens Urbanos, tive- mos também uma parceria com a Embrapa para atender a uma reivindicação sobre hortas comunitárias. Trou- xemos a Escola da Cidade – uma escola de arquitetura como parceira – em razão da necessidade de preparar os jovens para as intervenções urbanas, que precisavam ser qualificadas. Por isso buscou-se também uma nova parceria com a Secretaria do Verde, do município de São Paulo, para o desenvolvimento de atividades de arbori- zação e paisagismo. O programa também contribuiu para a ação social dos parceiros: a TV Cultura começou a atuar com favelas no ENTREVISTA 1 Esforço de articulação e parceria Uma conversa com Wagner dos Santos, coordenador do Programa Jovens Urbanos. Jaguaré, levando em conta o que conseguimos transmi- tir sobre os Jovens Urbanos. CC - E as parcerias na área pública? WS - Tivemos duas parcerias fundamentais: com a Secre- taria de Assistência Social do Estado, que ofereceu uma bolsa de R$ 60,00 para cada jovem, na primeira edição do programa. Na segunda edição, ampliamos o leque de alianças com o Poder Público, com uma bolsa da Secretaria do Tra- balho do Município de R$ 140,00. Somando-se os dois be- nefícios, cada jovem pôde receber R$ 200,00. O Setor Público tem sido muito receptivo ao Progra- ma, mas as Secretarias têm restrições burocráticas e po- líticas. Há alterações no comando que resultam em mu- dança de equipes inteiras, em que corremos o risco de voltar à estaca zero. Mas isso não nos desanima, vamos em frente. Outra dificuldade é trazer o Poder Público para uma discussão de avaliação e conseguir sustentar o programa num processo de monitoramento contínuo. CC - O que as parcerias ensinaram? WS - Aprendemos que parceria exige processo e tempo. Não é do dia pra noite que se consegue. O sucesso das parcerias do Programa Jovens Urbanos exigiu um tempo de construção da legitimidade e de estabelecimento da confiança mútua entre os parceiros. A primeira edição foi muito mais difícil do que a segunda porque, no início, é preciso ganhar confiabilidade. Tínhamos que provar que nós conseguíamos realizar o Programa. Descobrimos também, como conseqüência de nos- sa “trama de parcerias”, que o jovem, muitas vezes, não agüenta ficar num mesmo programa por 16 meses para cumprir o trajeto que propomos. Essa ampliação de contatos diversos permitiu cruzar um novo conceito – a idéia de projetos-rede, programas- 20 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 rede. Não são mais apenas redes de parceiros, mas re- des de programas também. Significa dar condições para que o jovem possa sair quando seus interesses vão além das oportunidades oferecidas pelo Programa. Pode-se encaminhá-lo para outro programa, garantin- do a continuidade de sua formação. Isso exige uma aber- tura e uma flexibilidade muito grande de quem está ge- renciando o projeto. É preciso pensar que o projeto não é apenas seu e que seu projeto não irá perder a identidade se os recursos forem repassados para outros parceiros. CC - Como é a negociação com os parceiros? WS - Há um “núcleo nervoso” do programa – aquilo que a gente não negocia: a idéia de circulação na cidade e de produção com os jovens. Outros aspectos são nego- ciados com cada parceiro dentro da sua especificidade. Por exemplo, a Escola da Cidade tem um potencial de dar base técnica para a intervenção urbana e pode dis- cutir com os jovens a questão do urbanismo, da cidade, da circulação. Alguns parceiros são mais reticentes na negociação, e essa é uma arte que estamos aprendendo sempre, pois é preciso saber negociar sem abrir mão dos seus propó- sitos principais. Tanto o Cenpec quanto a Fundação Itaú Social estão abertos a novas possibilidades se as bases do programa puderem ser garantidas. Há problemas que são comuns a todos os parceiros e a discussão coletiva facilita a busca de soluções. O Pro- grama investe na criação de espaços de discussão sobre questões importantes da juventude. Nós fizemos uma pra- ça e um show no Morro do Piolho em parceria com a sub- prefeitura. Iluminação, banco, árvores... só foram possí- veis por causa da parceria com a subprefeitura. A praça tem um sentido fortíssimo de convivência, de redução da violência, de cuidado com o bem público. CC - Quais foram os maiores desafios para fazer a arti- culação? WS - O grande desafio é trabalhar com os parceiros pú- blicos, porque eles têm uma estrutura tão engessada 21 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 que construir uma agenda comum exige muito esforço. Outro desafio é a administração da ampliação do núme- ro de parceiros. Nós entendemos que não dá para contemplar todos os jovens numa única parceria. O ideal é ampliar ao má- ximo o número de parcerias, o que possibilita dar aces- so a um número maior de recursos em termos de tecno- logias ou serviços. Essa diversidade ajuda nas escolhas de projetos no futuro. Para facilitar essa interação pre- cisamos ampliar a comunicação, mas ainda estamos to- dos aprendendo a nos comunicar melhor. O campo da articulação de parcerias não é positivo em todos os casos. Às vezes, há muito discurso e pouca efetivação. Por isso, para colocar o jovem em movimen- to na parceria é preciso ter certeza de que o acordo vai se concretizar. CC - Como é a relação com as ONGs? WS - Nós fazemos uma articulação forte com as ONGs, com um termo de cooperação que respalda o trabalho con- junto. Esse acordo possibilita definir responsabilidades para que não haja dúvida sobre o que cada um pode fazer e, a partir daí, poder discutir resultados e metas. As ONGs que são executoras do Programa participam do planejamento da ação com os jovens. Seu corpo téc- nico se encarrega de mobilizar os jovens e de oferecer as condições para que participem ativamente do Programa. Mas essas organizações também têm que conquistar um campo de articulação, e essa é uma estratégia que o Pro- grama Jovens Urbanos ajuda a fomentar. Na capacitação, as ONGs são estimuladas a operar as articulações no local, pois em geral sentimos que elas ain- da não avançaram na construção de uma rede local que dê sustentação aos projetos sociais. Cada organização está em um estágio diferente e é preciso ter flexibilidade para aceitar o parceiro com seus avanços e dificuldades. Tudo tem que ser negociado cla- ramente, com transparência. O conselho de acompanha- mento é um grande momento para dar segurança aos par- ceiros, é onde eles se sentem protagonistas. Esses mo- mentos são importantes, mas a articulação precisa ser continuamente alimentada para ganhar densidade e sus- tentação ao longo do processo. CC - Que outras articulações o Programa desenvolveu? WS – Há um campo de articulação que o Programa pro- moveu também e que tem a ver com uma não-institucio- nalidade, que é a articulação nessas comunidades onde ele acontece, com as lideranças locais, com os próprios jovens. Há ainda os pequenos comerciantes locais, que apoiaram a ação dos jovens. Essas são ações prepara- tórias, mas se não se promove essa articulação o tempo todo, o programa fica mais frágil. Investimos muito na democratização das informações com todos os dirigentes de ONGs. O planejamento é um dos temas constantes de nossas conversas com eles. O resultado dessa articulação é que as organizações que se localizavam em ruas próximas no mesmo território e não se conheciam passaram a se conhecer. CC - Que recado você daria para quem pretende trabalhar com parcerias e precisará fazer muitas articulações? WS- A ação de articulação precisa estar planejada para produzir algum resultado concreto – se possível, uma in- tervenção conjunta. Sem isso, os participantes perdem a motivação para continuar juntos. Articular não é fazer média, é estreitar relações com o sentido de complementaridade, com compromisso éti- co. Além disso, é preciso que se tenha também o com- promisso com critérios técnicos mais claros, socializa- dos e transparentes. Trazer o poder público para compor uma parceria com diversas organizações é um desafio que precisa ser en- frentado, pois a presença do Estado é fundamental para tornar a ação mais legítima e, se possível, institucionali- zada como política pública. Nota 1 O artigo REDES (p.13 ) contém o conjunto de todas as parcerias das 4 edições do PJU. 4RAZER O PODER PÒBLICO PARA COMPOR UMA PARCERIA COM DIVERSAS ORGANIZA¿ÍES Á UM DESAÙO QUE PRECISA SER ENFRENTADO POIS A PRESEN¿A DO %STADO Á FUNDAMENTAL PARA TORNAR A A¿»O MAIS LEGÅTIMA E SE POSSÅVEL INSTITUCIONALIZADA COMO POLÅTICA PÒBLICA 22 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 O Projeto SOHAB, realizado na primeira edição do Pro- grama Jovens Urbanos, pretendeu diminuir a conta de energia dos moradores da Cohab Adventista, localizada no bairro Capão Redondo. Pesquisas indicam que o Aquecedor Solar de Baixo Custo econo- miza até 25% da energia que o chuveiro elétrico consome – sendo o chuveiro elétrico o utensílio doméstico que mais gasta energia, perdendo apenas para o ferro elétrico. Entendemos ser uma alter- nativa viável para a nossa comunidade! Justificativa elaborada pelos jovens do Projeto SOHAB Durante as explorações e experimentações mobiliza- das pelo PJU, os jovens, acompanhados pela ONG Servi- ço Social Bom Jesus, fizeram uma oficina na qual conhe- ceram a tecnologia e o processo de produção do aque- cedor solar de baixo custo – ASBC2 . O Aquecedor Solar de Baixo Custo (ASBC) vai ajudar a disseminar o conhecimento de uma das tecnologias solares para a Cohab, levando em conta que o petróleo já foi muito usado para gerar energia elétrica sempre poluindo. O aquecedor solar de baixo custo não polui, não faz barulho e a fonte de energia é gratuita e os equipamentos usados duram muitos anos e são facilmente encontrados no ramo da construção civil. Colaboram ainda para evitar inundações causadas pelas usinas hidroelétricas na sua construção. Justificativa elaborada pelos jovens do Projeto SOHAB Inicialmente, os jovens planejavam alcançar oito resi- dências como efeito demonstrativo das economias propi- ciadas pelo aquecedor. Para isso, articularam com a Sub- prefeitura do Campo Limpo o acompanhamento da expe- riência pela COHAB3 , visando estender o uso do aquece- dor a todo o condomínio. RELATO DE PRÁTICA Projeto SOHAB1 : um aquecedor solar de baixo custo. Programa Jovens Urbanos O projeto SOHAB mobilizou moradores para o uso de tecnologias benéficas ao meio ambiente, promoven- do economia, com tecnologia acessível e a baixo custo. Nas palavras dos próprios jovens: queremos um projeto diferenciado que busque a satisfação da comunidade, transformando a visão do bairro e do meio ambiente que os moradores têm. Este projeto instalou energia solar em 3 residências, depois de discutir com as famílias o valor pago de ener- gia elétrica e a redução no uso de energia solar. NOTAS 1 O nome do projeto foi definido em alusão a COHAB, como ficou conhecido o Conjunto Habitacional Adventista, primeiro conjunto habitacional público vertical da cidade. SOHAB significa a intenção dos jovens de recriar o bairro, conhecido como COHAB. 2 A ONG Sociedade do Sol, sediada no CIETEC/IPEM da USP, foi responsável pela oficina, assessorou o projeto e acompanhou a instalação dos aquecedores. 3 Empresa pública ligada à Secretaria da Habitação da PMSP. 23 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 24 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 25 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ste texto expõe recortes analíticos de formas de vida contemporânea e destaca, em espe- cial, forças sociais que atuam nos modos de vida de juventudes urbanas. Apontamos dois processos que marcam, em grau dominante, a constituição das sub- jetividades juvenis: a biossociabilidade e a intensificação da circulação de informação e bens tecnológicos nas cidades. As questões e problematizações apresenta- das no texto resultam de fundamental impor- tância para proposição de políticas de forma- ção juvenis que se pretendem afinadas e com- prometidas com as juventudes deste tempo. * Aline Andrea é pedagoga (PUC–SP) e integrante do Núcleo de Pesquisa do Programa Jovens Urbanos – cenpC . * isuMacinôM é pedagoga (PUC-SP), mestre em Filosofia da Educação (USP) e doutora em Psicologia da Educação (USP). Atuou como profes- sora universitária. É supervisora escolar da rede municipal de ensino de São Paulo e assessora do Programa Jovens Urbanos – cenpC . % Aline Andrade Mônica Mussi * 25 *UVENTUDES CONTEMPORoNEAS artigo 6IDA CONTEMPORoNEA ALGUNS PONTOS DE PARTIDA PARA PENSAR AS JUVENTUDES Se tomarmos como referência modos de funcionamen- to das sociedades do século 19 e de pelo menos da pri- meira metade do século 20, verificaremos que novas con- figurações de vida estão em ação nas sociedades con- temporâneas, algumas delas bem distintas das que vi- goravam anteriormente: • abandono de explicações universais; • novas práticas de trabalho; • adoção de estratégias pluralistas para a abordagem do desenvolvimento urbano; • velocidade e efemeridade intensas nas novas formas de experiências sociais e afetivas; • parafernália de ícones, informações, códigos e sen- tidos; • valorização do localismo; • capitalismo pós-industrial; • avanços tecnológicos nas áreas de informações e co- municações; • partidos políticos de massas substituídos por movi- mentos sociais baseados em raça, localização, sexu- alidade, grupos ecológicos, idade... As configurações mencionadas anteriormente são apenas algumas das características que persistem nas vidas atuais. Aproximar-se de algumas dessas configu- rações é uma das portas de entrada para acessar os con- textos em que as juventudes movimentam seus cotidia- nos. Habitantes especiais do presente, as juventudes não escapam de testemunhar e experimentar os efeitos das mudanças atuais. Os autores1 que se dedicam a analisar as práticas hu- manas contemporâneas compartilham que há em curso na vida atual uma notável e rápida mutação dos valores, Artigo Juventudes Contemporâneas 27 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 crenças, idéias, hábitos, formas de poder, enfim, modos de organização da vida que orientavam o período prece- dente, ou seja, o período moderno. Complexidade e velocidade: a vida em mutação Interessa destacar para os contornos iniciais do pre- sente documento três importantes idéias que acompa- nham as análises das transformações vividas na con- temporaneidade: • defesa do pluralismo analítico; • descontinuidade das tradições; • rejeição das grandes narrativas. A defesa do pluralismo analítico é uma idéia que apaga qualquer linha divisória entre os diferentes rei- nos da sociedade – político, econômico, social e cultu- ral. De acordo com ela, não seria mais possível analisar, ou buscar compreender, as sociedades contemporâneas – suas novas configurações – pela via de alguma força controladora isolada ou totalizante. Devido ao pluralismo imanente na formação dos mo- dos de vida, a vida concreta só poderia ser acessada por fragmentos, visto que processos múltiplos podem atuar na constituição de determinado fenômeno ou situação. Essa idéia sem dúvida ganha relevância em estudos que se dedicam a configurar os movimentos e vidas das juventudes atuais. Diagnósticos e análises da vida juve- nil exigem o abandono de explicativas sustentadas em forças sociais unilaterais. Nessa perspectiva, não seria mais tão tranqüilo expli- car a violência que atinge juventudes na atualidade uni- camente pela via cultural – por exemplo, ausência de es- colarização – ou pela via econômica – por exemplo, con- dição da pobreza. Com certeza a condição de pobreza e a ausência de es- colarização combinadas são forças vitais para compreen- der formas de violência que atingem jovens ou as violências entre jovens, porém não são suficientes para expressar a problemática juvenil nas suas tão diversas dimensões. Assim, considerar outras linhas de forças atuantes em situações de violência juvenis pode dar visibilidade a campos de forças plurais e por vezes insuspeitos que redesenham as violências a cada dia. Outra idéia em destaque é a descontinuidade das tradições. A explosão de informações e das comunica- ções mundiais dispara processos de misturas e combi- nações entre modos de vida, com base no alto e rápido fluxo de bens simbólicos e produtos por todos os luga- res-relações do planeta. O fluxo de informações, de bens culturais e de signi- ficados nas sociedades atuais debilita o anseio por iden- tidades nacionais e a própria noção de identidade indi- vidual. Alimentados por fontes múltiplas, os indivíduos tornam-se tão fluidos e mutáveis quanto os produtos sim- bólicos e materiais que atravessam suas vidas. Olhando por essa perspectiva, o mundo no qual as juventudes tentam inscrever-se e pelo qual procuram se orientar é vivido como em constante movimento. Um mundo onde não estão mais disponíveis valores fixos, ritos de passagem predeterminados, futuros previsíveis, ao menos como idéias que antes eram confiadas como verdades a toda uma geração. Na atualidade, múltiplas referências podem coabi- tar uma única vida, exigindo uma determinação colos- sal dos indivíduos para o empenho em idéias-projetos no decorrer da vida. Nesse contexto de descentramento dos sujeitos, cabe a pergunta: • Como as juventudes podem vincular-se aos aconte- cimentos ordinários da vida e neles investir sem ter de recorrer a identidades que durem para sempre? .A ATUALIDADE A COMPOSI¿»O DA VIDA TORNOU SE EXTREMAMENTE COMPLEXA .ESSE SENTIDO QUALQUER ESFOR¿O DE APRISIONAR A VIDA CONCRETA NUMA EXPLICATIVA ÒNICA E COERENTE SER1 CONSIDERADO REDUCIONISTA E SIMPLIÙCATËRIO 27 28 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Uma terceira idéia em ação na atualidade é a rejei- ção das grandes narrativas que até há poucas décadas informavam as políticas do mundo ocidental. De acordo com Kumar (1997), as grandes narrativas deram (...) aos modernos a confiança de que poderiam igualar e mesmo ultrapassar as realizações dos antigos. Dessa confiança nasceram os grandes temas e teorias de progresso, razão, revolução e eman- cipação. Em uma forma ou outra, disfarçada ou explicitamente, elas lastrearam a maioria das políticas do mundo ocidental desde fins do século XVIII até meados do século XX. (p. 145). Efeitos A recente perda de credibilidade nas grandes narrativas não apenas desmobiliza a confiança nas políticas públi- cas desenvolvidas nos sistemas democráticos como tam- bém parece deixar as juventudes atuais desprovidas de utopias e ideologias às quais queiram aderir. Por outra perspectiva, a ausência de grandes narrati- vas faz proliferar na atualidade narrativas de grupos mi- noritários, como de mulheres, de homossexuais, de eco- logistas, de moradores de bairro... de grupos musicais etc., abrindo a vida social, como antes nunca visto, a um caleidoscópio de vozes. O esmorecimento das grandes narrativas, segundo al- guns analistas sociais, também modifica o papel dos inte- lectuais na vida social. Citando Kumar (1997) os intelectu- ais devem utilizar “[...] suas habilidades para ajudar comu- nicadade a se entenderem reciprocamente. (p. 151)”. Percorrer as transformações que atravessam a vida contemporânea parece ser fundamental para reconhe- cer em quais contextos culturais, sociais e econômicos as juventudes do presente se movimentam, constituem- se subjetivamente e organizam suas vidas e desempe- nham expressividades. De acordo com Bauman (2004) as gerações atuais, ra- pazes e moças nascidos a partir da década de 70, experi- mentam situações e recebem orientações desconhecidas das gerações anteriores. A baixa expectativa de trabalho entre os jovens é uma dessas situações, acompanhada pela idéia-pacote de desemprego. Nesse universo, diz o autor, (...) uma das recomendações oferecidas com mais freqüência aos jovens é serem flexíveis e não muito seletivos, não esperarem demais de seus empregos, aceitá-los como são, sem fazer muitas perguntas, e tratá-los como uma oportunidade a ser usufruída de imediato, enquanto dure (...) Jurandir Freire Costa, médico psiquiatra e psicana- lista brasileiro, num texto intitulado Perspectivas da ju- ventude na sociedade de mercado, publicado em 2004, referenda as análises de Bauman ao marcar as atitudes e disposições psicológicas requeridas dos indivíduos na atualidade. Diz o autor: As disposições e atitudes que contribuem para a reprodução da sociedade de mercado atual são, em linhas gerais, as seguintes: o sujeito 1) deve se deixar seduzir pela propaganda de mercado- rias; 2) deve possuir uma identidade flexível, compatível com as novas relações de trabalho; 3) deve estar convertido à moral das sensações, ou seja, ter pretensões e satisfações a curto prazo em detrimento de satisfações que exigem projetos de longo alcance. (p. 76 – grifos nossos) Vinculada ao que Freire Costa chama de moral das sensações, culturalmente a experiência da incerteza pa- rece arrebatar as vidas juvenis atuais. A idéia de satis- fação de curto prazo ramifica-se para vários setores da vida social, instalando nas juventudes identidades que assumem vivências fugazes. Desestimulados a projetar ações de longo prazo, jo- vens movimentam suas vidas num horizonte de incerte- zas quanto às ações do presente e às do porvir. Perante estruturas sociais cada vez mais fluidas, os jovens sentem a sua vida marcada por crescentes inconstâncias, flutuações, des- continuidades, reversibilidades, movimentos autênticos de vaivém: saem da casa dos pais para um dia qualquer voltarem; abandonam os estudos para os retomar tempo depois; encontram um emprego N»O SERIA MAIS T»O TRANQÔILO EXPLICAR A VIOLÂNCIA QUE ATINGE JUVENTUDES NA ATUALIDADE UNICAMENTE PELA VIA CULTURAL POR EXEMPLO AUSÂNCIA DE ESCOLARIZA¿»O OU PELA VIA ECONÌMICA POR EXEMPLO CONDI¿»O DA POBREZA 28 29 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 e em qualquer momento se vêem sem ele; suas paixões são como “vôos de borboleta”, sem pouso certo; casam-se, não é certo que seja para toda a vida... (Machado Pais, 2006, p. 8). Incerteza também acirra o sentimento de medo. No artigo Os jovens de hoje (2006), Regina Novaes2 , ao citar pesquisa realizada sobre os medos que acompanham a juventude brasileira atual, declara que o medo do futu- ro aparece entre os destacados pelos pesquisados. De acordo com a autora, “o medo do futuro é quase um si- nônimo do medo de ‘sobrar’ e está muito relacionado à inserção no mundo do trabalho”. Pode também estar implicado com as incertezas que rondam as novas gerações: (...) ter estudo não garante que se vá trabalhar, e ter trabalhado não garante que se continuará trabalhando. Enquanto a geração anterior pensava “eu vou me aposentar assim ou assado”, esta geração diz palavras vagas sobre o futuro (p. 110). A disseminação acelerada de informações de todas as ordens e procedências no cotidiano quebra com o prógnostico de uma vida pautada em saberes seguros, duradouros e unitários. Atua igualmente na constituição de sujeitos de con- sumo – indivíduos são convocados diariamente a expe- rimentar novos produtos, cujas informações remetem a alguma forma de bem-estar ou performance social posi- tivo, mesmo que de durabilidade precária ou fugaz. Vivemos na atualidade numa sociedade de consu- mo, ao contrário da sociedade de produtores que vigo- rava anteriormente. Bauman afirma que a posição de consumidores, na qual são instalados os indivíduos, não só vincula o con- sumo ao ideal de uma vida bem-sucedida como também, do ponto de vista da vida social, seu exercício compulsi- vo desencoraja a esperança em ações coletivas. Para o autor, o consumo é uma atividade inteiramen- te individual, a qual coloca os indivíduos em campos 29 30 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 opostos, em que freqüentemente se atacam. Sob outra perspectiva, o autor irá relacionar o domínio do merca- do consumidor e o aumento do setor improdutivo da po- pulação ao aumento da criminalidade e o conseqüente crescimento da população carcerária. A presença de informações variadas no cotidiano das vidas atuais pode desencadear uma nova frente para as juventudes: a experiência com o múltiplo. A experiên- cia com a multiplicidade de informações e saberes que fluem nos circuitos sociais pode concorrer para intensi- ficar o sentido de diferença no universo juvenil, dispon- do os jovens com maior freqüência ao outro, de modo a se verem convocados a produzir novas situações de al- teridades em suas vidas. A experiência com o múltiplo também pode atuar como uma blindagem, detendo tipos de forças que pre- tendem fixar subjetividades padrões nas existências, as quais no geral inviabilizam a emergência de singularida- des e constrangem atos de criação. Situações na contemporaneidade devem ser anali- sadas por um polígono de inteligibilidade, cujo princi- pal crivo talvez seja a questão de como está funcionan- do tal acontecimento na vida das pessoas – que efeitos de expansão ou retração propõem, em última instância, para as vidas atuais. 0OR OUTRA VIA ANALÅTICA PODEMOS RELACIONAR A EXPERIÂNCIA ECONÌMICA DO DESEMPREGO E A EXPERIÂNCIA CULTURAL DA INCERTEZA ̧ FORMA¿»O DE NOVAS FOR¿AS NA ORGANIZA¿»O DO TRABALHOE ̧ ACELERADA E DIVERSIÙCADA PRODU¿»O E CIRCULA¿»O DE CONHECIMENTOS NO MUNDO CONTEMPORoNEO 30 31 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Selecionamos algumas linhas de transformações culturais, sociais e econômicas que afetam mais inci- sivamente modos de vida e performances juvenis atu- ais, com vistas a delimitar algumas das condições nas quais as juventudes das cidades se movem e desenvol- vem suas trajetórias. ! EXPERIÂNCIA COM O MÒLTIPLO TAMBÁM PODE ATUAR COMO UMA BLINDAGEM DETENDO TIPOS DE FOR¿AS QUE PRETENDEM ÙXAR SUBJETIVIDADES PADRÍES NAS EXISTÂNCIAS AS QUAIS NO GERAL INVIABILIZAM A EMERGÂNCIA DE SINGULARIDADES E CONSTRANGEM ATOS DE CRIA¿»O 32 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 .OVAS FORMAS JUVENIS DE SOCIABILIDADE BIOSSOCIABILIDADES No artigo “Das utopias sociais às utopias corporais” Francisco Ortega3 analisa as novas formas de sociabili- dades juvenis, apontando que a maneira dominante de as juventudes constituírem relações sociais no presente são aquelas organizadas em torno de ão aquelas organizadas em torno de práticas ou atribu ticas ou atribu- tos corporais. O corpo, na atualidade, ganha uma im o, na atualidade, ganha uma importância exa ncia exa- gerada e são multiplicadas as exigências que cada indiví- duo tem em relação a si mesmo: desem uo tem em relação a si mesmo: desempenho físico, cu sico, cui- dados estéticos, personalização do corpo, modificações corporais passam a ocu assam a ocupar o universo ar o universo das preocupações, necessidades e empenhos juvenis, afastando-os, como sublinha o título do artigo em tela, de desejos e motiva- ções coletivas. A essa forma de socialização em que o corpo ocupa lu- gar de destaque, dá-se o nome de biossociabilidade. Tra- ta-se de uma forma de socialização em que os vínculos são estabelecidos tendo como critério seletivo algum de s - sempenho, mérito ou atributo corporal apresentado por s cada indiv ada indivíduo como duo como passagem ou ingresso assagem ou ingresso para tipos de pertencimento grupal. Diz Ortega (2006), (...) a biossociabilidade é uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos se- gundo critério de agrupamento tradicional – raça, classe, estamento, orientação política –, mas segundo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas, longevidade etc. (p. 43). Os processos de biossociabilidade constituem-se e são constitu onstituídos por ideais e ações sobre o cor or ideais e ações sobre o corpo, almejados e o, almejados e exercita xercitados respectivamente pelos jovens os respectivamente pelos jovens de varia e variadas ma- neiras. Tais eiras. Tais processos adquirem es rocessos adquirem especificidades de acor ecificidades de acor- do com as posições socioeconômicas e culturais em que se situam e se movimentam as juventudes. Entre esses ideais e ações, dois assumem forte apelo no conjunto o conjunto da população juvenil na atuali ulação juvenil na atualidade. O primeiro deles seria o ideal de eu centrado na per primeiro deles seria o ideal de eu centrado na per- formance e/ou prazer corporal. 32 Artigo Juventudes Contemporâneas 33 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 O valor atribuído às sensações físicas e a atributos cor- porais é hiperdimensionado na vida atual, conduzindo jo- vens a apoiarem-se nesses ideais para constituírem suas subjetividades e qualificarem identidades pessoais. Demonstração de força física, experiências com drogas, desempenho sexual, melhoria da aparência, boa forma fí- sica, habilidades motoras podem expressar performances e vias de prazeres corporais almejados e admirados por jovens nos dias de hoje, em contraposição a prazeres e performances requeridos em outros tempos. Freire Costa, no artigo “Perspectivas da juventude na sociedade de mercado” (2004, p. 81) diz: (...) hoje procuramos os prazeres sensoriais como há dois ou três séculos perseguíamos os prazeres sentimentais do romantismo e da vida familiar; os prazeres do reconhecimento pela operosidade e pela honestidade do trabalho; os prazeres da admiração pelos grandes feitos políticos e militares; os prazeres da alma no exercício das virtudes religiosas etc. O segundo ideal-ação mobilizado nas juventudes atuais pode ser sintetizado na associação entre a ideolo- gia do corpo perfeito e a austeridade corporal. A busca de um modelo ideal de corpo age na deter- minação de esforços, conduzindo jovens a ações como dietas, malhações intermináveis, uso contínuo de fárma- cos etc. Essa busca também ocupa espaço privilegiado no universo de conversação entre jovens, principalmen- te em jovens-mulheres que, por algum atributo, se vêem aproximadas de padrões de beleza femininos expostos pelas mídias. O ideal do corpo perfeito pode agir de forma tão radi- cal sobre o universo de atenção e preocupação juvenis que pode se tornar fonte privilegiada para fornecimento de critérios de avaliação de si e do outro, promovendo, muitas vezes, o descarte ou desmerecimento de quais- quer outros atributos que não combinem com as ideali- zações corporais. Ainda, como nos informa Ortega, a supremacia do cor- po perfeito pode desencadear uma ressignificação de ou- tros tipos de atividades desempenhadas pelos jovens. Assim é que atividades lúdicas, religiosas, esportivas, se- xuais são transmutadas em práticas de perda de peso, práticas de saúde, práticas que auxiliam nas privações alimentares, práticas de exposição etc. Essa nova configuração de relações baseadas em inú- meras exigências feitas ao corpo encontra suas bases de formação numa nova ordem de poder-saber em ação na atualidade, surgida a partir da interação do capital com as biotecnologias e as tecnologias de comunicação4 . Exercitados pela população sob variadas formas e pe- culiaridades, o ideal de corpo perfeito e a busca de per- formances corporais admiradas socialmente não cessam de produzir seus efeitos. O lugar da biossociabilidade Destacamos os efeitos que nos parecem essenciais para acessar a complexidade em que se situa a biossociabilida- de no circuito das relações juvenis contemporâneas: • Produção de estigmas e de processos de exclusão, na medida em que esses ideais constituem ou se ba- seiam em padrões estéticos que a maioria da popu- lação não alcança ou não se iguala; • Potencialização de atitude consumista entre jovens. As necessidades dos corpos são conectadas direta- mente às necessidades do mercado global, de ma- neira que os ideais de performances e prazeres cor- porais e de corpo perfeito são estimulados em ciclos de consumo intermináveis – a maioria de produtos adquiridos oferecem respostas fugazes e são rapida- mente descartados em sua utilidade5 . Vale dizer que o vínculo dos corpos às necessidades do mercado empobrece a sensibilidade dos indivíduos em relação às necessidades singulares de seus corpos, fazendo desaparecer ou degradando suas outras sem- pre possíveis potências. • Incremento da indústria de auto-ajuda, a qual gera receitas poderosas para manter indivíduos fiéis aos ideais em voga. As receitas de auto-ajuda atuam no fortalecimento do controle dos indivíduos sobre si ou, por uma via crítica mais radical, atuam no forta- lecimento da crença dos indivíduos sobre o controle que julgam possuir de si. Nesse sentido, as receitas de auto-ajuda oferecem fórmulas de aquisição de sucesso pessoal em ações voltadas para o corpo, impedindo que os indivíduos possam esmorecer diante de esforços e perseveran- ças incansáveis que os ideais da biossociabilidade lhes delegam. • Esvaziamento de mobilizações por questões coletivas. A centralização de atenção sobre conquistas, prazeres e desempenhos corporais tende a situar jovens num campo de indiferença em relação ao mundo. 33 34 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Deter-se em demasia sobre o corpo cultiva práticas de atuação individual, mesmo quando pessoas estão a jogar juntas, caminhar juntas, realizar compras conjuntamen- te, a freqüentar a mesma escola ou a participar de proje- to social comum. Os indivíduos podem permanecer exilados cada qual em si, impedindo que questões coletivas outras tenham visibilidade e força convocatória. Nós nada somos e valemos nada se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e valor. (Soares, 2004) Freire Costa situa o problema do ideal dos prazeres cor- porais não nos pretensos e possíveis excessos sensuais de seus partidários, mas na questão de que esse “ideal pro- mete o que não dá e dificulta a participação e o compro- misso do sujeito com objetivos do Bem Comum” (p. 82). Sensíveis à denúncia sobre formas de sociabilidades que afunilam o horizonte de ação juvenil; atentos à do- minância de certos tipos de vínculos sociais que afastam as juventudes de ações coletivas; e em defesa de novas experiências relacionais para as juventudes, apresenta- remos a seguir cenários que evidenciam relações vividas atualmente pelos jovens que produzem efeitos de destrui- ção e negação da vida. Num cenário mais drástico de afunilamento de socia- bilidades juvenis, temos jovens envolvidos com o tráfico: sem perspectivas de formação de vínculos sociais que ofereçam sustentação ou aberturas renovadas para a or- ganização de sua vida, jovens pobres são nas grandes ci- dades brasileiras recrutados pelo tráfico de armas e dro- gas ou por outras dinâmicas criminais. No texto “Juventude e violência no Brasil contemporâ- neo”, Luiz Eduardo Soares6 afirma: (...) parece lógico que jovens carentes de tudo o que a participação em um grupo pode oferecer procurem aderir a grupos cuja identidade se forja na e para a guerra. Entende-se, assim, o sucesso das facções do tráfico no recrutamento de jovens (2004, p. 151). O autor discute as relações de violência em que jo- vens envolvidos com o tráfico são simultaneamente al- vos e protagonistas. A convivência com o tráfico, por expressar uma forma específica de sociabilidade, remete os jovens a uma ex- periência relacional em que, além de situá-los num cir- cuito de criminalidade e risco iminente de vida, os fazem exercitar tipos de linguagens que capitalizam processos de subjetivação específicos, transmutando-os em sujei- tos de violência. De outro modo, no curso de relações cujo objeto or- ganizador é o tráfico, jovens aprendem a ser sujeitos de determinada maneira: (...) no tráfico, regras há, e muitas: turnos de trabalho, hierarquias, processos decisórios, divisão de tarefas, distribuição complemen- tar de responsabilidades, códigos de comportamento, tudo isso é disciplinado (Soares, 2004, p. 151)7 . Nessa perspectiva, a violência expressaria uma lin- guagem na qual é possível organizar certas experiências de sociabilidade. Num texto posterior, Soares acrescenta: (...) ao contrário do que sugere o senso comum, a violência não é uma explosão, em nós, de natureza passional, selvagem, animal, mas uma formação cultural, (...) uma certa modalidade disciplinada de auto-realização, de produção de si e de relacionamento (2006, p. 126). Ao situar sua analítica sobre os modos de funciona- mento de relações experienciadas pelos jovens, o autor alerta para os efeitos da vivência de sociabilidades sobre a produção de subjetividades. Daí talvez as dificuldades enfrentadas nos processos de rompimento de jovens com o tráfico. O ato de afastamento não é suficiente para reme- tê-los a novos horizontes de vida, é preciso ir além e des- construir o sujeito que foi inventado nessa experiência. ! CENTRALIZA¿»O DE ATEN¿»O SOBRE CONQUISTAS PRAZERES E DESEMPENHOS CORPORAIS TENDE A SITUAR JOVENS NUM CAMPO DE INDIFEREN¿A EM RELA¿»O AO MUNDO 34 35 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Além dos jovens cujos vínculos relacionais se orga- nizam em torno da atividade do tráfico, temos aqueles que organizam suas vidas num horizonte de sociabili- dades esvaecidas. Diminuídas as possibilidades de exercer diferentes vínculos sociais, em função do baixo acesso, participa- ção e inserção nas instituições sociais, econômicas, cul- turais, jovens brasileiros vagam invisíveis por um mundo restrito de significados e programas de vida futuros. Marcados pela exclusão relacional, jovens transitam numa faixa de vida desprovida de sentidos e valores. Diante do exposto, parece não haver dúvida de que, para avaliar as possibilidades de expansão/retração da vida de um jovem, é preciso considerar as condições atu- ais que possuem para inventar-vivenciar múltiplas ma- neiras de sociabilidades. De outro lado, é preciso que as juventudes tenham garantias concretas de integração e pertencimentos so- cietários, como a integração às instituições de ensino; às instituições vinculadas ao mundo do trabalho, às ins- tituições de saúde; às instituições político-culturais dis- poníveis nas sociedades democráticas. Cabe ainda marcar que a ampliação e multiplicação de relações pode atuar como uma micropolítica de resis- tência nas vidas juvenis. Um bom exemplo de uma micro- política de resistência pode ser buscado nas sociabilida- des juvenis ligadas ao movimento hip-hop, dando mos- tras vivas de que determinadas relações podem funcio- nar como potentes territórios de lutas e transformações nas trajetórias juvenis contemporâneas. 35 36 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 -UDAN¿AS NA PAISAGEM URBANA FORMAS DE CIRCULA¿»O CONTEMPORoNEA AS NOVAS TRAJETËRIAS JUVENIS Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os chips da informática, as filiais industriais e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar (...). Assim, a subjetividade se en- contra ameaçada de paralisia. Felix Guattari Para com ara compreendermos o amb reendermos o ambiente urbano das grandes ente urbano das grandes metrópoles, retomemos uma forte configuração da vida contemporânea: a intensificação de circulação de infor nea: a intensificação de circulação de infor- mações e produtos materiais. Essa nova configuração concorre ssa nova configuração concorre para a com ara a complexifica lexifica- ção da vida urbana na medida em que produtos materiais e simbólicos, cada vez mais heterogêneos, participam e atuam na formação da coletividade das cidades8 . A pulverização de produtos tecnológicos na vida coti- diana das cidades, como computadores e telefones mó- veis, assume um poderoso papel na regulação da condu- ta de populações e na a ulações e na administração ministração do tempo de suas vidas. Não seria exagero afirmar que muitos jovens em- penham expectativas de mudanças de vida vinculando-as diretamente iretamente à aquisição de bens tecnol aquisição de bens tecnológicos ou ocu gicos ou ocupam seu tempo coti eu tempo cotidiano na entra iano na entrada em mun a em mundos virtuais os virtuais de um computador e na mani utador e na manipulação de telefones celulares. ulação de telefones celulares. O excessivo investimento no uso desses bens pode reduzir a produção de sentidos e desejos situados para fora dos visores de tais máquinas ou afunilar referências de socialização. Do mesmo modo, a presença ostensiva de produtos tecnológicos no cotidiano pode estar acompanhada por diversas iversas práticas de invenção, quando as tecnologias ticas de invenção, quando as tecnologias deixam de assumir apenas uma função comercial e lu- crativa para fazer funcionar outras ara fazer funcionar outras potências, como, otências, como, por exemplo, a produção de imagens; a produção de prát xemplo, a produção de imagens; a produção de práti- cas de socialização inusitadas, como as interatividades virtuais entre grupos distantes geográfica e socialmen- 36 Artigo Juventudes Contemporâneas 37 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 te; a produção de novas práticas de utilização da mídia, como acesso a bancos de dados, videotecas etc. (Guat- tari, 1992, p. 15-16). A intensificação de circulação de informações e pro- dutos materiais e a organização da vida das popula- ções da cidade compõem o conjunto de condições que torna possível a criação de territórios existenciais con- temporâneos9 . Vivemos em cidades de fluxos globais de informa- ções, produtos, bens, imagens, mensagens, tecnologias – e o porvir das juventudes encontra-se inseparável des- sa condição. Jovens põem em cena expressões estéticas, compor- tamentos, estilos de vida, projetos de futuro que assina- lam a presença de todo um sistema de referência que se integra a uma cidade orientada para um modelo de circu- lação cuja noção de trânsito extrapola a de mobilidade fí- sica de pessoas. Podemos nos mover sem sair do lugar – pelas redes de informática, pelas antenas de televisão, pelas linhas telefônicas. É o caso da mobilidade imaterial de informa- ções, mensagens, imagens. Simultaneamente, temos a mobilidade limitada es- pacialmente, na medida em que a circulação está con- centrada em projetos arquitetônicos fechados, solução que minimiza a ocupação e as experiências com o espa- ço público10. Ambas as formas de circulação parecem prescindir da mobilidade física dos habitantes urbanos. As formas virtuais de informação e de comercialização de produtos, seguindo os argumentos de Janice Caiafa, não se produzem sem subtrair algo das cidades: Comprar via computador ou via telefone envolve ausentar-se da caminhada das ruas, a televisão retém em casa e trabalha em algum grau contra a cidade (...) (Caiafa, 2007, p. 25) A intensificação da circulação de informações e pro- dutos opera efeitos tanto nas subjetividades de indivídu- os e grupos humanos como na recodificação da cidade: espaços, tempos, linguagens, relações. Com base nos estudos etnográficos de Caiafa na ci- dade do Rio de Janeiro, temos que a força mais marcante da cidade está na sua potência de dispersão de grupos humanos. O aparecimento de cidades convoca a mobili- dade humana em contrário à concentração proposta pe- las aldeias, ingressando nos costumes da cotidianidade urbana o desejo de trânsito e o exercício ativo de aban- donar o lar para ir a outro lugar. Na perspectiva dessa força de circulação presente nas cidades, habitantes metropolitanos teriam como possibi- lidade incessante o convite a processos de desterritoria- lizações subjetivas. Pelo movimento físico de deslocamentos, engendram- se encontros e a intercessão de uma pluralidade de sis- temas de significação – interesses afetivos, intelectuais, estéticos, sistemas de pensamentos e de ações múltiplos e não coincidentes entre si – invocando convites a modi- ficações e a expansões de pontos de referências subjeti- vos, um convite à experiência de alteridade, como afirma Caiafa neste trecho: De diferentes maneiras em cada configuração urbana, a história das cidades envolve o povoamento, a ocupação do espaço. Trata- se de uma ocupação coletiva, da produção de espaços públicos. Parece-me que esse coletivo urbano se caracteriza por possibilitar, de alguma forma, uma experiência com a alteridade. Nesse espaço coletivo se dá a mistura propriamente urbana e em alguma medida uma dessegregação, mesmo que sempre provisória e local. Cria- se um espaço de contágio com outros e estranhos onde há uma imprevisibilidade que o confinamento familiar não permite, onde há mesmo ou pode haver uma criatividade maior dos processos subjetivos. (2007, p. 20-21) Entretanto, a força de circulação em ação nas cidades não pode ser tomada nem positiva nem negativamente per si, tampouco abstratamente, pois ela depende dos gestos que a fazem, da implicação com o ato, das técni- cas de regulação e quadro de poderes em que está envol- vida. Em suma, de elementos que conjugam a forma que a própria circulação adquire em cada tempo e os tipos de fluxos que ela faz funcionar. Como propõe Guattari, o desempenho dessa força ci- tadina estaria em relação direta com agenciamentos polí- ticos, econômicos, legais, sociais, artísticos. Uma cidade orientada para uma forma de circulação em que a dinâ- mica dos espaços construídos é preterida pelos espaços virtuais ou espaços fechados, como os shopping centers, resultaria em efeitos distintos daqueles anunciados por uma perspectiva de experiência da alteridade, uma pers- pectiva de experiência de outros mundos. Num artigo intitulado “Restauração da cidade subjeti- va”, Guattari enfatiza a existência de um paradoxo na for- ma que a circulação assume nas cidades: a ampliação e 37 38 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 velocidade de circulação de informações, imagens e pro- dutos, entre outros, parecem petrificar as atividades humanas, tanto os níveis mais sin- gulares da pessoa quanto os níveis mais coletivos (p. 169-170). Trata-se de uma ordem dominante que põe em ação não somente um imobilismo físico mas um imobilismo criativo, mental, perceptivo. De acordo com o autor, tal circulação lança as atividades humanas num nomadismo selvagem, pois ao mesmo tempo que incita a entrada de pessoas numa circulação veloz, deixa homens, mulheres, juventudes desse tempo no mesmo lugar. Para Guattari, essa ordem dominante poderá ser con- trariada na medida em que a circulação se destacar des- se falso nomadismo e retomar a polifonia dos espaços, sejam eles virtuais ou não. A compressão do espaço coletivo e a restrição da circulação Para Lyotard, a presença de informações multiplicadas na vida social propõe como desafio às populações a or- ganização de interações sociais localizadas e provisórias (em contraposição a tipos de sociabilidades totalizadoras, como as sociabilidades protagonizadas por instituições), como estratégia para reconhecimento, assimilação e va- lidação de saberes globalmente circulantes. Lyotard argumenta que a diversidade e o afluxo dos saberes hoje são tais que nenhum indivíduo, e principalmente nenhum grupo fechado, pode mais possuir o conjunto dos conhecimentos como ainda era possível nas sociedades arcaicas ou tradicionais. A inteligência, o pensamento, o conhecimento estão condenados à partilha, à abertura. (apud Kumar, 1997, p.136). Alguns pensadores, como Jean Baudrillard e Mark Pôs- ter, apontam para o desaparecimento dos indivíduos nas redes de informação. Para Baudrillard, citado por Kumar, “o indivíduo deixou de existir em um relacionamento objetivo com seu ambiente. Ele não é mais um ator do mundo, mas um terminal de redes múltiplas. Com a imagem da televisão – que é objeto final e perfeito desta nova era – nosso próprio corpo e todo o universo cir- cundante tornam-se uma tela de controle”. (Kumar, 1997, p. 137). Sobre a noção de lugares e comunidades, Massey, no artigo intitulado “Um sentido global do lugar”, afirma que na atualidade as noções idealizadas de uma época em que os lugares eram supostamente habitados por comunida- des com identidades delimitadas se contrapõem a análi- ses críticas que concebem os lugares e as comunidades como formações múltiplas, em que relações econômicas, políticas e socioculturais globais têm atuação. Tal perspectiva é referendada por Bauman, quando afir- ma que a característica mais vital da vida urbana contem- porânea, e provavelmente a mais influente a longo prazo, é a íntima interação entre as pressões globalizantes e o modo como as identidades locais são negociadas, cons- truídas e reconstruídas (2004). Para Massey, embora os lugares e as comunidades de- senvolvam uma constelação particular de relações sociais, não é mais possível estabelecer fronteiras simbólicas blin- dadas entre um lugar e outro, uma comunidade e outra, um lugar e a sua cidade, um lugar e outros lugares. Nessa perspectiva, a relação comunidade–lugar tam- bém é expandida: as comunidades podem existir sem estar no mesmo lugar, como, por exemplo, rede de amigos com interesses comuns e rede de pessoas que comungam cren- ças religiosas afins formam comunidade citadinas que não se restringem a um lugar demarcado geograficamente. (...) em vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se imaginá-los como momentos articulados em redes de rela- ções e entendimentos sociais (...) (Massey, 2000, p. 184). A autora, ao caracterizar o lugar e a comunidade pela rede de relações sociais que articulam e fazem funcionar, chama ainda a atenção para o movimento contínuo que guia essas noções, considerando-se a plasticidade que as relações, no fluxo de seus acontecimentos – podem experimentar. Se os lugares podem ser conceituados em termos das interações sociais que agrupam, então, essas relações em si mesmas não são inertes, congeladas no tempo: elas são processos. (Massey, 2000). É nesse contexto de alta disseminação de informações, implosão espacial e mudanças na noção de lugar-comuni- dade que as juventudes moradoras das cidades parecem organizar e sustentar suas vidas. Com base nas análises desenvolvidas por Massey, é importante observar que as juventudes moradoras das 38 39 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 cidades relacionam-se de diferentes maneiras com as in- formações, significados e bens materiais que atravessam o ambiente urbano e que a experiência da compressão de tempo-espaço não ocorre de uma mesma forma para toda população juvenil. A mesma observação é válida quando pensamos nas possibilidades de mobilidade física das juventudes. Con- dições de classe social, raça, gênero, idade cruzadas à questão de segurança das cidades, às tecnologias e mí- dias dominantes – entre outras –, devem ser visitadas para compreender a vivência de espaço e lugar experimentada por grupos humanos. O acesso aos fluxos informacionais entre os jovens brasileiros dá-se, sobremaneira, pela televisão, sendo que a maioria vê-se isolada de outras redes de comuni- cação. Pela televisão, as informações acessadas pelos jovens adquirem o caráter de indiferenciadas. A indiferenciação das informações sobrevém da frag- mentação, condensação e velocidade com que, no geral, as informações são veiculadas no formato televisivo. Daí a dificuldade de os expectadores lembrarem as informa- ções ou realizarem distinções entre elas. Ressalte-se que raramente as informações com as quais jovens mantêm contato via televisão têm força convocatória para serem cruzadas com outros repertórios de saberes. A manipulação intelectual de informações vê-se no geral obstruída ou diminuída em função prioritariamente da passagem veloz de uma imagem para outra, caracterís- tica da linguagem televisiva. Além disso, as informações acabam por se diluir na estrutura televisiva, pois dispu- tam espaço com a forte presença icônica; com o tipo de estilística televisiva, expressa prioritariamente pelo for- mato show; com a recorrente convocação a sentimenta- lismos, entre outros elementos (Beatriz Sarlo, 2006). Em relação à capacidade de ingresso dos jovens em outras formas de sociabilidade-relações em ação no ambiente urbano, as possibilidades para as juven- tudes pobres vêem-se bastante diminuídas, por não te- rem acesso a serviços públicos e a recursos materiais e simbólicos que sustentem o deslocamento a diferen- tes lugares da cidade. Sem dúvida, as desigualdades socioeconômicas per- sistentes na sociedade brasileira justificam em grande parte as restrições de mobilização de jovens. Mas não só! Se levarmos em consideração o recorte de gênero, verificamos um outro campo de restrições, agora liga- do especificamente à condição feminina. Por esse crivo, jovens mulheres teriam mobilidades muito mais constrangidas do que jovens do sexo mas- culino. De acordo com Massey, (...) pesquisas mostram de que modo a mobilidade das mulheres sofre restrições de inúmeras maneiras diferentes: da violência física ao fato de ser assediada, ou de ser simplesmente obrigada a sentir “fora do lugar” – não pelo “capital”, mas pelos homens. (2000, p. 178). Se tomarmos como referência a segurança urbana, te- mos que cidades que apresentam alto índice de violência interferem sobremaneira na mobilidade (física e simbóli- ca) de sua população. No caso de juventudes associadas a contextos de violência, no geral moradores de bairros pobres, a restrição é aviltante e ocorre por meio de con- junto complexo de forças. A inexistência de serviços públicos de qualidade, par- ticularmente de transportes coletivos eficientes e de lo- cais públicos livres para circulação (em lugares não mui- to distantes de seus bairros) é um exemplo de força atu- ante na restrição dos deslocamentos juvenis. No entanto, práticas segregacionistas que agem na maioria das metrópoles mostram-se como a força mais brutal no confinamento das juventudes pobres, moradoras de bairros ligados socialmente a contextos de violência. Os efeitos imediatos da segregação podem ser perce- bidos no fato de jovens identificados com o perfil de mo- rador de bairro violento, serem reiteradamente preteri- dos quando pleiteiam ingresso em instituições de traba- lho, além de serem alvo, em outras instituições, de dis- criminação, desconfiança e temor, ao revelarem seus lo- cais de residência. As juventudes, pelo que revela pesquisa realizada por Regina Novaes com jovens moradores da cidade do Rio de Janeiro, não permanecem indiferentes ao grave problema das violências nas grandes metrópoles, transmutando-o num dos objetos principais de suas preocupações. A CARACTERÅSTICA MAIS VITAL DA VIDA URBANA CONTEMPORoNEA Á A ÅNTIMA INTERA¿»O ENTRE AS PRESSÍES GLOBALIZANTES E O MODO COMO AS IDENTIDADES LOCAIS S»O NEGOCIADAS CONSTRUÅDAS E RECONSTRUÅDAS 39 40 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Metade dos jovens etade dos jovens pesquisados esquisados pela autora afirma te ela autora afirma ter medo da morte, indicando que o temor pela própria vida ocupa lugar de destaque no imaginário de garotas e ga- rotos, in rotos, independentemente entemente da classe social a que perten a classe social a que perten- cem. Segundo a autora, jovens t em. Segundo a autora, jovens têm medo: de bala m medo: de bala perdi- da, da polícia, do aumento de violência, de o tráfico de drogas dominar tu ominar tudo, de tiro, e tiro, de ser es e ser espancada e ente a e enter- rada viva, de violência e injustiça. Ambientes urbanos marcados por violências – de va- riados tipos – acirram o crescimento de outro fenômeno em ação nas grandes cidades contemporâneas: o anseio (desenfreado) por segurança. A busca frenética de segurança – acionada por habi- tantes de alto tantes de alto poder aquisitivo e ca oder aquisitivo e capitalizada italizada pelo merc elo merca- do imobiliário e de tecnolo o imobiliário e de tecnologias de vi ias de vigilâncias, entre outros ilâncias, entre outros – faz com que es faz com que espaços de cidades densamente ensamente povoadas sejam interditados e tornados inacessíveis para grupos po- pulacionais pulacionais desprovi esprovidos financeiramente, con os financeiramente, condição que ição que ocasiona, conforme Bauman, uma desintegração da vida comunal sem prece omunal sem precedentes na atuali entes na atualidade. Ele ainda argumenta: (...) os que podem, vivem em “condomínios” planejados como se fosse uma ermi osse uma ermida: fisicamente a: fisicamente dentro, mas social e es entro, mas social e espiritualmente iritualmente fora da cidade. Espaços inter aços interditados são es os são espaços planejados para interce ara interceptar, repelir ou filtrar os usuários potenciais. Explicitamente, o propósito dos espaços interditados aços interditados é dividir, segregar e excluir – e não con dividir, segregar e excluir – e não cons- truir pontes, passagens acessíveis e locais de encontro, facilitar a comunicação ou, de alguma outra forma, aproximar os habitantes da cidade. Como todos sabemos, as cercas têm necessariamente dois lados. Dividem es Dividem espaço, que so aço, que sob outros as outros aspectos seriam uniformes, em ectos seriam uniformes, em “dentro“ e “fora“; mas o que é “dentro“ para os que estão de um lado é “fora“ “fora“ para os que estão do outro. Os moradores dos cond ara os que estão do outro. Os moradores dos condo- mínios cercam-se para ficar “fora“ da excludente, desconfortável, vagamente ameaçadora e dura vida da cidade – e “dentro“ do oásis de calma e segurança. (...) A cerca separa o “gueto voluntário“ dos ricos e ricos e poderosos dos muitos guetos forçados que os des oderosos dos muitos guetos forçados que os despossuídos habitam. Para estes, a área a que estão confinados (por serem ex- cluídos de todas as outras) é o espaço do qual não têm permissão de sair ( 2004, p. 130-131) Em defesa da circulação ... não poder mover-se ou fazê-lo com dificuldade é estar desprovido numa cidade, é ser destituído da principal senha para a vida urbana. (Caiafa, 2002, p. 21). A questão da mobilidade física é aspecto de grande relevância na ex ncia na experimentação das cidades. Seguindo erimentação das cidades. Seguindo os argumentos apresentados no início do texto, temos que a id que a idéia de circulação-deslocamento est ia de circulação-deslocamento está irredut irreduti- velmente ligada elmente ligada à função das cidades e função das cidades e à expressão de expressão de suas potências. Ao impulsionar a circulação, a cidade exerce uma ação de dispersão nos seus habitantes, pois permite às popu- lações o ingresso em universos de significados estranhos aos seus habituais. Ao sairmos das redondezas familia- res damos in es damos início a uma cio a uma jornada de encontros com estr ornada de encontros com estra- nhos, às misturas que se fazem no trânsito caracteristica- mente ur ente urbano. Desse modo, a cidade inter ano. Desse modo, a cidade interpela continu ela continua- 40 41 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 mente seus transeuntes, suas populações, particularmen- te, suas juventudes. Ao produzir um espaço uzir um espaço de exteriorização, e exteriorização, de diferen- ça em relação a si mesma, as cidades desem a em relação a si mesma, as cidades desempenham uma forte função subjetiva11: (...) o espaço construído chega a nós e tem o poder de nos afetar. A relação com a cidade modeliza faculdades psíquicas, mobiliza relação com a cidade modeliza faculdades psíquicas, mobiliza impulsos afetivos e cognitivos, ulsos afetivos e cognitivos, produz desejo roduz desejo (Caiafa, Caiafa, 2002, p. 35) Para Guattari, (...) quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, fun- cional, afetivo... (...) O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação. (...) A cidade, a rua, o ...) A cidade, a rua, o prédio, a rédio, a porta, o corredor .... modelizam, cada orta, o corredor .... modelizam, cada um por sua parte e em composições globais, focos de subjetivação. (1992, p.157-158-161). No livro Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos, Bauman chama a atenção para a função de dispersão das cidades que se dá pelo encontro inces- sante com o estranho: (...) qualquer que seja a história das cidades, e independentemente das drásticas mudanças que possam ter afetado sua estrutura espacial, aparência e estilo ao longo dos anos e dos séculos, uma característica se mantém constante: são espaços em que estranhos permanecem e se movimentam em íntima e recíproca proximidade (2003, p. 129). No mesmo texto, Bauman referenda a idéia de que se deve atrib e deve atribuir “a vivacidade intrínseca e a criativida- de da densa vida urbana de da densa vida urbana à incerteza que adv incerteza que advém dos r m dos re- lacionamentos pouco coor lacionamentos pouco coordenados e eternamente m os e eternamente mu- táveis” que a cidade veis” que a cidade propõe. Sob uma terceira perspectiva, Paul Virilio, um dos mais originais e consistentes analistas mais originais e consistentes analistas da socie a sociedade tecnologizada, afirma que a implosão dos espaços, dis- parada pelos a pelos diversos meios iversos meios de comunicação insta e comunicação instan- tâneos, faz com que o mundo externo sofra uma grave desqualificação esqualificação de sua “profun e sua “profundidade de campo”. Fato e campo”. Fato que, por sua vez, degrada as relações entre o homem e a cidade. $IANTE DA SUPERPOTÂNCIA DOS MEIOS DE COMUNICA¿»O O MUNDO EXTERIOR DIMINUI RAPIDAMENTE E H1 UMA PERDA CONSIDER1VEL DA mNARRATIVA DO TRAJETOn NARRATIVA ESSA APENAS MATERIALIZADA PELO DESLOCAMENTO CONCRETO EM DETRIMENTO DO DESLOCAMENTO VIRTUAL 41 42 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Diante da superpotência dos meios de comunicação, o mundo exterior diminui rapidamente e há uma perda considerável da “narrativa do trajeto”, narrativa essa apenas materializada pelo deslocamento concreto em detrimento do deslocamento virtual. Este último incita- do por um mundo que se organiza cada vez mais em sin- tonia e dependência com a difusão e produção de ima- gens e informações. De acordo com Virilio, a revolução nas comunicações afeta sobremaneira a característica de transeunte – ser do trajeto – que definiria a espécie humana. Janice Caiafa, Paul Virilio, Zygmunt Bauman, Felix Guattari, por caminhos diferentes, mas não antagôni- cos, denunciam o quanto a restrição da mobilidade físi- ca ou de circulação podem desmontar e debilitar as fun- ções primordiais das cidades e dos homens, qual seja, experimentar trajetórias múltiplas. Notas 1 Alguns autores, como Zygmund Bauman, sociólogo polonês que vive na Inglaterra, analisam as transformações atuais da vida social como uma intensificação de aspectos do período moderno, denominando o período atual de modernidade líquida. Jean-François Lyotard (1924-1998), um dos criadores da noção de pós- modernismo, ao analisar os elementos artísticos da pós-modernidade, também estabelece vínculos entre os dois períodos, identificando pontos de intersecção entre eles. De acordo com Lyotard, a experimentação e a rejeição do conforto e do consolo do realismo e da arte representativa seriam a essência do pós- modernismo. Sustentando-se nessa afirmação, pode-se dizer que a pós- modernidade recuperaria com maior vigor as subversividades conduzidas pelo movimento artístico modernista. Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão, considerado o mais influente pensador social da segunda metade do século 20, avalia que o projeto da modernidade estaria incompleto e defende em suas obras o fortalecimento nas sociedades contemporâneas de algumas das características constituin- tes do período, como a tentativa de ser crítico e racional. Para Habermas, a vida social deverá ser regulada pela obtenção de um consenso racional alcançado por intermédio do diálogo entre atores livres e iguais. Fredric Jameson, crítico literário e teórico marxista, identifica os movimen- tos atuais na vida cultural, social e econômica como decorrentes de uma modificação sistêmica do próprio capitalismo. Para Jameson, as sociedades contemporâneas estariam vivendo um estágio particular do capitalismo, que ele chama de “capitalismo tardio”. Entre as principais características do capitalismo tardio estaria a posição domi- nante ocupada pela tecnologia da informação-comunicação na infra-estrutura econômica, relegando à tecnologia de manufatura um papel subordinado. A tecnologia da informação-comunicação, segundo Jameson, cria uma rede global de poder e controle de difícil apreensão para as mentes humanas, tornando possível o alcance global do capital. 2 Subsecretária da Secretaria Nacional de Juventude. Professora adjunta do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 3 Professor adjunto do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 4 Cf. também trabalhos de Foucault sobre o biopoder e as reflexões de Deleuze sobre a sociedade de controle. 5 Sobre as diferenças de atitude de consumo entre jovens de classes sociais distintas, Freire Costa relaciona diretamente a insaciabilidade de consumo com a ação de descarte: no Brasil, a maioria tem uma renda pessoal ou familiar desprezível, mas, mesmo assim, se comporta como se tivesse uma renda alta, quando se trata de usar objetos como coisas descartáveis. 6 Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e diretor do Instituto pela Promoção do Sistema Único de Segurança Pública. Participou do governo do estado do Rio de Janeiro, de 1999 a março de 2000, na con- dição de subsecretário de Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania. Foi secretário nacional de Segurança Pública do governo federal de janeiro a outubro de 2003. 7 Na análise que o autor empreende, é interessante conferir a função que as armas utilizadas por jovens na ação do tráfico desempenha na construção de suas performances corporais. O autor afirma que a posse de armas su- blinha simbolicamente a virilidade de jovens do sexo masculino e calçam a identidade de um macho violento, arrogante, poderoso e armado junto a moças, as quais, usando os termos do próprio autor, mostram-se encantadas pela estetização do mal. 8 De acordo com Guattari (1992), produtos materiais e sistemas de significação concorrem excepcionalmente para a produção de subjetividades e novas configurações identitárias, atuando na reconstrução de formas de pensar e falar, de desejos e aspirações, projetos de vida individuais e coletivos. Para o autor, do mesmo modo que equipamentos coletivos, “as máquinas tecnológicas de informação e comunicação operam no núcleo da subjetivi- dade humana, não apenas no seio de suas memórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes” (p. 14). 9 A noção de territórios existenciais está sendo entendida aqui como o conjunto de relações e sistemas de referências que delimitam modos de ser e de viver, desembocando “toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 388). Mesmo que um território exis- tencial contenha linhas de constituição definidas, elas são, na atualidade, constantemente provocadas ao movimento. Vale a pena retomar os autores: “O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar, cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais”. (ibid.) 10 Caiafa, ao analisar o processo de suburbanização de cidades americanas, destaca como a entrada do automóvel na organização da vida de grupos sociais é importante na realização de um despovoamento das cidades, par- ticularmente dos espaços públicos. Diz a autora, “(...) a ocupação do espaço público se torna um mero intervalo de tempo entre a partida e a chegada com tendência a se eclipsar” (2007, p. 22). Talvez o mesmo poderíamos afirmar em relação à circulação orientada para centros fechados de comércio, onde o deslocamento físico transmuta-se em um meio apenas intervalar. 11 É importante destacar a concepção de subjetividade presente no texto da autora, pois se aproxima bastante da noção de juventude expressa no Programa “Jovens Urbanos”. Seguindo a perspectiva de Guattari, Deleuze e Foucault, a autora afirma: “a subjetividade tem um caráter processual – ela não é um resultado, mas constantemente se engendra – e se produz por componentes heterogêneos: componentes sociais, materiais, sexuais, de poder, de mídia etc.” (2002, p. 35) 42 43 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Referências BAUMAN, Zygmunt. (2004) Amor líquido: sobre a fragilidade das relações huma- nas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. CAIAFA, Janice. (2007) Aventura das cidades: ensaios e etnografias. 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Tomaz Tadeu da Silva PROGRAMA JOVENS URBANOS Núcleo de pesquisa do programa Jovens Urbanos* ! 46 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Programa jovens Urbanos Cultura e Subjetividade na Juventude 2ECONSTRUINDO SE CARTOGRAÙCAMENTE No quadro das perspectivas almejadas pelo Programa Jovens Urbanos duas merecem destaque. A primeira refere-se à expectativa de ação sobre si mesmo, ou de processos de alterações subjetivas juve- nis que o Programa espera mobilizar. A segunda trata do investimento na expansão das relações, da aposta em novas performances relacionais dos jovens nos territórios urbanos. As noções de subjetividade e de relações estão impli- cadas com uma concepção de cultura que orienta o Pro- grama. A cultura, aqui entendida como prática de signi- ficação, atuaria diretamente na produção de sujeitos, ao mesmo tempo que mobilizaria incessantemente o acon- tecimento de relações sociais. Do ponto de vista do acontecimento das relações so- ciais, a cultura expressaria a zona de produção de signi- ficados, representações, regras, códigos, controles exer- cidos dinamicamente por elas. Os significados que configuram as relações, por sua vez, sugerem, orientam e muitas vezes impõem manei- ras de ser para as pessoas. Os significados atuariam nas relações pondo em exer- cício modelos subjetivos (identidades), os quais serão, em gradações variadas, adotados pelas pessoas como consciência de si. Em muitas situações relacionais os mo- delos subjetivos chegam a ser reconhecidos pelos envol- vidos como verdades naturais e indissolúveis. Quando falamos sobre quem somos, expressamos um tipo de consciência que adquirimos sobre nós mesmos. Normalmente as pessoas adotam essa concepção de subje- tividade, mais habitual, sem muitas tensões ou conflitos. ) 47 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 No contexto do Programa Jovens Urbanos, nos deslo- camos dessa concepção para abrigar o termo subjetivida- de nas modelagens culturais. A subjetividade não desig- naria mais algo que possuímos (uma substância) ou re- temos definitivamente (uma essência), mas sim um esta- do de possibilidade produzido sempre nos agenciamen- tos culturais, mais especificamente nas coordenadas dos sentidos, dos poderes, das relações sociais. Na perspectiva de expressão cultural não haveria uma forma única e permanente para designarmos nossa sub- jetividade, pois há sempre a possibilidade de traçarmos uma diferenciação de nós mesmos e nas relações em que nos envolvemos. Eu chamaria de subjetivação o processo pelo qual se obtém a cons- tituição de um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si. Michel Foucault (2004b, p.262). Quando falamos de diferenciação, não se trata de nossa subjetividade ser aberta às mudanças ou ao novo, do tipo que permitiria a entrada de coisas novas para um receptáculo nuclear estável. Trata-se de uma subjetivi- dade-forma, cujas linhas de composição, sendo de um jeito, podem vir a tornar-se uma outra coisa, um outro, uma forma distinta da anterior (se disso for capaz). A penetração da cultura em nossas vidas é tão evidente que ela não pode mais ser estudada como uma variável secundária ou dependente. Ela não é um componente subordinado, ela é emi- nentemente interpelativa, constitutiva das nossas formas de ser, de viver, de compreender e de explicar o mundo. Marisa Vorraber Costa (2002). Assim, nossas formas de ser, o jeito como pensa- mos, agimos e nos reconhecemos, estão altamente in- vestidas pelas modelagens culturais que incessante- mente nos atravessam e dependem dos entrecruzamen- tos de forças sociais (mídias, tecnologias, consumo etc.) que nos atingem com maior vigor em determinado tem- po de nossa vida. Se as forças se alteram, se outras alianças culturais são realizadas, se outras pertinências urbanas são experiencia- das, novas maneiras de ser também podem se constituir. Isso quer dizer, em particular, que as modelagens culturais não são lineares, pois é em seus próprios movimentos de desalinhamento que entramos em novas possibilidades subjetivas. Novas possibilidades de vir a ser diferentes e de habitar a vida pública de formas também diferentes. 48 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 referente estrutural geral, mas estão implicados com pla- nos dinâmicos e capilares. Seguindo esse argumento, é possível considerar que modificações e transformações nos modos de vidas juve- nis – foco subjetivo no Programa – passam pela abertura dos jovens às potências da cidade, de modo que aquilo de reiterativo e rotineiro que habita as relações juvenis atuais possa abrir-se a processos outros. Estar atento e abrir-se às potências da cidade aliam- se às possibilidades de expandir campos de relações, de criar outras e novas performances relacionais das juven- tudes entre pessoas, lugares, idéias, objetos. A idéia de relação proposta pelo Programa ressignifi- ca a noção de encontro, retomando-a como uma ocasião experimental de vínculos com outros corpos – de mistu- ra com múltiplos intercessores, de abertura para outros interesses e sentidos. O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas: para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais (...) fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível. (Deleuze, 1992, p.156). As relações, como afirma o trecho anterior, mobili- zam intercessores em nossa existência. São elas, as re- !S RELA¿ÍES EXPERIMENTADAS PELAS PESSOAS PODEM EXPANDIR A VIDA 3»O RELA¿ÍES QUE FAZEM COM QUE A VIDA GANHE MAIS INTENSIDADE E PRODUZA NOVOS DESEJOS p VONTADES DE TRANSFORMA¿ÍES DE RENOVA¿ÍES DE SI E DAS COISAS NO MUNDO No caso de jovens em situação de vulnerabilidade, o próprio ato de habitar – estar em um lugar a que antes não se tinha acesso, explorar e experimentar outros lu- gares – pode possibilitar mudanças nos modos de vida juvenis e em suas capacidades de ação pública. Na atualidade, a subjetividade da juventude é alvo especial de sistemas de significação e de produções ma- teriais em ação nas sociedades, que geram modelos de juventudes a ser consumidos ou adotados por grupos de pessoas, bem como disputas discursivas em torno de identidades juvenis. Nesse sentido, a produção das subjetividades das juventudes encontra-se em plena ex- pansão em nossa atualidade e aos grupos de jovens é endereçada uma série de expectativas sociais e, por que não dizer, formas de controle. As ações formativas realizadas com populações jo- vens também ativam modos de ser juvenis, que podem tanto fortalecer a reprodução de certos modelos de ju- ventude já em circulação e seus feixes de controle como apostar em novos processos de singularização juvenil que escapem de axiomáticas de controle.1 O Programa Jovens Urbanos situa seu plano de ação na aposta de novos processos de singularização juvenil. Relações e singularidades Os modos de experimentar condições e estados de ju- ventude não são vividos da mesma forma pelos grupos juvenis. Contanto que atravessadas por modelações cul- turais dominantes que colocam, por exemplo, no centro da vida juvenil o ideal de corpo perfeito ou a vontade de consumo, as subjetividades juvenis desdobram-se em múltiplas experiências, considerando-se as variadas po- sições sociais em que jovens estão situados. Por exemplo, jovens mulheres, estudantes; jovens pobres, brancos, doentes; jovens negros, trabalhadores, músicos; jovens de rua, jovens internados, jovens evangélicos etc., e as respostas inusitadas que jovens são capazes de produzir ante os agenciamentos culturais em que se vêem envolvidos. Nessa perspectiva, os modos de experimentar a con- dição de juventude e seus estados não se reduzem a um 49 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 lações, que podem pôr em movimento encontros multi- facetados com a vida, possibilitando às juventudes re- novarem-se uma-e-outra-vez. As relações não devem ser entendidas como derivações da soma de seus termos ou produto das características e quantidade de seus elementos (Quem sou eu? Quem é ele? Que coisa é essa? Quantos nós somos?). O que define uma relação é o entre, que é o lugar das afecções – da dissolução de “eus” –, alguma coisa que ocorre entre os elementos. O entre não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (Deleuze, 1995, p.37). As relações experimentadas pelas pessoas podem expandir a vida. São relações que fazem com que a vida ganhe mais intensidade e produza novos desejos – von- tades de transformações, de renovações de si e das coi- sas no mundo. Mas nem sempre as relações experimentadas pelas pessoas atingem esse efeito, ou seja, afetam no senti- do de expandir a vida. As relações podem nos afetar de inúmeras maneiras, produzindo inclusive menos vida, perda de potências, reatividades e até mesmo atitudes esvaziadas de sentidos. As relações afetam as pessoas, tanto retraindo como expandindo a vida. Embasado nesse pressuposto, o Programa Jovens Urbanos realiza suas ações apoiando-se nas seguintes perspectivas micropolíticas: • Ao abrir possibilidades de jovens urbanos experimen- tarem relações diferenciadas, o Programa se torna uma força que desvaloriza as sociabilidades juvenis que produzem apatias, violências, restrições de vá- rias ordens. • A abertura para relações múltiplas expande os reper- tórios juvenis, impulsionando novas formas de parti- cipação social. • A experimentação de relações variadas concorre para desacomodar padrões culturais – modos de ser, agir, pensar modelados rigidamente –, podendo conduzir os jovens a novas disponibilidades inventivas de si, a cunhar novas matérias de expressão, a criar lingua- gens. • A experimentação de relações variadas expõe os jo- vens a encontros com outras subjetividades, com ou- tras linguagens, com outras manifestações de expres- são, outros intercessores, de modo que possam ser envolvidos em outros enredos e narrativas de vida, implicando-se produtivamente com estas. • Os jovens são convidados a adotar atitudes de cartó- grafos, de modo a se inserirem em novas relações, a utilizarem ferramentas cartográficas para olhar as re- lações da cidade: modos de funcionamento, o que de- terminadas relações provocam, reconhecer saberes, hábitos; ver como as relações acontecem no mundo do trabalho, das ciências e tecnologias, das artes. Exploração, experimentação e produção: Uma experiência cartográfica. A importância atribuída às relações e às partilhas em contextos plurais sustenta-se no fato de as sociedades contemporâneas viverem uma retração do espaço com- partilhado e das possibilidades de trajetosb e um afuni- lamento de sociabilidades, considerando especialmen- te a confluência do olhar juvenil para a tela da tevê e a limitação das opções de circulação e convivência das ju- ventudes em diferentes domínios da existência, princi- palmente das juventudes moradoras de regiões metro- politanas pobres e periféricas. Ao focar seu plano formativo na relevância das rela- ções e partilhas em contextos geo-simbólicos plurais o Programa Jovens Urbanos tem como finalidade, sobretu- do, a abertura de novos horizontes de sociabilidades e trajetos juvenis, abertura que concorreria positivamente para recomposições de modos de viver, movimentadas por alterações em repertórios culturais e nos desempe- nhos social e político de jovens. Para persistir nessas metas e atuar em consonância com as juventudes atuais, o Programa trabalhou na ela- boração de três estratégias metodológicas: exploração, experimentação e produção, tomando a cartografia como seu principal operador conceitual. A cartografia é um método que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. (Virgínia Kastrup, 2007, p.2). 50 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 De forma especial, a perspectiva cartográfica que orienta a formação inspira-se na cartografia social, formu- lada por G. Deleuze e F. Guattari e que visa investigar ter- ritórios sociais, reconhecendo-os como territórios cujas linhas de composição atuam em movimento. Na cartografia sublinhada pelos autores, o cartógra- fo tem como convicção acompanhar sempre um proces- so, sabendo que irá relacionar-se a cada investida car- tográfica com fragmentos da dinâmica de um território, pois que os territórios podem assumir diferentes funcio- namentos conforme os pontos de intersecção e os ele- mentos em que o cartógrafo detém o olhar. A própria en- trada do cartógrafo no território ativaria movimentos em suas linhas de composição. Esse tipo de cartografia se afasta daquelas políticas de investigação que visam apreender informações dis- postas no mundo (coleta ou associação cumulativa de dados). Também se afasta das políticas de investigação que se propõem a interpretar ou explicar parcelas do mundo cumprindo etapas e regras rigorosas. A possibilidade do exercício de investigação urbana para além e aquém do escopo e status acadêmico stric- tu sensu expande a possibilidade do ato investigativo a grupos com perspectivas outras: abertas a experimentar um território e disponíveis a construir conhecimentos de um território no próprio percurso de experimentação. O que se almeja nessa cartografia é fundamental- mente a experimentação do território, a abertura para o encontro. A investigação, nesse caso, não busca algo definido a priori, mas um tornar-se aberta ao encontro. Trata-se de um gesto de deixar vir (letting go). Donde, entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que o outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio, mesmo se é quase um beco, uma ruela ou uma curva e contracurva etc. (Deleuze & Guattari, 2002, p.19). Num território viaja-se percorrendo circuitos. Assim é que a cidade tem “entradas múltiplas”. E a entrada escolhida para se estar nos territórios urbanos Aqui, um evento de produção é capaz de transformar uma paisagem urbana comum em obra de arte, alterando relações no território. 51 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 liga-se a outras coisas que ali acontecem, e assim suces- sivamente em circuito. A cada nova entrada, novas cone- xões, novos desenhos aos acontecimentos. A atitude investigativa do cartógrafo urbano, nesse sentido, seria mais adequadamente formulada como um “vamos ver o que está acontecendo”, em vez da pergunta “o que é isto?”, pois o que está em jogo é acompanhar um processo e não representar um objeto. Um cartógrafo não permanece à margem das potências e fragilidades dos territórios pelos quais viaja. Ao percorrer um território, um cartógrafo encontra forças, matérias ex- pressivas, feixes de potências, pontos de desvitalização. “Algo acontece e exigirá atenção.” (Kastrup, 2007.) A cartografia propõe eventos de exploração. Como uma antena parabólica, a atenção do cartógrafo realiza uma ex- ploração assistemática do terreno, com movimentos mais ou menos aleatórios de passe e repasse, sem grande preocupação com possí- veis redundâncias. Tudo caminha até que a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada por algo – uma matéria-força. (Virgínia Kastrup, 2007, p.05, acréscimo e grifo nossos). ! ATITUDE INVESTIGATIVA DO CARTËGRAFO URBANO NESSE SENTIDO SERIA MAIS ADEQUADAMENTE FORMULADA COMO UM mVAMOS VER O QUE EST1 ACONTECENDOn EM VEZ DA PERGUNTA mO QUE Á ISTOn POIS O QUE EST1 EM JOGO Á ACOMPANHAR UM PROCESSO E N»O REPRESENTAR UM OBJETO Alexandre Orion, Metabiótica 4 /2002 (à esq.) e Metabiótica 13 /2004, intervenções urbanas seguidas de registro fotográfico ( WWW.ALEXANDREORION.COM ) 52 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Por meio das explorações, percorrem-se circuitos em ação nos territórios. O princípio é sempre um reconheci- mento-acompanhamento sem modelo preexistente, sem regimes de catalogação automáticos. O interessante da atenção cartográfica acionada nos eventos de explora- ção é que “deter a atenção em algo” propõe ao cartógra- fo ampliar, expandir o encontro com o território, e não, imediatamente, explicá-lo. Nesse sentido, o procedimento investigativo trilha- do no Programa, mais do que sublinhar uma compe- tência específica de pesquisa, a ser apreendida por jo- vens, atua como uma política sensorial das juventu- des, pois destaca a ativação de um novo tipo de aten- ção aos territórios urbanos que desativa ou inibe au- tomatismos que habitualmente coloniza nosso funcio- namento cognitivo. Quando a atenção do cartógrafo é tocada, captura- da por alguma matéria-força, tem lugar a experimenta- ção, evento em que o cartógrafo submerge num ponto do território numa espécie de zoom. A experimentação faz com que o cartógrafo se misture com um certo con- junto de elementos do território. Na experimentação, a atenção se desdobraria na qualidade efetiva do encon- tro. Na abertura efetiva para o encontro. Para Deleuze não se vai a um território para pergun- tar sobre origens e destinos. Essas perguntas apres- sadas devem ceder lugar ao envolvimento direto com o que está ocorrendo ali, no meio. Trata-se de apren- der de uma nova maneira: manter-se no meio das coi- sas, sem pressa, em relação apenas. A experimenta- ção de um território deve exceder a vontade de es- quematização. Na experimentação, o cartógrafo pousa em certo cir- cuito, em certa escala do território, reconfigurando o pro- cesso de acompanhamento-investigação por meio de uma intensidade mais fina com partes do território, em- bora outras partes, mais longínquas, insinuem-se ali, pois ao misturar-se a um território, por trás, pela frente, pelo lado, embaixo, o cartógrafo não pára de descobrir outras partes ativas. Um território é um encadeamento infinito de forças. O que quer um cartógrafo? Ele quer envolver-se na realidade. (Suely Rolnik, 2006, p. 64). Ao cartografar sucessivamente um território, o cartó- grafo constrói uma ampliação de sua fotografia. As linhas de composição de um território serão conec- tadas, a cada exercício, a circuitos geográficos, históri- cos, políticos, econômicos, artísticos, midiáticos, desli- zando e deslocando-se para múltiplos planos possíveis de leituras. Um cartógrafo não faz isso para apreender a totalidade das informações do território, mas para en- contrar um caminho. Para que alguma produção possa ser aí construída. Trata-se da possibilidade de jovens encontrarem uma saída para as coisas, uma saída pela produção de algo num ponto de um território. Uma saída possível, entre tantas outras virtuais. Uma saída sem querer tor- nar-se a salvação da matéria, da cidade. Uma saída- produção, com capacidade para atuar nas micropolí- ticas da vida. As experiências vão então ocorrendo, muitas vezes fragmenta- das e sem sentido imediato. Pontas de presente, movimentos emergentes, signos que indicam que algo acontece, que há uma processualidade em curso. Algumas concorrem para modular um problema, tornando-o mais concreto e bem formulado. (Kastrup, 2007). 4RATA SE DA POSSIBILIDADE DE JOVENS ENCONTRAREM UMA SAÅDA PARA AS COISAS UMA SAÅDA PELA PRODU¿»O DE ALGO NUM PONTO DE UM TERRITËRIO 5MA SAÅDA POSSÅVEL ENTRE TANTAS OUTRAS VIRTUAIS 5MA SAÅDA SEM QUERER TORNAR SE A SALVA¿»O DA MATÁRIA DA CIDADE 5MA SAÅDA PRODU¿»O COM CAPACIDADE PARA ATUAR NAS MICROPOLÅTICAS DA VIDA 53 Assim, surge um encaminhamento de resposta, uma produção, uma invenção. Tal como se referem Deleuze & Guattari, todas as en- tradas são válidas para se avançar num território, per- corrê-lo, viajá-lo. Não seria diferente com as saídas. Nes- sa perspectiva não se encerra uma investigação à moda clássica, com um produto que represente uma idéia de- finitiva sobre certo cenário social. À moda da cartografia social, a saída de um território dá-se por um tipo de performance que não é outra coisa que não uma matéria expressiva, um produto, os peda- ços dispersos que se arrastou em si do território. Fazer disso um material, traçar com isso um plano. Cravar um ponto no território (em beiras de ralo, em cantos de página, em raiz de parede, em paralelepípe- dos, em alguma depressão do terreno), levar um prolon- gamento do encontro para outros contornos (familiares, econômicos, escolares). Opor um pedaço novo de vida à repetição e mesmice, fundir-se numa enunciação coletiva, num desejo coleti- vo. Deixar ainda espaço para que potencialidades des- conhecidas ressoem. Uma produção será sempre uma linha aberta. Dis- ponível a novas conexões, continuamente retecidas, re- atualizadas. 54 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 O Programa Jovens Urbanos convida jovens a experien- ciarem eventos formativos em diferentes espaços da cida- de onde vivem, promovendo o envolvimento direto das ju- ventudes com os territórios da cidade e de suas linhas de composição: arquiteturas, relevos, sistemas produtivos (mundo do trabalho e tecnologias), produções artísticas, modos de vida de grupos sociais, de juventudes etc. Encontros com espaços diferenciados incitariam as juventudes a se deter em territórios da cidade, em ques- tões urbanas variadas: relacionadas ao meio ambiente, ao mundo do trabalho, às regiões onde residem, às artes, aos planos de comunicação da cidade, a campos de inte- resses juvenis ou de populações urbanas específicas. Encontros com diferentes espaços requerem atividade de abertura de jovens e educadores para acessar a mul- tiplicidade dos territórios urbanos. O múltiplo da cida- de será acessado a partir da prática de olhares abertos à perspectivas contrapostos a olhares habituais. Quando olhamos experimentando perspectivas, apren- demos a suplantar a vontade de interpretação particular, para produzir visibilidade de vozes, saberes e arquiteturas que não nos são imediatamente familiares ou reconhecí- veis. A experimentação de perspectivas também concor- re para desmobilizar categorizações apressadas da vida social, deixando jovens mais abertos para envolverem-se com a ocorrência e intensidade dos encontros. O encontro com diferentes espaços implica também o exercício pelos jovens-cartógrafos de uma importan- te responsabilidade: a responsabilidade com os atos de observação. Observar requer acionar interesse pelo de “fora”; re- quer aguçar a escuta para captar significados e saberes fluidos; requer fazer prevalecer a sensibilidade, sem ne- nhuma especulação antecipada sobre prováveis investi- mentos posteriores. Requer, particularmente, assumir o desafio do outro, uma certa ética do encontro. A construção de olhares em perspectivas e da respon- sabilidade com os atos de observação desempenham um papel relevante na realização de investigações de territórios – especialmente no reconhecimento de suas linhas de composição – dos circuitos que os compõem e os arrastam para algum plano maior: econômico, geo- gráfico, tecnológico etc. A cartografia aqui em jogo orienta para o exercício de olhares urbanos de forma a perceber planos de comple- xidades da cidade e expandir a cognição e sensibilida- des juvenis. 2OTAS POSSÅVEIS PARA A FORMA¿»O DE JUVENTUDES Investigar territórios urbanos, experimentar uma atenção sensível ao território, criar arranjos com as afe- tações produzidas nos encontros acontecidos no percur- so das investigações... As rotas propostas são produto da experiência de ação-pesquisa-produção do Programa. Para cada uma delas vinculam-se algumas perspectivas e também pala- vras-chave, que, tal qual sinalizadores, pretendem con- vocar a atenção do leitor para pontos estratégicos, pis- tas seguras pelas quais eles poderão, vez ou outra e se necessário, orientar-se. O CARTÓGRAFO COMEÇA SUA VIAGEM ROTA 1 Formação em espaços múltiplos da cidade (rua, associa- ções, museus, empresas, instituições etc.). O cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado de filosofia. (Suely Rolnik, 2006, p.65). Perspectivas – Pluralização de espaços de formação – Abertura para os territórios da cidade )) Programa jovens Urbanos Cultura e Subjetividade na Juventude 55 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Jovens aprendizes de cartógrafo terão ainda como de- safio o trabalho de construção/reatualização sucessiva dos territórios por meio de uma experiência estética que excede os contornos fechados de um mapa geográfico e os planos bidimensionais de cartazes comparativos. Palavras-chave PERSPECTIVAS RESPONSABILIDADE DE OBSERVADOR ROTA 2 Formação de jovens misturada com acontecimentos na cidade. Perspectivas – Agenciamento de saberes múltiplos – Conexão “jovem-cidade” O Programa compreende que há uma multiplicidade de saberes, culturas e modos operantes presentes no funcionamento da cidade (que percorre o mundo do tra- balho, produções artísticas, equipamentos públicos, ma- quinarias tecnológicas etc.), cuja intensidade, dinâmica e complexidade dificultam o isolamento como objeto de formação a posteriori, fato que ultrapassa os contornos clássicos da instrução escolar, exigindo uma alternativa de formação que comporte a entrada direta – em tempo real – dos jovens nos conteúdos vivos da cidade. O Programa Jovens Urbanos convida os jovens a se instalarem em ações desenvolvidas na cidade, por meio de estratégias de exploração-experimentação e produ- ção, transmutando territórios da vida urbana na própria matéria-prima da formação juvenil. Assim, aciona um tipo de formação em que o reconhecimento e apropria- ção de saberes, culturas e modos operantes de um ter- ritório se dêem por encontros diretos com seus planos de funcionamento. Uma formação nesses moldes abre possibilida- des para uma visualização mais consistente das cama- das da vida urbana, pois suplanta o expediente didáti- co de esquemas, resumos e sínteses como recurso ins- trucional. Uma formação como a aqui proposta possibilita acom- panhar, em ato, processos em ação nas cidades (o que está acontecendo?) que, por outras vias, tornam-se mo- vimentos interpretados e remodelados na posteridade, diminuídos, portanto, em seus efeitos sensíveis. O contato direto com os conteúdos da cidade – em tempo real de seu fluxo e acontecimento – requer que os jovens estejam munidos de algumas ferramentas que os auxiliem a se relacionar com os movimentos e sabe- res em ação nas camadas urbanas e a se misturar provi- soriamente aos seus funcionamentos. Informados pela metodologia cartográfica, os jovens organizarão roteiros caleidoscópicos de explorações para 56 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 envolverem-se com os conteúdos da cidade. Os roteiros atuarão como escudos protetores contra a possibilidade de olhares habituais ou olhares fixados em e olhares habituais ou olhares fixados em posições ab- solutas ou elementos parcializados. O olhar parcializado tende a ocultar a trama complexa da paisagem, afastan- do as possibilidades de visibilidade das conexões que arrastam os territórios em diversas direções. Os roteiros também auxiliarão os jovens a se envolve- rem com os conteúdos da cidade, desde territórios que façam parte da organização de suas vidas at arte da organização de suas vidas até territórios desconhecidos por completo, pois poderão, os jovens, visualizar coisas que, visualizar coisas que, por hábito ou enca bito ou encapsulamento do sulamento do olhar, fugiram de seus campos de afecções. Coisas, inclusive, que, apesar de não figurarem como questões atuais para os jovens-cartógrafos, podem agir sobremaneira na condução de seus atos e modos de vida. A cada exploração, o exercício de uma atenção sensí- vel. É preciso ver o que está acontecendo. Atenções se- rão disparadas e po as e podem ter diferentes graus iferentes graus de intensi e intensi- dade. Na continuidade ou simultaneamente, os ade. Na continuidade ou simultaneamente, os jovens- cartógrafos serão convidados a se lançar às experime artógrafos serão convidados a se lançar às experimen- tações. O cam tações. O campo de observação se reconfigura. A ate servação se reconfigura. A aten- ção muda de escala, numa espécie de zoom. Nas experimentações: intensificar o encontro. Estar ali e não em outro lugar. Tal princípio conjuga o aconte- cimento para abrir-se à vinda daquele que vem sob o re- gime de um encontro. Explorações-experimentações urbanas, orientadas pela perspectiva cartogr ectiva cartográfica, invocarão uma fica, invocarão uma expres- são cartogr são cartográfica – um fica – um mapa sempre provisório de po rio de pon- tos do território – que permitir ermitirá aos jovens-cart aos jovens-cartógrafos prosseguirem viagem. Os mapas cartogr as cartográficos, diferentemente de um ma ficos, diferentemente de um mapa geopolítico (que se pretende definitivo ou durável), ex- pressam a trama das linhas de composição que definem, em dada perspectiva, um territ ectiva, um território. Um território urbano poderá ser expresso consideran- do-se pelo menos três camadas: re elo menos três camadas: representações, funcio resentações, funcio- namentos concretos e sensibilidade. a. A camada das representações – cient – científicas, midiáti- cas, artísticas, econômicas, geográficas etc. – proje- tadas sobre determin s sobre determinado territ do território. b. A camada de seus funcionamentos concretos – linhas e circuitos inesperados, que escapam do nível das re- presentações. c. A camada da sensibilidade, via pela qual o jovem-car- tógrafo expressará as freqüências de pontos dos ter- ritórios que lhes chegarem. Lembrar: um mapa cartográfico, tal qual tratado aqui, está permanentemente aberto ermanentemente aberto à movimentação das l movimentação das li- nhas do território, às novas descobertas, vislumbradas por mudanças de perspectivas. ectivas. Por isso, mapas cartográficos produzidos pelos jovens devem estar disponíveis para serem revisitados, pois a qualquer momento as qualquer momento as linhas de um territ linhas de um território podem se odem ser ligadas a outros complexos as a outros complexos de circuitos ou, ain e circuitos ou, ainda, des- grudadas e rudadas e puxadas para uma ara uma produção. Um novo agen- ciamento, uma saída outra. Palavras-chave ROTEIROS CALEIDOSCÓPICOS ENCONTRO EXPRESSÃO CARTOGRÁFICA 57 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ROTA 3 Formação Formação de jovens como meio e jovens como meio para a revitalização ara a revitalização da sociedade civil Perspectivas – Abertura ativa ertura ativa para a vi ara a vida da cidade – Transformações subjetiva Transformações subjetivas Compreen ompreender a formação er a formação de jovens como meio para e jovens como meio para a revitaliza a revitalização da sociedade civil ão da sociedade civil é abrir a forma abrir a formação das juventudes para questões e problemáticas do contexto histórico presente, resente, para entradas e misturas das juven- tudes em grupos urbanos variados, para o envolvimento direto de ireto de jovens com territ ovens com territórios de significância ao fu rios de significância ao fun- cionamento da cidade, para as regiões onde moram, e ionamento da cidade, para as regiões onde moram, en- fim, para si mesmos, ara si mesmos, de modo que questões in o que questões individuais sejam implicadas com a vida urbana. A formação nessa perspectiva a formação nessa perspectiva abandonaria finalida- des e objetivos concentrados em um “ideal remoto de futuro” para aspirar produções sociais e transformações subjetivas de jovens no tem jetivas de jovens no tempo presente de suas vidas. resente de suas vidas. Uma formação sintonizada com o contexto históri- co presente deve instalar-se em questões resente deve instalar-se em questões prementes da rementes da atualidade (tanto no que diz respeito à atualidade das vidas juvenis como no que diz respeito à atualidade da vida das cidades). Nesse sentido, uma formação projetada como um fó- rum da sociedade civil está desde a sua formulação sin- tonizada com a questão atual do declínio da vitalidade da vida pública e com a constatação de participações mínimas de populações em v ulações em várias atividades urbanas rias atividades urbanas de caráter sociopolítico, além de uma notável concen- tração de ativi e atividades juvenis circunscritas ao es juvenis circunscritas ao plano das mídias televisivas e outras abundâncias audiovisuais hi- perfetichizadas. Uma formação para as juventudes na atualidade tem como desafio desempenhar um papel relevante na re- vitalização da sociedade civil, propiciando que jovens possam, como integrantes do campo social, ver amplia- das suas das suas possibilidades de ex ilidades de exploração-ex loração-experimentação erimentação e produção social (geoculturais). Visando essa direção, Jovens Urbanos terão encon- tros marcados com variados grupos organizados da ci- dade e pelos encontros exercitarão atos de fala, serão introduzidos em tópicos de assuntos variados, cultiva- rão a disposição para raciocinar segun isposição para raciocinar segundo pontos o pontos de vista e vista que não os seus que não os seus próprios, socializarão im rios, socializarão impressões, ver ressões, ver- se-ão mobilizados para a criação de produções e fort e-ão mobilizados para a criação de produções e forta- lecidos para transformações subjetivas de significância atual para cada uma das vidas e a do coletivo. Pelos encontros organiza organizados pode-se com e-se compor uma potência imensa, pois em cada encontro marcado, agen- dado, roteiriza o, roteirizado pode-se devir numa outra multi evir numa outra multiplicida- de de encontros, cuja lista de cuja lista de possibilidades ossibilidades é virtual- mente infinita em extensão e composição. Há em ação, no próprio acontecimento formal de cada encontro, um atravessamento de signos que pode arrastar os jovens para outras conexões de sentidos e afecções, desdo- brando novos planos de encontros: encontro especial com um som, uma idéia, um espaço, uma imagem, uma ação política etc. A prática de uma formação como fórum da sociedade civil solicita que jovens envolvam-se com as questões da cidade, seus funcionamentos e domínios. Questões es- sas que certamente, em algum momento, dizem res as que certamente, em algum momento, dizem respei- to e cruzam-se com suas próprias vidas. Nesse plano, ex lano, exploração-ex loração-experimentação- erimentação-produ- ção instigariam jovens urbanos a reconhecer a infini- dade de “vocabulários e movimentos” em que a cida- de pode ser vivi e ser vivida, descrita, organiza escrita, organizada, desempenha- da, controlada. Aqui a questão Aqui a questão é saber quais conexões saber quais conexões propostas pe- los territórios urbanos aumentam ou diminuem a potência 58 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 de agir. Quais fazem a vida vibrar e se renovar; quais são capazes de depor as violências, os confinamentos, os re- gimes de retração da vida; quais podem transmutar-se em pontos de sonhos, de saberes, de arte ou de poesia. Pon- tos de prática e utilização prática, pontos de luta e inter- venção, pontos de performances. ¿Cuál es el fin de una ciudad en construcción sino una ciudad? ¿Dónde está el plano que siguen, el proyecto? — Te lo mostraremos, apenas termine la jornada; ahora no podemos interrumpir —responden. El trabajo cesa al atardecer. Cae la noche sobre la obra en cons- trucción. Es una noche estrellada. — Éste es el proyecto— dicen. (Ítalo Calvino, Las ciudades invisibles.) Orientada pela perspectiva cartográfica, uma forma- ção como fórum da sociedade civil impede o apartamen- to de jovens dos territórios/objetos da cidade, impede, simultaneamente, que uma questão individual, assim tomada, nutra-se circularmente de si mesma. Pelo exer- cício cartográfico a questão individual é dilatada, reto- ma sua plasticidade, tornando-se mais e mais necessá- ria, indispensável, pois que outras histórias do lado de fora se agitam no seu interior. É nesse sentido que uma questão individual se en- trelaça com questões outras que lhes determinam valo- res – questões comerciais, econômicas, burocráticas, ju- rídicas, tecnológicas, artísticas. Cartografar a cidade propõe aos jovens a ampliação de discernibilidade não somente dos territórios urbanos mas sobretudo de suas próprias vidas, dos sentidos e vontades às quais se filiam na atualidade. Por isso, nossa aposta neste circuito formativo asse- gura uma formação ativadora de autonomia para a em- pregabilidade, produção e vida social. Palavras-chave PLANOS DE ENCONTROS CONEXÕES ROTA 4 Formação de jovens com arquite- tura aberta ao diferente, inusitado, desconhecido. Perspectivas – Encontros com o diferente – Multiplicar as matérias urbanas O desenho formativo do Programa foi traçado tal qual uma cartografia: sua arquitetura tem uma estética aber- ta, guardando potencial para ligar-se às matérias da ci- dade e com elas estabelecer relações variadas. Nesse sentido, resguarda-se de estabelecer relações apenas com o semelhante ou com o que lhe é filiado a priori para investir em alianças ou assinalar relações pro- visórias que colocam no jogo formativo “matérias urba- nas” vindas de orientações e lugares múltiplos. Na escala das vidas juvenis, o propósito é justamen- te encontrar-se com territórios que, em princípio, não se habitava atentamente, intelectualmente, socialmente, politicamente, inventivamente. Não se trata de se deslo- car, portanto, numa cidade conhecida, mas de acompa- nhar processos que comportem a possibilidade do inu- sitado, do estranhamento. Como atenta Corazza (2004), não acontece muita coisa interessante ou de novo num mundo feito de essências; não dá pra fazer muita coisa interessante ou nova num mundo de essências (...). Nada divertido! Já num mundo feito de multiplicidades, é um formigamento só, um torvelinho criativo em cada esquina. Em suma, um apelo ao novo. Palavras-chave RELAÇÕES MÚLTIPLAS DIFERENTE 59 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ROTA 5 Caminhos cruzados das juventudes e cidade Perspectivas – Abertura da cidade para as juventudes – As juventudes como produtora de campos de afecção A entrada dos jovens nos territórios da cidade incita simultaneamente à abertura das juventudes para o fun- cionamento urbano, a abertura do funcionamento urbano para as juventudes, transmutando cidade e juventudes num “composto híbrido”, donde marcas e fluxos urba- nos enfeixam as subjetividades juvenis e marcas e fluxos juvenis atravessam o funcionamento da cidade, cortam suas políticas de recepção e convivências, suas políticas de produção de conhecimentos, suas políticas de empre- gabilidade, políticas tecnológicas, artísticas, estéticas, conduzindo-as a outras direções, reatualizando-as. A maior aprendizagem é a de se aventurar a um en- contro e se deixar encontrar. A entrada num território guarda, nesse sentido, um deixar-se tocar pelo desco- nhecido sem rejeitá-lo ou interpretá-lo com rapidez. Daí a importância para um aprendiz de cartógrafo de resis- tir às forças que pasteurizam as relações. É a porosida- de ao encontro que favorece a passagem dos elementos do território para a atenção do cartógrafo e a implicação viva do cartógrafo com a experiência do território. Nes- se movimento de abertura, um campo de afetações se desenha entre território e jovem. As marcas das juventudes na cidade adviriam, pois, do encontro. Sem a possibilidade do encontro, juventu- des e cidade não gaguejariam em suas próprias línguas, não se veriam convocadas a abrir seus jeitos de funcio- nar, seus modos de ser, suas idiossincrasias, não dese- quilibrariam linhas de forças entre si ou mesmo, colate- ralmente, não desequilibrariam aquelas que vêm de ou- tras correntezas e, ali, no encontro se mostram. Mútua transformabilidade, afetações recíprocas, envolvendo- os e marcando-os de forma indelével. Enfim, o método cartográfico faz da investigação um trabalho de invenção de si mesmo e do outro. Palavras-chave POLÍTICAS DE FUNCIONAMENTO ENCONTRO INVENÇÃO Notas 1 A expressão axiomática de controle refere-se aqui a um conjunto de lógicas que convocam as pessoas a adotar determinadas práticas e ligarem suas vidas a determinados valores. 2 Nos moldes em que Arendt (1989), Paul Virilio e Caiafa descrevem. 3 Ver, em especial, Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (1995). Mil Platôs, vol. 1. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Ed. 34 Letras. 4 Ver em especial Mil Platôs vol. 1. Referências Calvino, Italo (2000). Las ciudades invisibles, 5a edición, Madrid: Siruela. Corazza, Sandra; SILVA, Tomaz Tadeu & Zordan, Paola (2004). Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica. Costa, Marisa Cristina Vorraber (2002). Pesquisa-ação, pesquisa participativa e política cultural da identidade. 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Na segunda edição do Projeto, já finalizada, as expe- rimentações 2 , com carga horária média de 30 horas, ofe- receram aos jovens a possibilidade de reconhecimento, manuseio e produção por meio do acesso a tecnologias de servi e serviços, tecnologias da arte e tecnologias de recur- sos naturais e renováveis. No contexto das experimentações realizadas pelos jovens, algumas merecem destaque. É o caso da exper ovens, algumas merecem destaque. É o caso da experi- mentação Luz: tecnologia da imagem, realizada pelo as- sessor Waldir Hernandes. Nessa experimentação, os jovens exploraram a Pina- coteca e oteca e puderam contar com atenção es uderam contar com atenção especial de um ecial de um fotógrafo que estava inaugurando sua exposição. O a otógrafo que estava inaugurando sua exposição. O ar- tista fez questão de conversar com os jovens e assinou para cada um deles um cartão-postal que apresentava suas obras. Reproduções das obras do acervo permanente da Pi produções das obras do acervo permanente da Pi- nacoteca foram dis nacoteca foram disparadores escol aradores escolhidos pelo assesso elo assessor para os primeiros encontros com os jovens, nos quais eles discutiram arte, conceitos iscutiram arte, conceitos de imagem, e imagem, de luz entre outros e luz entre outros repertórios. De rios. Depois, com a ex ois, com a exploração loração à Pinacoteca, os Pinacoteca, os jovens puderam ver as obras verdadeiras de perto. Conceitos de f Conceitos de física relativos ao cam sica relativos ao campo da óptica ta tica tam- bém foram discutidos com o grupo. Para cada um dos jo- vens foi entregue uma câmera descart vens foi entregue uma câmera descartável. De vel. Depois de t ois de ti- radas as fotos eles desmontaram as câmeras para com- preender melhor seus mecanismo e funcionamento. Essa experimentação colocou os jovens diante de um desafio: a participação no Pr esafio: a participação no Prêmio Porto Seguro de Foto- grafia – 2006. No início, dúvidas, medos, inseguranças, expectat o início, dúvidas, medos, inseguranças, expectati- vas povoaram as discussões so ovoaram as discussões sobre o concurso – “Como re o concurso – “Como a gente faz para se inscrever? (...) Lá onde eu moro não tem CEP e aqui na ficha tá pedindo (...)” foram algumas questões levantadas pelos jovens. O assessor dirimiu as dúvidas do grupo e investiu para que eles que eles percebessem a ercebessem a participação no concurso como ação no concurso como uma rica experiência de aprendizagem, uma ótima opor- tunidade tunidade para colocar a ara colocar a público o que blico o que pensam, sonham ensam, sonham e são capazes de produzir. Decidida a ecidida a participação no ação no prêmio, era hora de “b mio, era hora de “bo- tar o bloco na rua”. Primeiro, as fotos. Os jovens escolheram estar em cena: “as diferentes juventudes” foi o tema orientador de todos os trabalhos. Tiveram que escolher, também, o contexto no qual eles se imaginavam sen eles se imaginavam sendo fotografa o fotografados para, os para, depois, f epois, fa- zerem as montagens desses cenários com as fotos. Cada um dos jovens foi autor de três trabalhos. Segundo desafio: Segundo desafio: para cada tra ara cada trabalho, os jovens de o, os jovens de- veriam elaborar um texto que justificasse e contextual eriam elaborar um texto que justificasse e contextuali- zasse a obra. O texto deveria ser escrito num formato de carta / ofício e encaminhado à comissão julgadora. Mais uma vez a participação do assessor foi funda- mental. Foi ele quem trabalhou com o gru ental. Foi ele quem trabalhou com o grupo os conheci- mentos básicos de redação e escrita, apresentou os ele- mentos que com entos que compõem uma carta formal etc. Depois de escrever e reescrever os textos, as obras fi- nalmente ficaram nalmente ficaram prontas e foram inscritas no Pr rontas e foram inscritas no Prêmio. Para fechar a experimentação com chave de ouro, os jovens elaboraram um projeto de grafite. O muro esco- lhido foi da ONG que sediou a oficina. Tal experiência movimentou muito a vida da insti- tuição: não só a fachada ficou diferente. Os jovens con- quistaram uma relação de autonomia, reconhecimen- to e de valorização com os gestores da ONG a partir das produções realizadas por eles. Essa conquista se deve, 61 também, ao investimento do assessor na interlocução e na composição com os diferentes atores da instituição. De tudo isso uma apren o isso uma aprendizagem importante para t izagem importante para to- dos nós: os jovens não recuam diante dos desafios, os ovens não recuam diante dos desafios, os encaram com os recursos ncaram com os recursos de que dispõem, com as fo ispõem, com as for- ças que os convocam. convocam. O PJU investe para que suas ações sejam capazes de mobilizar a energia de criação dos jovens, que sejam po- tentes o suficiente para mobilizar a produção de sentido outros, senti outros, sentidos de pertença, senti ertença, sentidos de mais vi e mais vida, sen- tidos de comunhão com os territórios e com a cidade. NOTAS 1 Parceiros tecnológicos da 2a edição: Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente - Viveiro Manequin iente - Viveiro Manequinho Lopes, Fundação Padre Anchieta – TV Cultura, Mackenzie - Design Possível, Instituto Criar, Escola da Cidade- Faculdade de arquitetura e ur uitetura e urbanismo, anismo, Instituto Tomie O stituto Tomie Ohtake. 2 Alguns exem Alguns exemplos de ex los de experimentações oferecidas: Bi erimentações oferecidas: Biblioteca de lioteca de personagens, ersonagens, Tecnologias lim ecnologias limpas, Oficina as, Oficina de HQ e criação e HQ e criação de personagens, Tecnologia ersonagens, Tecnologia digital a igital aplicada à arte, Luz – tecnologia uz – tecnologia da imagem, Multimeios, Bo a imagem, Multimeios, Bodywe- ave: tecendo auto-retratos, Expressão cênica popular, Escultura em bloco aerado, Monitoria em lazer e recreação, Hotelaria e gastronomia, Roteiro arquitetônico, Cenografia para ópera etc. DO SUJEITO PARA O MUNDO, SER OU NÃO SER. Depoimento de Carlos Sabino Dantas Moro em São Paulo, no bairro da Brasil oro em São Paulo, no bairro da Brasilândia e freqüen- tei a Oficina de Fotografia e Leitura de Imagens do Pro- grama Jovens Urbanos, organizado pelo Cenpec- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Co- munitária. Esse curso aconteceu na ONG Bandeirantes, localiza- da na Vila Brasil da na Vila Brasilândia, durante os meses de julho, a ndia, durante os meses de julho, agos- to e setembro de 2006. Em nossos encontros, estudamos letras de músicas, fotografias, desenhos, gra as, desenhos, grafites, esculturas e tes, esculturas e poesias, oesias, buscando diferentes imagens que pudessem ser forma- das a partir da sua an artir da sua análise, relacionando-as com a no lise, relacionando-as com a nos- sa realidade. As fotos aqui apresentadas foram realizadas a par- tir de montagens, que nós desenvolvemos durante nos- sas oficinas, sob orientação do professor Waldir Her- nandes. Na primeira foto, imagino o cic Na primeira foto, imagino o ciclo de vida do ado o de vida do adoles- cente: um dia estamos coloridos e outro estamos em pre- to-e-branco. Na segunda foto, mostro o adolescente pensando em pular de pára-quedas, ao mesmo tempo em que se vê na própria mão, ou seja, senhor de sua própria vida. Uma frase de Shakes rase de Shakespeare é relembrada; “Ser ou não ser, eis relembrada; “Ser ou não ser, eis a questão”. Em meu terceiro trabalho, o mundo cai sobre mi- nha cabeça, com tantas coisas eça, com tantas coisas que nos acontecem ne ue nos acontecem nes- sa fase da vida. FOTOMONTAGENS OTOMONTAGENS: CARLOS SABINO DANTAS 62 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Explorar, experimentar e produzir. Mobilizados pela combinação entre ver, compreender e criar, os partici- pantes da Organização Cultural e Desportiva Bandeiran- tes produziram a Exposição de fotos Múltiplos Olhares da Brasilândia durante a segunda edição do Programa Jovens Urbanos em São Paulo1 . As atividades de exploração realizadas durante o pro- cesso formativo no Programa ativaram a percepção e agu- çaram o olhar dos jovens para seus territórios, que cul- minou na produção de uma cartografia dos circuitos, lu- gares, objetos e pessoas com as quais os jovens se mis- turavam durantes seus percursos cotidianos. O processo de exploração também convocou os jo- vens a pensar numa forma de expressão / de lingua- gem que pudesse dar a ver os sentidos, os sentidos ou- tros que se forjaram nos diferentes encontros com os territórios. Surge, então, a idéia da fotografia, da câmera, da lente, do foco do olhar que congela um pedaço da realidade, dan- do-lhe uma existência que extrapola a dimensão do tempo e do espaço. E uma exposição dessas fotos para comunidade seria forma perfeita para espalhar os múltiplos olhares dos jovens sobre os lugares em que vivem, em que constroem suas relações sociais, suas histórias e suas geografias. Mas, a partir da decisão do grupo de produzir uma ex- posição fotográfica, os jovens depararam com a seguinte questão: que recursos dispomos para fotografar? Nem a educadora nem os jovens dominavam as ex- pertises necessárias para produzir uma exposição de fotos à altura do que desejavam. Nesse momento as re- des sociais entram em ação: a ONG agenciou uma ofi- cina de fotografia com um especialista da área que tra- balhou voluntariamente com o grupo e cedeu o uso dos equipamentos (câmeras). Concluída a fase de planejamento e de captação das imagens, os jovens iniciaram a elaboração dos poemas que acompanharam cada uma das fotos. Um trabalho RELATO DE PRÁTICA Nas fotos, múltiplos olhares da Brasilândia. Programa Jovens Urbanos que demandou tempo e empenho dos jovens, da educa- dora e da ONG e que também foi muito importante para os jovens, para a instituição e para o PJU. Essa e outras produções dos jovens no Programa ates- tam o grau de qualidade e relevância das criações dos participantes. Elas demonstram a capacidade que os jo- vens têm de projetar realidades, criar campos comuns e atuar coletivamente. Por meio delas os jovens podem desenvolver e mani- festar seus potenciais de expressão, comunicação, cria- tividade, inovação e senso estético. Além disso, as produções convocam os jovens a pro- blematizarem a realidade, a fazerem articulações e pro- duzirem composições com múltiplos atores e institui- ções da cidade. Nota 1 O processo formativo dos jovens, na segunda edição São Paulo, foi organi- zado nos seguintes módulos: • Adesão: seleção, cadastro, apresentação do PJU para os jovens e composição dos grupos; • Comunidade: identificação das potencialidades locais por meio de visitas a grupos e espaços de práticas artísticas, corporais, científicas, escolares e de intervenção social; • Cidade e tecnologias: fomento à apropriação da cidade, buscando o acesso e a participação efetiva por meio de oficinas experimentais; • Experiências produtivas e parcerias: desenvolvimento de uma experiên- cia produtiva combinando os conteúdos tecnológicos e a articulação de parcerias; • Intervenções sociais: implementação de projetos juvenis que visem à inte- gração da experiência produtiva com o desenvolvimento local, por meio da participação da comunidade e dos parceiros; • Acompanhamento: realização de seminários e grupos virtuais. Apoio aos jovens para a continuidade de seus projetos disponibilizando assessores tecnológicos especializados para a qualificação das ações de intervenção. Os módulos eram atravessados pelas temáticas: urbanidade, cultura e tecnologia. Ao final de cada módulo, os jovens produziram eventos de culminância nos quais publicizavam as produções realizadas durante o período. A exposição Múltiplos Olhares da Brasilândia foi produzida para evento de culminância do módulo 2. 63 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 64 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 *OVEM E TRABALHO ARTIGO !Atualmente, 46,6% dos desempregados brasileiros são jovens, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econô- mica Aplicada (Ipea). São 35 milhões de brasileiros de 16 a 24 anos, a maior população jovem da história do Brasil, numa encruzilhada e sem perspectiva de saída: de um lado, a escola não os atrai. De outro, o mercado de traba- lho não os aceita. O problema torna-se mais grave diante da ineficácia dos programas oficiais de formação ou de in- centivo ao ingresso do jovem no mercado de trabalho. Nos últimos cinco anos, apesar do crescimento da economia e da redução do desemprego para a popula- ção em geral, o mercado de trabalho para o jovem piorou de forma preocupante. Hoje o desemprego chega a 19% entre os jovens de 15 a 24 anos de idade. Essa propor- ção é 3,5 vezes maior que a observada entre os adultos. Em 1995, a taxa de desocupação dos jovens não chega- va ao triplo da dos adultos. A disputa por oportunidades de emprego é perver- sa especialmente para os que não avançaram na forma- ção escolar. “Os 9 milhões de jovens brasileiros de 18 a 29 anos sem escolaridade básica, os mais de 800 mil que são Cley Scholz* Maria do Carmo Brant de Carvalho Maria Julia Azevedo Wagner Santos * Cley Scholz é Jornalista e Editor do Caderno de Economia do Jornal O Estado de São Paulo. Maria do Carmo Brant de Carvalho é Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós-Doutorada em Ciência Política pela École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris. Foi professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – PUC-SP, é autora de vários trabalhos publicados e atualmente é Coordenadora Geral do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) Maria Júlia Azevedo é psicóloga, mestre em educação (USP –SP) e Coordenadora da Área Educação e Comunidade do Cenpec. Wagner dos Santos é Cientista Social, doutorando em política (PUC – SP), pesquisador do Núcleo de Estudos de Arte, Mídia e Política da PUC – SP e Coordenador do Programa Jovens Urbanos – Cenpec. 65 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 analfabetos e os mais de 8 milhões que se evadiram, que desistiram da escola antes de completar o primeiro ciclo, são melancólica antecipação de que serão longos os anos das muletas sociais em que se escora o País. Se levarmos em conta que mais de dois terços deles vivem em áreas urbanas, a perspectiva fica pior ainda. Duran- te muito tempo, viver na roça era invocado como o fator causal da baixa escolaridade de crianças e jovens. Mas agora, no cenário oposto, fica a evidência de que o fra- casso escolar está mais associado ao urbano e moder- no que ao atrasado, mais ao novo que ao velho. Indício de que estamos construindo uma sociedade mutilada.” (Souza Martins, 2008). Em aproximadamente duas décadas, a máquina de escrever cedeu lugar ao computador e a um mundo bem mais complexo. A transformação ampliou infinitamente o conceito de analfabetismo. Ainda na reflexão do sociólogo José de Souza Martins, professor da Faculdade de filosofia da USP, “analfabeto é também quem sabe ler e escrever, quem estudou mas não sabe pensar no cotidiano, sem as regras modernas de pensamento, quem não tem cultura básica que per- mita manejar um computador, ler um livro, ler um jornal, compreender a imagem que vê na televisão compulsó- ria e invasiva, conhecer e respeitar os sinais e as regras de trânsito, os direitos do outro, a vital reciprocidade da sociedade moderna”. Formação para o trabalho Para qualquer jovem, a entrada no mercado de trabalho marca o seu ingresso na vida adulta. No Brasil, há uma imen- sa maioria que precisa de um emprego por questão de sub- sistência da família e outros que sonham apenas com uma oportunidade de aprendizado, acesso ao lazer e à cultura com alguma autonomia financeira. Para todos eles, a forma- ção é a chave para ingressar no universo do trabalho. Nas últimas décadas, porém, o desemprego vem crescendo entre os jovens a ponto de se tornar um pro- blema crucial para a sociedade. A situação frustra os jo- vens, que se sentem incapazes de alcançar uma condi- ção econômica ao menos equivalente ao dos seus pais. E aumenta a sensação de deterioração social, já que é nítida a gravidade do problema da falta de oportunida- des de realização pessoal e de obtenção de renda para o exército de jovens que se aproxima a cada ano da ida- de de começar a trabalhar. A elevada taxa de desemprego na faixa de até 17 anos indica que grande parte das famílias brasileiras não tem condições de manter os jovens fora do mercado de tra- balho até o fim do ensino médio. A dimensão crescente do fenômeno levanta dúvidas em relação às dificulda- des cada vez maiores dos jovens para enfrentar a transi- ção da escola para o trabalho. Nos últimos 15 anos, a taxa de desemprego entre jo- vens cresceu sempre acima da média dos adultos. Em conseqüência, a proporção de jovens entre os desem- pregados ficou maior. O problema é grave no mundo inteiro, mas muitos pa- íses conseguem reduzir o desemprego juvenil com polí- ticas públicas voltadas para o emprego entre jovens. No Brasil, porém, a situação do emprego entre jovens mos- tra-se alarmante. A taxa de 46,6% de jovens desempre- gados é maior do que a do México (com 40,4%), Argen- tina (39,6%), Reino Unido (38,6%), Suécia (33,3%), Es- tados Unidos (33,2%), Itália (25,9%), Espanha (25,6%), França (22,1%), e Alemanha (16,3%). No mundo inteiro, a preocupação ganha dimensão, motivando iniciativas como os ‘Objetivos de Desenvolvi- mento do Milênio’, que levaram ao lançamento da Rede de Empregos para Jovens da Organização Internacional do Trabalho. Entre as alternativas discutidas para atenu- ar o problema, existem as políticas de formação profis- sional, de incentivo a contratações e normativas. No Brasil, a criação de programas governamentais com esse propósito mostra-se generosa, mas os resultados não são animadores. Existem iniciativas nas áreas de formação profissional, com recursos do Fundo de Amparo ao Traba- lhador (FAT), políticas de incentivo oficial, como o progra- ma primeiro emprego e políticas normativas, como a lei do aprendiz. O exemplo mais eloqüente foi o Primeiro Empre- go, lançado pelo governo federal em 2003 e abandonado em 2007, depois de resultar na criação de apenas 15 mil postos de trabalho para jovens - 3% da meta inicial. Dentre as várias causas do alto desemprego entre os jovens brasileiros, a falta de qualificação profissio- nal é reconhecidamente uma das mais importantes. Mas os cursos públicos de educação profissional técni- ca, elogiados por sua qualidade, enfrentam uma grave deficiência. Segundo estimativa do Ministério da Edu- cação, a oferta de vagas atende a apenas 11% da de- manda potencial. O investimento em formação profissional, segundo um estudo do Ipea, é de eficácia questionável como for- 66 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ma de reduzir significativamente o desemprego juvenil. Isso porque o aumento do desemprego não se dá apenas entre os jovens e ocorre por causa da geração insuficien- te de postos de trabalho para toda a população trabalha- dora. Dessa forma, aprimorar as habilidades dos jovens provavelmente não significa garantia de espaço muito maior no mercado. Se isso ocorresse, seria em detrimen- to do emprego dos adultos, aumentando a concorrência por vagas. Para o Ipea, em um cenário de desemprego elevado, a formação profissional é apenas compensató- ria, ao reduzir a desigualdade no mercado quando é di- rigida aos jovens de menor “empregabilidade”. Apesar de ineficaz em termos concretos para reduzir o desemprego juvenil, a formação profissional pode ajudar a limitar a rotatividade no emprego e abrir melhores possi- bilidades para a carreira profissional dos beneficiados. Políticas de incentivo à oferta de vagas para jovens consistem basicamente em redução do custo para a contratação. Uma das formas é a criação de subsídio, que transfere para o Estado uma parte do custo salarial. Outra alternativa é a redução de encargos trabalhistas. O risco é o de que as empresas possam passar a con- tratar jovens com subsídio para substituir trabalhado- res adultos. Nesse caso, o benefício seria apenas para a empresa, e não para o mercado de trabalho, pois os novos desempregados continuariam competindo com outros jovens. No caso das políticas normativas, existem várias ex- periências de regulação de novas formas de contrato de trabalho temporário, em jornada parcial e com me- nos encargos, o que se assemelha aos subsídios para contratação. Também há propostas que fixam limites ao emprego de jovens, buscando orientar sua experi- ência profissional para a aprendizagem. Em todos estes casos, as políticas servem mais para influenciar as características dos trabalhadores que bus- cam trabalho do que para a geração de ocupações. A evidência de que a educação é insuficiente e ine- ficiente para preparar o jovem para o mundo contem- porâneo aponta cada vez mais para a necessidade de uma nova diretriz educacional. Fica cada vez mais evi- dente que o mundo está mudando rapidamente, e o mercado de trabalho também, mas a escola não acom- panha o ritmo da mudança. Ela parece incapaz de pre- parar o jovem para os desafios do mundo. Justo ela, que seria uma das poucas instituições que poderiam ajudá-lo nesta hora. Uma proposta, lançada pelo soci- ólogo José de Souza Martins, é a de que o ensino mé- dio deveria permitir aos estudantes o acesso à socio- logia básica que os capacitasse a compreender o ou- tro e o diferente e, na mediação do outro, compreen- der a si mesmo. Segundo ele, quanto mais o País de- morar a colocar esse meio de discernimento ao alcan- ce dos jovens, mais se agravará o analfabetismo cultu- ral que limita o alcance e empobrece as outras discipli- nas do ensino médio. Para o sociólogo, o debate dobre a educação no Brasil tornou-se um debate equivocado sobre emprego, quando deveria ser pensada como a preparação para a vida, para o sonho, para sempre e também para o emprego. Alguns números para refletir sobre a questão *Faltam profissionais qualificados para o mercado de tra- balho. Em vários setores, há vagas, mas as empresas não conseguem preenchê-las. O déficit de profissionais qualifi- cados e com experiência é mais relevante em determinados setores da indústria: química e petroquímica, produtos de transportes e mecânicos e extrativista mineral. Segundo o Ipea, falta mão-de-obra com qualificação e experiência para 123,3 mil vagas com carteira assinada abertas em 2007. O mesmo estudo apontou que 207,4 mil trabalha- dores qualificados deverão permanecer desemprega- dos neste ano por falta de vagas suficientes nos seto- res econômicos para as quais esses profissionais es- tariam habilitados. O setor com a maior sobra de mão- de-obra qualificada é o da construção civil, apesar do boom registrado na área. Na contabilidade geral do Ipea, o mercado de trabalho brasileiro teria um excesso de mão-de-obra qualificada de pouco mais de 84 mil pro- fissionais. Eles são uma parcela dos 1,7 milhão de tra- balhadores qualificados que foram ao mercado de tra- balho em 2007. *Entre os 34 milhões de jovens de 18 a 29 anos que moram nas cidades brasileiras, 21,8% não concluíram a oitava série - e 2,4% são analfabetos. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE. Em alguns estados, como Alagoas, a parcela dos que não concluíram o ensino fundamen- tal chega a 46%. *Cinco em cada cem jovens com idade entre 15 e 20 anos são analfabetos, segundo as duas principais avaliações do ensino nacional, o Saeb e o Enem. Vivem em pequenos mu- nicípios rurais (60%), quase sempre no Nordeste (65%). 67 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 *Enquanto fala-se de evasão escolar nos ciclos fun- damental e médio, os dados dos cursos superiores mos- tram os efeitos da obrigação de escolha da profissão na idade entre 17 a 20 anos. De cada cem jovens que entram numa faculdade de engenharia, só 41 concluem esse cur- so. Metade dos que entram em escolas de administra- ção desistem antes da formatura. Nas faculdades de di- reito, a porcentagem é de 38%. *Segundo o Dieese, jovens são hoje 46% dos desem- pregados, apesar de representarem apenas 25% da po- pulação economicamente ativa. Essa situação vem se agravando. O economista Cláudio Dedecca, da Unicamp, mostra que, em 1995, o desemprego atingia 13,9% dos jovens de 16 e 17 anos. Em 2004, chegou a 24,2%. O per- centual de jovens de 15 a 17 anos fora da escola, medi- do pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domi- cílios), aumentou de 2003 para 2005, chegando a 18%. Isso está diretamente relacionado a dois fatores medi- dos pelo MEC em seu Censo Escolar: evasão e reprova- ção. Ambas crescem no ensino médio. *Uma tabulação feita pela pesquisadora Maria Lucia Vieira, do IBGE, mostra que 21,4% dos jovens das seis maiores regiões metropolitanas não estudam nem traba- lham. Para Adalberto Cardoso, diretor de ensino do Ins- tituto Universitário de Pesquisas do Rio que pesquisa a transição de jovens da escola para o mercado, o índice de 18% de jovens fora da escola está perto de um limite estrutural. “O problema não é só da escola, nem é de va- gas. Ele tem muito mais a ver com a estrutura da pobreza brasileira, já que a maior parte desses jovens que não es- tão estudando vem de famílias muito pobres, que preci- sam da mão-de-obra deles para compor a renda”, diz. *Ruben Klein, pesquisador da Fundação Cesgranrio, vê o problema por outro ângulo: “Os jovens estão sain- do da escola sobretudo porque não aprendem e acabam retidos na mesma série. Se estivessem progredindo, pro- vavelmente conciliariam trabalho e estudo”. Ele conside- ra que é preciso pensar em políticas públicas que com- plementem a renda de famílias com jovens em idade es- colar. O ministro da Educação Fernando Haddad concor- da com a necessidade de bolsas para que os jovens de baixa renda permaneçam em cursos de formação e ca- pacitação. Ele diz que o governo federal vem tentando fazer isso por meio dos programas ProJovem e Escola de Fábrica. Para ele, outro caminho é a aprovação de uma lei que torne obrigatório o estudo dos seis aos 17 anos. Hoje, ela vale dos seis aos 14. Programa Jovens Urbanos Os jovens das periferias urbanas enfrentam um círculo vi- cioso em relação ao mundo do trabalho. Circulam entre ocupações temporárias, mal remuneradas e em geral in- formais. A situação dificulta a freqüência à escola e afasta ainda mais o jovem do mercado formal de trabalho. Este modelo tende a perpetuar as desigualdades e reproduzir a realidade que os jovens herdaram de seus pais. Para esta situação, os programas tradicionais de qualificação profissional apresentam modestos resultados, segundo especialistas. Esse tipo de intervenção apenas retarda, ou retira o jovem temporariamente da condição de quem procura trabalho e não encontra. (Castro e Aquino, 2008. p.46). São formações rápidas que fortalecem a posição desqualificada em que o jovem se encontra. Como capacitar jovens da periferia das grandes ci- dades para o mercado de trabalho? Se eles são a maio- ria entre os desempregados, e vivem em áreas onde existem pouquíssimas oportunidades, por onde come- çar a tarefa? Com base nestas indagações o programa desenhado propõe encontros significativos com diferentes opera- dores sociais: a Cidade, as Culturas em ação nas metró- poles e as Tecnologias contemporâneas, privilegiando a ação combinada desses agentes na formação dos jo- vens participantes. Fomenta sua inserção nos múltiplos territórios que compõem a vida das metrópoles. Através de práticas de circulação na cidade, o Programa propi- cia encontros ativos com potências movimentadas na ci- dade, promove a expansão de relações juvenis, concre- tizando usufruto de direitos de bens simbólicos e mate- riais que as cidades oferecem. Ao entrarem em contato com a multiplicidade cultu- ral em ação nas cidades e com diferentes modos de vida (além dos seus próprios), os jovens ampliam suas capa- cidades de pensar e agir sobre si mesmos e na cidade. Por outro lado, imersões em aspectos e questões urba- nas contemporâneas sustentam novos desempenhos ju- venis, em especial no mundo do trabalho e nos territó- rios onde mantêm vínculos. A elaboração de produtos e projetos de intervenção potencializa as subjetividades juvenis, pois os jovens são desafiados a atuar em contextos das cidades e a cons- truir projetos compondo perspectivas individuais e so- ciais. Ainda, por meio da produção, jovens experienciam atos de criação e exercitam a partilha social. 68 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Idade atual dos Jovens O que fez no primeiro trabalho Com quantos anos teve o primeiro trabalho Sexo Uma coisa que aprendeu 18 Fabrica de brinquedo – pintar brinquedos 16 Feminino Fazer rápido, porque recebia por produção 18 Supermercado – ajudante geral 16 Masculino Controlar a raiva 17 Cuidar dos sobrinhos 15 Feminino Expressar-se melhor 18 Orientador em estádio de futebol 17 Masculino Relacionar-se com pessoas diferentes 18 Lava rápido – limpeza interna dos veículos 17 Feminino Ser mais rápida e responsável 17 Doméstica e Babá de 3 crianças 14 Feminino Responsabilidade no cuidado com as crianças 18 Reciclar cartela de bingo – em casa 15 Feminino Responsabilidade com metas diárias 19 Lan House e Locadora - atendente 16 Masculino Paciência com os clientes 18 Atendente em loja de roupas 16 Feminino Falar com as pessoas Por último, aposta é que a qualificação das relações juventude e cidade, juventude e tecnologia, juventude e cultura contribua para a diminuição das situações de vulnerabilidade juvenil no campo escolar, profissional, público, relacional, das artes. As relações institucionais mobilizadas pelo Progra- ma sustentam-se numa perspectiva de ação pública em rede e pela necessidade de legitimidade de suporte ins- titucional e político às ações de intervenção junto ao pú- blico juvenil. É assim que o programa caracteriza-se por um arranjo institucional composto por parcerias com ór- gãos públicos, empresas privadas ou públicas de econo- mia mista e organizações do terceiro setor. Seus objeti- vos específicos são: • Ampliar a circulação dos jovens na cidade, garantin- do acesso às culturas urbanas e suas tecnologias; • Ampliar conhecimentos para qualificação e acesso ao mundo do trabalho; • Apoiar a produção de projetos de intervenção juvenil; • Contribuir para a permanência e reintegração ao sis- tema escolar, além da vinculação a novos processos formativos. Os jovens falam sobre seu mundo de trabalho1 Um grupo de nove jovens participantes do Programa foi convidado a levantar algumas idéias de como estão vendo, vivenciando e enfrentando questões do mundo do trabalho na periferia da maior cidade do País - o que o trabalho ensina, para que serve, qual é a relação en- tre o jovem e o trabalho? Nas respostas a seguir, os jovens expressam com suas próprias palavras a visão do universo profissional a partir dos debates em grupo. A leitura serve de refle- xão para todos aqueles que se preocupam com o futuro de milhões de jovens brasileiros que vivem uma difícil realidade em áreas onde faltam opções de lazer, cultura e trabalho e sobram problemas sociais e urbanos. São vítimas das metrópoles brasileiras e das desigualdades, não conseguindo por isso mesmo elaborar e perseguir metas mais consistentes como trabalhadores. Trabalho é experiência, nele você aprende e ensina. responsabilidade, fazer o que tem que fazer. uma forma de sobreviver, pois todos tem que trabalhar para ter o seu ganho. uma atividade que exige paciência e união. Não dá para fazer só o que quer. uma atividade na qual já está definido e organizado o que se vai fazer, o que se pode fazer e o que pode ser dito. uma obrigação, pois eu tenho que me manter. Mas, não é só obri- gação, pode ser também satisfação. 69 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 70 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Agregado às definições eles refletiram sobre as carac- terísticas de alguns trabalhos, identificando os compo- nentes de produção, renda, mercado e legalidade. Trabalho pode ser em casa, na escola... Todo mundo tem trabalho de diferentes formas. Tem trabalho que é emprego e tem emprego que não tem trabalho. Trabalho que é todo dia é emprego. Trabalho é saber fazer alguma coisa: varrer, cozinhar... Também pode ser emprego, porque se recebe dinheiro com isso. Emprego é quando alguém precisa de outra pessoa para fazer um tra- balho, mas não é só uma coisa de união, há dinheiro envolvido. Em Brasília, há trabalho também, há os corruptos, mas há quem trabalha. Roubo e trafico pode ser considerado trabalho? Trabalho desonesto também é trabalho? Trabalho desonesto é menos trabalho do que aquele que é honesto? Os jovens conversaram também sobre as finalidades e motivações para trabalhar. Há quem goste de trabalho para poder mandar nos outros. Há quem trabalhe por necessidade e não goste do que faz – neces- sidade pela obrigação de manter a família (meu pai é motorista, o trabalho para ele é a vida, mas hoje o que ele faz é outra coisa, ele tem um serviço. É triste). Há também casos em que a pessoa não gostava do que fazia, mas com o tempo, passa a gostar. A gente pode “se dar bem”, evoluir trabalhando com o que não gosta (ganhar mais, ser bom, ganhar outros cargos). O trabalho pode ser não só para ganhar dinheiro, mas uma forma de 71 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 viver a vida. Tem um monte de gente que trabalha com o que gosta. Algumas pessoas trabalham por prazer e satisfação e ainda ga- nham dinheiro. Nossa discussão começou a ser desenvolvida a partir da questão financeira. Achamos que todos os que trabalham tentam ter uma situação financeira estável e crescente. Foi então que vimos que nem todos trabalham para isso, mas por necessidade de uma vida social (conhecer e conviver com outras pes- soas). Nem todas as pessoas de classe alta convivem com as pessoas de classe média ou baixa, o trabalho é uma oportunidade para isto. Como temos que trabalhar, nem todos trabalham com o que gos- tam, mas com o que podem. Se trabalhássemos com aquilo de que gostamos, mesmo ganhando menos, seríamos mais felizes. Imagino ter uma oportunidade aonde eu possa aprender e obter experiência. que no trabalho é preciso correr atrás dos seus objetivos. fazer uma faculdade para obter um bom emprego. participar de uma dinâmica na esperança de ser aprovada para a próxima etapa. Ou mesmo não sendo aprovada, sonhar em ter outras oportunidades para aprender o que for necessário. fazer arquitetura. Casar com a minha namorada que fará engenha- ria e construirmos nossa casa. Só não vou trabalhar com esporte, porque não vou ganhar dinheiro. Com este repertório de entendimentos esses jovens pare- cem afirmar que o trabalho é uma contingência não che- gando a reconhecê-lo como possibilidade de expressão de si no mundo, ou melhor, mediação para se comparti- lhar o mundo. O trabalho é mais um meio de assegurar subsistência. É, igualmente, instrumento para obter re- lativa possibilidade de segurança e até gozo. Trabalhar, mais do que cumprir ordens e ser contro- lado é adquirir experiência, compartilhar conhecimen- tos e evoluir. Nesta percepção encontra-se possivelmen- te o que mais o seduz no mercado informal: a liberda- de e a casualidade. Os jovens têm consciência da sua dificuldade para enfrentar o disputado mercado de trabalho o que não os impede de sonhar com a possibilidade de um dia con- quistar um espaço de realização profissional, sem abrir mão de com isso obter satisfação pessoal. O jovem da periferia vê no trabalho a possibilidade de obter expe- riência e responsabilidade. Ele acredita que cursar uma faculdade poderia facilitar o acesso ao mercado, mas ali- menta a esperança de ser aprovado na próxima entre- vista para um emprego. Mesmo diante de todas as difi- culdades, acha que é preciso lutar e ter confiança em si mesmo para alcançar seus objetivos. Os jovens finalizaram sua reflexão avaliando que o Programa Jovens Urbanos contribuiu para que constru- íssem novas visões sobre trabalhar. Um dos participan- tes resume a conclusão do grupo: Antes do PJU eu pen- sava em trabalhar para ajudar financeiramente a mim e a minha família. Agora eu continuo querendo isso, mas estou escolhendo um caminho, vendo que posso cami- nhar com as minhas próprias pernas, fazer uma coisa que gosto e também ajudar a minha família e, pensar em construir a minha. NOTAS 1 Participaram da conversa sobre trabalho: Meridiana Camila Romero, Cleyton de oliveira, Leandro dos Santos, Roelson ferreira de vasconcelos, Sheila Angélica Pereira, Mario Sergio Evangelista da Silva, Rodrigo de Cassia Cala- do, Vandeilma de Melo Silva, Nubia Alves da Silva, Talita Rodrigues Todao, Suzana Lucas Gonçalves. REFERÊNCIAS Ação Educativa. Notícias. Cláudio Dedecca fala sobre saídas para o desemprego juvenil Disponível na Internet: http://www.acaoeducativa.org.br/portal/in- dex.php?option=com_content&task=view&id=642. 03 de junho de 2008. DIEESE. A ocupação dos jovens nos mercados de trabalho metropolitanos. Estudos e Pesquisas. Ano 3 – No 24 – setembro de 2006 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. AQUINO, Luseni & CASTRO Jorge A. (orgs.) JUVENTUDE E POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL. Texto Para Discussão No 1335. Brasília, abril de 2008 Souza Martins J. Os novos analfabetos da modernidade. Jornal O Estado de S. Paulo . Suplementos. ALIÁS . Domingo. 27 de Janeiro de 1008.Versão Impressa. Disponível na Internet: http://www.estadao.com.br/suplemen- tos/not_sup115788,0.htm Rede ANDI. Evasão escolar e desemprego crescem entre jovens. Disponível na Internet: http://www.redandi.org/verPublicacao.php5?L=ES&id=2428&idp ais=3 . Acesso em 05 de junho de 2008. (extraído da Folha de S. Paulo – SP, Luciana Constantino e Antônio Gois, 01/10/2006) Casa da Juventude Pe. Burnier. Evasão e desemprego crescem entre jovens. Disponível na Internet: http://www.casadajuventude.org.br/index.php?op tion=content&task=view&id=1162&Itemid=0 . Acesso em 05 de junho de 2008. Retirado da Folha de São Paulo On Line (01/10/2006) 72 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Osprojetos dos jovens, antesde idéias, são sonhos. So- nhos coletivos. Estão carregados por uma energia que exis- te intensamente nesses te intensamente nesses jovens, mas não se ovens, mas não se resume a e resume a eles. São desejos re ão desejos represados que o Programa Jovens Ur resados que o Programa Jovens Urbanos, de alguma maneira, desanuviou. Mas sua vazão transcen- de em muito os limites e capaci e em muito os limites e capacidades do Programa. o Programa. Exemplo típico é o Projeto Coo o Projeto Cooperativa Artesanal dos erativa Artesanal dos Jovens Urbanos ou simplesmente CAJU, como tornou-se carinhosamente con osamente conhecida entre os ecida entre os jovens. O grupo chegou à conclusão de que a comunidade está carente de lazer e cultura. A região est e lazer e cultura. A região está necessitando de um a necessitando de um apoio para resgatar a cidadania, a di atar a cidadania, a dignidade e a melhoria de vida na re nidade e a melhoria de vida na região do Campo Limpo e Jardim Mitsutani. o e Jardim Mitsutani. Justificativa do Projeto CAJU A CAJU or CAJU organizou uma feira anizou uma feira de artesanato em frente e artesanato em frente à Turma da Touca, organização que acompanhou os jo- vens durante a formação de dez meses e que hoje apóia o projeto. Assessora rojeto. Assessorados por Tião Soares, os jovens m or Tião Soares, os jovens mo- bilizaram artesãos locais e realizaram a feira na qual fo- ram expostos os tra ram expostos os trabalhos elaborados nas oficinas rea orados nas oficinas rea- lizadas com a comunidade izadas com a comunidade. Nosso objetivo é gerar trabalho e renda na comunidades potencia- lizando o conhecimento e talentos locais. O projeto CAJU mobilizou oficineiros moradores vo- luntários para ministrar as oficinas de ara ministrar as oficinas de artesanato. Arti artesanato. Arti- culou com a Subprefeitura do Campo Limpo e com a A ulou com a Subprefeitura do Campo Limpo e com a As- sociação ociação de Moradores do Jardim Mitsutani a cessão im Mitsutani a cessão de espaços para a realização das oficinas e as divulgou em ara a realização das oficinas e as divulgou em escolas públicas e telecentro da região scolas públicas e telecentro da região. O ponto de encontro entre a constatação de onto de encontro entre a constatação de proble- mas na comunidade e o objetivo do projeto dos jovens é a necessidade. Uma necessidade que não aparece no texto, mas conforma o cenário e sentido dos projetos: o RELATO DE PRÁTICA Projeto Caju: como formar bons artesãos. Programa Jovens Urbanos cotidiano inventivo da comunidade, a ausência de tra- balho e a ociosidade de muitos moradores, o e a ociosidade de muitos moradores, boa parte deles jovens. Composições e Parcerias Comunidade Familiares Voluntários Interessados Amigos Cooperandos Instituições Oficineiros ONG’s Cooperativas Jovens de 16 a 25 anos Escolas Particulares Telecentro Escolas Municipais Escolas Estaduais Ação Comunitária do Brasil Arrastão C.E.U. Aprendizagens de Planejamento – Cronograma – CAJU Objetivos Ação Atividades Responsáveis Cronograma Recursos Mobilizar Talentos Pesquisar a área Colocar cartazes Karen, Ronaldo, Rodrigo, Diogo Primeira semana de abril Sulfite, cartolina, cola, tesoura, cópia xerox, canetinhas, fitas em geral Reunião Karen, Rafael, Giselle Final de Abril (4a semana) Sulfite, caneta, cane- tão, cartolina, régua Divulgar Dividir tarefas Giovanni, Alexandre Na segunda semana de abril Caderno, caneta Procurar Ronaldo, Rodrigo, Débora, Érika, Vivi, Ilva 20 de março Estabelecer parce- rias que apóiem o desenvolvimento dos talentos na comunidade Procurar patrocínios Levantamento de pessoas que possam ajudar Ronaldo, Rodrigo, Débora 20 de março Caderno, caneta Entrar em contato Procurar pessoas Érika, Viviane, Ilva, Alexandre A partir de 20/3 Conquistar espaço para aprendizado e troca de conheci- mentos Pesquisar a região Procurar Todos 3a semana de março Sulfite, caneta, transporte Procurar algu- ma instituição que possa dar o espaço Mapeamento Guia Contato com os parceiros Projeto impresso Incentivar o cresci- mento do grupo e o desenvolvimento do trabalho Conhecimento da comunidade Oficinas Rafael, Adriano Junho ou julho Aprendizado Transporte e lanche Visitar lugares de artesanato Ilva, Viviane, Heloisa, Cristiane, Giselle Maio Voluntários Compromisso do voluntário Rafael, Adriano Divulgar os artesa- natos produzidos pelo talentos Exposições Ver o local Giovanni, Diogo Agosto Transporte e lanche Meios de comunicação Organizar os materiais Todos 4a semana de agosto Eventos, feiras Entrar em conta- to por meio de visitas e telefone Contato com os organizadores Adriano, Patricia, Camila Agosto Telefone, fax, computador 74 ARTIGO .OSSAS CIDADES S»O TECNOLOGICAMENTE MEDIADAS Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, com o estranho: todo um programa que parecerá bem distante das urgências do momento! E, no entanto, é exatamente na articulação: das subje- tividades em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época. Félix Guattari, As três ecologias. Pequena nota sobre tecnologias, ciências, culturas e subjetividades. o mundo contemporâneo, tecnologias vinculadas às ciências – as tecnociências – atuam no modo de vida das populações das cidades, atravessando múltiplos territórios urbanos. Entrar na cidade, nos domínios e questões da vida ur- bana – como trabalho, arte, lazer, comunicação, meio- ambiente, saúde etc. –, exige atenção e reconhecimen- to de tecnologias que orientam o funcionamento de seus mais variados territórios. As tecnociências, convém des- tacar, tornam-se cada vez mais importantes na produção das subjetividades atuais e na configuração de relações estabelecidas nos domínios urbanos. Como exemplo, baseamo-nos nas análises de Don- na Haraway (2000), quando aponta a função crucial de tecnologias como viodegames e aparelhos de televisão para a produção de formas de “vida privada” na con- temporaneidade. Outras questões envolvidas nas tecnociências re- lacionam-se diretamente às mudanças envolvidas no mundo do trabalho, reconfigurando tanto as condições de empregabilidade atuais como as performances das forças produtivas. Adentrar no universo das tecnologias implica muito mais do que apreender somente aspectos isolados ou puramente técnicos de um produto tecnológico (do tipo Núcleo de Pesquisa do Programa Jovens Urbanos . 75 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 como funciona uma máquina ou como podemos mani- pulá-la), pois, sobretudo, é necessário indagar com que modelações de vida as tecnociências estão implicadas no cotidiano das vidas na cidade e se tais modulações concorrem ou não para a melhoria das condições de vida da humanidade e, em especial, das juventudes ur- banas atuais. Na mesma direção, cabe também abrir um campo de visibilidade para quais conhecimentos científicos e quais interesses políticos orientam o desenvolvimento e a uti- lização das tecnologias em ação nos domínios e ques- tões mais fundamentais da cidade. De acordo com Don- na Haraway (2000:36) a tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Transmutados em maquinarias, dispositivos, siste- mas e materiais de manipulação, os conhecimentos cien- tíficos saltaram do ambiente de laboratórios, de pesqui- sas e de processos industriais de ponta para o cotidiano de um contingente cada vez maior de pessoas. Os vínculos entre tecnologias e modelações de vida se esvaecem na vida da cidade. Os conhecimentos científicos que orientam o desen- volvimento e a utilização das tecnologias são inaces- síveis para a maioria das ara a maioria das pessoas: nas sociedades essoas: nas sociedades do presente consumimos produtos tecnológicos, cujos conhecimentos que os orientaram nos são materialmente invis lmente invisíveis. Ao usarmos produtos tecnológicos no geral não visualizamos: – lugares on ares onde as tecnolo e as tecnologias são ias são desenvolvi esenvolvidas; – conhecimentos cient onhecimentos científicos mani ficos manipulados na ulados na pro- dução tecnológica; – finalidades e interesses sociais, econômicos, ecológicos, artísticos etc. implicados na produção e uso de tecnologias; – modelações de vida (significados, desejos, hábitos, estilos de vida) produzidas no uso de tecnologias científicas; – efeitos subjetivos que as tecnologias produzem em nossas vidas: modos de pensar, de agir etc. Pode-se dizer que populações do mundo todo orga- nizam suas vidas atravessadas por algum tipo de ma- quinaria ou dispositivo tecnológico, mesmo que o en- tendimento das técnicas científicas, como observa Paul Valéry1 não pertença mais ao pensamento humano. De acordo com o autor, o entendimento das tecnociências nos escapa em todas as direções, pois se inscrevem na nossa história de maneira veloz e transitiva. Se a presença das tecnociências na vida das pessoas não requisita o entendimento humano, em sentido dia- metralmente oposto produz crenças poderosas. As tecnologias e suas extensões As tecnologias adentraram de tal maneira as dimen- sões da vida humana, que assistimos hoje a uma conver- são de bens tecnológicos em itens fundamentais para o “bem viver” de indivíduos e populações. Não é por de- mais dizer que, em torno das tecnologias científicas, or- ganizam-se crenças que as associam fortemente ao al- cance e realização de todo tipo de benefício. Revestidas de valor positivado, as tecnologias são vinculadas em vários registros discursivos – econômicos, midiáticos, acadêmicos, médicos, ecológicos, pedagógi- cos, jurídicos etc. – à conservação da vida; à aquisição de conforto; ao acesso pleno às informações; à amplia- ção de segurança; à consolidação de aprendizagens; à inclusão social; à salvação planetária etc. Enredados nessa equação – tecnologias e qualifica- ção da vida – é que observamos na atualidade novos discursos jurídicos no campo dos direitos sociais, situ- ando as tecnologias científicas como item relevante no rol de provimentos sociais necessários ao combate de desigualdades, principalmente em países com alto ín- dice de injustiças, como o Brasil, por exemplo, 2 . A defesa pelo acesso das populações às tecnologias e pela ampliação de uso e manipulação de bens tecno- lógicos passa a figurar na agenda de luta de grupos vin- culados à consolidação de direitos sociais, confirmando a implicação das tecnologias com o alcance da melhoria das condições de vida em geral. Laymert Garcia dos Santos, estudioso das relações en- tre tecnologia e sociedade, ao pôr em relevo o grau de va- lorização (positivado) atingido pelas tecnociências na or- ganização da vida atual, deslinda em seus textos os me- canismos pelos quais as tecnologias alcançaram centra- lidade em diferentes terrenos da atividade humana. 76 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 A centralidade desfrutada pelas tecnologias científi- cas adviria fundamentalmente de estratégias de entre- laçamento – conectividades – produzidas entre tecnolo- gias e diferentes dimensões da vida social. Tornadas aliadas de atividades humanas em curso nas sociedades contemporâneas – desde a extensão da competitividade e lucratividade de mercados econômi- cos, passando pela disseminação acelerada de informa- ções, controle da biodiversidade, volatilização de ima- gens, interatividade virtuais, diagnósticos médicos, re- produção humana, produção de banco de dados etc. –, as novas tecnologias, simultaneamente, • descrevem novas funções para os modos de vida das populações; • são transmutadas em imperativos em variadas ativi- dades sociais; • são assimiladas, muitas vezes de forma invisível, em diferentes formas de controle, não cessando de ex- pandir suas ramificações sobre a vida dos homens e seus destinos. Considerando-se a extensão dos tipos de conectivida- des estabelecidas entre tecnologias e atividades humanas, é inescapável não reconhecer a predominância das tecno- logias como orientadoras de culturas contemporâneas. Nesse sentido, as relações complexas entre as tecno- logias e forças sociais – econômicas, midiáticas, esta- tais, artísticas etc. – operariam tanto na desconstrução de critérios que balizavam a concepção moderna de ho- mem, como numa nova caracterização das subjetivida- des humanas. O lado invisível da tecnologia O impacto crescente da evolução tecnocientífica nos territórios das atividades e concepções humanas não é, contudo, apreendido pelos contingentes populacionais na complexidade de seus efeitos. Como discorre Garcia dos Santos(2003, p.10): em nossas relações com a tecnologia parece ainda prevalecer uma grande ingenuidade: como se ainda fosse possível considerá-la apenas quando ela nos ‘serve’! Os benefícios associados na adoção e uso de novas tecnologias mereciam, nesse sentido, um grau de aten- ção e sensibilidade certamente não alardeado pelos mass mídia de alcance mundial. Numa perspectiva mais crítica e menos “fetichista” em que são situadas as tecnologias, há que se defen- der a questão da tecnologia não como um debate res- trito a especialistas científicos, econômicos, jurídicos, e sim como debate público, onde possam ser integra- das em especial as juventudes, as quais são convoca- das diariamente a se vincularem utilitariamente ao mun- do tecnológico. Na introdução do livro Politizar as novas tecnologias, Garcia dos Santos (2003) aponta para o perigo de consi- derar as novas tecnologias apenas sob a perspectiva de consumo e uso de serviços, sem que possamos avaliar seus possíveis impactos sobre, por exemplo, o meio am- biente e o destino dos seres humanos como espécie. O autor enfatiza: ...por mais importante que seja o plano utilitário, este não esgota o modo de existência das máquinas; mas tudo que na tecnologia extrapola a função de uso permanece invisível e não é percebido. E aí parece residir o perigo. Na crítica empreendida aos modos como as novas tecnologias são comunicadas e experimentadas social- mente pelas populações, emerge a necessidade urgente de politizar o debate sobre as novas tecnologias, fazen- do frente àqueles discursos que glorificam os produtos e as benesses das tecnologias per se, desconsiderando-as como objetos passíveis de atuarem na vida humana tan- to para sua expansão coletiva como para o atendimento de interesses parciais de grupos específicos. A ação de politização compreenderia primeiramente explicitar funções socioculturais desempenhadas pelas novas tecnologias que não ganham visibilidade pela via do marketing público, como, por exemplo, a função de- sempenhada pelas biotecnologias, como a de converter formas de vida em matérias-primas rentáveis, transmu- tando plantas, animais e microrganismos em uma rique- za econômica potencial. De outro lado e integrado à primeira questão, seria ne- cessário debater os processos de produção científico-tec- nológicos, de modo a problematizar os interesses que co- ordenam e/ou orientam as práticas científicas envolvidas com a constituição dos conhecimentos tecnológicos. Quando consultamos estudos sobre o impacto de novas tecnologias nos principais problemas enfrenta- dos na vida contemporânea, os dados revelados não são animadores: 77 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 • apesar da tecnologia e da pujante indústria mundial de alimentos, a fome é ainda uma ameaça para mi- lhares de pessoas no mundo; • a incorporação de inovações tecnológicas no merca- do de trabalho, em particular nos ambientes de gran- des empresas privadas, mostraram-se desfavoráveis à evolução do emprego da força de trabalho no mun- do todo, em especial para grupos juvenis; • a revolução biológica empreendida nos anos 90 pelo desenvolvimento de biotecnologias não foi suficien- te para conter o retorno de doenças que já pareciam subtraídas da vida humana. Assim, problemáticas humanas planetárias ou as que afetam comunidades populacionais específicas nos obri- gam a inscrever o quadro global de tecnicização da vida em proposições políticas e éticas, o que significa assu- mirmos a questão tecnológica “pelo o que queremos vi- ver e agir”. Certamente, precisamos abrir a caixa de ferramentas! Experimentações dos jovens em territórios tecnológicos Na perspectiva do Programa Jovens Urbanos, as inovações tecnocientíficas podem e devem contribuir para o alargamento das práticas produtivas juvenis na cidade (sejam essas práticas produtivas escolares, se- jam laborais, artísticas, de lazer etc.), na medida em que possam ser significadas, não somente como bens a ser adquiridos ou recursos a ser utilizados na produ- ção e prestação de serviços sociais e/ou institucionais mas também como uma “caixa de ferramentas” dispo- nível às juventudes para esculpirem novas experiên- cias de si e sociais. Essa possibilidade de pensar o uso de tecnologias – compreendidas como ferramentas que servem a sen- tidos múltiplos de quem as manipula – passa, então, a ser um dos objetivos do Programa Jovens Urbanos, como meio de irradiação de outras formas de lidar e atuar na vida urbano-comunitária. Além disso, o alcance de tal objetivo concorre para articular de forma mais ampla as tecnociências às problemáticas e soluções urbanas. A exploração e experimentação de territórios urba- nos marcados, em seus funcionamentos, por tecnolo- gias científicas é um das ações prioritárias da formação das juventudes no Programa Jovens Urbanos. O princípio que permeia essa ação orienta-se pela necessidade atual de jovens reconhecerem tecnologias atuantes nos territórios da cidade e as funções que de- sempenham em variadas questões e domínios sociais. Nesse sentido, uma das principais ações estratégi- cas do Programa, o agenciamento de múltiplas parce- rias e assessorias tecnológicas, tem como objetivo ga- rantir que os jovens possam experimentar territórios ur- banos marcados pelas tecnologias científicas. O estabelecimento de parcerias e a contratação de assessorias colocam-se como política institucional e programática do PJU. Partindo do princípio da incom- pletude e tendo como objetivo comum a formação qua- lificada das juventudes contemporâneas, instituições de trajetórias e perfis diversos se encontram fazendo circular e entrecruzar experiências, num movimento de troca e implicações mútuas. Em seus territórios de atuação, cada uma das parcerias coloca à disposição dos jovens um conjun- to de conhecimentos tecnológicos por meio de estra- tégias metodológicas específicas – experimentação, exploração e produção. Usar tecnologias como ferramentas para constituição de novas experiências individuais e coletivas na cidade As tecnologias associadas s tecnologias associadas às ciências s ciências podem atuar na concretização de novas perspectivas indi- viduais e coletivas de vida ais e coletivas de vida urbana. Um dos principais objetivos do Programa Jo- vens Urbanos é que as tecnologias atuem como ferramentas ativas nos projetos de vida juvenis (na vida familiar, profissional, escolar etc.) e nas intervenções inventivas que serão elaboradas nos territórios da cidade. Em um mundo no qual a vida individual e coletiva se vê altamente desregulamentada politicamente, investir no revigoramento nvestir no revigoramento das forças in as forças individuais e coletivas da cidade, oletivas da cidade, aliando-as aliando-as às tecnolo às tecnologias como ias como ferramentas – e não como erramentas – e não como produtos de consumo –, e consumo –, perfaz a ação política do PJU. 78 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Os principais objetivos das experimentações e explo- rações, no que concerne ao campo das tecnologias, são: • Propiciar que os jovens identifiquem tipos de produção tecnológica vinculados às problemáticas urbanas. • Propiciar que os jovens conheçam e experienciem os processos científicos envolvidos na produção tecno- lógica e os modos de funcionamento das tecnologias apresentadas. • Propiciar que os jovens reflitam sobre a função social das tecnologias, seus usos e impactos nos territórios urbanos. • Gerar conhecimentos sobre temas urbanos e tecnolo- gias de maneira que novos saberes contribuam para o desenvolvimento de projetos interventores na cidade. • Irradiar formas de lidar e atuar na vida urbano- comunitária. O processo de exploração prevê um momento de con- tato direto dos jovens com o espaço onde se dá o proces- so tecnológico destacado; visita dos jovens com os con- textos da cidade onde possam ser observados produtos ou uso concreto de tecnologias requer do jovem conheci- mento que facilite sia inserção no mercado. A experimentação prevê contato com conceitos e saberes presentes nos processos tecnológicos, envolvendo a participação ativa dos jovens; manipulação por parte dos Estratégias metodológicas específicas Exploração Identificação do funcionamen- to, das especificidades e dos códigos das relações sociais, dos equipamentos, serviços etc. presentes na cidade. As práticas de exploração na cidade visam aguçar o olhar so- bre o múltiplo cultural presente nos cenários urbanos. Acontecem por meio de incur- sões a ambientes urbanos nos distritos e bairros onde os jo- vens residem e nos espaços da cidade. Tais experiências são mobiliza- das tanto pelo CENPEC, via par- ceiros e assessores tecnológi- cos, quanto pelos educadores das ONGs. Experimentação As experimentações têm como perspectiva engajar os grupos jovens em situações diferentes de suas referências habituais: conhecer e experimentar dife- rentes tecnologias; experimen- tar saberes e repertórios cul- turais que compõem a vida na cidade. Ocorrem por meio de vivências ativas, tendo como intuito fo- mentar idéias e práticas para ex- pansão de repertórios e para a elaboração de projetos pessoais e de intervenção. Tais vivências são implementa- das pelos parceiros e assesso- res contratados (oficinas tecno- lógicas) e pelas ONGs. Produção As produções visam intensificar e fomentar as capacidades de in- venção e atuação dos jovens na cidade, dando passagem a novas produções tanto individual quan- to coletiva. Os produtos dão concretude aos efeitos produzidos pelas experiên- cias de exploração e experimen- tação vividas pelos jovens, amal- gamando diferentes sentidos em torno de reflexões e ações comuns. Já a contratação de assessorias visa complementar o campo de experimentações contemplado pelos parceiros, propiciando a maior diversidade, número e qualidade de experiências ofere- cidas aos jovens. jovens de instrumentos, objetos, substâncias existentes no desenvolvimento da tecnologia; problematizações das funções sociais abrangidas pela tecnologia em destaque, das condições necessárias à aplicabilidade da tecnolo- gia em pauta. Partindo do pressuposto de que o tempo atual é intensamente mediado pelas tecnologias, o Programa busca abarcar a complexidade que configura essas me- diações. Para isso, são eleitos alguns territórios tecnoló- gicos que marcam a vida urbana, em especial os modos de vida das juventudes: Territórios de comunicação Captação e edição de sons e imagens; propaganda e televisão; tecnologias digitais; técnicas computadori- zadas e mídias urbanas. Territórios de serviços e produção Administração de negócios (tipos de empresa, co- operativas, plano de negócio, planos financeiros, pes- quisas de mercado, compras, precificação, marketing, propaganda, vendas); administração de pessoas (coo- perativismo, divisão do trabalho, relação interpessoal 79 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 no trabalho, remuneração, comunicação assertiva, pre- venção à saúde e promoção da qualidade de vida no tra- balho); terceirização de serviços e funcionamento em- presarial; serviços informatizados; processo de produ- ção industrial (tipos de produto, maquinarias, controle de qualidade, impactos sociais). Territórios ambientais Reúso de água; eletricidade residencial e energia so- lar; manejo do solo urbano (uso, ocupação e conserva- ção); reciclagem e compostagem de resíduos sólidos; tratamento de água nas cidades; trânsito e poluição atmosférica; ecossistema urbano. Territórios de artes Produção e textos teatrais; produção fotográfica e imagens urbanas; grafitagem nas ruas da cidade; cine- ma; pinturas e desenhos nos museus da cidade; core- ografias e cidadania urbana; dança de rua e técnicas expressivas. Territórios de lazer Itinerários artísticos e de lazer presentes na cidade. Territórios arquitetônicos Fachadas urbanas; paisagismo, reflorestamento e ar- borização; utilização e reciclagem de entulhos na cons- trução civil; vias públicas e circulação humana; revitali- zação de móveis. Territórios corporais Estéticas corporais; corpo humano e manipulação virtual; cosméticos; ficções científicas e robótica huma- na; alimentação e agricultura orgânica; sedentarismo urbano; alimentação e transgênicos; saneamento bási- co e saúde pública; técnicas hospitalares e medicinais; agentes de saúde pública. Territórios de aprendizagens Literatura e leituras juvenis; produção de textos orais e escritos; edição e revisão de texto; leituras da cidade. Exemplos de experimentações tecnológicas ofere- cidas ao jovens no contexto de implementação do PJU, em São Paulo (terceira edição) e no Rio de Janeiro (pri- meira edição) PARCEIROS TECNOLÓGICOS Rio de Janeiro e São Paulo PARCEIROS TERRITÓRIOS TECNOLÓGICOS Instituto Tomie Ohtake Artes Centro Universitário Maria Antônia/ USP Artes Cidade Escola Aprendiz Arquitetônicos e de comunicação Fundação Padre Anchieta – Rede Cultura de Televisão Comunicação Instituto Criar Comunicação ISA – Instituto Socioambiental Ambientais CPC – Centro de Preservação Cultural/ USP Arquitetônicos e de aprendizagens Secretaria Municipal de Cultura (PCRJ-SMAS/RJ) Artes e lazer Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (PCRJ-SMAS/RJ) Corporais e de lazer (esportes e intervenção nas vilas olímpicas) FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz Corporais Geração Futura / Canal Futura Comunicação TVE / Rádio MEC Comunicação Conselho das Instituições de Ensino Superior da Zona Oeste – CIEZO Comunicação, arquitetônico, serviços e produção (paisagismo e multimeios) Observatório de Favelas Comunicação, serviços e produção Spetaculum (Projeto Kaboom!!) Comunicação e artes CECIP (Centro de Criação de Imagem Popular) Comunicação 80 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 ASSESSORES TECNOLÓGICOS 3 São Paulo EXPERIMENTAÇÕES TERRITÓRIOS TECNOLÓGICOS Jovens Urbanos Têm Moda Serviços e produção ORA – Oficina de Revalorização Artística Artes e ambientais Giramundo: Corpo, Poesia e Outras Vias Aprendizagens e corporais Vivências Socioambientais Urbanas Ambientais Designer Marceneiro Serviços e produção Movimento Urbano Corporais Vivências Urbanas de Tradições Paulistas Artes e corporais Midiativa – Mostra de TV de Qualidade para Crianças Comunicação Novolhar – Oficina de Vídeo Comunicação Lambe Lambe Artes e arquitetônicos Comunique Comunicação Nós na Cena Artes Mídia Urbana Comunicação Agricultura Urbana Ambientais Recreoteca Lazer Capoeira Angola Corporais Literatura em Ação Arte e aprendizagens Água, Lixo e Tecnologias Limpas Ambientais Espaço Urbano Arquitetônicos e aprendizagens Mamãe, Estou Grávida! Corporais NOTAS 1 Pensador e poeta do século 19-20. 2 Estudo recente da Ritla (Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana), apresentado em julho de 2007 em Brasília, aponta que a exclusão digital nas escolas brasileiras está associada à cor, renda e natureza de serviços sociais. De acordo com estudo, apenas 25% dos alunos das instituições públicas usam Internet. Nas escolas particulares o acesso é feito por 83,6% do alunado. Quando a variável é a cor dos alunos, o estudo revela que 48,8% dos estudantes brancos usam a internet, contra 23,7% de alunos negros. Na variável renda a disparidade de uso é constrangedora: 85,7% dos alunos na faixa dos 10% mais ricos da população usam Internet; entre os 10% mais pobres, o número é de 5,9%. 3 Não foi possível contratar assessores tecnológicos na cidade do Rio de Janeiro. Embora o processo de seleção de assessores tenha sido público, não houve grande adesão ao processo e as propostas apresentadas eram de iniciativas individuais, o que impossibilitou a contratação devido à falta de documentação jurídica. REFERÊNCIAS HARAWAY, Donna, KUNZRU, Hari (2000). Antropologia do Ciborgue – as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica. SANTOS, Laymert Garcia dos (2003). Politizar as novas tecnologias – o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Editora 34. 81 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 82 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 “O nosso desejo, o nosso objetivo é realizar uma intervenção social no bairro onde moramos, deixá-lo com mais cor, com uma aparência melhor. Estaremos juntos com a comunidade do Jardim Paranapanema colorindo seus espaços para que todos tenham uma outra visão de onde moram...” Justificativa produzida pelos jovens do Projeto Arte sem Parar! Realizado durante a primeira edição do Programa Jo- vens Urbanos, o projeto Arte sem Parar! foi acompanha- do pela organização Provisão, ligada à Ação Comunitá- ria do Brasil. A Associação de Moradores do Jardim Jangadeiro, na Zona Sul de São Paulo, apoiou e sediou as reuniões com a comunidade. Além disso, foram realizadas visitas de porta em porta para a distribuição de panfletos contan- do a proposta e convidando todos à participação no dia da intervenção. Após algumas reuniões, jovens e moradores elabo- raram um cronograma para a realização da intervenção proposta pelo projeto. No ponto final de uma linha de ônibus – Itaim – Jardim Paranapanema, junto a um abri- go municipal também ocupado irregularmente, um con- junto de barracos teve seus caminhos e vielas pintados pelos jovens e moradores locais. Essa não deixa de ser uma forma de chamar a atenção para a situação e cola- borar para “outra visão de onde moram”. A pintura do galpão e vielas, com a comunidade, rea- lizou-se em regime de mutirão com a assessoria do gra- fiteiro local Alemão, contatado pelos jovens na organi- zação Serviço Social Bom Jesus. Durante as ações de intervenção, o Arte sem Parar! conseguiu a participação e o envolvimento direto de jo- vens do Projeto Afron-xá, sediado no galpão ao lado da comunidade. Conseguiu também a doação de lanches na padaria do Jardim Jangadeiro. RELATO DE PRÁTICA Projeto Arte sem Parar! Programa Jovens Urbanos Os moradores do Jardim Paranapanema 30 Famílias Instituições CDL Coop. de Luz, Jovens do Projeto Afron - Já Padaria Pão Nosso, CENPEC, Fundação Itaú, Provisão, Tintas Leme, Sacolão Paranapanema Comunidade Jovens da Creche do Parana- panema, Edmisa, Monitores Maria e Marcos, Jovens da Creche do Paranapanema Biannor, Capetinha, Moradores, Gilvan, Edilene RELATO DE PRÁTICA O Brócolis: A Força da Comunidade Programa Jovens Urbanos Eu sempre gostei muito da relação com a informática, eu fiz curso e tal, aí tem essa proposta do jornal, a gente se liga mais, aprende a diagramar, digitar, a gente tem que digitar, fazer a matéria. Agora para mim fica essa dúvida, eu não sei se eu faço informática na fa- culdade ou se eu faço educação física, eu gosto muito de esportes, só que eu estou com essa dúvida na minha cabeça, é positivo. Integrante do Projeto NIC: Núcleo de Informações Comunitárias e um dos responsáveis pela produção do jornal O Brócolis: a Força da Comunidade. No terceiro mês de implementação da segunda edição do Programa Jovens Urbanos em São Paulo, os jovens da ONG Associação Comunitária Todos Irmãos – ACTI, que fica na Brasilândia1 , produziram o jornal O Brócolis: a Força da Comunidade. O jornal foi entregue em um evento realizado no Morro do Piolho, onde se localiza a ACTI. Esse evento, organiza- do pelos próprios jovens, contou com a participação da comunidade, além de outros convidados, como o Cenpec, dirigentes da ACTI, estudantes da PUC-SP etc. Os jovens faziam questão de narrar, para todos que chegavam ao evento, o processo de elaboração do jor- nal. Eles também apresentavam as matérias e reporta- gens que haviam produzido. Ao final do evento assisti- mos a um espetáculo teatral produzido pelos jovens es- pecialmente para esse dia. Brócolis é o apelido de um dos jovens participantes do Programa. O nome do jornal é uma homenagem do grupo a este que, além de representar liderança, é o res- ponsável pelas ilustrações do jornal. Para a realização de O Brócolis, os jovens tiveram gran- de apoio da ONG ACTI, que viabilizou equipamentos e re- cursos para a impressão de mil cópias. Os educadores e os jovens também conseguiram parceria com uma gráfica local, que concedeu descontos para a impressão. Além disso, contaram com a expertise, de estudantes de jornalismo da PUC-SP, que, voluntariamente, auxilia- ram no manejo de softwares de diagramação, layout etc. Um jornal comunitário local abriu suas portas para o uso dos computadores e programas específicos. O grupo que trabalhou na produção do jornal foi com- posto por aproximadamente 30 jovens. Para responder ao desafio de produzir em um grupo tão grande, os jovens tiveram que se articular e se organizar em subgrupos de trabalho, cada qual com responsabilidades específicas: cuidar da elaboração dos textos, da revisão e diagrama- ção, da articulação, das fotos e da ilustração. Também tiveram que desenvolver competências necessárias para a realização do evento de lançamento do jornal. Com isso pode-se dizer que a produção de O Bróco- lis foi uma forte oportunidade de aprendizagem para os jovens: um trabalho coletivo e em parceria com diversos atores, que demandou habilidades de negociação, comu- nicação e engajamento em um projeto comum. NOTA 1 Bairro da Zona Norte da cidade de São Paulo. 83 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 PESQUISA 5M RETRATO DOS JOVENS URBANOS QUE PARTICIPARAM DO PROGRAMA Simone Aparecida Jorge Irineu Francisco Barreto Jr. Pesquisa realizada pelo Núcleo Sistema de Informações do Programa Jovens Urbanos (NSI)* * Simone Aparecida Jorge é socióloga, mestranda em Ciências Sociais pela PUC–SP e técnica do Cenpec. Irineu Francisco Barreto Jr. É sociólogo, doutor em Ciências Sociais pela PUC–SP, professor do curso de mestrado em direito das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU, de São Paulo, e analista da Fundação Seade. * Jordi Novas e Thiago Cantarim fazem parte do Núcleo Sistema de Informações: Thiago Cantarim, pedagogo (Faculdades Taboão da Serra – SP), especializado em educação à distância (Senac–SP) e Jordi Novas, diplomado em Trabalho Social pela Universidade Ramón LLuLL (Barcelona, Espanha), pós-graduado na área de Projetos de Coopera- ção Internacional pela Universidade Politécnica da Catalunha. Programa Jovens Urbanos consiste num conjunto de ações de formação para a população de 16 a 21 anos, em regiões de elevada vulnerabilidade socioeconômica. Nes- ta seção do estudo, apresentam-se dados sobre os jo- vens participantes da 1a Edição do programa na cidade do Rio de Janeiro e da 3a Edição no município de São Paulo, comparando-os com estatísticas sobre as características gerais desse segmento etário nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivas UFs e Brasil, nas situações em que essa comparação mostrar-se relevante. Ressalta-se que os dados utilizados da 3a Edição de Sáo Paulo são parciais, em decorrência da Edição estar em execução. Em termos gerais, o PJU ofereceu formação para 480 jovens em cada uma das duas cidades, por meio de uma rede de ONGs situadas nas regiões em que os jovens re- sidem, perfazendo um público total de 960 jovens. Os critérios de seleção dos territórios de intervenção do programa denotam de maneira bastante evidente as principais características socioeconômicas da popula- ção atendida pelo PJU. Foram estabelecidos como critérios para eleição das áreas de abrangência os seguintes índices e indicadores / 85 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 intra-urbanos de vulnerabilidade socioeconômica: • Índice de Vigilância e Vulnerabilidade Social – IVVS; • Índice de Desenvolvimento Humano – IDH; • Mapa dos Direitos Humanos; • Índice de Vulnerabilidade Juvenil – IVJ; • Mapa da Exclusão/ Inclusão Social; • Mapa da Vulnerabilidade Social; e • Índice Paulista de Vulnerabilidade Social – IPVS. Territórios de intervenção do PJU Tomados aqueles índices como critérios, foram, a partir de suas análises, selecionadas áreas de elevada vulnera- bilidade socioeconômica, identificadas no Quadro 1, para intervenção do PJU: Os indicadores sintéticos considerados seguem tendên- cias internacionais de customização de dados socioeco- nômicos e, com inspiração no Índice de Desenvolvimen- to Humano – IDH, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano – PNUD/ONU, concentram- se na caracterização das dimensões escolaridade, lon- gevidade e riqueza das pessoas moradoras nas locali- dades analisadas. Com o avanço tecnológico e a possibilidade de aná- lise dos índices em abrangências territoriais infra-muni- cipais (distritos, setores censitários, bairros etc.), os in- dicadores passaram a revelar ainda a heterogeneidade no interior das grandes metrópoles, para os quais dados agregados no nível municipal são pouco reveladores. Isso permite a segura afirmação de que as áreas de intervenção do PJU certamente apresentam vulnerabili- dade socioeconômica mais elevada do que a totalidade dos municípios em que o programa foi desenvolvido, São Paulo e Rio de Janeiro. Além disso, entre os vulneráveis, normalmente os jovens são mais suscetíveis a situações de risco do que seus pais ou a população idosa, em razão da sua expo- sição a fenômenos sociais que potencializam essa vul- nerabilidade, tais como elevadas taxas de desemprego e situações de violência, agressões ou óbitos. Importante reafirmar que os jovens candidatos a parti- cipar do PJU deveriam residir na área de abrangência, de- clarar disponibilidade de participação, não ser beneficiá- abrangências jovens de 18 a 19 anos de idade, por grupos de idade jovens de 20 a 24 anos de idade, por grupos de idade total (1000 pessoas) condição de atividade (%) total (1000 pessoas) condição de atividade (%) só estuda estuda e trabalha só trabalha cuida de afazeres domésticos não realiza nenhuma atividade só estuda estuda e trabalha só trabalha cuida de afazeres domésticos não realiza nenhuma atividade Brasil 7.010 27 20 30,6 17,2 5,2 17.275 10,8 14,7 49,7 20,3 4,5 Sudeste 2.826 26,3 17,8 33,7 16,7 5,5 7.105 10,4 15 51,9 18,3 4,4 UF do Rio de Janeiro 484 42,1 13,4 23,8 13,6 7,1 1.311 15,8 17,8 41,3 19,4 5,8 Região Metropo- litana do Rio de Janeiro 354 44,2 12,4 22,5 13,5 7,4 992 16,6 18,2 38,7 20,2 6,3 UF de São Paulo 1.476 23,5 18 34,3 18,5 5,8 3.727 8,6 15 54,5 17,8 4,1 Região Metropoli- tana de São Paulo 710 24,9 17,2 34,1 17,7 6,1 1.820 9,4 16,4 51,4 18,4 4,5 Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2006. TABELA 1 Brasil - Região Sudeste, UF, Rio de Janeiro e São Paulo e regiões metropolitanas, 2006 QUADRO 1 Programas Jovens Urbanos Território de Intervenção* São Paulo Zona Sul Subprefeitura da Capela do Socorro Distrito do Grajaú Zona Leste Subprefeitura de Guaiana- ses Distrito do Lajeado Rio de Janeiro Zona Norte Região de Manguinhos e Jacarezinho Zona Oeste Região de Santa Cruz – Paciência e Antares * Cooperativa local de reciclagem e catadores. 86 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 rio de programas públicos de transferência de renda e re- alizar teste de conhecimento. Esses pré-requisitos são ne- cessários para assegurar a focalização do programa ante os objetivos propostos e sua efetividade. São Paulo e Rio de Janeiro: os jovens do PJU em perspectiva comparada. Conhecer o perfil dos jovens de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro pode contribuir para a análise de contradições e desigualdades sociais vivenciadas pela população dessas grandes metrópoles brasileiras, prin- cipalmente pelos mais jovens. As duas cidades são grandes pólos econômicos e cul- turais do Brasil, em que as grandes oportunidades de em- prego, de lazer e diversão acontecem. No entanto, o aces- so a essa diversidade de acontecimentos e oportunida- des é bastante restrito à grande parte de seus jovens. Os Jovens do Programa de São Paulo Participaram da 3a edição do Programa Jovens Urba- nos na cidade de São Paulo, 480 jovens entre 16 e 21 anos. Desse total, a maioria é composta pelo público fe- minino (56,9%) e por estudantes (85,0%). Participantes do PJU, segundo o Sexo. São Paulo, 3a Edição Janeiro/2008 - CENPE C Em termos de comparação, a população de 16 a 24 anos (1.948.645 indivíduos) corresponde a 17,5% do to- tal de moradores na cidade de São Paulo (11.104.712 ha- bitantes). Quanto à declaração sobre raça/cor, 49,4% disseram que são pardos, 30,8% brancos e 16,7% negros. Essa concentração maior de pardos e negros, em patamares superiores aos verificados na população total (no Esta- do de São Paulo, a proporção de pretos e pardos é de 30,6%)3 , deve-se aos critérios de escolha das áreas de atuação do programa, regiões marcadas por elevadas ta- xas de vulnerabilidade socioeconômica. Essa constatação revela o acerto na focalização da clientela do PJU, uma vez que a segregação entre brancos e negros no Brasil é real, naquilo que se refere às condi- ções socioeconômicas de maneira geral. Participantes do PJU, segundo Raça/Cor. São Paulo, 3a E dição. Janeiro/2008 - CENPE C 16,7% Negro 1,7% não declarou 30,8% Branca 1,5% Amarela 49,4% Parda As faixas de 17 e 18 anos concentram a maior parte dos participantes, 193 (40,2%) e 113 (23,5%), respectivamen- te. Apenas dois participantes declararam ter 22 anos*. Participantes do PJU, segundo Faixa Etária. São Paulo, 3a Edição. Janeiro/2008 - Cenpec 0,4% 22 anos* 1,9% 21 anos 6,9% 20 anos 15,8% 16 anos 40,2% 17 anos 23,5% 18 anos 11,3% 19 anos 56,9% feminino 43,1% masculino * Ao longo da execução do Programa Jovens Urbanos, alguns jovens completam anos, o que justifica a presença de jovens com mais de 21 anos. 87 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Quanto à escolaridade dos 480 participantes, os jo- vens que freqüentam ou concluíram as 2a e 3a séries do Ensino Médio representam a grande maioria do univer- so investigado (72,9%). Registre-se que nas décadas recentes tem-se obser- vado uma universalização do ensino fundamental e mé- dio, e os desafios restantes na área educacional são as- segurar um ensino de qualidade, e não apenas bancos escolares às crianças e jovens. TABELA 2 Escolaridade dos Participantes. Programa Jovens Urbanos, São Paulo, 3a Edição, Janeiro / 2008 Escolaridade Total % 6a série do Ensino Fundamental 7 1,5 7a série do Ensino Fundamental 8 1,7 8a série do Ensino Fundamental 33 6,9 1a série do Ensino Médio 79 16,5 2a série do Ensino Médio 171 35,6 3a série do Ensino Médio 172 35,8 Pré-Vestibular 3 0,6 Ensino Superior 4 0,8 Não Declarou 3 0,6 Total 480 100,0 Fonte: Fundação Itaú Social (FIS); Cenpec – PJU/SP O patamar de jovens estudantes no programa é supe- rior àqueles verificados na Tabela 1, em relação ao Brasil e ao Estado de São Paulo. Participantes do PJU, segundo freqüência à escola São Paulo, 3a Edição. Janeiro/2008 - Cenpec 0,6% Não Declarou 14,4% Não Estudam 85% Estudam Em São Paulo, 86% dos participantes que não estu- dam completaram o ensino médio. Tratando-se do atraso escolar em relação à serie em curso, o perfil dos jovens do PJU revela que, dentre os participantes que freqüentam a 1a série do ensino mé- dio, 76 jovens (69,7%) estão na faixa de idade de 17 a 20 anos; na 2a série do ensino médio, 170 jovens (34,6%) têm entre 18 e 21 anos, e na 3a série do ensino médio, 113 deles (20,7%) têm entre 19 e 21 anos. Considerando que as idades recomendadas para a freqüência nas 1a, 2a e 3a série do ensino médio são 15, 16 e 17 anos, respectivamente, os dados revelam que os jovens do PJU situam-se em patamar semelhante ao ín- dice de distorção idade-série da cidade de São Paulo. Esse indicador representa o porcentual de alunos em cada série, com dois anos ou mais acima da idade recomendada. A taxa de distorção idade-série4 total – rede pública e privada – no ensino médio é de 28,5% no município de São Paulo, 24,3% no Estado e 46,3% no Brasil. Esses porcentuais são significativos, mas tornam-se ainda mais relevantes quando analisados numa perspec- tiva comparativa entre a rede pública e a privada. A dis- torção idade-série na rede estatal da cidade de São Paulo é de 32,6%, enquanto na rede privada é de 7,5%. Quanto à inserção no mercado de trabalho, 443 (92,3%) participantes de São Paulo não trabalham. Apenas 34 (7,1%) declararam realizar alguma ativi- dade remunerada e, dentre estes, dez jovens são esta- giários e nove são assalariados com carteira assinada. Considerando que os jovens inscritos em sua maioria estudam é natural não buscarem trabalho regular. Seria mesmo esperado que a ocupação dos jovens do PJU fosse comparativamente inferior àquela verifi- cada pelos jovens em geral, uma vez que as atividades do programa exigem a clara declaração de disponibili- dade de tempo dos seus participantes – e um dos prin- cipais motivos alegados para o abandono no Programa foi a obtenção de emprego fixo. A renda familiar é outra variável investigada para a população de participantes do programa e a maior con- centração das famílias, 69,2%, recebe até R$ 500,00. Somente 1,0% dos jovens responderam que a renda fa- miliar é superior a R$ 1.000,00. As características socioeconômicas das áreas sele- cionadas para desenvolvimento do programa permitem que se assegure que os rendimentos médios das famí- lias dos jovens do PJU situem-se em patamares inferio- res aos valores médios da cidade de São Paulo. 88 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Participantes do PJU, segundo Renda Familiar em Reais São Paulo, 3a Edição. Janeiro/2008 -Cenpec 1,0% acima de R$ 1.000 1,7% Náo declarou 69,2% de 0 a R$ 500 28,1% de R$ 500 a R$ 1.000 Os Jovens do Programa do Rio de Janeiro Os jovens participantes da 1a Edição do Programa Jovens Urbanos do Rio de Janeiro são em sua maioria do sexo feminino (62,3%) e estudantes (65,8%). Verifica-se de pronto que o porcentual de estudantes é inferior àquele verificado em São Paulo. Mesmo assim, o patamar de jovens estudantes no PJU é superior àque- les verificados na Tabela 1, em relação ao Brasil e ao Es- tado do Rio de Janeiro, fenômeno verificado no conjun- to do programa. Na cidade do Rio de Janeiro, o porcentual de jovens é de 15,9% (980.681) em relação ao total de habitantes (6.178.762). Participantes do PJU, segundo Sexo Rio de Janeiro, 1a Edição. Dezembro/2007 - Cenpec 62,3% Feminino 37,7% Masculino Verifica-se a existência de uma concentração ligei- ramente maior de jovens, em termos proporcionais, na cidade de São Paulo. Não foram coligidos dados sobre raça/cor dos participantes do Rio de Janeiro. Conforme assinalado anteriormente, no universo de 480 participantes, 316 freqüentam a escola (65,8%), en- quanto 148 declararam não estudar (30,8%). Esses jovens têm entre 16 e 23 anos, sendo que a maior concentração está na faixa etária de 17 a 19. Quanto à escolaridade do universo de jovens que de- clararam feqüentar ou não à escola (464 jovens), 90,5% não completaram o ensino médio, e 37,8% destes não completaram o ensino fundamental II. TABELA 3 Participantes que Estudam, Segundo a Escolaridade. Programa Jovens Urbanos, São Paulo, 3a Edição, Janeiro / 2008 Escolaridade Idade To- tal % 16 17 18 19 20 21 6a série do Ensino Fundamental 0 1 2 1 1 0 5 1,2 7a série do Ensino Fundamental 1 4 3 0 0 0 8 2,0 8a série do Ensino Fundamental 10 9 5 3 1 1 29 7,1 1a série do Ensino Médio 23 29 15 6 3 0 76 18,6 2a série do Ensino Médio 36 99 20 9 5 1 170 41,7 3a série do Ensino Médio 1 46 45 12 6 3 113 27,7 Pré-Vestibular 0 0 1 1 1 0 3 0,7 Ensino Superior 0 0 1 2 0 1 4 1,0 Total 71 188 92 34 17 6 408 100,0 Fonte: FIS; Cenpec – PJU/SP 89 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Participantes do PJU, segundo Frequência à Escola. Rio de Janeiro, 1a Edição. Dezembro/2007 - Cenpec Em relação a esses últimos que não completaram o fundamental II, 96,8% deles têm entre 17 e 22 anos, fai- xa de idade esperada para freqüência ou mesmo conclu- são do ensino superior. Embora não seja possível verificar o porcentual de jo- vens do PJU do Rio de Janeiro que estão em situação de distorção idade-série, em decorrência da falta de dados disponíveis para essa análise, ressalta-se a importância de investigar esse indicador para o âmbito geral do mu- nicípio e do Estado. Na cidade do Rio de Janeiro, a taxa de distorção idade série7 total (escolas públicas e particulares) é de 55,8%; na rede pública é de 66,2% e de 14,5% na rede privada. No estado o percentual total é de 55,7%. Esses índices demonstram que parcela significativa da população jovem, principalmente daquela que fre- qüenta a escola pública, está em situação de grande de- sigualdade em relação aos jovens da rede particular. Quanto à renda familiar dos participantes, as maiores concentrações de respostas estão nas faixas de rendimen- tos de até um salário mínimo e de um a três salários mí- nimos, 63,8% e 29,6%, respectivamente. Esse fenômeno deve-se aos atributos socioeconômicos das áreas selecio- nadas para intervenção do PJU, regiões de população pre- ponderantemente pobre. Assim como ocorre em São Pau- lo, as características socioeconômicas das áreas selecio- nadas para desenvolvimento do programa permitem que se assegure que os rendimentos médios das famílias dos jovens do PJU situem-se em patamares inferiores aos va- lores médios da cidade do Rio de Janeiro. Comparações entre os participantes de São Paulo e do Rio de Janeiro Apesar de existirem diferenças na captação dos dados entre as duas cidades, é possível estabelecer algumas relações entre os perfis dos grupos participantes do Pro- grama Jovens Urbanos nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. De modo geral, o PJU obteve significativa aderência entre os jovens participantes, nas duas cidades, uma vez que o porcentual de desligamento em São Paulo foi de 10,6% (51 jovens) e no Rio de Janeiro, 17,9% (86 jovens). Portanto, mais de 80% dos jovens permanecem no pro- grama. Lembrando que os dados referentes ao desliga- mentos dos jovens em São Paulo são parciais, registra- dos no dia 5 de março de 2008. Em São Paulo, os principais motivos declarados para o desligamento foram trabalho (62,7%) e oito jovens (15,7%) que alegaram desinteresse pelo programa. No Rio de Janei- ro, o trabalho (24,4%) também foi um dos principais motivos de desligamento, o terceiro em número de respostas. A participação feminina no PJU é superior à masculi- na nas duas cidades. A maioria dos jovens tem entre 17 e 18 anos, mas em São Paulo há expressiva participação dos jovens de 16 anos e, no Rio de Janeiro, daqueles que têm entre 19 e 20 anos. Nas duas cidades, há maior proporção de participan- tes que freqüentam a escola. O PJU de São Paulo tem significativa vantagem so- bre o programa do Rio de Janeiro quanto a freqüência à escola. Enquanto 85,0% dos participantes de São Pau- lo são estudantes, um porcentual menor dos jovens ca- riocas vai à escola (65,8%). Sobre a escolaridade do total dos participantes (estu- dantes e não estudantes), há que se considerar que a for- ma de captação desse dado é diferente nas duas cidades. No entanto, podem-se observar alguns aspectos de comparação. No PJU paulista, 66 jovens participantes (13,7%) concluíram o ensino médio, enquanto, no Rio de Janeiro, apenas 32 jovens (6,6%). Na edição do Rio de Janeiro, há quantidade expres- siva de participantes com o ensino fundamental II não concluído (159 jovens). Em São Paulo, apenas 44 jovens não concluíram o ensino fundamental II. Em termos de escolaridade, a taxa de analfabetismo no município de São Paulo para a faixa etária de 15 a 24 anos é de 3,2%, enquanto que para o estado e para o país são 30,8% Não estudam 3,3% Não declarou 65,8% Estudam 90 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 TABELA 4 Participantes que estudam, segundo a escolaridade e Idade. Programa Jovens Urbanos, Rio de Janeiro, 1a Edição. Dezembro/2007 Escolaridade Idade Total % 16 17 18 19 20 21 22* 23* S/I Ensino Fundamental incompleto 0 0 2 0 0 0 0 0 0 2 0,4 Ensino Fundamental completo 1 1 3 2 1 3 0 0 0 11 2,3 Ensino Fundamental II incompleto 3 43 39 25 17 13 8 1 1 150 31,3 Ensino Fundamental II completo 0 2 5 1 0 1 1 0 0 10 2,1 Ensino Médio incompleto 5 50 69 46 43 23 7 2 0 245 51,0 Ensino Médio completo 0 0 6 14 8 9 5 1 0 43 9,0 Superior incompleto 0 0 0 0 0 1 0 0 0 1 0,2 Sem Informação 0 2 2 4 5 2 2 1 0 18 3,8 Total 9 98 126 92 74 52 23 5 1 480 100,0 Fonte: FIS; Cenpec – PJU/RJ * Ao longo da execução do Programa Jovens Urbanos, alguns jovens completam anos, o que justifica a presença de jovens com mais de 21 anos. 3,5% e 7,2%, respectivamente. No Rio de Janeiro, o por- centual de analfabetismoi entre os jovens de 15 a 24 anos corresponde a 3,7% no município e 4,9% no estado. No Rio de Janeiro, o procentual de analfabetismo en- tre os jovens de 15 a 24 anos correponde a 3,7% no muni- cípio e 4,9% no estado Como o fenômeno do analfabetismo apresenta cur- vas descendentes nas últimas décadas, esse meio ponto porcentual superior na taxa de analfabetismo de jovens no Rio de Janeiro reveste-se de relevância e deve servir como definidor de políticas específicas para os gestores de ações sociais. A análise comparativa do Programa, seus objetivos, prioridades de intervenção e de estratégia, à luz dos jo- vens participantes, revela evidências irrefutáveis. A principal delas é o acerto na focalização e na esco- lha dos jovens que compõem seu público beneficiário. Ao escolher regiões de elevada vulnerabilidade so- cioeconômica, o programa acerta ao encontrar jovens para os quais a participação no Programa pode signifi- car uma reviravolta nos seus planos de vida projetan- do novos futuros. NOTAS 1 Os dados da PNAD não permitem desagregação para cidades. A menor desagregação permitida pela amostra são as Regiões Metropolitanas. 2 Estimativas da população, IBGE – 2007; CENPEC – ISEB. 3 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2006. 4 INEP, 2005; Cenpec – ISEB. 5 Último ano disponível. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2005. 5,2% Não declarou 63,8% até 1 salário mínimo 29,6% de 1 a 3 salários mínimos 0,2% mais de 1,3% 5 salários mínimos de 3 a 5 salários mínimos Participantes do PJU, segundo Renda Familiar. Rio de Janeiro, 1a Edição. Dezembro/2007 - Cenpec 91 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 5MA RENOVA¿»O CURRICULAR MUITO ALÁM DO CURRÅCULO A Diversificação do Currículo do Ensino Médio na rede pública de São Paulo é uma proposta para apoiar a realização dos projetos dos jovens paulistas. ARTIGO * Maria Helena Guimarães de Castro é mestra em Ciência Política, do- cente da UNICAMP e atual Secretária de Estado da Educação de São Paulo. MARIA INÊS FINI é doutora em Educação, professora aposentada da UNICAMP, atual Assessora de Currículo e Avaliação da Secretaria de Estado da Educação. Maria Helena Guimarães de Castro Maria Inês Fini que os jovens esperam das escolas de nível médio? Por que o debate sobre o ensino médio está na agen- da das políticas educacionais de diferentes países, des- de meados dos anos 90, sem conseguir desenvolver pro- gramas que atendam as expectativas dos jovens? Quais os caminhos possíveis para flexibilizar percur- sos de aprendizagem que ofereçam alternativas de for- mação mais próximas aos anseios da juventude? Essas são as principais perguntas que norteiam a proposta de diversificação curricular do ensino médio na rede pública estadual de São Paulo. O Olhar da Juventude para o ensino médio / 93 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 94 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Respaldada nos instrumentos legais vigentes, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, de 1996; as Diretrizes Nacionais do Ensino Médio, pro- mulgadas em 1998; o Plano Nacional de Educação - PNE, aprovado em 2000; e o Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE, lançado pelo MEC em abril de 2007, a proposta busca flexibilizar o currículo do ensino mé- dio sem prejudicar a formação geral a que todos os alu- nos têm direito. A proposta tem como eixo central a melhoria da qua- lidade, com ênfase nas competências e habilidades bá- sicas necessárias à preparação dos jovens para o mun- do da vida e continuidade dos estudos. Respeitando as diferentes opções e desejos da juventude, busca-se tam- bém abrir alternativas de formação que possam oferecer aos jovens melhores condições de integração ao mun- do do trabalho. Muitas vezes atribuímos aos jovens expectativas de mudanças que não condizem com a trajetória históri- co-social das oportunidades vislumbradas para a maio- ria deles. É verdade que a sociedade atual busca ampliar as possibilidades de integração social da juventude por meio de sua participação intensiva em processos educa- cionais formais ou não e seu gradual e contínuo acesso a múltiplos bens culturais. Também é verdade que inú- meras pesquisas nacionais e internacionais indicam que educação e trabalho são de longe os temas que mais in- teressam aos jovens. No entanto, dados oficiais e de pesquisa indicam que a carência de oportunidades e de integração socio- econômica e cultural para a juventude colocam o Brasil como um dos países com os maiores índices de assas- sinatos de jovens em relação ao número de habitantes, sendo as vítimas principalmente homens de baixa ren- da, com cerca de 20 anos. De acordo com o excelente Relatório Final do estudo Juventude Brasileira e Democracia – participação, esfe- ras e políticas públicas, até mesmo as questões relacio- nadas à violência, segurança e criminalidade, que fazem parte das principais apreensões dos jovens em todas as regiões brasileiras, estão associadas às questões relati- vas ao desemprego, má distribuição de renda, desigual- dade social, drogas e falta de oportunidades e qualida- de da educação. O mesmo Relatório afirma que O lugar do trabalho entre as preocupações dos(as) participantes confirma o que vem sendo apontado em diversos estudos, ou seja, que a incerteza e a apreensão com a busca ou perda de postos de trabalho – processos diretamente relacionados com a obtenção do primeiro emprego e a falta de oportunidades no mercado – são uma constante na vida dos(as) jovens, especialmente, daqueles(as) dos setores populares que desde muito cedo sofrem as pressões para a inserção no mundo do trabalho. A educação, sobretudo a escolar, é vista como pas- saporte para um “futuro mais estável” 1. Recente pesquisa do IBGE, a PNAD 2006, mostrou que mais de mais de 37 % dos jovens de 15 a 24 anos estão fora da escola, muitos deles sem completar o en- sino fundamental. De acordo com a mesma pesquisa, São Paulo apre- senta as melhores taxas de cobertura líquida dos jo- vens de 15 a 17 anos no País. Mas ainda assim observa- se que apenas 65% dos jovens ingressantes concluem o ensino médio. Considerando que 85% dos jovens que freqüentam o ensino médio estão na escola pública, tornam-se impres- cindíveis ações e medidas voltadas para a reestruturação da educação, especialmente no nível médio. Olhar da Secretaria da Educação para o Ensino Médio Em agosto de 2007, a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo definiu um programa de 10 metas a serem alcançadas até 2.010, diretamente ligadas à melhoria da qualidade da educação básica da rede pública de edu- cação, que envolvem e apóiam a reformulação do ensi- no médio no estado. São elas: 1. Todos os alunos de oito anos plenamente alfabetiza- dos. 2. Redução de 50% nas taxas de reprovação da 8a sé- rie. 3. Redução de 50% nas taxas de reprovação do Ensino Médio. 4. Implantação de programas de recuperação de apren- dizagem no Ensino Fundamental e Médio. 5. Aumento de 10% nos índices de desempenho do En- sino Fundamental e Médio nas avaliações nacionais e estaduais. 95 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 6. Atendimento de 100% da demanda de jovens e adul- tos de Ensino Médio com currículo diversificado. 7. Implantação do Ensino Fundamental de nove anos, com prioridade à municipalização das séries iniciais (1a a 4a séries). 8. Programas de valorização dos professores, formação continuada e capacitação das equipes. 9. Descentralização e/ou municipalização do programa de alimentação escolar nos municípios ainda centra- lizados. 10. Programa de obras e melhorias de infra-estrutura das escolas. Em decorrência, foram desencadeados ações e pro- jetos que visam apoiar todos os atores do sistema públi- co de educação para o alcance das metas. Em relação às metas 1 e 2, o Programa Ler e Escre- ver impulsiona a melhoria da aprendizagem nas séries iniciais e busca promover a alfabetização plena aos oito anos. Trata-se de apoiar os professores com o trabalho cotidiano de estagiários em sala de aula além de capa- citação e acompanhamento direto de professores e ges- tores com o auxílio de amplo material didático para pro- fessores e alunos. As metas 3, 4, 5 e 6 exigiram uma completa reformu- lação curricular para o ensino regular e EJA e a implan- tação de programas emergenciais de recuperação inten- siva e paralela. Os resultados do SARESP 2005 apontavam para a necessidade de imediata intervenção junto à rede esta- dual com programas especiais de apoio a professores e alunos para prover a reposição de estruturas fundamen- tais da Língua Portuguesa e da Matemática, que são re- quisitos para o sucesso dos alunos em qualquer proje- to de ensino. Para este fim, estruturou-se um período inicial de re- cuperação intensiva de 42 dias, já articulado aos prin- cípios da nova proposta curricular, com ênfase na recu- peração (reposição) de estruturas lingüísticas e lógico- matemáticas. Foi elaborado para 2008, amplo material de apoio, na forma de jornal para os alunos e de revistas para os pro- fessores, bem articulados entre si e com indicações cla- ras das competências e habilidades a serem desenvolvi- das pelos alunos em cada série escolar, nas áreas de re- cuperação de Matemática e da Língua Portuguesa, mas no contexto das demais disciplinas do currículo. Foi dada ênfase à Língua Portuguesa nas atividades que envolvem conteúdos de História, Inglês, Educação Física, Arte e Filosofia. As estruturas matemáticas foram trabalhadas tam- bém em atividades envolvendo Ciências, Química, Físi- ca, Biologia e Geografia. Espera-se que essa abordagem interdisciplinar possa sensibilizar os professores para o trabalho no resto do ano letivo. Ao final desse período, os estudantes realizarão pro- vas de Língua Portuguesa e Matemática e os resultados servirão de apoio aos professores para a indicação de alunos que ainda necessitarão de apoio para a recupe- ração dessas estruturas. Para eles, será realizada uma outra recuperação pa- ralela, no contra-turno e aos sábados, começando no mês de maio, também com apoio de material para alu- nos e professores. Esses esforços se deram em função do reconheci- mento das necessidades reais dos alunos para que pu- dessem interagir com chances de mais e melhor apren- dizagem na nova proposta curricular. Grande levantamento documental e de boas práticas Para atender a uma educação à altura dos desafios contemporâneos, a Secretaria da Educação do Esta- do São Paulo desenvolveu uma nova proposta curricular para os níveis de ensino Fundamental II e Médio. Esse processo partiu dos conhecimentos e das expe- riências práticas já acumulados, ou seja, da sistemati- zação, revisão e recuperação de documentos, publica- ções e diagnósticos existentes e do levantamento e aná- lise dos resultados de iniciativas e projetos realizados. -UITAS VEZES ATRIBUÅMOS AOS JOVENS EXPECTATIVAS DE MUDAN¿AS QUE N»O CONDIZEM COM A TRAJETËRIA HISTËRICO SOCIAL DAS OPORTUNIDADES VISLUMBRADAS PARA A MAIORIA DELES 96 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Com o intuito de fomentar o desenvolvimento da pro- posta curricular, a Secretaria desenvolveu duas ações complementares. Na primeira, realizou um amplo levantamento do acervo documental e técnico pedagógico existente. Na segunda, desencadeou um processo de consulta a es- colas e professores, para identificar, sistematizar e pos- teriormente divulgar as boas práticas existentes nas es- colas de São Paulo. Na primeira consulta, realizada no período de 15 de outubro a 30 de novembro de 2.007, foram registrados 3.071 relatos completos de experiências de sucesso de gestão da sala de aula e da escola. Essas experiências, devidamente analisadas e co- mentadas, comporão um acervo permanente à disposi- ção dos profissionais da rede estadual. Esse procedimen- to será novamente adotado ao final de cada período leti- vo pois, articulando heranças e conhecimentos pedagó- gicos com experiências escolares de sucesso, a Secreta- ria pretende que essa ação seja o início de uma contínua produção e divulgação de subsídios que incidam di- retamente na organização da escola como um todo e na dinâmica da sala de aula. As características principais da proposta curricular são: respeito ao saber já construído e foco em orienta- ções para gestão do currículo na escola e orientações para gestão da aprendizagem na sala. Para apoiar o trabalho de gestores e professores, fo- ram produzidos vários documentos que explicitam a pro- posta e servem de subsídios para o trabalho da equipe escolar: Documento Básico, Cadernos do Gestor e Ca- dernos do Professor. O Documento Básico apresenta os princípios e con- ceitos da Proposta Curricular e as concepções das dife- rentes áreas de conhecimento, que compõem a educa- ção básica, e a apresentação de objetivos e conceitos es- truturantes de cada disciplina destas áreas. Os Cadernos do Gestor apresentam sugestões de or- ganização do trabalho dos especialistas responsáveis pela gestão do currículo na escola. Contêm propostas de agenda, cronograma, atividades e organização de recursos para apoiar o trabalho do diretor, do profes- sor coordenador, dos assistentes técnico-pedagógicos - ATPs e do supervisor. São quatro cadernos, sendo um por bimestre. Os Cadernos do Professor propõem atividades docen- tes para todas as aulas, em todas as séries e disciplinas. São organizados por bimestre com indicação clara das competências e habilidades a serem desenvolvidas pe- los alunos, em cada tema ou tópico dos conteúdos. Con- tém sugestão de aulas, sugestões de material comple- mentar, propostas de avaliação articuladas ao SARESP e projetos de recuperação paralela. Para apoiar a implantação da proposta foram pro- duzidos: • 268 originais para impressão para professores e ges- tores, totalizando mais de 11.240 páginas. • 20 CDs com textos, imagens e áudio para apoio ao trabalho docente. • Videoproducers para orientação do trabalho docen- te, por bimestre/disciplina. • 1 site interativo e informativo. • Aplicativo para registro de experiências de gestão do currículo (escola e sala de aula). • Ferramentas de trabalho colaborativo entre as equi- pes. • Ferramentas de pesquisa junto à rede. Para a implantação da proposta curricular, a Secreta- ria oferecerá forte apoio aos profissionais da rede. Para isto foram desenvolvidas inúmeras ações de capacitação por meio da Rede do Saber, que é a rede de formação continuada de professores e especialistas em serviço e canal de comunicação da Secretaria Estadual que opera por meio de vídeo-conferência e ferramentas web. A Secretaria está finalizando também a reestrutura- ção da Teia do Saber que é um programa de formação continuada para professores e especialistas e vai definir os novos programas de formação para supervisores, di- retores, professores coordenadores e professores de to- das as disciplinas, inclusive professores de EJA. Todos em nível de pós-graduação lato sensu. Para isso, espera estabelecer parcerias com instituições de ensino superior com notória especialização, nas áreas de formação definidas pela Secretaria. Base comum de conteúdos, competências e habilidades. Ao elaborar e apresentar uma proposta curricular básica e comum a todos os alunos, a Secretaria procu- rou também cumprir seu dever de promover ações para garantir a todos, uma base comum de conteúdos, com- petências e habilidades para que, de fato, nossas esco- las funcionem em rede. 97 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 A articulação deste currículo com o novo desenho da avaliação SARESP permitirá que se tenha mais transpa- rência na avaliação, uma vez que se declara com clare- za, para toda a comunidade escolar e para a sociedade, as referências curriculares da avaliação. A proposta curricular foi estruturada considerando os seguintes princípios: • Currículo é cultura. • Currículo referido a competências. • Currículo que tem como prioridade a competência lei- tora e escritora. • Currículo que articula as competências para apren- der. • Currículo contextualizado no mundo do trabalho. A proposta curricular procurou responder às expecta- tivas dos jovens paulistas e contempla também uma di- versificação do ensino médio em duas vertentes: de um lado, a inclusão concomitante de formação profissional de nível técnico e, de outro, a inclusão de componentes curriculares de apoio à continuidade de estudos. A formação profissional mereceu um plano de estru- turação mais abrangente de ofertas de vagas que passa pelo estabelecimento de parcerias com entidades que oferecem formação profissional de nível técnico com va- gas em cursos que atendem arranjos produtivos nas di- ferentes regiões do estado. O início da implantação se deu neste ano de 2008, por meio de parcerias com o Centro Paula Souza e a Fun- dação Roberto Marinho, para a oferta de 50.000 vagas de curso técnico de Gestão de Pequenas Empresas aos alunos da Capital e Grande São Paulo. O critério para distribuição das vagas foi o de aten- der escolas com alunos em situação de maior vulnera- bilidade social. As turmas foram escolhidas com a parti- cipação das diretorias regionais de ensino. O curso é à distância, na metodologia de telessa- las com seis horas presenciais por semana, inseridas no quadro de horário semanal do segundo ano do en- sino médio e com tutoria de trabalhos de seis horas se- manais à distância. Professores da rede estadual foram designados e ca- pacitados para essa função pelas instituições parceiras, que farão a gestão e o monitoramento do projeto com técnicos da Secretaria da Educação. Também neste ano de 2.008, todos os alunos do ter- ceiro ano do ensino médio de todas as escolas estadu- ais do município de Indaiatuba puderam optar pela rea- lização concomitante de um curso técnico, por meio da parceria estabelecida com a Fundação Indaiatubana de Educação e Cultura - FIEC, para realização de cursos de: Automação Industrial, Processos Químicos, Informática, Segurança do Trabalho e Logística. Todos os cursos são modulares com certificação parcial de competências a cada semestre. A ação de apoio à continuidade de estudos visa refor- çar a formação dos jovens que freqüentam a terceira sé- rie do Ensino Médio e proporcionar a eles maiores chan- ces de acesso ao Ensino Superior. Trata-se do aprofundamento dos estudos nas disci- plinas curriculares, bem como em temas transdisciplina- res da atualidade, tratados pela ótica das diferentes áre- as do conhecimento. São 240 horas/aula da grade curricular dedicadas ao aprofundamento de estudos e preparação dos alunos, sendo distribuídas em seis horas-aula semanais, duas para cada área de conhecimento. Foi preparado material didático-pedagógico para alunos, para estudo autônomo; realização de ativida- des de pesquisa, debates, exercícios e exames simu- lados. A partir de agosto deste ano, será instituído um Plantão Tira-Dúvidas. A ação atingirá 392.868 alunos e 13.500 docentes. O ano de 2008 é de grande interatividade com todos, seja para suporte logístico seja para contemplar as críti- cas e sugestões de professores e gestores, pois se o ca- ráter do trabalho é propositivo, é fundamental conhecer e considerar a opinião dos que vivenciam diretamente as ações para os ajustes necessários à consolidação do currículo oficial do Estado de São Paulo. Nota 1 Juventude Brasileira e Democracia: participação, esferas e políticas públicas. Relatório Final, IBASE-Instituto Brasileiro de Análises sociais e Econômicas e POLIS-Instituto de Estudos,Formação e Assessoria em Políticas Sociais, 2005. Em um encontro de formação continuada, realizado durante a segunda edição do Programa Jovens Urbanos, em São Paulo, Marcelo Rodrigues do Nascimento1 , um dos educadores do Programa, fez um relato emociona- do sobre o percurso vivido por ele durante os primeiros meses de implementação do Jovens Urbanos. Eram tempos em que o grupo de jovens preparava as produções que seriam apresentadas à comunidade du- rante o evento de culminância do módulo dois de forma- ção. Havia muito trabalho para ser realizado, mas, segun- do Marcelo, alguns jovens pareciam não estar ali. O educador, mais de uma vez, repetiu ao grupo que era preciso atenção e empenho para que se pudesse pro- duzir uma síntese do processo à altura do que havia sido vivido. Mas parecia que uma espécie de desânimo ou fal- ta de vigor havia se instalado. Ao final do dia, cinco jo- vens entregaram a música que tinham feito para o dia da culminância. Marcelo ficou quieto por alguns instantes. Não aceitou a música. Exigiu que a refizessem. No dia seguinte, os jovens trouxeram a música refei- ta, música que se transformaria, mais tarde, no hino do PJU e também em trilha sonora do vídeo da segunda edi- ção, produzido pelo CENPEC. Batizado de Aliados do RAP, o grupo continua produ- zindo letras e cantando por aí. Já foi contratado por duas vezes pelo programa EducaRede2 : uma vez para a produ- ção da música de encerramento do projeto “Coisas Boas para a Minha Terra”, apresentada ao vivo no programa de TV Interativo EducaRede, produzido pela TV Cultura. Depois disso fizeram uma adaptação da mesma mú- sica para apresentar na cerimônia de entrega do Prêmio EducaRede – Internet na Escola em 2007, além de um vi- deoclipe, também produzido pelo portal do Programa. NOTAS 1 Marcelo trabalhou como educador do PJU no Instituto de Cidadania Empre- sarial – Projeto Casulo – uma das ONGs executoras da 2a edição do Programa em São Paulo. Também atuou como assessor tecnológico na 3a edição do PJU, também realizada em São Paulo. 2 www.educarede.org.br RELATO DE PRÁTICA Aliados do RAP Programa Jovens Urbanos ONGs participantes da 2a edição PJU em São Paulo: 1. Associação Comunitária Todos Irmãos (ACTI) 2. Arrastão Movimento de Promoção Humana – AMPH 3. Instituto de Cidadania Empresarial – Projeto Casulo 4. Associação Beneficente Provisão 5. Serviço Social Bom Jesus (SSBJ) 6. Associação Cultural e Desportiva Bandeirantes 7. Creche Nova Esperança Amigos de Pianoro 8. Associação Cantareira Cuidadosa formação A formação dos profissionais das ONGs – edu- cadores e coordenadores – realizada pela equipe técnica do Programa Jovens Urbanos – PJU – divide- se em duas etapas: • Formação inicial e • Formação continuada. A formação inicial com coordenadores e educa- dores, executores da formação dos jovens, apre- senta o Programa, seus componentes e agentes envolvidos, garantindo a realização dos planeja- mentos das ações formativas que serão realizadas com os grupos. Após o processo de formação inicial dispara-se o processo de formação continuada dos profissionais, que acontece concomitante ao traba- lho desenvolvido por eles junto aos jovens. O processo formativo dos jovens, na 2a edição São Paulo, foi organizado nos seguintes módulos: Adesão; Cidade e tecnologias; Experiências produ- tivas e parcerias; Intervenções sociais e Acompa- nhamento. Os módulos eram atravessados pelas temáticas: urbanidade, cultura e tecnologia. Ao final de cada módulo, os jovens produziam eventos de culminância no quais tornavam públicas as produ- ções realizadas durante o período. J.U. Letra de Rap feita pelos jovens Ricardo, Henrique, José Roberto, Ana Cristina, Camila e Luciana. Refrão J.U. eu sou do J.U. A serviço da comunidade aqui da zona sul. J.U. eu sou do J.U. A serviço da comunidade eu sou da zona sul. (bis) Acordo de manhã três dias da semana. Nove da manhã eu levanto da minha cama. Com um objetivo a realizar. Um grupo a reunir, um projeto a alcançar. Comunidade, tecnologia junto com a cidade, surge parceria. Casulo e o Arrastão. Serviço Social e também a Provisão. Bandeirantes, Cantareira e a A.C.T.I.(1) E a Pianoro(2) também tá por aqui. Turma da tarde não é diferente. Indo nas explorações, seguindo sempre em frente. Montando o quebra-cabeça do dia-dia. Filmando e relatando o que acontece na periferia. Refrão / bis J.U. eu sou... J.U. adquirindo informação. Para melhorar a favela pros irmãos. O senhor que já não conta com assistência. Informação será que faz a diferença? Refrão / bis J.U. eu sou... 99 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 !¿»O PÒBLICA PARA A JUVENTUDE ARTIGO José Eduardo de Andrade Júlia Alves Marinho Rodrigues* * José Eduardo de Andrade é mestre em Serviço Social pela PUC–SP, doutorando em Serviço Social pela PUC–SP. Atualmente é secretário- executivo do Conselho Nacional de Juventude. E-mail: jeandrad@ terra.com.br. Júlia Alves Marinho Rodrigues é economista, mestranda do Ins- tituto de Ciência Política da UNB, assessora da Secretaria-Executiva da Secretaria-Geral da Presidência da República. Um resumo de quatro décadas de propostas até a instituição do Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária – ProJovem. Introdução uando falamos em juventude, estamos nos referindo a uma categoria que foi social e historicamente construí- da e que está relacionada com um período no ciclo vital dos indivíduos para o qual cada sociedade atribui expec- tativas e significados. As definições, noções e conceitos são historicamente marcadas pelo pensamento dominante de cada época. Nessa perspectiva, a definição de juventude vem se mo- dificando ao longo da história. Verificamos hoje que ela não se reduz a uma determinada faixa etária, nem é ex- pressão subjetiva de um estilo de vida. A juventude está compreendida numa larga fase de vida em que as pes- soas estão em processo de formação e busca de perspec- 1tivas de estabilidade e autonomia para suas vidas. 101 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Diante do processo histórico de prolongamento da ex- periência juvenil na vida das pessoas (começando cada vez mais cedo e terminando cada vez mais tarde), o gover- no brasileiro decidiu adotar, para a definição de políticas públicas de juventude, uma faixa etária abrangente: a juventude (...) congrega cidadãos e cidadãs entre os 15 e os 29 anos. (...) Nesse caso, podem ser considerados jovens os “adoles- centes-jovens” (entre 15 e 17 anos), os “jovens-jovens” (entre 18 e 24 anos) e os “jovens-adultos” (entre 25 e 29 anos)1 . No Brasil, embora sempre tenha havido políticas pú- blicas de educação, saúde, trabalho e emprego que aten- dem aos jovens, foi somente a partir dos anos 90 que se iniciou a discussão sobre a necessidade de políticas es- pecíficas para a juventude, ou seja, descoladas das po- líticas universais. O ano de 1997 é aceito pelos pesquisadores como um marco desse processo no País, pois foi criada, no âmbito do Governo Federal, uma Assessoria de Juventude vincu- lada ao gabinete do ministro da educação. Nesse mesmo ano, a Unesco instituiu um departa- mento de pesquisa específico para o assunto e a temá- tica da violência juvenil passou a ter maior espaço na agenda nacional. Até o começo dos anos 2000, as iniciativas centravam- se muito mais nos esforços da sociedade civil e dos orga- nismos internacionais do que no reconhecimento de sua necessidade por parte do poder público. Novaes (1997) destaca o papel da Unesco e da ONG Ação Educativa, como duas precursoras “no conhecimento e reconhecimento da juventude brasileira”. Em 2003, foi dado um grande impulso nas ações, tan- to governamentais quanto não-governamentais, nessa área, com a inclusão do tema juventude no âmbito das políticas públicas. Na esfera da sociedade civil, teve iní- cio o Projeto Juventude, do Instituto Cidadania, um am- plo diagnóstico sobre a situação dos jovens brasileiros que teve como resultado um conjunto de proposições de políticas públicas para a juventude. Nesse período, no Executivo federal, foi constituído o Grupo de Trabalho Interministerial da Juventude, com- posto por 19 ministérios. Esse grupo dividiu sua ação em três etapas: diagnóstico, ações governamentais e prin- cipais desafios. 1. A primeira teve por objetivo elaborar um amplo diag- nóstico sobre o público jovem, o que foi feito a par- tir da análise de dados disponíveis sobre a realida- de social e econômica dos jovens brasileiros; 2. Uma segunda etapa foi o levantamento de todas as ações governamentais, no âmbito federal, destina- das ao público jovem, onde se constatou a existên- cia de um efetivo gasto público com esse segmento e a ausência de uma política ordenada que viesse a enfrentar de forma unificada os problemas com os quais os jovens deparam. 3. Cumpridas as duas primeiras etapas, foi possível para o Governo Federal estabelecer os principais desafios de uma Política Nacional de Juventude: • Ampliar o acesso e a permanência de jovens em escola de qualidade; • Erradicar o analfabetismo entre os jovens; • Prepará-los para o mundo do trabalho; • Gerar oportunidade de trabalho e renda para os jovens; • Promover vida saudável; • Democratizar o seu acesso ao esporte, ao lazer, à cul- tura e à tecnologia da informação e comunicação; • Promover os direitos humanos e as políticas afirmativas; • Estimular a cidadania e a participação social; • Melhorar a qualidade de vida dos jovens no meio rural e nas comunidades tradicionais; Com o aumento do número de programas destinados ao público juvenil, em 2005, foi criada a Secretaria Nacio- nal de Juventude, vinculada à Secretaria-Geral da Presi- dência da República, instituindo-se o Conselho Nacional de Juventude – Conjuve e implementando-se o Progra- ma Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualifica- ção e Ação Comunitária – ProJovem, por meio da Medida Provisória no 238, de 1o de fevereiro, que se transformou na Lei no 11.129, de 30 de junho do mesmo ano. 102 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Políticas para adolescentes e jovens Apresentamos uma breve cronologia das políticas de juventude no Brasil e no mundo. 1965 Aprovada pela ONU a “Declaração sobre o fomen- to entre a juventude dos ideais de paz, respeito mútuo e compreensão entre os povos”. 1985 Ano Internacional da Juventude. 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA aprovado pelo Congresso Nacional em 13 de julho de 1990. 1995 Lançamento pela Organização das Nações Unidas –ONU do Programa de Ação Mundial para Jovens 1997 Seminário “O jovem nas trilhas das políticas públicas”, iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Unesco, no Brasil. 1998 Lançamento dos documentos “Plano de Ação de Braga” e “Declaração de Lisboa”, elaborados, res- pectivamente, na I Conferência Mundial de Minis- tros de Juventude e no Fórum Mundial de Juventu- de do Sistema das Nações Unidas. 1999 lançado o Programa Brasil Jovem pelo Ministério da Previdência e Assistência Social. 2001 O “Fórum Mundial de Juventude do Sistema das Nações Unidas” é realizado em Dakar, Senegal, complementando e fortalecendo o “Plano de Ação de Braga” com o consenso de mais de 300 organizações de juventude, e com a construção da “Estratégia de Dakar para o Empoderamento da Juventude”. • Foram instituídos os Programas: Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano e o Projeto Cen- tros da Juventude. 2002 A “Agenda Jovem”, conjunto de temáticas referen- tes às questões juvenis, elaborada em evento no Rio de Janeiro e o Seminário “Políticas Públicas: Juventude em Pauta”, iniciativas da Ação Educa- tiva e Fundação Friedrich Ebert. 2003 Criada a “Comissão Especial de Políticas Públicas para a Juventude”, na Câmara dos Deputados. Iní- cio do Projeto Juventude, do Instituto Cidadania. Criado o Programa Primeiro Emprego – Governo Federal 2004 Criado, no âmbito da Presidência da República, o Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Juventu- de, com a atribuição de sistematizar e analisar os serviços, programas e projetos de juventude com co-financiamento do Poder Executivo Federal. • Realizada, pela Comissão Especial de Políticas Públicas para a Juventude da Câmara dos Depu- tados, a 1a Conferência Nacional de Juventude. • Lançado o Índice de Desenvolvimento da Juven- tude (IDJ) pela Unesco. • O Banco Mundial realiza o seminário Vozes Jovens. • Criados o Fórum Nacional de Movimentos e Orga- nizações Juvenis, o Diálogo Social (UNE) e a Rede Nacional de Organizações, Movimentos e Grupos de Juventude (Renaju). 2005 Aprovada a “Convenção Ibero-americana dos Di- reitos dos Jovens”, pela Organização Ibero-ame- ricana de Juventude (OIJ). • Implantada pelo Governo Federal a Política Nacio- nal de Juventude: Secretaria, Conselho e Progra- ma de Inclusão de Jovens (ProJovem). 2007 Implantado pelo Governo Federal o Novo Progra- ma de Inclusão de Jovens em versão atualizada (ProJovem). 2008 Realização da 1a Conferência Nacional de Políti- cas Públicas de Juventude. O forte posicionamento do Governo Federal, com relação à construção de uma política nacional de Juventude, refle- te a discussão da sociedade civil organizada, do Congresso Nacional, por meio do trabalho desenvolvido pela Comis- são Especial de Políticas Públicas de Juventude da Câmara dos Deputados, e dos organismos de cooperação interna- cional que conformaram um potente arranjo para a imple- mentação de uma Política Nacional de Juventude. Cidadania para crianças, adolescentes e jovens. Em 1990 com a promulgação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, o Brasil se torna um dos países que possuem um dos mais completos ordenamentos legais e jurídicos do mundo no que se refere aos direitos da crian- ça e do adolescente. O ECA, Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990, pau- tou-se na Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente (aprovada pela Assembléia-Geral das Na- ções Unidas em 20 de novembro de 1989) e em outras convenções e tratados internacionais, regulamentando o disposto na Constituição Federal de 1998 e expressan- do o anseio político e social de integrar a infância, a ado- lescência e a juventude à cidadania. Em 1999, o Governo Federal buscou, por meio de um conjunto integrado e articulado de ações, criar mecanismos 103 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 de “resgate, socialização, promoção e desenvolvimento ju- venil”. Essa ação foi liderada pela Secretaria de Estado da Assistência Social – SEAS do Ministério da Previdência e As- sistência Social – MPAS, com o Programa Brasil Jovem. Esse Programa, a partir do projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano e da implantação de Centros da Juventude, propunha a introdução um novo agente e ator social, mobilizando a rede de serviços pú- blicos para esse segmento. A iniciativa buscava a pro- moção, proteção e inclusão social do segmento juvenil (entre 15 e 24 anos) mais vulnerabilizado pela situação de pobreza e risco social. Em 2001 foram instituídos pelo Governo Federal o Pro- grama Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Huma- no e o Projeto Centro da Juventude. Segundo documen- to da SEAS/MPAS, o Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano, pautado na Emenda Constitucional no 20, buscou definir uma proposta de ocupação para jovens de 15 a 17 anos em situação de risco e vulne- rabilidade social que não configure trabalho, mas que possibilite, de fato, sua permanência no sistema educacional e proporcione experiências práticas que o preparem para futuras inserções no mundo do trabalho. O mesmo documento define que o Projeto Centro da Juventude foi criado tomando-se por base o conceito de que num mundo globalizado, ditado pela necessidade de informação, criar espaços para que o jovem tenha acesso à informação é uma forma de inclusão. O projeto possibilita o acesso dos jovens à informação e alternativas de socialização nas áreas de esporte e cultura. Esse programa tinha como público-alvo os jovens de 15 a 24 anos em situação de vulnerabilidade e risco social e ti- nha o objetivo de trabalhar com Informação, Esporte e Cul- tura. Esse tripé era o elemento essencial para caracterizar um Centro da Juventude, sem, obviamente, descuidar de aspectos outros como trabalho, educação e atendimento direto, quando essas demandas assim exigissem. Com esse documento, a SEAS, órgão responsável pela administração federal da assistência social, ofere- ce aos gestores e responsáveis por ações voltadas para a juventude orientações e subsídios para o desenvolvi- mento da proposta. Com o Programa Primeiro Emprego – primeira ação do atual governo na área da Juventude e concebido para ser a iniciativa de maior visibilidade voltada para os seg- mentos juvenis – tem início um novo período. A Lei no 10.748, que instituiu o Programa, foi aprovada no Con- gresso em outubro de 2003. O Programa, coordenado, executado e supervisiona- do pelo Ministério do Trabalho e Emprego – TEM, com re- cursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, tinha como objetivo central o combate ao desemprego juvenil por meio de ações que estimulassem a contratação de jovens no mercado formal de trabalho. O público-alvo era formado por jovens entre 16 e 24 anos, sem experiência de trabalho formal, provenientes de famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo e que apresentassem baixos níveis de escolari- dade. Para participar do programa, os jovens deveriam estar matriculados ou terem concluído o ensino médio e se cadastrarem em uma das unidades do Serviço Na- cional de Emprego (Sine). O Programa previa as seguintes estratégias: • subvenção econômica; • estímulo à responsabilidade social; e • consórcio da juventude À época de seu lançamento, o programa centrava-se na linha de subvenção econômica, como pode ser veri- ficado nos orçamentos de 2004 e de 2005, que previam de 60% a 70% dos recursos nessa rubrica. Nessa moda- lidade, a ênfase recai sobre a colocação formal do jovem no mercado de trabalho e, para estimular essa contrata- ção, as empresas parceiras receberiam anualmente R$ 1.500 por jovem contratado. No entanto, o Programa apresentou, no decorrer dos anos seguintes, resultados insatisfatórios e, a partir de 2005, a ênfase deslocou-se para os Consórcios Sociais da Juventude (CSJ). Nessa modalidade, os jovens recebem um auxílio financeiro mensal no valor de R$ 150,00, vale- transporte e lanche para participar de oficinas de qualifi- cação profissional e social e prestar um serviço voluntá- rio. Ao final do período, há uma meta de inserção a ser atingida pela entidade executora do Consórcio. Os programas do Governo Federal que surgem nes- se contexto, embora tenham apostado inicialmente na possibilidade de ampliar o papel do estímulo financei- ro aos empregadores, passaram a enfatizar a impor- tância da articulação de programas, função que se tor- 104 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 na uma das metas da recém-criada Secretaria Nacional da Juventude. Nos programas destinados à transferência de renda para a erradicação do trabalho infantil e proteção conti- nuada aos adolescentes, foi necessário garantir, além da presença das crianças e adolescentes na escola, uma vin- culação à perspectiva de acesso a atividades geradoras de renda da família para apoiar sua emancipação. As ações educativas e as atividades culturais e espor- tivas desenvolvidas junto a esses jovens, fundamentais por seus aspectos pedagógicos e socializadores, eram direcionadas à preparação para o mundo do trabalho, mas contribuíram pouco para o desenvolvimento de fer- ramentas demandadas no mercado profissional. A experiência dos Consórcios para a Juventude tem sido fundamental, para mostrar a potencialidade des- sas ações desenvolvidas a partir de organizações so- ciais enraizadas nas comunidades periféricas mais ca- rentes. Elas, no entanto, não mostram resultados au- tomáticos e têm um custo operacional maior que ou- tros programas. Programa Nacional de Inclusão de Jovens – ProJovem O Programa Nacional de Inclusão de Jovens – ProJo- vem foi instituído no âmbito da Secretaria-Geral da Pre- sidência da República, pela Medida Provisória no. 238, de 1o de fevereiro de 2005 e Lei no 11.129, de 30 de ju- nho de 2005. O ProJovem foi pensado como um programa carro-chefe da Política de Juventude, em consonância com a recomen- dação do Grupo Interministerial de Juventude, de 2004, e do Projeto Juventude do Instituto Cidadania que postula: “[...] torna-se urgente construir um programa nacional de larga escala, em cujo âmbito se interliguem educação, trabalho, cultura e participação, e cuja gestão seja marcada pela integração e pela transversalidade. É recomendável que o novo programa abrangente combine aceleração escolar, capacitação profissional e o engajamen- to em ocupações sociais remuneradas: trabalho comunitário, cui- dados ambientais, alfabetização, campanhas de saúde e inúmeras modalidades de convivência solidária e acesso ao esporte, lazer e bens culturais. Não é recomendável que esse programa abrangente centralize todo o leque de ações hoje dirigidas à juventude, o que resultaria em gigantismo, morosidade burocrática e provável en- gessamento de uma questão que tem na diversidade seu elemento central. Mas ele deverá valer como uma espécie de carro-chefe interligando todas as iniciativas com sinergia, complementaridade, flexibilidade e conexões dinâmicas.” Trata-se de um programa emergencial, destinado a jovens de 18 a 24 anos que terminaram a 4a. série, mas não concluíram a 8a.série do ensino fundamental e que não tenham vínculos formais de trabalho. Seu objetivo é proporcionar uma formação integral, por meio da efe- tiva associação entre: • Elevação do grau de escolaridade visando a conclu- são do ensino fundamental; • Qualificação profissional voltada a estimular a inser- ção produtiva cidadã; e • O desenvolvimento de ações comunitárias, com prá- ticas de solidariedade, de exercício da cidadania e de intervenção na realidade local. O ProJovem é oferecido na forma de curso, com a duração de 12 meses ininterruptos e com carga horá- ria de 1200 horas presenciais e 400 horas a distância. Como incentivo à participação do jovem, oferece um auxílio-financeiro mensal no valor de R$ 100,00 ao jo- vem, que deverá: • Estar matriculado no curso; • Comparecer a pelo menos 75% das atividades pre- senciais, em cada Unidade de Formação, incluindo a ação comunitária programada para o mês; e • Entregar os produtos escritos previstos para cada mês. O Programa apresenta dois aspectos inovadores: a gestão compartilhada e o currículo integrado. Do ponto de vista da gestão, as inovações apresentadas buscam romper a lógica fragmentada que tem caracterizado as ações governamentais. No âmbito federal, há a conjugação de esforços en- tre a Secretaria-Geral da Presidência da República, que o coordena, o Ministério da Educação, o Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério do Desenvolvimen- to Social e Combate à Fome. Duas instâncias de decisão estão previstas: o Comitê Gestor Nacional e a Comissão Técnica Nacional. O Conselho Gestor é o órgão colegiado, composto por secretários executivos: • da Secretaria-Geral da Presidência da República (que o coordena); • do Ministério da Educação; • do Ministério do Trabalho e Emprego; e • do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 105 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 • pelo titular da Secretaria Nacional de Juventude; e • pelo Coordenador Nacional do ProJovem. Esse Conselho Gestor, de caráter deliberativo, tem as seguintes competências: • Apreciar a proposta orçamentária anual, para poste- rior encaminhamento ao Órgão Setorial de Planeja- mento e Orçamento da Presidência da República; • Aprovar o seu plano de ação; • Acompanhar a execução do Programa, definindo ajus- tes que se fizerem necessários; • Apreciar a prestação de contas anual, quanto ao aten- dimento dos objetivos e metas, bem como à execu- ção financeira. A Comissão Técnica tem a finalidade de subsidiar tecni- camente e auxiliar o Comitê Gestor Nacional no exercício de suas atribuições. É formada pelo Coordenador Nacional do ProJovem, que a coordena, e por um representante, titular e suplente, de cada Ministério parceiro do Programa. No âmbito local, há um compartilhamento de respon- sabilidades com os demais entes federados. Em sua pri- meira etapa, de 2005 a 2007, o ProJovem foi implemen- tado em parceria com os governos executivos das capi- tais, do DF e de 29 municípios de regiões metropolita- nas com mais de 200 mil habitantes. Esses parceiros locais respondem por: • Realizar a matrícula dos alunos; • Providenciar o espaço físico para o desenvolvimento de todas as atividades; • Providenciar o espaço físico adequado para a insta- lação dos laboratórios de Informática; • Fornecer o material de consumo (giz, apagador, lá- pis etc.); • Disponibilizar livros e equipamentos de multimídia para as Estações Juventude; • Providenciar o lanche a ser distribuído aos alunos. A execução e a gestão local do ProJovem também de- vem se efetivar por meio da conjugação de esforços en- tre os órgãos públicos das áreas de educação, de traba- lho, de assistência social e de juventude, observada a in- tersetorialidade, sem prejuízo da participação das secre- tarias estaduais de juventude, onde houver, e de outros órgãos e entidades do Poder Executivo Estadual e Mu- nicipal, do Poder Legislativo e da sociedade civil. É res- ponsabilidade do ente federado parceiro instituir Comi- tê Gestor Local, a exemplo do Comitê Nacional. O currículo integrado baseia-se, agora, num novo tri- pé: educação, qualificação profissional e ação comuni- tária. No campo educacional, valorizam-se os saberes já adquiridos – a “escola da vida” – e procura-se relacionar os temas estudados com o cotidiano dos jovens. A quali- ficação profissional, conforme demonstraram as pesqui- sas de avaliação, é um dos principais atrativos para o in- gresso do jovem no programa. Embora o Projovem não tenha como objetivo prepa- rar o jovem para a sua inserção no mundo do trabalho, preocupa-se com as novas exigências e oferece qualifi- cação profissional, na forma de arcos-ocupacionais. A ação comunitária tem como objetivo organizar e orien- tar o seu engajamento e a sua participação cidadã em ações comunitárias de interesse público. A primeira grande inovação do ProJovem ocorreu no processo de sua construção, que partiu do cruzamen- to entre os problemas com os quais depara a juventude brasileira e as ações desenvolvidas pelo Governo Fede- ral. Nesse cotejamento, o GT Juventude identificou a ne- cessidade de um Programa que articulasse os ministé- rios para o enfrentamento dos desafios postos aos jo- vens brasileiros. De forma coletiva, vários esboços foram propostos, com variações com relação à faixa etária, às regiões se- lecionadas, ao nível educacional a ser exigido, à dura- ção do Programa, entre outros. Todavia, algumas carac- terísticas foram comuns a todos: • A primazia da questão educacional; • A concessão de um incentivo financeiro; • A capacitação para o mundo do trabalho; e • A realização de atividades comunitárias por parte do jovem contemplado no Programa. Um segundo ponto que merece destaque é a visão da juventude que permeou a discussão. Enquanto mui- tas ações governamentais persistem na visão do jovem como problema, o ProJovem reconhece que: [...] A Juventude é a fase da vida mais marcada por ambivalências, pela convivência contraditória dos elementos de emancipação e subordinação, sempre em choque e negociação. Mas essa tam- bém é a fase de maior energia, generosidade e potencial para o engajamento. Portanto, um programa dirigido aos jovens deve tomar como seus, tanto os desafios que estão sendo colocados para essa geração quanto sua forma inovadora de encontrar respostas aos problemas sociais, chamando-os permanentemente para o diálogo e a participação cidadã. (BRASIL, 2005).2 106 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Em seu novo formato o programa será subdividido em quatro modalidades: ProJovem Adolescente, ProJo- vem Urbano, ProJovem Campo e ProJovem Trabalhador. A idéia é também a de facilitara e mediar o acesso do jo- vem a outros programas federais, desde aprender a ler (Brasil Alfabetizado), se for o caso, até chegar à Univer- sidade (ProUni). ProJovem Adolescente Destina-se aos jovens de 15 a 17 anos em situação de risco social, independentemente da renda familiar, ou que sejam pertencentes a famílias beneficiárias do Pro- grama Bolsa Família. O Programa é uma reformulação do Agente Jovem, terá duração de 24 meses, e poderá ser implantado em mais de 4 mil municípios. Oferece pro- teção social básica e assistência às famílias e contribui para a melhoria do padrão de escolaridade. Além disso, busca minimizar e reduzir os problemas que envolvem os adolescentes com a violência e as doenças. ProJovem Urbano Para jovens de 18 a 29 anos e que saibam ler e escre- ver, o Programa parte de uma reformulação do atual Pro- Jovem, criado em 2005, e terá como objetivo elevar o grau de escolaridade visando a conclusão do ensino fundamen- tal, qualificação profissional e o desenvolvimento de ações comunitárias e exercício da cidadania. O ProJovem Urba- no será implantado, no primeiro momento, em todas as cidades com população igual ou superior a 200 mil habi- tantes e terá duração de 18 meses. O jovem que cumprir 75% de freqüência às aulas e entregar 75% dos trabalhos escolares receberá um auxílio mensal de R$ 100. O pro- grama será estendido às unidades prisionais ou de inter- nação de adolescentes em conflito com a lei. ProJovem Campo Tem como objetivos fortalecer e ampliar o acesso e a permanência dos jovens agricultores familiares no siste- ma educacional, com elevação da escolaridade visando que os jovens da área rural de 18 a 29 anos concluam o ensino fundamental em regime de alternância dos ciclos agrícolas. O Programa é uma reformulação com amplia- ção do programa Saberes da Terra. Os jovens do campo receberão um auxílio mensal de R$ 100 enquanto esti- verem na escola. ProJovem Trabalhador Visa preparar o jovem para o mercado de trabalho e para ocupações alternativas geradoras de renda. Dele podem participar os jovens desempregados, com idade entre 18 e 29 anos que sejam membros de famílias com renda per ca- pita de até meio salário mínimo.O ProJovem Trabalhador uni- ficou os programas Consórcio Social da Juventude, Juventu- de Cidadã e Escola de Fábrica. Os participantes receberão um auxílio mensal de R$ 100, durante seis meses, median- te comprovação de freqüência aos cursos de qualificação, com carga horária prevista de 600 horas/aula. Considerações Finais A experiência relatada mostra que já foram dados di- versos passos importantes para a construção de uma Política Nacional de Juventude. Por outro lado, nos faz refletir sobre o desafio de dar coerência às ações já de- senvolvidas pelo governo e, também, aponta caminhos para o tratamento dos temas transversais, cujas causas e efeitos estão em todos os campos de atuação das po- líticas públicas. Trata-se, porém, de um processo em construção que requer continuidade e aprofundamento dos trabalhos até então desenvolvidos. Por exemplo, dar seguimento à re- comendação do Grupo de Trabalho para a construção de um sistema de monitoramento das ações desenvolvidas pelo governo para públicos específicos, como por exem- plo, juventude, idoso ou criança. Outra necessidade premente é fortalecer a articulação existente entre os ministérios que, muitas vezes, se apre- senta precária, o que leva a uma pulverização e fragmen- tação das ações, gerando inclusive superposições entre os programas. Com o ProJovem, aponta se uma nova direção e dá se um primeiro passo. É fundamental, no entanto, fô- lego e continuidade no caminho a ser percorrido. NOTAS 1 Documento Base da 1a Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juven- tude, Brasília, 2008. 2 Manual do Orientador: orientações gerais. Organizadora, Maria Umbelina Caiafa Salgado – Brasília: Programa Nacional de Inclusão de Jovens, 2007 REFERÊNCIA 1 NOVAES, Regina (1997). Juventudes cariocas: mediações, conflitos e en- contros culturais. In: Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: UFRJ. 107 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 108 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 RELATO DE PRÁTICA Blogs: territórios virtuais de aprendizagem, comunicação e sociabilidade. Programa Jovens Urbanos No Programa Jovens Urbanos, a formação dos jovens é realizada pelos educadores e coordenadores que atuam nas ONGs locais. Para sustentar as atividades e produtos indicados no Programa, cabe aos educadores e coordenadores defini- rem as experiências de aprendizagens a partir de planeja- mentos das explorações e experimentações e outras ne- cessidades que surgirem em cada grupo juvenil. Parceiros e assessores tecnológicos também são res- ponsáveis pelas atividades de exploração dos jovens em diferentes espaços urbanos, que vão das experimenta- ções com foco no desenvolvimento e o uso de tecnolo- gias na cidade à criação de “produtos” relativos às ex- periências vividas e fomento de idéias pertinentes à ela- boração de projetos de intervenção social. O processo de formação se desenvolve num período de 16 meses. Ao longo dos dez primeiros meses, os jo- vens elaboram projetos de intervenção que são acompa- nhados e implementados durante os meses seguintes. Nesse período acontece o acompanhamento da imple- mentação dos projetos. Durante os meses de acompanhamento a equipe do Cenpec desenvolveu uma ação de incentivo à constru- ção de blogs. Montados e alimentados pelos jovens, os blogs foram construídos com os objetivos de acompanhar a execução dos projetos, fomentar a utilização de espaços virtuais de comunicação e estabelecer um maior campo de arti- culação entre os projetos e os jovens. Representantes de cada um dos projetos participa- ram de encontros de capacitação para a construção dos blogs. Esses encontros foram coordenados pela equipe técnica do CENPEC. Para acessar os mais de 20 blogs dos projetos dos jo- vens da Segunda Edição São Paulo, entrem no blog cen- tral do PJU: http://www.programajovensurbanos.blogs- pot.com/ Na Terceira Edição, em São Paulo, os blogs foram im- plementados durante o período de formação, por inicia- tiva dos assessores tecnológicos (caso da experimenta- ção Vivências Urbanas de Tradições Paulistas e Lambe- Lambe), ou dos próprios jovens (caso dos jovens da ONG Plugados na Educação). A experimentação Mídia Urbana já previa a construção de um blog pelos jovens como produto da oficina. “A realização de um sonho Olá galera finalmente o nosso Jornal já foi impresso, foram impresso 1000 exemplares e já esta sendo distribuído na Escola da Família, na praça do Jardim Jangadeiro, na Comunidade Evangélica Espaço Hosana, e na Associação Beneficente Provisão e em alguns lugares do bairro do Capão Redondo. Até o final do mês de maio serão distribuídos os 1000 exemplares. E nós nos juntamos com os jovens dos outros projetos e tivemos a iniciativa de montar um grupão que se chama Conexão Periférica. O nosso objetivo é de- senvolver uma idéia que una todas as nossas ações em um único projeto. Agradecemos a todos que colaboraram para a realização do Jornal Capão Reage!!!!!!”. Registro do Projeto Jovem Reage postado no blog www.jovemreage.blogspot.com O projeto Jovem Reage foi implementado pelos jovens da Organização Beneficente Provisão, que fica no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo. Os jovens pretendiam, conforme expresso por eles, “mostrar que o nosso bairro tem mais que só violência, informando a comunidade sobre os recursos existentes no bairro referentes aos campos da cultura, educação, lazer e trabalho”. Justificativa elaborada pelos jovens do Projeto Jovem Reage A experimentação Vivências Urbanas de Tradições Paulistas criou o blog Batuques Paulistas (http://www. batuquespaulistas.blogspot.com), que serviu como fer- ramenta de registro durante a oficina – uma espécie de diário de bordo das ações realizadas com relatos e co- mentários dos jovens, do assessor, dos educadores, da Equipe Técnica PJU, incluindo fotos e imagens. Bom, esse dia foi “da hora”... Apesar de termos ficado com um pouco de vergonha no início, logo ela passou e então dancei e cantei como criança que brinca livremente sem medo de nada... Já posso sentir que “o fim está próximo”... Nem ligo, continuarei cantando e dançando mesmo que seja sozinho... Comentário do jovem urbano Henrique, no blog Batuques Paulistas. Os jovens da ONG Plugados na Educação também cria- ram seu blog onde contam relatos livres da experiência do PJU . Já os jovens participantes da oficina Mídia Urbana criaram o blog Liberdade e Atitude . Nele foram publicados ví- deos, fotos e textos produzidos por eles. Eles também elaboraram pequenos documentários sobre temas variados (cidadania, cultura, meio ambien- te, educação, saúde etc.), além de narrativas que ajuda- ram a explicar esses temas. Entre outras ações também fizeram parte das atividades ao longo da experimenta- ção, manuseio de câmera míni DV, edição de vídeos, lei- tura e redação de roteiros. “No segundo encontro fomos filmar a escola, fazendo entrevistas com pessoas sobre os acontecimentos durante o desenvolvimento do dia-a-dia. Além disso, fizemos uma reportagem sobre o meio ambiente, como por ex.: praças, parques e jardins. Entrevistamos o jardineiro da praça da escola, ele nos contou sobre o trabalho que faz.Ele falou dos alunos que não preservam, maltratando as plantas do jardim da praça, além disso, eles não respeitam o traba- lho. Por outro lado, ele falou que a praça é um lugar para meditar. Filmamos a Andressa apresentando a praça que a escola possui com atitude e coragem. O vídeo realizado nas dependências da escola, falando sobre meio ambiente com o surgimento da praça, fala sobre limpar, plantar, preservar e cultivar”. Registro da experimentação Mídia Urbana, postado no blog Liberdade e Atitude. Vale a pena visitar esses diários virtuais. Eles trazem a voz dos jovens – o que pensam, desejam e sonham –,além das muitas e bonitas realizações deles no percurso do Pro- grama Jovens Urbanos. Arte para recriar a cidade Na experimentação Lambe-lambe, os jovens criaram cartazes utilizando diferentes técnicas de produção de imagens (estêncil ou molde vazado, xerox, colagem, xi- logravura, tipografia e desenho). Depois, colaram esses cartazes em locais públicos, construindo murais coleti- vos na cidade. Todos os murais foram fotografados. Por meio dessa oficina, os jovens conheceram e conversaram sobre arte, comunicação, internet e vida na cidade, que alimentaram as propostas de cartazes e do blog que produziram durante o processo. Na experimentação Vivências Urbanas de Tradi- ções Paulistas, os jovens tiveram a oportunidade de conhecer e experimentar um pouco das cantorias e danças de influência africana, tradicionais do Estado de São Paulo (como o samba de bumbo, o jongo e o batuque de umbigada). Além disso, assistiram a vídeos, tocaram e construíram tambores, dançaram, cantaram e in- ventaram versos. A oficina Lambe-Lambe criou seu blog www.lambelambenolajeado.blogspot.com Registro escrito e fotográfico de todo o processo de inter- venção artística realizada na região do Lajeado, Zona Leste de São Paulo. FONTE: WWW.LAMBELAMBENOLAJEADO.BLOGSPOT.COM 109 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Não sabemos como é ser jovem hoje. Saber o que foi ser jovem não basta. Educador do Programa Jovens Urbanos1 preocupação pública com a juventude é tema recorrente na mídia – sempre presente nas falas de políticos, go- vernantes, juízes, pesquisadores, artistas. No geral, vocalizam as relações entre jovem e violência, consumo, precariedade educacional e desemprego. O que o noticioso pouco destaca é a presença de um processo intergeracional que a globalização econômi- ca acirrou, no qual as estruturas de oportunidades ge- radas pela sociedade são cada vez mais restritas para a juventude, particularmente aquela com pouco poder de compra. (...) Eu acho que muitos encaram a juventude como uma fase de transição, não como um momento específico da vida que tem as suas características, que tem as suas questões. Uma coisa que eu escuto muito falar é da maturidade do jovem, que o jovem é imaturo. Mas é imaturo com relação a quê? É imaturo com relação a minha maturidade porque sou uma mulher com uma história de vida. Não sabemos como é ser jovem hoje. Saber o que foi ser jovem não basta. Essa rotulação de que o jovem é o problema não pode continuar. O fundamental é que possamos oferecer condições para que eles possam fazer suas escolhas... desenvolver suas potencialidades. 0OLÅTICAS PARA E COM A JUVENTUDE Equipe Educação e comunidade ! ARTIGO 111 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Comentários de educadores do Programa Jovens Urbanos O tema da juventude entrou na agenda pública, po- rém não se converteu em política pública. Qualquer que seja a política pública, ela é sempre objeto de disputa, quer seja na sua formulação, quer seja na sua operacio- nalização. Só se torna política pública, o que é problematizado socialmente. Uma questão pode estar incomodando a socieda- de, mas se não ganha visibilidade e não afeta diretamente os setores mais interessados, dificilmente ela se torna uma política pública. (AGUIAR: 2007) A política para e com a juventude se insere em um cenário de disputa. Como pré-anúncio de uma política de juventude, nes- ta última década, alguns processos avançaram no País. Novas institucionalidades foram criadas: • Estudos realizados para conhecer e mapear “o esta- do da arte” em relação às ações públicas voltadas à juventude. • Constituição de Secretaria Nacional de Juventude, vin- culada à estrutura da Secretaria-Geral da Presidência da República, responsável pela formulação da Políti- ca Nacional de Juventude. • Constituição do Conselho Nacional de Juventude, com representantes de diversos segmentos jovens. • Conformação de leis de proteção e desenvolvimento da juventude brasileira – Estatuto da Juventude, em tramitação no Congresso nacional. No entanto, esse pré-anúncio não alterou a vigên- cia de projetos pontuais, em sua maioria, conduzidos pela própria sociedade civil. Permanecem no circuito da ação social. A mais recente iniciativa governamental se anuncia com o Programa Nacional de Inclusão de Jovens – Pro- jovem voltado para as grandes cidades. É ainda um pro- grama e não uma política. Números eloqüentes e preocupantes A juventude (recria) instrumentaliza diferentes linguagens, enfo- ques para manifestar seus anseios e insatisfações. Assume faces diferentes de acordo com as condições materiais e culturais que a cercam, de acordo com o território em que se encontram. (CASTRO E ABRAMOVAY, 2002, p. 28) O grupo juvenil, do ponto de vista demográfico é o mais expressivo da população brasileira: • Os jovens entre 15 e 24 anos somam 34 milhões, o que representa 1/5 da população brasileira (IBGE / PNAD, 2006). Dados referentes à escolaridade dos jovens sinalizam para um grave déficit: • apenas 52% dos jovens concluem a educação bási- ca e levam em média 12,2 anos para fazer essa traje- tória (IBGE/PNAD,2001). Dos 34 milhões de jovens brasileiros, apenas 16,2 mi- lhões encontram-se nos bancos escolares, o que corres- ponde a menos da metade do total desse grupo etário. Entre os jovens adolescentes de 15 a 17 anos, é maior a proporção de estudantes (82% deles estão na escola), embora metade (40%) ainda esteja matriculada no ensi- no fundamental, e 57% no ensino médio. Dos 3,2 milhões de estudantes que terminaram o en- sino médio em 2000, apenas 1,2 milhão chegaram à uni- versidade. Em 2006 cerca de 839 mil (2,4%) jovens eram analfabetos, 65% deles concentravam-se na região Nor- deste (IBGE / PNAD, 2006). Também é preciso mencionar o déficit no acesso a esportes, lazer, cultura e tecnologia de informação: em 2001, cerca de 21% dos municípios brasileiros não tinham biblioteca pública, 92% não tinham cinema e 24% não tinham um ginásio poliesportivo. Acrescente-se a esse contexto o fato de que, em nos- sas regiões metropolitanas, a população juvenil vive em situação de vulnerabilidade e convive com o contexto de violência urbana. A educação como prioridade para este segmento etá- rio fica subsumida. Esse fato é claro quando se obser- vam ainda hoje as altas taxas de distorção idade/série, o $OS MILHÍES DE ESTUDANTES QUE TERMINARAM O ENSINO MÁDIO EM APENAS MILH»O CHEGOU ̧ UNIVERSIDADE %M CERCA DE MIL JOVENS ERAM ANALFABETOS DELES CONCENTRAVAM SE NA REGI»O .ORDESTE )"'% 0.!$ 112 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 abandono escolar e a forte restrição de oportunidade de ingresso ao ensino médio público. É comum nesse cená- rio o lamento em torno da redução drástica da oferta de postos de trabalho para os jovens de 16 a 21 anos. Colocar a centralidade no emprego e não na educação é um desatino conservador da política pública brasileira. Essa teimosia mantém-se cega à excedência cultural presente na sociedade contemporânea que desloca nos- so olhar desejante para outras oportunidades que não só a inserção no mercado de trabalho. Tal teimosia não reconhece também a baixa efetivida- de da opção pelo trabalho para jovens, seja pelas carac- terísticas do grupo juvenil – fluidez emocional, transito- riedade e tempo de experimentação – seja pelo próprio mercado de trabalho fortemente restrito e informal. É nessa leitura que se compreende o fracasso do pro- grama nacional Primeiro Emprego, lançado pelo governo federal em 2003, relançado em 2004 e extinto por total falta de adesão em 2006.2 Os jovens têm dificuldade em permanecer muito tempo nos primeiros empregos. Para entender por quê, basta comparar a procura de emprego à busca do casamento. Em geral, os jovens não se casam com o primeiro namorado. Eles não têm dificuldades para encontrar um namorado, mas seus primeiros romances são curtos. Com o passar do tempo, os jovens ficam experientes, encontram alguém e formam, então, um par mais permanente. A proporção de “avulsos” entre os jovens é mais alta do que entre os mais velhos não porque os jovens não namoram, mas porque os namoros são mais curtos. Há sempre muitos jovens “procurando emprego” e na- morados. E é bom que seja assim, pois a rotatividade nos romances da juventude acaba produzindo melhores encontros definitivos. Com o emprego é a mesma coisa. Os jovens “rodam” mais porque experimentam as empresas e são experimentados por elas. Isso é bom. Com o tempo, encontram uma vaga e criam um vínculo mais duradouro. Hélio Zilberstein, Jornal Folha de S.Paulo, 29/3/03, p.A-3. A taxa de desemprego entre os jovens, nos grupos de 15 a 17 anos e 18 a 24 anos, está em torno de 8,8% e 12,5%, respectivamente. No grupo de 25 a 49 anos é de 5%, reduzindo para 1,4% nos de mais de 50 anos (IBGE/PNAD, 2006). Os estudos indicam que as taxas de desemprego ju- venil são elevadas tanto no Brasil como no restante do mundo. Alem da condição etária (fase de experimenta- ção e rotatividade) outros fatores contribuem para isso, incluindo o de expansão da economia. O Brasil ainda patina na formulação de políticas e programas sociais voltados à juventude; os déficits de oportunidades educacionais e culturais para sua juven- tude chegam a ser dramáticos. Estudos recentes da Fundação Getúlio Vargas – FGV indicam que “a variável anos completos de estudo justi- fica, sozinha, 39% da desigualdade, acima de qualquer outra variável censitária”3 . A análise desses dados aponta para a necessidade de investimentos em programas para a juventude que te- nham como efeito o aumento de anos de estudo, buscan- do interromper o ciclo da desigualdade que empurra os jovens para o trabalho precário e desqualificado. Como lembra Dowbor, O século XXI será o século da informação, da sociedade do conhecimento. Não há nenhum futurismo pretensioso nesta informação, e sim uma preocupação com as medidas práticas que se tornam necessárias e cujo estudo deve figurar na nossa agenda (2001, p.133). A sociedade do conhecimento em que vivemos abso- lutamente tomada por tecnologias exige mais que apren- dizagens específicas. Nossa sociedade clama por uma educação capaz de formar jovens para o tempo e espa- ço societário hodierno; para apoiá-los no difícil proces- so de inclusão na sociedade complexa, as aprendiza- gens não são apenas cognitivas, mas, sobretudo, socio- afetivo-culturais. A integralidade da pessoa humana abarca intersecção dos aspectos biológico-corporais, do movimento humano, da socia- bilidade, da cognição, do afeto, da moralidade, em um contexto tempo-espacial. Um processo educativo que se pretenda integral precisa promover o desenvolvimento de todos esses aspectos de modo integrado, ou seja, a educação visaria à formação e ao de- senvolvimento humano e não apenas ao acúmulo informacional (Bernadete Gatti, apud Isa M. F. Rosa Guará, 2006, 16). As aprendizagens se fazem com ação e na ação. A apropriação e expansão de conceitos, atitudes, va- lores, e competências pessoais e sociais ocorrem em contextos intencionais, quando necessidades e pro- pósitos de aprendizagem são significativos, partilha- 113 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 dos pelos envolvidos, apresentam sentidos reais e exi- gem participação. Em síntese, um projeto educacional inclui, para além do aumento da escolaridade, a aquisição de outras habi- lidades no plano da sociabilidade, da ampliação de seu repertório cultural, de participação na vida pública, da fluência comunicativa e domínio de outras linguagens de forma a se sentir competente para acessar as rique- zas societárias e obter ganhos de pertencimento e reco- nhecimento de sua cidadania. Assim é que cultura e participação na vida pública são mediações privilegiadas no desenvolvimento pes- soal e social de jovens. Os jovens constroem projetos de vida cunhados na incerteza e desconfiança frente às certezas; obtêm ga- nhos de aprendizado na experimentação e na circulação nos diversos e múltiplos espaços e territórios a que têm acesso, obtêm ganhos de aprendizados compelidos na e pelo apelo da sociedade da excedência cultural, de- senvolvem aprendizados quase espontâneos na oferta glamorosa dos hipertextos e multimídia que viabilizam comunicação e informação. Circulação e aprendizagem Nossa juventude se insere em uma sociedade marcada pela complexidade. É uma sociedade ao mesmo tempo local e global; uma sociedade da escassez e da abun- dância que mantém enormes desigualdades sociais; uma sociedade de forte apelo ao consumo de massa que sobrepõe o desejo à necessidade ; uma socieda- de do conhecimento, da informação e da contínua ino- vação tecnológica. Uma sociedade que se desfez do modelo tradicional de emprego e trabalho e conclama os cidadãos a rein- ventarem o trabalho seja pela indução contínua à no- vas ocupações, seja por modelos de emprego autôno- mo, virtual, precário. Os jovens de hoje ampliaram suas expectativas de rea- lização e se frustram continuamente pela decalagem cada vez maior entre expectativas e reais possibilidades. Para compreender e atuar nesta sociedade, Morin nos convida a adotar a idéia de um pensamento complexo. Isto é, um pensamento que religa, porque contextualiza e integra, e dialógico, porque relaciona antagonismo e complementa- ridade, aceitando a tensão entre certeza e incerteza. O jovem precisa ter inserção em três ordens insti- tucionais: estado, comunidade e mercado – que são consideradas centrais na geração de “estruturas de oportunidades”. O processo de emancipação no qual os jovens se en- contram, implica uma interação ascendente com as gera- ções que os precedem – os adultos. Enquanto estes últi- mos já estão integrados à dinâmica social, os jovens ca- recem de incentivos para facilitar sua incorporação a essa dinâmica, até porque paradoxalmente essa incorporação é chave para assegurar a reprodução biológica e social de uma sociedade dominada por adultos. A constante tensão entre o mundo dos adultos e o mun- do dos jovens tornou-se constitutiva da maioria das socie- dades atuais, ainda que as características de tal conflito obedeçam a condições estruturais e sedimentações cul- turais particulares (Cepal/Celade, 20002 ; Cubides, Laver- de e Valderrama, 1998). Essa tensão resulta visível em aspectos tais como as lógicas institucionais que privilegiam o mundo adulto, as diretrizes oficiais da escola – que ignoram o conhecimento que os estudantes adquirem em sua vida cotidiana –, a ra- cionalidade de uma sociedade de mercado que só vê nos jovens potenciais consumidores (e não produtores). E essas lógicas colidem – às vezes de maneira vio- lenta – com novas sensibilidades, formas de se relacio- nar, de conhecer e experimentar o mundo e de construir seu futuro. Por isso mesmo, não há um único programa que dê conta dos interesses e expectativas descentradas dos jovens. Combinações programáticas ricas e diversifica- das dependem da constituição de espaços rede e pro- gramas rede que viabilizem circulação formativa e auto- aprendizagem. Essa linha de reflexão alerta para a desigual distribui- ção dos recursos disponíveis entre os diferentes grupos etários, que favorece os adultos incorporados à popula- ção ativa, e para os quais se orientam quase todas as po- líticas sociais relevantes. Essa questão sugere a importância de considerar o contexto em que se situam os jovens até mesmo porque estariam por definição, entre os grupos excluídos e com restrições institucionais aos bens, recursos e posições de poder na sociedade. REFERÊNCIAS DOWBOR, Ladislau. Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação. Petrópolis: Vozes, 2001. CEPAL/CELADE (2000), Juventud, población y desarrollo en América Latina y el Caribe, Santiago de Chile, LC/L.1339 e Cubides, H., M. Laverde y C. Valderrama (1998), Viviendo a toda: Jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilida- des, Santafé de Bogotá, Universidad Central, Siglo del Hombre. GUARÁ, Isa Maria F. Rosa. É imprescindível educar integramente. In Cadernos CENPEC. Educação Integral. Ano 1, no 2, 2006. CASTRO, Mary Garcia e ABRAMOVAY, Miriam. Por um novo paradigma do fazer políticas – políticas de/para/com juventudes. Revista Brasileira de Estudos de População, v.19, n.2, jul./dez. 2002. NOTAS 1 Os comentários dos educadores foram feitos em grupo focal e, por isso, as falas não são identificadas. 2 Felícia Madeira insiste que este dado é compreensível seja pelo comporta- mento do mercado que recruta trabalhadores mais adulto, seja pelo com- portamento do jovem. Os dados comprovam que a tendência de inserção no mercado de trabalho atinge a “normalidade” dos índices de absorção de mão-de-obra a partir dos 25 anos. 3 Ensaios – Revista conjuntura Econômica, 2000-2003. 115 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 6 Idem. 7 Idem. 8 IBGE, 2000; Cenpec – ISEB. 9 Idem. -OSAICO A quantas juventudes temos que atender? Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará* * Fernando Rios é jornalista, publicitário, cientista social e consultor em Comunicação Organizacional Integrada. Isa Maria F. Rosa Guará é pedagoga, psicopedagoga, doutora e mestre em Serviço Social (PUC-SP), consultora de projetos sociais e de educação e coordenadora editorial dos Cadernos Cenpec. Jovem ou jovens. Juventude ou juventudes. O que existe de comum entre George Bush e Ozama Bin Laden? Evidentemente, ambos foram jovens. E que mais? Eles têm uma incrível determinação: utilizam tudo o que está ao seu alcance, dos gestos de violência (verdadeiros) aos gestos de amizade (verdadeiros e falsos) para atingir seus objetivos, que são bem diferentes. Quais as diferenças entre um jovem fundamentalista islâmico, um evangélico, um budista, um católico. São Muitas. Cada um deles tem sua visão de mundo particular e se comporta em função disso. Mesmo considerando que a sociedade capitalista oferece aos jovens brasileiros modelos semelhantes de consumo e... felicidade, através dele, o capitalismo, precisamos considerar os muitos jovens e as muitas juventudes presentes neste mo- mento brasileiro. Temos diferentes jovens em São Paulo, no Rio e Janeiro, em Minas Gerais, Pernambuco, no Amazonas, no Rio Grande do Sul. Temos cidades e áreas rurais. Temos jovens instruídos e sem instrução. Temos classes sociais A, B, C, D e E. e, para cada uma delas, suas características, seus modelos, suas regras, seus desejos. Temos jovens filhos do poder econômico e político e jovens filhos de assalariados máxima ou minimamente, embora os minimamente sejam em maior número. Mas... de que jovem nós estamos falando? Do sexo masculino ou feminino? Negro, branco, moreno, louro, índio, asiático- descendente etc. etc. etc? As possíveis combinações de jovens são aquelas combinações dos seres humanos. Nenhum retrato corresponde à realidade. Ela é muito maior do que nossa vã pretensão de abrangê-la. As estatísticas nos mostram números. Mas nenhum jovem é um número. É um indivíduo e suas múltiplas circunstâncias. Por isso, este mosaico. Verdadeiramente, um mosaico de pro- postas de conhecimento das múltiplas realidades que envolvem a juventude. E cada uma delas tem uma demanda específica, apesar de, estatisticamente, existir algo comum: uma mesma faixa etária e um imenso desejo de consumo. Quando ouvimos Paulinho da Viola cantar... Consumir é viver Conviver é sumir ... e olhamos ao redor, não encontramos uma reposta adequada a uma simples pergunta: o que eu faço com o outro? Talvez, para muitas pessoas, haja duas perguntas anteriores: existe um outro de mim? Se existe, quem é ele? O que comumente acontece é que não percebemos o outro, ele quase não existe, ou melhor, costuma ser considerado apenas para servir. Servir a um sujeito hipertrofiado, individualista, consumi- dor, habitando cada indivíduo e, por extensão, cada jovem. É nessa direção que, acreditamos, deve caminhar a reflexão. Por isso, além desta revista inteira, trazemos alguns filmes, sites e livros. Para que eles nos ajudem a, olhando o passado, compreender o presente e intuir e propor um futuro melhor. Entre o James Dean de Juventude transviada e o Marlon Brando de O Selvagem, modelos de rebeldia do século passado, e Bicho de sete cabeças, Billy Elliot e Doze trabalhos, há muitos mundos de diferença. Muitos mundos que aconteceram no século XX e que nos deixam cheios de dúvidas e temores neste começo do internético século XXI. E então, o que devemos fazer com e para as nossas juventudes? Elas podem conviver pacificamente? Onde estão as ameaças e as possíveis soluções? Certamente, educação é uma das soluções. Educação formal e informal. Pública ou privada. Conhecimento é outra. Porém, enquanto refletimos, no meio disso tudo, continuamos a ouvir os jovens pedindo um lugar ao sol e outro à sombra. Como todos nós, adultos temerosos, cada vez mais solitários, ilhados em circunstâncias, da qual a mais enfática se chama violência. Estamos preparados para atendê-los ou eles nos obrigarão a isso? 117 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 &ILMES AMOR, SUBLIME AMOR. DIREÇÃO: JEROME ROBBINS E ROBERT WISE MÚSICA: LEONARD BERNSTEIN E SAUL CHAPLIN ATORES/DANÇARINOS: Natalie Wood (Maria), Richard Beymer (Tony), Russ Tamblyn (Riff), Rita Moreno (Anita), George Chakiris (Bernardo), Simon Oakland (Tenente Schrank), Ned Glass (Médico), William Bramley (Oficial Krupke), Tucker Smith (Ice) Tony Mordente (Action). MUSICAL, EUA, 1961, 155 MINUTOS, CORES. Um dos mais belos musicais norte-americanos, West Side Story, no original, transporta Romeu e Julieta para Nova Iorque. Montechios e Capuletos se transformam em duas gangues que disputam uma área: Sharks, de porto-riquenhos, e Jets, de brancos de origem anglo-saxônica. O líder dos Jets, se apaixona por Maria, irmã de Riff, líder dos Sharks. BILLY ELLIOT DIREÇÃO: STEPHEN DALDRY ATORES: Julie Walters (Mrs. Wilkinson), Jamie Bell (Billy Elliot), Jamie Draven (Tony), Gary Lewis (Pai), Jean Heywood (Avó), Stuart Wells (Michael), Nicola Blackwell (Debbie) DRAMA, INGLATERRA, 2000, 111 MINUTOS, CORES. Billy Elliot, é a história de Jamie Bell, de 11 anos, que vive numa pequena cidade inglesa, onde o principal meio de sustento são as minas da cidade. É obrigado a treinar boxe por imposição do pai; mas sua grande paixão é o balé, que passa a dançar escondido de sua família, mantendo sempre o sonho de se tornar um grande bailarino. Recebeu três indicações ao Oscar. BICHO DE SETE CABEÇAS DIREÇÃO: LAÍS BODANSKY ATORES: Rodrigo Santoro (Neto), Othon Bastos (Seu Wilson), Cássia Kiss (Mãe de Neto), Jairo Mattos, Caco Ciocler, Luís Miranda, Valéria Alencar, Altair Lima, Linneu Dias, Gero Camilo, Marcos Cesana, Sílvia Lourenço, Daniela Nefussi. DRAMA, BRASIL, 2.000, 80 MINUTOS, CORES. Pai e filho são adversários. Seu Wilson, um representante da classe média, não entende e nem pretende en- tender seu filho, Neto. A relação é extremamente conflituosa. Ela chega ao máximo quando Seu Neto resolve mandar Neto para um manicômio. Aos poucos, ambos se destroem. JUNO DIRETOR: JASON REITMAN ATORES: Ellen Page (Juno MacGuff), Michael Cera (Paulie Bleeker), Jennifer Garner (Vanessa Loring); Jason Bateman (Mark Loring); Allison Janney (Bren MacGuff); J.K. Simmons (Mac MacGuff); Olivia Thirlby (Leah); Eileen Pedde (Gerta Rauss); Rainn Wilson (Rollo); Daniel Clark (Steve Rendazo); Darla Vandenbossche (Mãe de Bleeker). COMÉDIA, EUA, 2007, 96 MINUTOS, CORES. Juno, uma adolescente de 16 anos, fica gráfica de seu amigo Paulie, com quem tranzou uma vez. Ela se acha incapaz de ter cuidar da c riança e resolve entregá-la a um casal que tenha melhores condições de criá-la. Um excelente tema para tantas garotas que engravidam e, certamente, terão suas vidas completamente alteradas. Sem falar dos inúmeros problemas que a criança terá que enfrentar. 118 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 JUVENTUDE TRANSVIADA DIREÇÃO: NICHOLAS RAY ATORES: James Dean (Jim Stark), Natalie Wood (Judy), Sal Mineo (John Crawford), Jim Backus (Frank Stark), Ann Doran (Sra. Stark), Corey Allen (Buzz Gunderson), William Hopper (Pai de Judy), Rochelle Hudson (Mãe de Judy), Dennis Hopper (Goon). DRAMA, EUA, 1955, 111 MINUTOS, BRANCO E PRETO. Em conflito entre pai e filho que marcou uma geração de jovens urbanos brasileiros. O próprio título original do filme já remete para um perfil de jovem ainda está presente em nossas cidades: Um rebelde sem causa. Jim Stark é preso por embriaguez e desordem. Na delegacia, conhece Judy, uma jovem que foi chamada de vagabunda pelo pai, e John Crawford, que deu uns tiros em uns cães. Na delegcia tudo parece c aminhar para uma solução. Mas no dia seguinte as coisas mudam. O SELVAGEM DIREÇÃO: LÁSZLÓ BENEDEK ATORES: Marlon Brando (Johnny Strabler / Narrador), Mary Murphy (Kathie Bleeker), Robert Keith (Xerife Harry Bleeker), Lee Marvin (Chino), Jay C. Flippen (Xerife Stew Singer), Peggy Maley (Mildred), Hugh Sanders (Charlie Thomas), Ray Teal (Tio Frank Bleeker), John Brown (Bill Hamegan). DRAMA, EUA, 1953, 80 MINUTOS, BRANCO E PRETO. Baseado no livro “The Cyclists’ Raid” de Frank Rooney, “O Selvagem” conta um fato ocorrido em 1947, na peque- na cidade de Hollister, na Califórnia, quando ela foi invadida por um grupo de cerca de 4.000 motoqueiros. Evidentemente, aqui o número é bem menor. Mas há um conflito entre duas gangues de motociclistas, numa cidade do interior dos Estados Unidos. O líder do bando, Johnny se apaixona pela filha do xerife local e as confusões aumentam com a chegada de uma gangue rival. Gestos e roupas foram copiados por muitos jovens, em todo o mundo. Mostra o início de uma época na qual a motocicleta representava um dos símbolos da insatisfação e rebelião dos jovens. OS 12 TRABALHOS DIREÇÃO: RICARDO ELIAS ATORES: Sidney Santiago (Héracles), Flávio Bauraqui (Jonas), Vera Mancini (Roseli), Vanessa Giácomo (Simone), Francisca Queiroz (Francisca), Cynthia Falabella (Gêmeas), Cacá Amaral (Sr. Ernesto), Lucinha Lins (Carmem), Luiz Baccelli (Seu Moreira), André Luís Patrício (Maguila), Eduardo Mancini (Mano Véio), Ígor Zuvela (Enfermeiro), Luciano Carvalho (Doze Pino), Thiago Moraes (Marcinho), Paulo Américo (Catatau) DRAMA, BRASIL, 2007, 90 MINUTOS, CORES. Os percalços de um inexperiente ex-interno da Febem, ao conseguir um serviço de motoboy. Emergem pre- conceitos e dificuldades, quando ele tem que realizar 12 trabalhos para se efetivar na função. Um bom retrato da cidade opressora e da dificuldade que muitos adolescentes têm de lidar com ela. $/)3 #524!3 -%42!'%.3 RAÇA, RITMO E POESIA DIREÇÃO: MIRO NALLES DOCUMENTÁRIO, BRASIL, 1994, 17 MINUTOS, CORES. A partir de depoimentos de rappers de diferentes bairros da cidade de São Paulo, são conhecidos os traba- lhos desenvolvidos por esses jovens na periferia, tendo como eixos de atuação a consciência, o ritmo e a poesia. 119 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 VINTE E DEZ: O FUTURO É AGORA. DIREÇÃO: TATA AMARAL E FRANCISCO CÉSAR FILHO DOCUMENTÁRIO, BRASIL, 2002, 26. MINUTOS, CORES. Deividson é um jovem de periferia de Santo André, região metropolitana de São Paulo, que manda seu recado para a comunidade através do Rap. ,)62/3 ADOLESCENTES / MARTA REZENDE CARDOSO (ORG.) Editora Escuta, São Paulo, SP, 216 páginas, 2006. A adolescência é um processo marcante no desenvolvimento da subjetividade. Experiência de ruptura e transformação, a passagem da adolescência constitui um enigma para os que se dedicam a compreender o ser humano e as múltiplas humanidades. Este livro conta com a colaboração de Helena Aguiar, Mariana Barbosa, Joel. Um grupo de alunos contribuiu para a realização da pesquisa. O psicanalista Pedro Henrique Bernardes Rondon comenta o livro da doutora Marta Rezende Cardoso: Esta é a terceira coletânea de trabalhos sobre a adolescência que a professora doutora Marta Rezende Cardoso organiza, dentro do projeto de pesquisa que coordena sobre o tema no Instituto de Psicologia da UFRJ. Além das duas coletâneas anteriores (Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: Nau/Faperj, 1999, e Limites. São Paulo: Escuta, 2004), esta pesquisa também já rendeu um número especial sobre violência psíquica da Pulsional Revista de Psicanálise (São Paulo, ano XV, n.163, novembro de 2002). Em Adolescentes, estão reunidos artigos de diversos pesquisadores que têm se dedicado às questões dessa importante fase do desenvolvimento psíquico, especialmente do ponto de vista das chamadas patologias contemporâneas. JOVENS NA METRÓPOLE - ETNOGRAFIAS DE CIRCUITOS DE LAZER, ENCONTRO E SOCIABILIDADE / JOSÉ GUILHERME C. MAGNANI E BRUNA MANTESE DE SOUZA (ORG.) Editora Terceiro Nome, São Paulo, SP, 280 páginas, 2007. Straight edges, góticos, pichadores, japas e manos, baladeiros e instrumentistas, baladeiros do Senhor, bala- deiros black e das rodas de samba, forrozeiros. Além de um relato saboroso apresentando várias tribos e/ou grupos urbanos, Jovens na Metrópole apresenta conceitos capazes de nos dar uma excelente compreensão do cenário da cidade grande. O livro é resultado de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo – NAU. JUVENTUDE – ENSAIOS SOBRE SOCIOLOGIA E HISTÓRIA DAS JUVENTUDES MODERNAS / LUÍS ANTONIO GROPPO Editora Difel, Rio de Janeiro, RJ, 308 páginas, 2000. Este cuidadoso trabalho de Luís Antônio Groppo nos apresenta um resumo da formação da juventude moderna. Ele reflete: ... a emergência da juventude como signo e a substituição da experiência juvenil pela vivência da “juvenilidade” podem ser explicadas pela própria atuação das juventudes e seus movimentos na Revolução Cultural da segunda metade do século XX – cujo momento mais visível foram os anos 1960. Nessa Revolução Cultural, uma contradição recorrente da juventude moderna se explicitou e, talvez, solucionou-se: o papel transitório da juventude versus as identidades e as subculturas juvenis. 120 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Groppo trabalha com três noções para conceituar juventude. A noção de transitoriedade, na qual antecede a vida social plena; a noção de projeto, como estágio de preparação para uma vida posterior plena; e a noção de crise e ruptura. São analisados os rebeldes sem causa, a juventude nazista e fascista, as gangues urbanas e as revolucionárias. ÉTICA PARA MEU FILHO / FERNANDO SAVATER Tradução de Mônica Stahel Editora Martins Fontes, São Paulo, SP, 180 páginas, segunda edição, 1996. Catedrático de Ética na Universidade do País Basco, Espanha, o filósofo Fernando Savater construiu uma maneira rigorosa, série e palatável de tratar de sua especialidade com o objetivo de falar para jovens, principalmente, e também para seus pais e professores. Ele mesmo adverte: Este livro não é um manual de ética para alunos do colegial. Não contém informações sobre os autores mais notáveis e movimentos mais importantes da teoria moral ao longo da história. [...] Também não se trata de um receituário de respostas moralizantes aos problemas cotidianos que podemos encontrar no jornal e na rua, do aborto à objeção de consciência, passando pelo preservativo. [...] Seu objetivo não é fabricar cidadãos bem-pensantes (muito menos malapensados), mas estimular o desenvolvimento de livres-pensadores. Realmente, este livro é um bom estímulo para isso. PS BEIJEI / ADRIANA FALCÃO E MARIANA VERÍSSIMO Editora Salamandra, São Paulo, SP, 128 páginas, 2004. Eu nunca podia imaginar que o meu primeiro beijo ia ser numa segunda-feira. Pouca gente no Brasil escreve tão bem, e tão criativamente, quanto Adriana Falcão. E, a julgar pela convivência, Mariana Veríssimo está em um ótimo caminho, muito bem acompanhada. E a prova começa com este livro, uma divertida e inteligente correspondência entre duas adoles- centes, que quebram o tédio de umas férias insólitas trocando confidências nas quais os destaques são... meninos. Um livro para todo mundo, principalmente para quem quer conhecer a formação do jeito de pensar feminino. MORAL E ÉTICA – DIMENSÕES INTELECTUAIS E AFETIVAS / YVES DE LA TAILLE Editora Artmed, São Paulo, SP, 192 páginas, 2006. Yves de La Taille, professor de psicologia da USP, é bastante conhecido. Esta obra proporciona um conhecimento que fundamenta historicamente os conceitos de moral e ética e, ao mesmo tempo, complementa e enriquece o livro de Fernando Savater, também indicado. Para este Mosaico, contudo, uma parte do livro de La Taille chama a atenção: no seu apêndice, ele apresenta a pesquisa: “Valores dos jovens de São Paulo”. O autor fala de seu trabalho: [...] o aumento da violência e da incivilidade, o consumo crescente de drogas, a grande freqüência de suicídios (que matam, no mundo, tantas pessoas quanto as guerras e os crimes somados), a tendência do “fechamento comunitário” nas grandes cidades, ao consumismo, à busca de divertimento [...] , o desafeto pelo saber e a atividade intelectual {...} parecem ser indícios de um mal-estar ético. Segundo La Taille, o objetivo desta pesquisa é procurar entender as causas desse mal-estar ético, sobretudo para subsidiar políticas públicas para a educação de c rianças e jovens. 121 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 3)4%3 $UAS EDI¿ÍES ESPECIAIS SOBRE JUVENTUDE http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0103-207020050002&lng=pt&nrm=iso REVISTA TEMPO SOCIAL V.17 N.2 SÃO PAULO NOV. 2005 JUVENTUDE(S) E TRANSIÇÕES Heloísa Helena T. de Souza Martins e Maria Helena Augusto apresentam a publicação: A organização, neste número da revista Tempo Social, de um dossiê sobre juventude tem o objetivo de retomar um tema que esteve presente nas preocupações de dois dos mais importantes sociólogos de nosso Departamento de Sociologia. O pequeno mas significativo estudo de Octavio Ianni, O jovem radical, e as pesquisas de Marialice Foracchi sobre o estudante universitário e o movimento estudantil evidenciam a preocupação de compreender a sociedade brasileira tomando a categoria juventude como referência para estudar as transformações decorrentes do processo de desenvolvimento, a crise social e o papel político do jovem. Estes são alguns autores e seus textos: Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo - Carmen Leccardi; O sentido do risco – Salvatore La Mendola; A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil - Marilia Pontes Sposito e Maria Clara Corrochano; Os circuitos dos jovens urbanos - José Guilherme Cantor Magnani; Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade - Hebe Signorini Gonçalves; Entrevistas com Paul Willis feitas por Roger Martinez e Melissa Mattos Pimenta; Retratos da juventude brasi- leira: análises de uma pesquisa nacional - Cristiane A. Fernandes da Silva. http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/juventude/sumario.html REVISTA DA UFG - NÚMERO ESPECIAL JUVENTUDE ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS - ANO VI, NO. 1, JUNHO DE 2004 No editorial da publicação, Múltiplos olhares sobre a juventude, Margareth Cavalcante de Castro Lobato comenta: O ideal juvenil repousa no imaginário coletivo revelando-se ora através do desejo de ser jovem para sempre, ora através da percepção da juventude como um estado de espírito permanente. À revelia da luta diária que travamos com nosso relógio biológico, estendemos este ideal para as faixas etárias vindouras, alimentando o mito da juventude como condição para a felicidade eterna. Atribuímos-lhe um poder auto-realizante, que de fato não se sustenta, não resiste às investigações calcadas na realidade. Alguns artigos desta edição: Por uma história da juventude brasileira - Fernanda Quixabeira Machado; Contribuições da literatura do de- vaneio para o conceito de juventude - Jorge Alves Santana; O que eles falam sobre o jovem não é sério: uma crítica à perspectiva adultocêntrica da juventude - Sandra Unbehaum, Sylvia Cavasin, Valéria Nanci Silva; Tentativa de suicídio na adolescência - Célia Maria Ferreira da Silva Teixeira; A juventude e suas representa- ções - Loriza Lacerda de Almeida. 122 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 !NTROPOLOGIA DA JUVENTUDE URBANA http://www.n-a-u.org/ NÚCLEO DE ANTROPOLOGIA URBANA DA USP O NAU, Núcleo de Antropologia Urbana, formado em 1988 no Departamento de Antropologia da USP, é um grupo de pesquisa e discussões teórico-metodológicas sobre questões relativas às sociedades urbano-in- dustriais contemporâneas. O Núcleo integra pesquisadores nos níveis de iniciação científica, mestrado e doutorado que se distribuem em quatro linhas temáticas: Práticas culturais e sociabilidade no contexto urbano, Formas de religiosidade, Metodos em Antropologia Urbana e Antropologia das sociedades complexas. Além de estudos localizados na cidade de São Paulo, há trabalhos que foram ou estão sendo desenvolvidos em outras cidades e centros urbanos brasileiros como Florianópolis, Belém, Curitiba, Natal, São Carlos (SP) e Londrina (PR). Destaque para o artigo: Muitas palavras: a discussão recente sobre juventude nas Ciências Sociais, de Alexandre Barbosa Pereira, no Ponto Urbe, Revista do Núcleo de Antropologia urbana da USP, Ano 1, Versão 0.1, 2007. 3ITES QUE ATUAM COM JOVENS BOCADA FORTE www.bocadaforte.com.br Revista eletrônica, músicas, vídeos, dentre outros materiais sobre Hip Hop – CENPEC – CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CULTURA E AÇÃO COMUNITÁRIA www.cenpec.org.br Desde 1987, o Cenpec atua em programas e projetos que auxiliam as políticas públicas em educação. Por meio de parcerias com o poder público, em todos os seus níveis, e com instituições empresariais de forte relevância social, o Cenpec vem ajudando a melhorar o desempenho educacional do Brasil. Os principais projetos do Cenpec estão ligados ao desenvolvimento da educação pública, por meio de apoio direto a ações no espaço escolar ou em ambiente social com a participação de organizações parceiras. Os programas e projetos do Cenpec chegam a mais de 3 mil municípios brasileiros e beneficiaram nestes 18 anos estudantes e professores em quase todos os Estados brasileiros. CIDADE ESCOLA APRENDIZ www.aprendiz.org.br Há dez anos, na Vila Madalena, bairro da cidade de São Paulo, o Aprendiz trabalha para tecer relações, articular esforços, gerar iniciativas, envolver agentes e serviços - tudo em prol da garantia de uma atenção integral à criança, ao adolescente e ao jovem. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS – USP / BIBLIOTECA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS www.direitoshumanos.usp.br 123 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 EDUCAREDE www.educarede.org.br Um dos mais importantes portais de educação no Brasil, patrocinado pela Telefônica. Oferece conteúdo para aprimorar professores e alunos. MICROFONIA www.microfonia.com Eventos e produções independentes da cena punk. MUSEU DA PESSOA www.museudapessoa.com.br Este é um museu virtual de histórias de vida aberto à participação gratuita de toda pessoa que queira com- partilhar sua história. O Museu foi fundado em 1991. Desde o início, o objetivo era construir uma rede de histórias de vida que contribuísse para a transformação social. OBSERVATÓRIO JOVEM DO RIO DE JANEIRO www.uff.br/obsjovem Realiza estudos, pesquisas e atividades de extensão relacionadas com as transformações da condição juvenil na história, as situações de vida dos jovens na contemporaneidade e suas mobilizações sociais, culturais e políticas e acompanha criticamente o desenvolvimento das políticas públicas dirigidas aos jovens. Tem duas linhas de pesquisa: a) Juventude e processos educativos e b) Juventude e culturas da participação. ORGANIZAÇÃO BRASILEIRA DA JUVENTUDE www.obj.org.br A principal missão da OBJ é contribuir com a efetiva participação da juventude no desenvolvimento de nossa sociedade. Para isso, fomenta a implantação de políticas de juventude e a promoção dos direitos dos jovens, objetivando o desenvolvimento econômico e social sustentável da juventude brasileira. PORTAL DO PROTAGONISMO JUVENIL www.protagonismojuvenil.org.br O Protagonismo Juvenil é um tipo de ação de intervenção no contexto social para responder a problemas reais onde o jovem é sempre o ator principal. O Protagonismo Juvenil significa, tecnicamente, o jovem participar como ator principal em ações que não dizem respeito à sua vida privada, familiar e afetiva, mas a problemas relativos ao bem comum, na escola, na comunidade ou na sociedade mais ampla. Outro aspecto do protago- nismo é a concepção do jovem como fonte de iniciativa, que é ação; como fonte de liberdade, que é opção; e como fonte de compromissos, que é responsabilidade. REAL HIP HOP www.realhiphop.com.br Portal fruto da iniciativa de vários jovens, envolvidos e não envolvidos com o movimento Hip Hop. UNESCO - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA www.unesco.org.br 124 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Cadernos Cenpec Ano 3 Número 5 Primeiro semestre de 2008 Cadernos Cenpec é uma publicação do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Dante Carraro, 68 05422-060 – São Paulo – SP Brasil Telefax: (55) (11) 2132 9000 cenpec@cenpec.org.br www.cenpec.org.br Os artigos assinados não representam necessariamente os pontos de vista do Cenpec. As opiniões e idéias expressas neles são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Presidência Maria Alice Setubal Diretora Presidente Ricardo Campus Caiuby Ariani Diretor Vice-Presidente Diretores Administrativos Lydia maria queiroz ferreira de magalhães Tereza maria macedo soares de araújo Conselho de Administração Antonio Carlos Caruso Ronca Bernadete Angelina Gatti Hélio Mattar Maria Alice Setubal Michel Paul Zeitlin Ricardo Campos Caiuby Ariani Conselho Fiscal Reginaldo José Camilo Rebecca de Castro Filgueiras Raposo Coordenação Coordenadora Geral Maria do Carmo Brant de Carvalho Assessoria da Coordenação Maria Ângela Leal Rudge Maria Cristina S. Zelmanovits Maria Amabile Mansutti Coordenadora da Área Educação e Comunidade Maria Julia Azevedo Coordenadora Administrativo-Financeira Maria Aparecida Acunzo Forli Créditos desta edição Organização e Coordenação Isa Maria F. Rosa Guará Comitê Editorial Ana Regina Carrara Eloísa de Blasis Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará Maria do Carmo Brant de Carvalho Cadernos Cenpec / Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. – N. 5 (2008) – São Paulo: CENPEC, 2006 ISSN 1808-9631 Semestral 1. Educação 5. CENPEC CDD 370 126 Cadernos Cenpec 2008 n. 5 Maria Helena Guimarães de Castro Maria Inês Fini Maria Júlia Azevedo Mônica Mussi Simone Aparecida Jorge Wagner dos Santos Redator Fernando Rios Preparação e revisão de textos Eliel Cunha Projeto gráfico original Homem de Melo & Troia Design Editoração eletrônica e ilustrações Fonte Design Fotos • capa, páginas 1, 6, 11, 13, 14, 15, 16, 19, 20, 21, 22, 25, 26, 30, 31, 34, 37, 45, 46, 47, 48, 50, 51, 58, 65, 78, 82, 83, 96 e 112: fotomontagens produzidas na oficina O Jovem e o Espaço Urbano (PJU - Programa Jovens Urbanos/CENPEC) coordenada pelos educadores da Estilo de Educar Assessoria Educacional - Franciele Busico e Waldir Hernandes em 2007. Os jovens participantes da oficina são: Carlos Sabino Dantas, Renata Veruska Barbosa Ferreira, Eva Maria V. de Sá, Danilo da S. Aiolfi, Jázio Nascimento de Matos, Silvana Sales do Nascimento, Bruna Aparecida Barbosa Mendes, Daiane Demétrio de Paula, Anderson Rodrigues Bernardo, Vanessa Rodrigues da Silva, Thiago Macedo Vicente da Silva e Joice de Cássia Salles Silva • Páginas 52, 100 e 101: jovens participantes da 2a Edição (PJU - Programa Jovens Urbanos/CENPEC) para a Exposição Múltiplos Olhares da Brasilândia • Páginas 68, 69, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 93: Luana Fischer Tiragem 2.000 exemplares Conselho Editorial Âmbar de Barros Antonio Jacinto Mathias Bernadete Gatti Fernando Almeida Fernando Rossetti Gilda Portugal Gouveia Isa Maria F. Rosa Guará Marco Aurélio Nogueira Maria Alice Setubal Maria do Carmo Brant de Carvalho Vera Masagão Ribeiro Equipe Jovens Urbanos Coordenador Técnico - Wagner A. Santos Núcleo Gerenciamento Helena F. Corrêa Maria Brant Isabel Araújo - estagiária Núcleo Pesquisa Aline Andrade Marquilandes Borges Mônica Mussi – consultora Núcleo Formação Eder Camargo Marco Dalama Núcleo Sistema de Informações Jordi Novas Thiago Cantarim Claudia Charoux Núcleo Relações Institucionais Rita Carmona Helena Hypólito Renato Souza Colaboram nesta edição Aline Andrade Fernando Rios Irineu Francisco Barreto Jr. José Eduardo de Andrade Julia Alves Marinho Rodrigues Maria Cristina Zelmanovits Maria do Carmo Brant de Carvalho 127 Cadernos Cenpec 2008 n. 5

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Relações Étnico-Raciais e de Gênero na Educação

História e cultura afro-brasileira na escola

No episódio 7 do Educação na ponta da língua, entenda os avanços e os desafios para a abordagem da cultura e história afro-brasileira na escola. Acompanhe!

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Oficinas
Leitura e escrita

Memórias literárias: Se bem me lembro…

As oficinas desta edição dos Cadernos Docentes, do programa Escrevendo o Futuro, contribui para que a turma aprenda a ler e a produzir textos tendo como ponto de partida o gênero “memórias literárias”, ampliando seus conhecimentos de linguagem.

Os Cadernos Docentes são materiais de orientação para a prática destinados a professoras e professores de Língua Portuguesa que, estruturados de forma sistemática a partir da noção de sequência didática, propõem um trabalho com os gêneros textuais, com o objetivo de desenvolver a aprendizagem da leitura e da escrita por estudantes. Esses materiais foram organizados para que professoras e professores desenvolvam com suas turmas atividades com os gêneros Poema, Memórias literárias, Biografia, Crônica, Documentário e Artigo de opinião. São, portanto, seis Cadernos Docentes elaborados, originalmente, para o trabalho com estudantes desde o 5º ano do Ensino Fundamental até a 3ª série do Ensino Médio, da seguinte forma: • Caderno Poetas da Escola: atividades do gênero poema desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental I. • Caderno Se bem me lembro: atividades do gênero memórias literárias desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental II. • Caderno Biografia a tessitura da vida: atividades do gênero biografia desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental II. • Caderno A ocasião faz o escritor: atividades do gênero crônica desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental II. • Caderno Pontos de vista: atividades do gênero artigo de opinião desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental II . • Caderno Olhar em movimento: cenas de tantos lugares: atividades do gênero documentário desenvolvidas preferencialmente para estudantes da 1ª e 2ª séries do Ensino Médio. Apesar de serem indicados para determinadas etapas, anos e séries, as sequências didáticas podem ser adaptadas para outros anos e séries, conforme a turma de estudantes, a necessidade e a criatividade de professoras e professores. Diálogos com a BNCC Na página inicial de cada Oficina, são apresentados seus objetivos e dicas de preparação para os temas e atividades que serão trabalhados com as turmas de estudantes. Também encontramos ali uma seleção de habilidades para o componente de Língua Portuguesa, mapeadas na Base Nacional Comum Curricular e acionadas no desenvolvimento de cada oficina, indicando como cada proposta se aproxima das expectativas anunciadas pela BNCC. A seguir, apresentamos o mapeamento completo das habilidades e competências da BNCC realizado para as atividades presentes no Caderno Se bem me lembro, que traz abordagens didáticas para o gênero memórias literárias. Leia a descrição das habilidades. Memórias literárias geralmente são textos produzidos por escritores ou escritoras que, ao rememorar o passado, integram ao vivido o imaginado. Para tanto, recorrem a figuras de linguagem, escolhem cuidadosamente as palavras que vão utilizar, orientados por critérios estéticos que atribuem ao texto ritmo e conduzem o leitor por cenários e situações reais ou imaginárias. As narrativas, que têm como ponto de partida experiências vividas pelo autor no passado, são contadas da forma como são lembradas no presente. No caso das oficinas, os(as) alunos(as), por serem ainda muito jovens, irão recorrer, no desenvolvimento do tema, às memórias de pessoas mais velhas da comunidade. É importante, portanto, enfatizar, que os alunos e as alunas não irão escrever suas próprias memórias, elas e eles precisarão aprender a escrever como se fossem o(a) próprio(a) entrevistado(a). Memórias literárias no Escrevendo o Futuro O programa Escrevendo o Futuro tem como propósito fazer com que os jovens conheçam a história do lugar onde vivem por meio do olhar de antigos moradores – pessoas comuns que construíram e constroem a história – e valorizem as experiências dos mais velhos, descobrindo-as como parte da sua identidade. Por outro lado, ouvintes atentos podem significar, para os idosos, reconhecimento e admiração de seus saberes. A proposta deste Caderno Virtual é fazer que os alunos aprendam a ler e a produzir textos tendo como ponto de partida o gênero “memórias literárias”, ampliando assim seus conhecimentos de linguagem e suas possibilidades de participação social. Ao mesmo tempo, os jovens estudantes vão se aproximar de pessoas mais velhas do lugar onde vivem, pois as lembranças desses moradores serão a matéria-prima para a escrita do texto. Esse trabalho os ajudará a relacionar seu tempo e seu ambiente com o tempo e o ambiente de pessoas de gerações anteriores. Para que os alunos se familiarizem com as “memórias literárias” é necessário que aprendam a identificar as características e peculiaridades desse gênero textual. Faz parte desse processo entrevistar pessoas mais velhas da comunidade que tenham histórias interessantes para contar. Por fim, incentive-os a produzir um texto que encante o leitor. Se bem me lembro… O título deste Caderno Virtual, Se bem me lembro…, foi emprestado da obra de mesmo nome da escritora e educadora Alaíde Lisboa de Oliveira, mineira de Lambari, que nasceu no dia 22 de abril de 1904. Ela publicou cerca de trinta livros, entre literários, didáticos e ensaios na área de educação. No livro Se bem me lembro… Alaíde narra suas lembranças em prosa e verso.

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Revistas digitais
Políticas públicas, participação e cidadania

Cadernos Cenpec (nº 4, 2007): Educação na segunda etapa do Ensino Fundamental

Aqui, queremos iluminar um ciclo esquecido: a segunda etapa do ensino fundamental. Para isso, apresentamos um cuidadoso estudo para conhecer melhor essa problemática, refletir sobre ela e apontar caminhos para resolver alguns problemas. Confira!

4 Educação na segunda etapa do ensino fundamental 2 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 3 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Editorial N Um ciclo pouco estudado Em alguns deles, podemos perceber que, quando a realidade impõe um limite, dele mesmo brotam as expe- riências mais inovadoras, como aquelas que interligam a escola a outros programas locais, numa teia de apren- dizagens que alavanca a inclusão social. A universalização do acesso ao ensino fundamen- tal está praticamente atingida. Em relação aos indica- dores de qualidade e eqüidade, ainda estamos distan- tes dos padrões desejados e necessários ao desenvol- vimento nacional. Cada vez mais, um maior número de crianças e ado- lescentes pobres tem acesso à escola; porém, eles es- tão aprendendo menos e nem sempre conseguem termi- nar os estudos básicos. Agora é a qualidade da educação em nosso País que assume um sentido de urgência democrática, pois pre- cisamos de uma escola de boa qualidade para todos, apoiada numa política educacional compromissada e abrangente, que diminua as desigualdades regionais na educação. Socializamos neste caderno diversas refl exões refe- rentes ao segundo ciclo do ensino fundamental, pois há uma enorme demanda por dar lhe vez e voz na agenda de prioridades da educação básica. Esperamos contribuir para que educadores e secreta- rias de educação que atuam no Ciclo II do Ensino Funda- mental se sintam estimulados a inovar, garantindo uma educação de qualidade para todos. Maria Alice Setubal Diretora Presidente do Cenpec esta edição queremos ilu- minar um ciclo esquecido: a segunda etapa do ensi- no fundamental, 5a a 8a séries (ou 6a a 9a), freqüenta- da por mais de 15 milhões de alunos brasileiros. Para isso, o Cenpec realizou um cuidadoso estudo em nível nacional para conhecer melhor essa problemática, re- fl etir sobre ela e apontar caminhos para resolver alguns problemas. Para além de um decálogo de faltas e fragilidades, o estudo realizado pelo Cenpec dialoga com as comple- xas características do Ciclo II, que guarda algumas ca- racterísticas: • Ensino organizado num conjunto de disciplinas mi- nistradas por professores especialistas que partem da suposição de que o aluno já tenha se alfabetizado e ad- quirido trânsito mais competente na leitura e escrita, as- sim como maior autonomia para aquisição de novos co- nhecimentos e competências. • Ensino direcionado a pré-adolescentes e adoles- centes. • Ensino majoritariamente gerido pela esfera de go- verno estadual, enquanto o primeiro ciclo já se encon- tra municipalizado. Percorrendo o território de 5a a 8a séries, dois foram os eixos escolhidos pelo olhar dos pesquisadores: • a função social da escola e o papel da leitura; • a produção textual nas diferentes disciplinas. Na busca de ampliar o debate, convidamos vários es- pecialistas para adensar a temática central deste cader- no. Assim, da fragilidade da autoridade docente à indis- ciplina dos alunos até as experiências positivas de uni- versalização com melhoria da aprendizagem – caso do Acre e de Goiás –, vários retratos são apresentados. 4 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Sumário editorial Um ciclo pouco estudado Maria Alice Setubal 3 especial: estudo cenpec Educação na segunda etapa do ensino fundamental Um momento signifi cativo da vida escolar 7 1. Retratos do ciclo II do ensino fundamental 8 2. Uma complexa situação de ruptura 10 3. Os dados e suas revelações 18 4. Aprender a ler, a escrever, a estudar. Aprender a aprender. 28 5. Caminhos e alternativas 38 Maria Amabile Mansutti, Maria Cristina Zelmanovits, Maria do Carmo Brant de Carvalho, Verónica Guridi. entrevista A escola na berlinda Julio Groppa Aquino analisa a conjuntura educacional brasileira 47 relato de prática Leitura e escrita: ainda um desafi o. Maria Estela Bergamin 58 relato de prática pedagógica Projeto Gente Nova: matemática, poesia, leitura e geometria, para viver as diferenças . Ana Paula de Oliveira 66 artigo O que deve ser feito para melhorar as escolas paulistas? Norman Gall 69 artigo A importância das relações humanas na escola Maria Malta Campos 77 refl exão sobre a prática Como dar signifi cado social e científi co ao cotidiano do aluno Maria Aparecida Perez 82 artigo Leitura e produção de texto no ensino fundamental Zoraide Faustinoni 87 5 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 artigo Refl exões sobre a formação de professores para o ensino fundamental 95 Sheila Roberti Pereira da Silva relato de prática Reorientação Curricular em Goiás: um processo participativo. Maria José Reginato Ribeiro e Meyri Venci Chieffi 100 artigo Seriam eles indomáveis protagonistas? Yara Sayão 105 relato de prática Roda, Rede: prevenção, letramento e inclusão social. Cristina Fernandes de Souza 110 relato de prática Nas escolas rurais de Acrelândia, garantia de acesso à segunda etapa. 115 Elisabete da Assunção José e Vanda Noventa Fonseca mosaico 118 6 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 educação na segunda etapa do ensino fundamental especial: estudo cenpec 7 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Conhecer em detalhes para apontar caminhos seguros busca pela educação de qualidade tem sido alvo das ações sociais da Volkswagen do Brasil desde sua instalação no país, há mais de 50 anos. A maior expressão desse valor é representada pela Fundação Volkswagen, a qual, des- de 1979, cumpre com a missão de promover e realizar ações que contribuam para a melhoria da qualidade da educação pública de crianças e adolescentes. Sabemos que muito se tem feito pela educação pública em nosso país, que, além do poder público, conta com ações promovidas pelas organizações da sociedade civil e com o investimento do setor priva- do. De maneira geral, o foco das atenções é voltado à educação de base, já que esta é responsável pelos anos iniciais da formação de um cidadão. Entretanto, o encerramento desta fase tão importante, o II Ciclo do Ensino Fundamental (6o ao 9o ano) é indicado, por pes- quisas e testes nacionais, como o momento em que é evidenciado o fracasso escolar, uma vez que a maioria das escolas não consegue apresentar resultados nos ganhos de aprendizagem dos alunos. As razões pela quais nos deparamos ano a ano com os drásticos índices desse cenário motivaram-nos a realizar a pesquisa “Retratos do Ensino Fundamental: 6o ao 9o ano”, em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), apresentada nessa revista. O estudo teve o objetivo de compreender e refl etir sobre as condições em que se desenvolvem o ensino e a aprendizagem no Ciclo II do Ensino Fundamental e oferecer subsídios para uma discussão mais profunda sobre os problemas e difi culdades enfrentados nessa fase. Esperamos que esta pesquisa seja uma ferramenta efi caz para ampliarmos as perspectivas de atuação dos educadores em prol da formação dos alunos do 6o ao 9o ano e que, em um futuro próximo, os testes nacio- nais contabilizem índices positivos na formação dos novos cidadãos brasileiros. Eduardo de A. Barros Diretor Superintendente da Fundação Volkswagen Um momento signifi cativo da vida escolar A 8 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 MARIA AMABILE MANSUTTI MARIA CRISTINA ZELMANOVITS MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO VERÓNICA GURIDI* * Maria Amabile Mansutti é professora especialista, autora de diversas publicacões sobre o ensino de Matemática e assessora de coordenação do Cenpec; Maria Cristina S. Zelmanovits é pedagoga, assessora da coor- denação do Cenpec e já assessorou vários projetos de literatura e artes em escolas, museus e outras instituições; Maria do Carmo Brant de Carvalho é doutora em Serviço Social e coordenadora geral do Cenpec; Verónica Guridi é licenciada em Matemática, mestra em Educa- ção e pesquisadora do Cenpec. Retratos do ciclo II do ensino fundamental Este texto apresenta um estudo realizado em 2005 e 2006, pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educa- ção, Cultura e Ação Comunitária – Cenpec, com o apoio da Fundação Volkswagen, antes da ampliação do ensi- no fundamental para nove anos. Procura conhecer e compreender as condições em que se desenvolvem o ensino e a aprendizagem na se- gunda etapa do ensino fundamental – 5a a 8a série – e, a partir de suas conclusões, propõe uma série de reco- mendações.1 Inicialmente, foram estudadas três escolas públicas dos municípios paulistas de São Carlos, Bebedouro e São Bernardo do Campo.2 O trabalho, contudo, ampliou-se, incorporando a opinião de 560 professores do segundo ciclo que participaram de uma pesquisa no portal Edu- caRede: www.educarede.org.br. A possibilidade de fazer uma consulta de âmbito na- cional aos professores cadastrados no portal pareceu- nos uma boa forma de se adensarem as informações, tor- nando-as mais consistentes, sobretudo porque a adesão dos professores à pesquisa foi espontânea, conferindo signifi cado particular aos dados coletados. O trabalho com pré-adolescentes e adolescentes O ponto de partida deste estudo foi o Projeto Ler e Es- crever, desenvolvido pelo Cenpec em 23 escolas de muni- cípios da rede pública do Estado de São Paulo.3 No decor- rer desse projeto, fi zeram-se entrevistas abertas com pro- fessores e gestores, cujos resultados motivaram a equi- 1 9 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 pe do Cenpec a procurar o aprofundamento e a sistema- tização de informações sobre a segunda etapa. As pesquisas e ações de formação, empreendidas jun- to às escolas e aos agentes do segundo ciclo, sustentam a análise que ora apresentamos. Para compreender esse quadro e criar estratégias para suplantar o baixo desempenho escolar dos alunos, fo- mos buscar referências na política educacional brasileira e no comportamento societário contemporâneo, que dita fortemente o funcionamento de suas instituições. Foi a partir dessa base que voltamos nosso olhar para as com- plexas características desta etapa de 5a a 8a série: • ensino organizado num conjunto de disciplinas mi- nistradas por professores especialistas que partem do pressuposto de que o aluno já tenha se alfabeti- zado e adquirido trânsito mais competente na leitu- ra e escrita, assim como maior autonomia para aqui- sição de novos conhecimentos e competências; • ensino dirigido a pré-adolescentes e adolescentes; • ensino majoritariamente gerido pela esfera de gover- no estadual, ao passo que o primeiro ciclo já está mu- nicipalizado. Este estudo se enquadra nas abordagens qualitativas de pesquisa, enfatizando os signifi cados que os atores conferem às ações. O foco não é estabelecer relações causais entre variáveis, mas responder à questão: o que está acontecendo aqui? Por isso, a escolha da pesquisa qualitativa, a qual busca a compreensão, valoriza o contexto e considera os múltiplos aspectos presentes numa situação dada como natural.4 As informações foram obtidas por meio de fontes: a) primárias • entrevistas abertas com professores e gestores (20); • grupos focais com alunos (48) e familiares (30) das três escolas selecionadas; • questionário apresentado no Portal EducaRede, res- pondido voluntariamente por 568 professores que atuam no ensino fundamental de diversos estados; b) secundárias • dados nacionais sobre o ensino fundamental cole- tados junto ao Instituto Nacional de Pesquisa Edu- cacional (INEP), Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb); • trabalhos anteriores do Cenpec; • textos de especialistas na área (constantes da bibliografi a). Ao adentrar o território de 5a a 8a série, procuramos observar, sobretudo, a percepção dos atores a respeito da função social da escola e o papel da leitura e da pro- dução textual nas diferentes disciplinas. Entre estes dois eixos, situamos as práticas culturais, aqui compreendidas como o conjunto de conhecimentos que se criam e se preservam ou aprimoram por meio da comunicação e da cooperação entre indivíduos e insti- tuições em sociedade. As conclusões apresentadas retratam alguns aspectos importantes que infl uenciam e caracterizam a situação atual do ensino no ciclo II. Ainda que estas conclusões estejam subordinadas às condições e peculiaridades das escolas participantes, acreditamos que apontam proble- mas e difi culdades enfrentados, de modo geral, pelas es- colas públicas brasileiras que atuam nesse segmento. Socializamos este trabalho com o intuito de contribuir para as refl exões desenvolvidas por secretarias de educa- ção e educadores atuantes na segunda etapa do ensino fundamental e estimular a inovação, sempre necessária, à garantia de uma educação de qualidade para todos. Notas 1 Considerando que há diferenças na nomeação deste período do Ensino Fundamental nos municípios e estados brasileiros, em razão de diferentes alternativas de divisão em ciclos, nesta edição utilizaremos preferencial- mente o termo: segunda etapa do ensino fundamental, mas, igualmente, podemos referirmo-nos ao Ciclo II ou segundo ciclo, sempre em relação ao ensino fundamental de 5a a 8a série ou de 6o a 9o ano. 2 A escolha deveu-se ao fato de o Cenpec desenvolver ações de formação com professores da segunda etapa do ensino fundamental nesses municípios. 3 Esse projeto insere-se no Programa Território Escola, realizado em 66 muni- cípios, em parceria com a Fundação Volkswagen. 4 Segundo Marli André – em discussão realizada no Cenpec em 2005 – este tipo de pesquisa é mais bem identifi cado como “interpretativa”, pois o termo “qualitativo” às vezes é tomado como oposto de quantitativo. Assim, neste estudo, preferimos falar em pesquisa descritivo-interpretativa. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 10 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Uma complexa situação de ruptura Não é simples fazer a caracterização da situação da se- gunda etapa do ensino fundamental. Aqui, focalizaremos as questões relacionadas aos protagonistas do processo de ensino e aprendizagem e às condições políticas que o sustentam. Protagonistas: alunos e professores A passagem da 4a para a 5a série é tida como uma ex- periência peculiar e signifi ca ruptura entre dois ciclos da vida escolar. A 5a série, em particular, momento em que se concre- tiza essa ruptura, vem sendo apontada por professores como um dos maiores desafi os no ensino fundamental, quando se vivem cotidianamente grandes difi culdades, parcamente enfrentadas de fato. Entre outros, dois fatores concorrem para explicar essa situação: a passagem da etapa da infância para a adolescência e a nova organização escolar. Sobre o primeiro fator, pode-se afi rmar que, nas so- ciedades modernas, a passagem da infância para a ma- turidade ocupa um tempo maior e se desenvolve de for- ma menos clara, menos institucionalizada e ritualizada do que em sociedades tradicionais. Hoje, não dispomos de marcas para indicar os limites entre essas etapas. Até pouco tempo atrás, os diplomas conferidos pelo cumpri- mento dos ciclos da escolarização eram tomados pela so- ciedade como símbolos de passagem e sinalizavam uma certa mudança de status. Hoje, essas marcas estão dilu- ídas, e não se sabe quando termina a infância e quando começa a adolescência. Embora haja diferentes interpretações, a visão pre- dominante tende a considerar a adolescência uma fase que antecede a vida social plena. É também reconheci- da como um período de mudanças físicas, emocionais e intelectuais, atravessadas por contextos culturais que ensejam diversas expressões do “ser adolescente”. A adolescência se revela menos como período de transi- 2 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 11 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 ção entre a infância e a vida adulta e mais como um pro- cesso de construção sociocultural. Do ponto de vista dos adolescentes, a vida é o tempo presente. Conquistas de novas competências e maior li- berdade na vida pública ampliam sua visão de mundo e provocam fascínio por esse momento. Signifi cativas mu- danças no desenvolvimento físico, emocional e psicoló- gico repercutem fortemente no comportamento e trazem expectativas relacionadas à afetividade, à sexualidade, à necessidade de liberdade. A intensidade dessas descobertas leva a uma extrema valorização do convívio entre pares, fazendo com que a sociabilidade ocupe posição central na vivência do ado- lescente. Grupos de amigos são espaços importantíssi- mos na busca de respostas para suas questões. As peculiaridades desse momento de vida têm sido ig- noradas ou mesmo combatidas pela sociedade e suas ins- tituições, que partem da idéia de que é preciso preparar os adolescentes para a vida adulta e pouco se pergun- tam sobre o que eles precisam viver agora, em termos de valores a serem privilegiados em sua formação. A escola, de certa forma, refl ete essa idéia e também acaba por considerar muito pouco as potencialidades dessa fase – grande capacidade de envolvimento/entre- ga, de questionamento/crítica e de refl exão, além do di- namismo e do entusiasmo. Por desconsiderar estas peculiaridades e potenciali- dades − ou por reduzi-las a seus aspectos negativos −, tanto a sociedade quanto a escola acabam perdendo a capacidade de diálogo com os adolescentes e não conse- guem promover, para a maioria, o tão almejado preparo consistente para a vida adulta. A passagem da primeira para a segunda etapa marca o início da convivência do aluno com uma organização institucional desconhecida: horário compartilhado por diversas matérias e professores, outros níveis de exigên- cia, diferentes expectativas quanto à conduta em sala de aula e à organização do trabalho escolar, novas rela- ções professor-aluno e diferentes abordagens de ensino e aprendizagem. Os aspectos positivos que essa organização escolar poderia favorecer − a diversidade de aprendizagens e a possibilidade de convívio com diferentes professores, por exemplo − acabam sendo pouco potencializados em ex- periências formativas para os alunos. Acentuando essa discrepância, a organização curricu- lar do ciclo II passa a se dividir em disciplinas distintas, abordadas isoladamente, por diferentes professores. O rompimento com a totalidade impede que se pro- jetem objetivos comuns, que se exercitem o diálogo e os pactos consensuais, e que os sujeitos se reconheçam como potenciais aliados em torno de uma causa. A frag- mentação evidenciada na vida escolar de certa forma se constitui no refl exo da fragmentação que acontece na so- ciedade, podendo causar desorientação social. De modo geral, os professores do ciclo II avaliam que os alunos vêm do ciclo anterior com um domínio de co- nhecimentos muito aquém do desejável. A falta de uma análise mais consistente de como acontecem o ensino e a aprendizagem no ciclo anterior muitas vezes leva a uma repetição de conteúdos ou à introdução de conteú- dos novos, sem vínculos com o que já foi estudado. Em conseqüência, os estudos começam a se confi gu- rar, para os alunos, como algo sem sentido, que foge de sua possibilidade de compreensão, com pouca utilida- de prática, o que acaba gerando representações e sen- timentos hostis em relação ao conhecimento. Se o aluno não reconhece o valor do conhecimento, que é seu principal elo com o professor, que importân- cia a escola pode ter para ele? Além disso, de modo ge- ral, os professores não são sufi cientemente preparados nas licenciaturas para o trabalho com pré-adolescen- tes e adolescentes. Esse fato compromete a capacidade formativa da escola, que não consegue contribuir para a construção da identidade e do projeto de vida de seus alunos. Como se sabe, esta construção é um processo particularmente crítico na segunda etapa. Singularidades e universalidades A percepção de diferentes modos de ser, possibilitada pelo aumento da autonomia, pela ampliação dos espa- ços de circulação pública e pelo desenvolvimento da ca- pacidade refl exiva, afeta a compreensão de mundo dos adolescentes. A intensa circulação de informações faz com que eles entrem em contato − e de alguma forma interajam − com dimensões locais e globais, mesclan- Se o aluno não reconhece o valor do conhecimento, que é seu principal elo com o professor, que importância a escola pode ter para ele? 12 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 do singularidades e universalidades, o que interfere di- retamente em seu processo de identifi cação e gera uma tensão permanente diante da questão: “Quem sou, por onde e para onde vou?”. Essa tensão se acentua nas séries fi nais do ciclo II, quando, para a maioria dos alunos, começa a se confi gu- rar a grande preocupação com a continuidade dos estu- dos e com o futuro profi ssional. Muitos já trabalham e têm responsabilidades econômicas com a família; para uma signifi cativa parcela desse grupo, o fi m da 8a série marca também o fi m da vida escolar. Os que pretendem conti- nuar os estudos terão que disputar uma vaga no ensino médio e, muitas vezes, conjugar trabalho e estudo. Para estes, o acesso à universidade é mais uma pro- messa do que possibilidade de concretização: hoje, no Brasil, apenas 10,4% dos jovens entre 18 e 24 anos es- tão na faculdade. (Estado de S. Paulo, 2006). Entre os jovens de 15 a 17 anos, apenas 46,4% encontram-se no Ensino Médio.1 Para ajudar na construção da identidade do adoles- cente, é preciso entender quais esferas da vida são sig- nifi cativas para ele. Nesse sentido, o campo de escolhas que se lhe apresenta são as experiências socioculturais locais e globais; a identidade vivida mais como ação do que como situação amplia a esfera de liberdade pessoal e o exercício da decisão. Quando a escola se afasta dessas questões e deixa de ser um espaço de referência para os alunos, sobretudo para os que vivem em situação de vulnerabilidade, ela perde sua função. Deixa de ser formativa, no sentido de ajudar os alunos a construírem um projeto de vida que não signifi que apenas um projeto para um futuro distan- te, mas um posicionamento, no presente, em relação a seu meio social, a sua realidade e aos recursos que en- contram para lidar com o cotidiano. O fazer diário dos professores não permite uma visão otimista sobre o ciclo II: profi ssionais nem sempre bem- sucedidos, solitários e desmotivados pela precária va- lorização profi ssional, trabalhando de modo repetitivo, muitas vezes alvos de críticas e acusações, incomodados com a falta de solução para muitas de suas difi culdades, embora se mostrem ávidos por mudanças, podem resis- tir quando se lhes apresentam idéias inovadoras. As condições físicas das escolas também merecem atenção. Dados do Edudata Brasil (INEP, 2005-b) mos- tram que as escolas não contam com uma infra- estrutura adequada para implementar suas aulas no ciclo II e para desenvolver metodologias variadas que ultrapassem as paredes da sala de aula. Metade das escolas de ciclo II não dispõe de biblio- teca (49,25%) ou de quadra de esportes (44,68%); mais de 75% não têm laboratório de ciências; 70% não têm sala de TV/vídeo para uso dos alunos e professores, e apenas 36,29% contam com laboratório de informática. Isso signifi ca que, em muitas escolas, o único espaço de aprendizagem disponível é a sala de aula. O acesso à Internet é bastante restrito. Num mundo altamente informatizado, onde a Internet é uma impor- tante fonte de conhecimentos, 60% das escolas de ci- clo II não têm acesso à rede. Esta situação comprome- te seriamente a inclusão digital dos alunos e difi culta a realização de pesquisas na escola, estratégia altamente valorizada pelos alunos e que poderia motivá-los para a aprendizagem dos conteúdos escolares. Além da falta de infra-estrutura, há as fragilidades na formação inicial dos docentes. A vocação bacharelesca e enciclopédica dos cursos de licenciatura não forma pro- fessores especialistas para atuarem no ciclo II do ensino fundamental, sem falar na deterioração causada pelas li- cenciaturas curtas e na precariedade dos estágios. A primeira etapa da construção de sua autonomia como aprendiz de professor terá de ser a problematização de sua própria formação básica. Ele vai ensinar o que QUADRO 1 – INFRA-ESTRUTURA DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE 5A A 8A SÉRIES BRASIL 2005 Condições físicas das escolas número percentual Escolas públicas de 5a a 8a série – 2005 46.700 100,00% Biblioteca 20. 845 44,63% Laboratório de informática 12.965 27,76% Laboratório de ciências 7.924 16,96% Quadra de esportes 23.272 49,83% Sala para tv e vídeo 14.252 30,51% TV, vídeo e antena parabólica 24.536 52,53% Computadores 30.183 64,63% Acesso à Internet 14.842 31,78% Abastecimento de água 46.645 99,88% Energia elétrica 45.374 97,16% Esgoto 45.708 97,87% Fonte: MEC/INEP, 2005 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 13 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 aprendeu no ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior. É, portanto, necessário que assuma o controle do que aprendeu e do que falta. (Mello, 2006).2 Geralmente, o refl exo dessa situação tem sido uma cultura escolar centrada no ensino vertical, no verbalis- mo e no conhecimento proveniente da autoridade do pro- fessor ou do livro didático. Monotonia, repetição e uma certa displicência relegaram a atividade educativa a um plano secundário, ao qual se dispensa tratamento for- mal para se atenderem exigências mínimas previstas e no qual os conteúdos e a disciplina na sala de aula têm sido as principais questões a enfrentar. Contexto educacional Nas últimas duas décadas, a política educacional brasi- leira visou prioritariamente à universalização do acesso ao ensino fundamental, em cumprimento à exigência es- tabelecida pela Constituição de 1988, que determinou a obrigatoriedade desse nível de ensino e o dever dos sis- temas públicos de assegurarem sua oferta. Nesse período, o crescimento das matrículas inten- sifi cou-se devido à prioridade da universalização e ao estabelecimento de parcerias entre as três esferas de governo. Assim, a taxa de escolarização da população de 7 a 14 anos avançou de 67%, em 1970, para 97% em 2003 (Castro, 2005). Avanço signifi cativo, em que pe- sem as profundas desigualdades regionais nas condi- ções de oferta e a imensa massa de brasileiros adultos que são analfabetos. Apesar da expansão do ensino fundamental, o sis- tema educacional brasileiro é afunilado, revelando que o país ainda não conseguiu oferecer à população o ple- no acesso a todos os níveis de ensino. Agravando o pro- blema, avaliações nacionais mostram elevadas taxas de repetência, abandono, distorção idade-série e baixo de- sempenho dos alunos. Quantitativamente, esses patamares nos aproximam da universalização do ensino fundamental, mas, segun- do os indicadores de qualidade e eqüidade, ainda esta- mos longe dos padrões desejados e necessários. Cada vez mais um maior número de crianças e adolescentes pobres tem acesso à escola, mas o que aprendem é insufi ciente e não dá garantia para o término do estudo básico. Os investimentos na educação estão aumentando, porém o gasto por aluno3 ainda é insufi ciente para ga- rantir a todos uma educação de qualidade. Outro fato a considerar é que, dado o alto índice de alunos que não chegam a completar o ensino fundamental, os recursos públicos direcionados para o ensino médio e superior acabam favorecendo os mais ricos. Posto que praticamente já atingimos a universaliza- ção, a qualidade da educação assume um sentido de ur- gência democrática. Lutar para melhorar a qualidade do ensino básico signifi ca mais qualidade para todos, por- tanto, uma nova qualidade em uma sociedade que co- loca a educação como direito de cidadania. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), recém-criado pelo MEC, mostra claramente as de- sigualdades regionais na educação e, sobretudo, atesta a baixa qualidade do ensino. O IDEB permite ao gestor públi- co um monitoramento mais assertivo das redes de ensino básico, assim como defi ne metas de melhoria progressiva da educação nos municípios. Numa escala de zero a 10, o IDEB 2005 aponta os índices de desenvolvimento da edu- cação básica por escola, município e estado. Até recentemente, a política pública nacional de edu- cação permaneceu praticamente estadualizada, sem uma clara regulação federativa de seu desempenho. A partir de 1996, com a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), asseguraram-se as condições fundamentais para um regime efetivo de cooperação entre estados e municípios, para a autonomia crescen- te dos sistemas de ensino, para o fi nanciamento do en- sino fundamental, para a autonomia das escolas e a for- mação dos professores. Foi, sem dúvida, expressiva a redefi nição do papel do Ministério da Educação, resgatando sua função de agên- cia formuladora e reguladora de políticas públicas. O Fun- do de Manutenção e Valorização do Ensino Fundamen- tal e de Valorização do Magistério (Fundef), também insti- tuído em 1996, e o Fundo de Desenvolvimento da Educa- ção Básica (Fundeb), em 2006, os Parâmetros Curricula- res Nacionais (PCN), de 1998, os Sistemas de Avaliação QUADRO 2 – TAXAS DE RENDIMENTO ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL 1999 A 2004 Indicador 1999 2000 2001 2003 2004 Aprovação 78,3% 77,3% 79,4% 79,6% 78,7% Reprovação 10,4% 10,7% 11,0% 12,1% 13,0% Abandono 11,3% 12,0% 9,6% 8,3% 8,3% Fonte: MEC/INEP, 2005 14 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 de Desempenho são condições de enorme importância para a regulação pública da educação nacional e tam- bém para sua viabilização. No entanto, ainda vigora no país uma descentraliza- ção truncada, com evidentes difi culdades de reconheci- mento e convivência entre sistemas de ensino autôno- mos (municipal, estadual e federal). Não há um projeto nacional claramente comprometido com a descentraliza- ção político-administrativa, como prescreve a LDB. Por outro lado, a simultaneidade de sistemas resul- ta em falta de organicidade, de racionalidade dos recur- sos e de coordenação, com grande prejuízo para os alu- nos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, coexistem um sistema estadual responsável por quase 70% da rede de ensino fundamental e um sistema municipal responsá- vel por 30,86%. Retoma-se hoje a importância da regulação nacional com maior compromisso coordenador das esferas estadual e municipal. As novas articulações entre global e local exi- gem, das esferas estadual e municipal, maior protagonismo e responsabilidade na condução da educação básica. Descuido refl exivo A mudança mais importante da última década foi o au- mento das matrículas de 5a a 8a série. Entre 1999 e 2005, as matrículas se mantiveram em torno dos 15 milhões de alunos4 (Quadro 3). Em relação a 1997, houve um aumen- to de 2 milhões de alunos nesse segmento. Quanto à reprovação, segundo dados no INEP, em 1997, o percentual de reprovados foi de 13%, caindo para 10,7% em 1999 e voltando a aumentar entre os anos de 2002 e 2005. Em 2002, o percentual de alunos reprovados alcan- çou 9,6% e, em 2005, chegou a quase 13%, o mesmo de 1991. Este dado é preocupante e indica que a cultura da reprovação parece resistir até mesmo à implementação de políticas como a progressão continuada. Embora o índice de distorção idade-série venha cain- do – o que é positivo – em 2004, o IBGE constatou uma média de 9,9 anos para a conclusão do ensino funda- mental (Folha de S.Paulo, 2006). Reprovação e evasão acarretam custos adicionais para o sistema de ensino e, além disso, há prejuízos para os pró- prios alunos, quando tentam entrar no mercado de trabalho sem a necessária qualifi cação. Contrariando o discurso da sociedade brasileira sobre o valor da educação como possibilidade de maior inclu- são social e inserção no mundo do trabalho, uma parte da população estudantil desiste da escola, desestimu- lada pelos baixos índices de desempenho, pela distân- cia entre seus objetivos e os da escola e por pressão dos fatores econômicos e sociais. Em 1997, o índice de alunos evadidos do ciclo II che- gou a 12%. Nos anos seguintes, caiu muito pouco e vem se mantendo constante, em torno de 10%.5 As políticas públicas de enfrentamento da evasão, algumas delas li- gadas ao combate ao trabalho infantil, parecem não ter sido sufi cientes para reverter esse quadro. De cada 100 crianças matriculadas na 1a série do en- sino fundamental, apenas 54 concluem a 8a série. Entre os jovens de 15 a 17 anos, apenas 44% cursam o ensino médio e, na zona rural, este índice cai para 22%.6 Nesse cenário, não há dúvida de que os mais penaliza- dos são os adolescentes e jovens dos setores populares − os que trilham um percurso escolar com interrupções e tam- bém os que acabam sendo excluídos da escola. Portanto, o que se coloca hoje para a escola é o seu compromisso com os grupos da população castigados pela pobreza. Para os que permanecem na escola, a qualidade dos estudos também é uma questão. Segundo resultados do SAEB 2003, confi rmados pelos dados da Prova Brasil 2005, aproximadamente um terço dos alunos do ciclo II estavam nos estágios “muito crítico” e “crítico” quanto às competências fundamentais em Língua Portuguesa, ou seja, eles não tinham as habilidades de leitura exigi- das do ensino fundamental. Embora freqüentassem a es- cola, eram alunos que, de certa forma, estavam numa si- tuação de exclusão. As avaliações nacionais indicam um grande número de alunos que está concluindo a 8asérie, mas tem nível de letramento abaixo do esperado – ape- nas 10% dos alunos brasileiros têm habilidades de leitu- ra compatíveis com a terminalidade do curso. QUADRO 3 – MATRÍCULAS NO ENSINO FUNDAMENTAL (CICLO II) Ano Matrícula total 1999 15.120.666 2000 15.506.442 2001 15.570.405 2002 15.769.975 2003 15.519.627 2004 15.238.306 2005 15.069.056 Fonte: MEC/INEP, 2005 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 15 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Alfabetismo funcional De toda a população brasileira, apenas 26%7 consegue ler e entender algo maior do que um texto curto e sim- ples. Em pleno século XXI, vivemos num país onde apro- ximadamente três quartos da população são funcional- mente analfabetos. No caso da matemática, as avaliações retratam uma situação ainda mais aguda: em 2003, chegou a 57,1% o índice de alunos nos estágios “crítico” e “muito crítico”, ou seja, que não conseguiam responder a comandos ope- racionais elementares, compatíveis com a 8a série. Apro- ximadamente 21% dos que chegam à 8a série têm ape- nas habilidades compatíveis com a 4a série, o que equi- vale a dizer que quase nada se acrescentou, a esses alu- nos, em quatro anos de estudo.8 Como se sabe, o objetivo primordial das avaliações de desempenho escolar é levantar dados para que os siste- mas públicos de ensino possam investir na melhoria da qualidade das escolas. Mas, apesar da implementação de políticas educacionais em âmbito nacional − como o Programa Nacional do Livro Didático, o Programa Nacio- nal de Biblioteca na Escola, a divulgação de Parâmetros e Referências Curriculares para o Ensino Fundamental e vários programas de formação de professores realizados por secretarias de educação −, o que se conclui é que es- sas políticas não chegam a infl uenciar de fato o desem- penho escolar no ciclo II. As estatísticas e os balanços periódicos que divul- gam, com certo alarde, o baixo desempenho dos alunos também não têm impulsionado a produção de novos co- nhecimentos, para sensibilizar a sociedade e as escolas a pensarem em propostas inovadoras que contribuam para resolver o problema. Mesmo entre teses dos cursos de Pedagogia e Psico- logia, embora exista uma signifi cativa produção sobre vários aspectos e elementos do ensino brasileiro, não é comum encontrarem-se pesquisas que tratem especifi - camente da segunda etapa. Ainda há poucas referências teóricas, estudos investi- gativos e orientações didáticas dedicadas ao ciclo II, so- bretudo quando se consideram os investimentos em es- tudos, pesquisas e formação de professores dirigidos ao ciclo I, à educação infantil ou à alfabetização. Este descaso para com a produção teórica acerca do segundo ciclo parece indicar não só a baixa prioridade dada a pesquisas e projetos inovadores nesse segmento, como também, sobretudo, um vazio de políticas públicas para produzir mudanças efetivas e necessárias. Condições societárias A escola pública é fi lha da modernidade e do estado re- publicano de massas. Nela se depositou a maior das es- peranças de emancipação do homem: liberdade de pen- sar, agir e ler o mundo. Nesse projeto, a educação tem importância crucial: é a única forma de imunizar o espírito humano contra as investidas do obscurantismo − mediação necessária para o alcance da autonomia. Hoje, diante dos dados da educação pública e do de- sempenho escolar, fala-se da escola como lugar do fra- casso e, ao mesmo tempo, como lugar em que a socie- dade deposita enormes expectativas. Para olhar com mais profundidade esta situação, é preciso levar em conta a complexidade da sociedade atual e suas mudanças: • avanços cumulativos da ciência e da tecnologia; • processos de globalização da produção e do consumo; • transformação produtiva, fi nanceirização da econo- mia, precarização das relações de trabalho, quebra da sociedade salarial; • sociedade altamente urbanizada, complexa, multifa- cetada, tecida pela velocidade das mudanças e, sobre- tudo, pelo maior acesso à informação e ao consumo; O descaso para com a produção teórica acerca do segundo ciclo parece indicar um vazio de políticas públicas para produzir mudanças efetivas e necessárias. QUADRO 4 – PORCENTUAL DE ESTUDANTES NOS ESTÁGIOS DE CONSTRU- ÇÃO DE COMPETÊNCIA LÍNGUA PORTUGUESA – 8A SÉRIE EF − BRASIL Estágio 2001 2003 Adequado 10,3% 9,3% Intermediário 64,8% 63,8% Crítico 20,1% 22% Muito crítico 4,9% 4,8% Total 100% 100% Fonte: SAEB, 2001-2003 16 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 • cidadão-consumidor mais exigente e cônscio de seus direitos; • presença constante de movimentos sociais, que as- sumem papel central não só nas mudanças de pa- drões socioculturais, como também na defi nição da agenda política dos Estados e das empresas; • organizações não-governamentais como expressão da nova sociedade civil, alargando a esfera pública e exigindo maior interlocução política com o Estado e as empresas; • revolução informacional em curso, transformando a mídia em espaço político preponderante; • nova qualidade de vida reivindicada por todos: longe- vidade, queda da mortalidade infantil, escolaridade; • fragilização política do Estado-nação; • distância aguda entre países ricos e pobres; • unilateralidade político-econômica, défi cits públicos crônicos, ajustes fi scais. O sistema público de ensino não é uma ilha. Está envolvido por esse contexto sociopolítico, que também o determina. A educação no mundo atual está cercada por um novo conjunto de expectativas. Não basta pro- duzir escolaridade, exige-se que a educação alavanque o crescimento e o desenvolvimento econômico; comba- ta a pobreza e as desigualdades sociais e produza co- esão social. Neste novo contexto, o Estado tem papel central na regulação e na garantia da prestação dos serviços de di- reito dos cidadãos. Não se compreende mais o Estado como agente único da ação pública. Espera-se que cum- pra sua missão de intelligentsia do fazer público e, em conseqüência, exerça papel indutor e articulador de es- forços governamentais e societários em torno de priori- dades da política pública. A política social no país impõe uma nova arquitetu- ra de atenção pública: • fundada na lógica da cidadania, que promova ações integradoras em torno do cidadão e do local como ei- xos de um desenvolvimento sustentável; • que promova ações integrais, pois o cidadão já não quer ser reconhecido como um somatório de neces- sidades e direitos; • que reconheça a necessária complementaridade en- tre serviços e atores sociais. O novo modo de pensar o arranjo e a gestão da po- lítica social derruba a força da setorialização das políti- cas ditas sociais e reforça a tendência de programas-rede que agregam diversos serviços, projetos, sujeitos e or- ganizações no âmbito do microterritório. Esta nova confi guração exige deslocamentos na con- dução da política de educação: • A centralidade no território passou a ser chave para se obter efetividade da política. É no microterritório que se pode operar uma articulação do conjunto das polí- ticas, retotalizar a política social e conformá-la às reais demandas e necessidades dos cidadãos. É o lugar do fortalecimento da coesão social, um dos objetivos no- bres da ação pública. • A educação deve ser concebida em sentido multidi- mensional. Políticas de cultura, assistência social, es- porte e meio ambiente adentram os espaços educa- cionais para produzir projetos e serviços socioeduca- tivos, oferecendo aprendizagens extra-escolares que complementam as escolares. • Crianças e adolescentes das novas gerações não apren- dem só por meios seqüenciais lineares, eles se envol- vem cada vez mais em processos difusos e descentra- dos, ditados por uma nova racionalidade cognitiva, de que fazem parte a experimentação e a circulação. As tecnologias de informação e comunicação exercem aqui forte sedução, pois se vive numa sociedade cres- centemente marcada pela idéia de conhecimentos e aprendizados compartilhados. • A busca da eqüidade − procuramos construir uma po- lítica social pautada na igualdade. As fraturas nesse processo estão claras para todos nós: a política edu- cacional não consegue garantir efetiva igualdade de oportunidades, nem tampouco contempla conteúdos socialmente signifi cativos, porque não se ajusta à di- nâmica de âmbitos sociais distintos. Resulta daí o hoje valorizado paradigma da eqüidade − oferta de múlti- plas e distintas oportunidades para assegurar eqüida- de, produzindo igualdade de resultados. • Metas de aprendizagem tornaram-se um valor na bus- ca da eqüidade. A produção do conhecimento científi co e tecnológico vem apresentando mudanças: “Em vez de uma inteligên- cia que separa o complexo do mundo em pedaços isolados, fraciona os problemas e unidimensionaliza o multidimen- sional, como afi rma Edgar Morin, precisamos de uma pers- pectiva que integre, organize e totalize” (Nogueira, 2001, p. 35). Boaventura Santos complementa: “Os objetos têm fron- teiras cada vez menos defi nidas, constituídas por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 17 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles” ( Santos, 2000, p. 73 ). O que se observa hoje é um professor lançado na es- cola e no ensino sem formação para enfrentar estas no- vas condições. Falta-lhe domínio didático, compreensão dos processos de aprendizagem e, até mesmo, apropria- ção dos objetos de conhecimento. A fragilidade da escola no exercício de sua função social nos remete à maior co- brança da Universidade na formação dos profi ssionais. Estes não estão sendo preparados para o agir educativo competente na vida contemporânea e em contextos de pobreza, não há refl exão e exploração pedagógica das relações entre escola e território e não há formação para reconhecer e atuar junto a outros espaços de aprendiza- gem existentes na comunidade. A grave situação que vem se apresentando na esco- la pública brasileira tem apontado para um círculo per- verso, constituído de imobilismo vocalizado e erosão silenciosa. O imobilismo vocalizado se manifesta no jogo de “empurra-empurra” dos diversos atores: “os alunos vêm do primeiro ciclo sem base”, “quanto mais o aluno pre- cisa, menos a família aparece na escola”, “a formação dos professores deixa a desejar”, “o poder público não resolve”, “os salários do professor são muito baixos”. Estas queixas têm-se incorporado na representação co- letiva como senso comum e, retroalimentando-se, ge- ram imobilismo. A erosão silenciosa se revela nas pouquíssimas mu- danças signifi cativas na organização e nas dinâmicas desse segmento de ensino, nos resultados apresenta- dos pelos alunos nos exames nacionais e no próprio absenteísmo constatado entre boa parte dos professo- res nas escolas. É bem verdade que, entre os fatores que geram indife- rença, conformismo e impotência, estão: a falta de uma política educacional traduzida não apenas em Parâme- tros Curriculares, como também em metas de aprendiza- gem; a falta de um comando gestor efetivo das esferas estadual e municipal; a falta de um projeto de carreira que valorize e redefi na a docência; e a falta de uma ava- liação de desempenho que represente um claro dispo- sitivo de monitoramento e entendimento da ação edu- cacional, resultando em guia de mudanças. Embora nos sistemas de ensino ainda se preservem valores do passado – normas e hábitos institucionaliza- dos –, o que acontece nas salas de aula e nos corredores, as relações interpessoais, com suas intimidades e seus confl itos, a multiplicidade das lógicas e das linguagens, ou seja, o dia-a-dia das escolas se impõe como momen- to privilegiado para a busca de alternativas e consensos nunca antes experimentados. A um observador não atento às diferenças ou às trincas, rupturas e buscas que se processam nesse cotidiano, o que aparece – e isso se observa na maioria dos relatos da pesquisa em educação – é uma espécie de unicidade técnica abstrata com uma rotina massacrante. Isso está posto também na realidade escolar. Porém sua apresentação como face única das salas de aula, pela descrição das atividades dos professores como apenas uma atividade instru- mental, de ensino de soluções e dicas, de algoritmos e técnicas, não deixa entrever a multiplicidade de ocorrências próprias dos cotidianos de pessoas em relação, no caso uma relação pedagó- gica, com determinadas intencionalidades, em ambientes culturais heterogêneos (Gatti, 2005). Notas 1 Dados extraídos do Projeto Juventude, 2004, p. 25-26, Secretaria Nacional da Juventude. 2 Guiomar Namo de Mello, em entrevista para Nova Letra, n. 3, ano 2006, publicação do CEDAC (Centro de Estudos e Documentação para a Ação Comunitária). 3 O gasto por aluno é calculado dividindo-se o total de recursos investidos anualmente pelo número de alunos matriculados na rede pública por ní- veis/modalidades de ensino. 4 Em 2002, houve 15.769.975 matrículas no ciclo II e, em 2005, 15.069.056. 5 Em 1999, o índice de reprovação foi de 10,4%; em 2002, de 9,8% e, fi nal- mente, em 2005, de 10% (fonte: INEP). 6 “É tão difícil copiar?”. Revista Época, edição 413, de 13/04/2006. São Paulo: Ed. Globo, 2006. 7 Os dados são do Instituto Paulo Montenegro (IPM), braço social do Grupo Ibope; estão no Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf, 2005) – Leitura e Escrita, pesquisa nacional realizada pelo Ibope Opinião. Referem-se à população brasileira na faixa de 15 a 64 anos de idade. Segundo o INAF, 30% estão no nível “rudimentar”, ou seja, conseguem ler títulos ou frases, localizando uma informação bem explícita. Quase 33% são da classe C e 64%, das classes D e E. Apenas 6% deles usam computadores, mas 52% dizem ler jornais e 48%, revistas. Outros 38% dos brasileiros estão no nível “básico” de alfabetismo. Estes conseguem ler um texto curto, localizando uma informação explícita ou que exija uma pequena inferência. As principais defi ciências estão concentradas, portanto, entre pessoas das classes C, D e E. 8 Segundo dados do Inaf 2002, o nível de alfabetismo matemático caracte- riza-se pelo êxito na leitura de números de uso freqüente, em contextos específi cos (preços, horários, números de telefone, relógio, fi ta métrica). Na pesquisa, 32% dos brasileiros de 14 a 65 anos estão nesse nível. No nível 2, os entrevistados dominam a leitura de números naturais em qualquer ordem de grandeza, comparam números decimais em contextos envolven- do dinheiro e resolvem problemas envolvendo operações usuais (adição, subtração e multiplicação). Nesse nível, estão 44% dos entrevistados. No nível 3, estão os que têm capacidade para adotar e controlar estratégias para resolver problemas que demandam várias operações. Esse grupo cumpre, sem difi culdade, tarefas envolvendo cálculo proporcional e demonstra fa- miliaridade com mapas, tabelas e gráfi cos. Nesse nível encontra-se apenas 21% da população brasileira entre 15 e 64 anos. 18 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Os dados e suas revelações Neste capítulo serão apresentados os dados empíricos coletados em nosso estudo sobre a educação na segun- da etapa do Ensino Fundamental, buscando destacar as fragilidades e as potências não perdidas, para uma aná- lise afi rmativa e algumas recomendações. Lembramos que nossas fontes foram: os grupos fo- cais que fi zemos nas três escolas selecionadas – de Be- bedouro, de São Carlos e de São Bernardo do Campo –, as entrevistas abertas com professores e gestores dessas escolas e os questionários respondidos voluntariamente através do Portal EducaRede. Cenário das informações Breve caracterização das escolas Escola de Bebedouro: A escola fi ca num bairro de po- pulação com baixa renda, com sérios problemas so- ciais, que não tem espaços e equipamentos coletivos de cultura e lazer para uso dos moradores. Hoje, a es- cola municipal já tem o ciclo II do ensino fundamental, o que representa novidade e crescimento; até 2003, o curso terminava no ciclo I. Muito organizada e limpa, com recantos e ambientes aconchegantes, arte nas pa- redes, causa uma impressão positiva desde a entrada. Essa escola tem um papel social importante no entor- no e é muito valorizada pela comunidade. Escola de São Carlos: A escola atende população de bai- xa renda e fi ca numa região periférica, que não oferece cultura e lazer para os habitantes. Integrada à rede es- tadual de ensino, tem três ou quatro salas de cada sé- rie, de 5a a 8a . Chama a atenção seu aspecto geral pou- co cuidado, com instalações mal conservadas e grades internas nos corredores. Pais e alunos se declararam in- comodados com o estado da escola. 3 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 19 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 QUADRO 5 - DADOS DAS ESCOLAS – 2006 Bebedouro São Carlos São Bernardo do Campo Níveis de ensino Educação infantil Ensino fundamental Educação de jovens e adultos Ensino fundamental Ensino médio Educação de jovens e adultos Ensino fundamental Ensino médio turnos 3 3 3 turmas 12 31 40 alunos 308 1.847 1.150 professores 26 85 80 Fonte: SEE/CENP, 2006 GRÁFICO 1 - PROFESSORES PESQUISADOS POR FAIXA ETÁRIA 45,00% 40,00% 35,00% 30,00% 25,00% 20,00% 15,00% 10,00% 5,00% 0% entre 21 e 30 anos entre 31 e 40 anos entre 41 e 50 anos entre 51 e 60 anos acima de 61 anos Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 300 250 200 150 100 50 0% menos de 5 anos - 114 entre 6 e 10 anos - 115 entre 11 e 20 anos - 242 mais de 21 anos GRÁFICO 2 - TEMPO DE ATUAÇÃO NO SEGUNDO CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL A maioria dá aula em várias séries e 28% deles são responsáveis por mais de uma disciplina; 177 são professores de Língua Portuguesa Tempo de atuação predominante: de 11 a 20 anos Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 Escola de São Bernardo do Campo: O bairro em que está a escola é bem urbanizado, residencial, com pa- drão de construção de boa qualidade, mas também ca- rece de espaços e equipamentos coletivos de cultura e lazer para uso dos moradores. Nos últimos anos, a es- cola passou por várias modifi cações e acaba de se es- tabilizar com ensino fundamental e médio completos sob uma mesma direção. Funciona nos três períodos, e apresenta boas condições gerais de manutenção e lim- peza de pátios externos, com arredores bem cuidados e árvores frutíferas recém-plantadas. Perfi l dos professores Dos 568 professores do ciclo II que responderam à enquete no Portal EducaRede, 345 (60,63% ) são do Es- tado de São Paulo. Função social da escola A função social da escola, em princípio, apóia-se no conjunto de expectativas colocadas em torno da educa- ção. Algumas dessas expectativas estão expressas em documentos da política nacional (LDB, PCN...), outras estão na voz da sociedade civil, das agências multila- terais, de ativistas e teóricos da educação. Os múltiplos interesses que acompanham essas ex- pectativas visam desde ao desenvolvimento humano e ao exercício da cidadania até a seu papel na redução da pobreza e no aumento da competitividade dos paí- ses em desenvolvimento. A função social da escola se espelha no conjunto dessas expectativas e se expressa como compromisso contextualizado, com a promoção da autonomia inte- 20 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% A - ir ao cinema/teatro/shows musicais B - ir a museus e exposições C - ir a centros culturais D - ler E - ir a bibliotecas públicas/livrarias F - fazer esportes G - ir a parques H - nenhuma das alternativas anteriores G H E F D C B A Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 GRÁFICO 4 - HÁBITOS DE LAZER DOS PROFESSORES 39% jornais, revistas 12% romances, crônicas e contos 2% livros de auto-ajuda 17% textos veiculados pela Internet 29% textos e estudos relacio- nados ao meu trabalho 1% nenhuma das alternativas anteriores Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 GRÁFICO 3 - TIPO DE LEITURA MAIS FREQÜENTE DOS PROFESSORES 70% 60% 50% 40% 3% 20% 10% 0% A - oferta de espaços de lazer e cultura B - oferta de serviços básicos (hospitais, postos de saúde, escolas etc.) C - questões de infra-estrutura (calçamento, saneamento, escoamento) D - questões de infra-estrutura urbana (melhoria de moradia, fachadas, áreas verdes) E - nenhuma das alternativas anteriores Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 A B C D E GRÁFICO 6 - O QUE MUDARIA NA COMUNIDADE ONDE A ESCOLA ESTÁ INSERIDA 50% 40% 30% 20% 10% 0% A 2,99% B 8,79% C 47,80% D 28,30% E 31,28% GRÁFICO 5 - VISÃO DOS PROFESSORES SOBRE A INTERAÇÃO DE SUA ESCOLA COM A COMUNIDADE A - nenhuma das alternativas anteriores B - não existe integração entre escola e comunidade C - embora escola e comunidade considerem importante se rela- cionar, ainda não foi conquistada uma forma interessante de se fazer isso com freqüência D - existe uma integração que vem evoluindo a cada ano E - existe integração por meio do programa Escola da Família, que promove abertura da escola nos fi ns de semana Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 21 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 GRÁFICO 7 - ESPAÇOS UTILIZADOS PELOS PROFESSORES ALÉM DA SALA DE AULA Biblioteca Quadra Sala de informática Laboratório Sala de vídeo Parques e praias Espaços de organi- zações comunitárias Centros Culturais Nenhuma das alter- nativas anteriores Centros Esportivos Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 lectual dos indivíduos pela via do aprendizado das fer- ramentas básicas de acesso ao mundo da cultura e do conhecimento. Os ditames sobre a função social da escola não são novos, e sua tarefa essencial continua sendo a de pro- mover o acesso ao conhecimento universal. O novo se traduz no modo e na condição de exercício dessa fun- ção, e é sobre isso que é preciso refl etir. Primeiro, essa função só se cumpre se o ensino e a aprendizagem são contextualizados, exigindo relação entre escola, território e comunidade. Outra exigência é que a escola esteja sintonizada e entrelaçada com todos os demais serviços do território, com vistas à proteção dos cidadãos e ao desenvolvimen- to desse território. Por isso, caminha para uma ação con- junta com os demais serviços públicos e comunitários. Já se avançou bastante ao se aliarem educação e pro- teção social no fazer educativo junto às crianças e ado- lescentes marcados pela pobreza: a merenda escolar, o Bolsa Família e o PETI (Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil) são exemplos dessa atuação articu- lada. Mas temos avançado pouco na ação conjunta com as demais políticas públicas, projetos da comunidade e na relação com as famílias. Escola e comunidade No exercício de sua função social, a escola precisa de um forte enraizamento na comunidade em que se inse- re, supondo reconhecimento mútuo e ação conjunta. A aprendizagem é mediada por relações densas com a co- munidade e, portanto, é fundamental esclarecer o que entendemos por forte enraizamento. • Conhecimento efetivo do universo de seus moradores – seus saberes, valores, potências e fragilidades. Aprendi- zagens contextualizadas dependem do estabelecimento de relações dialógicas entre os saberes de vida presentes na comunidade e os objetos de conhecimento universal, possibilitando a apropriação signifi cativa dos conteúdos que a escola tem a responsabilidade de ensinar. • Conhecimento dos serviços existentes na comunida- de – unidades, programas e agentes comunitários de saúde, bibliotecas, centros de cultura, centros de es- porte, serviços socioassistenciais. Não basta identifi - car os serviços públicos; é preciso conhecer as inicia- tivas da própria comunidade visando a processos de articulação e complementariedade. 22 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 • Reconhecimento de que as famílias dos alunos também são importantes mediadoras de conhecimento, mesmo que em condições precárias de escolaridade. Estabelecer a vinculação escola-comunidade signifi - ca trilhar um caminho de mão-dupla: comunidade aden- trando a escola e escola incluindo necessidades e sabe- res da comunidade local. Nos grupos focais e na enquete, constatou-se um es- forço das equipes das escolas no estreitamento da rela- ção com as comunidades. Ao mesmo tempo, observou- se que o conhecimento sobre as comunidades é limita- do e superfi cial. Este é um bairro residencial, não há espaços e instituições por aqui perto. (...) Tem um ginásio aqui, mas os alunos vão sozinhos. Essa comunidade caminha sozinha, ela “se auto-abastece”. É uma comunidade que está muito presente na escola. (...) Não há parce- rias. O que a gente costuma fazer é levar os alunos para passeios pela comunidade. Mas não há um trabalho sistemático. Coordenador pedagógico Os alunos falam que não têm dinheiro para ir nesses lugares. (...) A questão do isolamento aqui é forte. Às vezes é difícil logisticamente você arrumar um transporte para levar os alunos. Professor Ah... gente, eu vou atrás, escrevo, ligo, faço de tudo para conseguir parcerias. Nós temos muito contato com as instituições daqui e até com as universidades. Só que você tem que ir atrás, tem que fi car ligado, senão nada acontece. Eu brigo muito, no bom sentido, todo mundo aqui sabe, me conhece. Diretor Segundo os alunos ouvidos nos grupos focais, a es- cola é lugar de socialização. A questão que se coloca, no entanto, é que não há socialização densa sem circulação e vivências na comunidade/cidade. E isso lhes falta. A nossa escola tem uma característica muito assistencialista. Eu não vou conseguir mudar isso – por quê? É um dos bairros mais antigos da cidade, está dentro do distrito industrial, só que é muito pobre, o pessoal daqui não tem oportunidades. Eu lutei por um supletivo de 5a a 8a . Fiz o maior auê, mas infelizmente não fui atendida. Você vai ver que muitas das nossas crianças estão descalças. Eu ligo lá para uma loja de calçados e pergunto: vocês não têm aí tênis na ponta de estoque para me fornecer? E eu recebo. Então, tem essa marca assistencialista. Todas nós, aqui fazemos, Interesses e compromissos em relação à educação Os interesses disputados na sociedade presente podem ser assim sintetizados: • Como escolha pragmática – alternativa de redução da violência. Nossos fi lhos têm de receber uma educação diferente, que os ensine a compreender o mundo diferente (...) E as crianças dos países em desenvolvimento têm de receber uma educação diferente para não serem criadas para odiar. Essas não são questões fi losófi cas, teóricas. São questões pragmáticas, são o tema de hoje, para que os nossos fi lhos possam viver em paz. JAMES D. WOLFENSOHN, Presidente do Banco Mundial - Bird, jornal O Estado de S. Paulo, 17.03.2002. • Como estratégia de enfrentamento da concorrência mundial e desenvolvimento de capital humano. O investimento em educação é o ativo social de maior retorno. A cada ano adicional de estudo, a renda do trabalho aumenta, em média, 16%. Cada ano a mais na escolaridade média da população brasileira provoca um aumento de 0,35% no cresci- mento econômico per capita e uma redução de 0,26% na taxa anual de crescimento da população. MARCELO NERI, jornal Folha de S.Paulo, 20.12.2001, C-6. • Como compromisso ético e cívico. Que a educação tenha sua importância traduzida em ações capazes de alterar as condições sociais, oferecendo para todos os brasileiros uma chance de se tornarem pessoas que se orgu- lham de si mesmas, de suas capacidades, e que os habilitem a transitar e dialogar de modo competente sobre um novo projeto de sociedade que precisamos ter. CENPEC, 2004 • Conhecimento e articulação com as iniciativas e pro- jetos socioeducativos existentes na comunidade, de modo a facilitar o trânsito entre os vários espaços de aprendizagem, bem como a relação com os vários me- diadores de conhecimento ali presentes. • Co-autoria de projetos de interesse comum da comu- nidade e da escola. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 23 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Faixa etária Lazer Atividades Culturais 11 a 12 anos Conversar (meninas) Brincar: jogos de rua, soltar pipa Esporte, bicicleta Ver TV Dançar Ouvir música Ficar no computador jogando games Dormir Ofi cinas de texto, arte, dança (Projeto Semeando o Futuro) Grupo de adolescentes na igreja Ler Desenhar Jogar xadrez 14 a 15 anos Futebol Grafi tar Ver TV Ouvir música; tocar. Fofocar Jogando games e Orkut ou MSN com amigos Handebol, basquete, Baralho: truco Dormir Cursos de Computação Cursinho de encaminhamento para o merca- do de trabalho Música: aprender a tocar instrumentos Grupos de teatro Sair com amigos; ir ao cinema, ao shopping QUADRO 6 - A VIDA NA FAMÍLIA E NA COMUNIDADE: LAZER E ATIVIDADES CULTURAIS (ALUNOS) OBS.: Apenas uma menina, em cada grupo de alunos, menciona espontaneamente a leitura como atividade de lazer. Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 pliação do universo cultural dos alunos e 63,39% enten- dem que espaços de lazer e cultura na comunidade em que está a escola são mais necessários do que serviços básicos, apontados apenas por 28,15%. Os dados da enquete informam ainda que muitos pro- fessores circulam com seus alunos – usam espaços como bibliotecas (64,07%), salas de vídeo (67,05%) e salas de informática (46,52%) – mas poucas respostas indicaram centros esportivos (2,15%), quadras (11,09%) e laborató- rios (8,28%), espaços que são justamente de muito in- teresse dos alunos do ciclo II. Chama atenção o fato de 10,76% dos professores não fazerem qualquer menção a atividades fora do espaço escolar. É preciso considerar que a educação está imersa na cultura. A educação se coloca no social, em ambientes escolares e similares, organizada em torno de proces- sos de construção que conectam as pessoas com a cul- tura em que se inserem, com signifi cados que se fazem públicos e compartilhados, mas cujos sentidos se criam nas relações que medeiam seu modo de estar nos am- bientes e com as pessoas (Gatti, 2005). Escola e família Retoma-se aqui um limite já apontado antes: embora trabalhem muitas vezes em ambientes de privação, os sempre dá jeito. A gente parece que adota... claro que nós somos professores, mediadores do conhecimento, só que, acima de tudo, nós somos humanos também. Diretora Quanto à relação com a comunidade, na enquete EducaRede, 32% dos professores afi rmam participar de alguns eventos da comunidade onde está a escola. Per- centual semelhante afi rma não ter disponibilidade para qualquer envolvimento, embora reconheça a importân- cia da interação comunidade-escola. Constatou-se neste estudo que ainda são poucos os planos/projetos contínuos de relação escola e comuni- dade. A escola pouco vê/reconhece em seu entorno as potências, mesmo em situações graves de pobreza, e toma poucas iniciativas para compor parcerias com a própria comunidade. Nos grupos focais, revelou-se que os educadores não se percebem como sujeitos instituintes, e sim instituídos. Falta-lhes uma posição político-pedagógica mais fi rme em relação ao direito de aprender em contextos de po- breza, o que leva muitas vezes a posturas assistencia- listas e isolacionistas, mesmo quando se tem consciên- cia de que este não é o caminho. Perguntada sobre o que poderia ser melhorado na es- cola, a maioria dos professores (52,12%) indicou a am- 24 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 educadores não têm experiência para atuar nesses con- textos, não são capacitados para envolver e agregar va- lor à participação das famílias e tampouco a escola pa- rece desenvolver uma cultura de acolhimento dos pais que produza espontaneidade e confi ança. Assim, outro fator de isolamento da escola é sua relação com as fa- mílias dos alunos. Os pais vão à escola quando convocados pelos ges- tores ou pelos professores, fechando um círculo no qual a relação se estabelece a partir de problemas ou obriga- ções, e não de potencialidades ou de tarefas comuns que os envolvam. A própria palavra “convocação” sugere uma relação de poder hierarquizada, e não acolhimento. Lahire (1999) fala sobre o mito construído pelos pro- fessores a respeito da omissão parental. Ignorando as lógicas das confi gurações familiares, professores dedu- zem, a partir dos comportamentos e desempenhos esco- lares dos alunos, que os pais não se incomodam com os fi lhos. É preciso destacar uma certa injustiça interpretati- va que se comete quando se evoca uma omissão ou ne- gligência dos pais. “Omissão” ganha aí uma conotação moralizadora, pois remete a uma escolha deliberada dos pais que nem sempre corresponde à realidade. Os discursos sobre essa omissão se apóia no fato de que os pais não são “vistos” na escola, e essa invi- sibilidade é interpretada como indiferença pelos assun- tos escolares. Embora os pais nem sempre acompanhem seus fi - lhos como a escola ou o imaginário da sociedade gosta- riam, em suas falas nos grupos focais aparece fortemen- te a idéia de que é importante acompanhar suas tarefas escolares, ainda que nem sempre consigam dar o supor- te sufi ciente, seja por falta de tempo, seja por não domi- narem plenamente os conteúdos escolares. Enquanto eu viver, minha meta é ter os fi lhos na escola. O que eu mais faço é incentivar. Procuro sentar, olhar caderno, fazer a lição junto. Eu aprendi a tabuada depois de muitos anos de fazer junto com meu fi lho. Os alunos dos grupos focais reconhecem a preocupa- ção dos pais em acompanhar sua vida escolar: Minha mãe não deixa eu faltar. E eu também não gosto de faltar. A minha mãe se preocupa e quer que eu estude mais. Quando fi co um dia sem catar o caderno, ela [mãe] pega no meu pé. Os dados sugerem uma relação pais-escola mediada por estratégias de “prestação de contas” via reuniões. Essa estratégia é sem dúvida limitada para gerar parti- cipação – cria apenas canais de informação e de rela- ções superfi ciais, sem induzir confi ança ativa ou proje- tos compartilhados. Convocamos as famílias bimestralmente. Elaboro as pautas com os professores e a direção. Geralmente é para discutir as notas, faltas, relacionamento com os professores. Coordenador pedagógico A direção e a coordenação convocam bimestralmente ou quando necessário; as reuniões são sempre realizadas no período noturno. A pauta é organizada no HTPC e contém acolhimento, uma leitura e informes sobre o rendimento dos alunos, procurando destacar seus avanços. Coordenador pedagógico A escola ajuda os pais a partir do momento em que eles querem ser ajudados. Os pais têm que entender que a escola é de portas abertas para eles: se eles quiserem fazer uma visita, é só chegar e avisar na Secretaria. Coordenador pedagógico Analisando as falas de pais e educadores, vêem-se presença e modos de participação que devem ser com- preendidos não nas suas limitações, problemas ou difi - culdades, e sim como potência, pois os pais acreditam na escola. Se isso for reconhecido como potência, será possível construir interlocução, diálogo entre iguais na tarefa complementar de educar. A efetiva participação da família não tem sido reconhe- cida como um valor pela escola; prescinde-se dela porque há mesmo dúvidas entre os agentes escolares sobre a legiti- midade dessa participação. O ensino é percebido como fun- ção precípua dos educadores e, portanto, a participação das famílias nesse âmbito pode signifi car ingerência. De fato, é preciso entender melhor onde cabe essa participação, pois ela não é necessária para melhorar o desempenho escolar dos alunos, mas para a construção de um projeto educa- cional que tenha sentido para a comunidade. De modo geral, os educadores procuram introduzir os pais na escola, mas fazem-no de modo ambíguo: ao mesmo tempo que valorizam sua presença, também a interpretam, às vezes, como intromissão pedagógica, o que suscita sentimentos de “ataque/defesa”. Quan- do, por exemplo, os pais vão conversar sobre proble- mas de aprendizagem dos filhos e pedir explicações especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental sobre seu desempenho, é comum que se leiam estas fa- las como reclamações ou queixas em relação ao traba- lho desenvolvido. Assim, a relação escola-família é um campo ainda atravessado por mútuas incompreensões, por imaginá- rios construídos coletivamente que devem ser ressigni- fi cados. É preciso romper estereótipos e estabelecer ca- nais de comunicação mais efetiva e positiva entre am- bos, sobretudo no ciclo II, quando a formação dos ado- lescentes demanda uma atuação conjunta e articulada entre família e escola. Na enquete realizada pelo portal EducaRede, quase metade dos professores (47,86%) afi rmou que ainda não se conquistou uma efetiva relação família/escola, mas 31,46% responderam que uma possibilidade para essa integração tem sido alcançada através do Programa Es- cola da Família, realizado pelo governo do estado de São Paulo, ou de programas de mesmo gênero em ou- tros estados. Também na enquete, 83,94% dos professores acre- ditam que a família, por diferentes motivos, acaba atri- buindo à escola a responsabilidade pela educação dos alunos e 37,26% disseram que a família está distante da educação escolar. Para 44%, a escola busca se aproximar da família co- municando o trabalho que realiza por meio de, no mínimo, dois encontros anuais ou convidando com freqüência as fa- mílias para exposições de trabalhos dos alunos, apresen- tações teatrais, atividades desportivas etc. (40,56%). Crença na escola No discurso dos pais participantes dos grupos focais, a representação da função social da escola é permeada pela crença no potencial escolar de transformar a reali- dade de seus fi lhos: querem dar a eles a oportunidade que não tiveram, querem equipá-los para a vida. Os pais de um dos grupos focais atribuem à escola a função civilizadora das novas gerações e não se sen- tem capazes de cumprir essa função sozinhos. Avaliam a escola mais em seus aspectos disciplinares/compor- tamentais do que nos conteúdos de ensino. Embora afi r- mem que a escola é fonte de instrução e conhecimento, eles também esperam que ela dê referências de normas 26 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 de bom comportamento. Consideram a escola uma das únicas oportunidades de seus fi lhos adquirirem noções de civilidade e boa convivência. Os pais de outro grupo focal valorizam a escola, mas não chegam a vê-la como “salvação” ou único caminho para crianças e jovens ascenderem socialmente. Para esse grupo, a “falência da família” precedeu e, de cer- ta forma, gerou a “falência da escola”. Ao observarem, em maior ou menor grau, a fragilida- de das famílias quanto à sua função educativa, os pais aceitam a fragilidade da escola e se agarram a uma ex- pectativa mais pragmática e possível: preparação para o mundo do trabalho1 . Mando meu fi lho na escola porque eu quero que ele seja alguém na vida, que tenha mais oportunidades das que eu tive para conseguir um emprego melhor. Pai Os alunos reafi rmam essa posição, em suas falas nos grupos focais: Sem estudo, não se vai a lugar nenhum. Não se consegue nada. Não consegue emprego. Minha mãe disse que hoje os donos das empresas fi caram mais rigorosos ainda; antes, podia ser com ginásio, agora, tem que ter faculdade ou terceiro colegial. Essas expectativas se explicam pelo imaginário que envolve a pobreza – é uma compreensão calcada na vi- são tutelar de que os pobres só podem enfrentar a pri- vação com trabalho. O anseio dos pais de que a esco- la prepare para o trabalho não deixa de ser legítimo, uma vez que as pesquisas econômicas apontam que mais anos de escolaridade revertem em maior percen- tual de renda. Um ano adicional de escolaridade no Brasil signifi ca, na média, um aumento de 14% na renda do indivíduo. Eduardo Giannetti da Fonseca, O Estado de S. Paulo, 11.08.2006. Por outro lado, a análise conjuntural aponta uma sociedade com poucas oportunidades de trabalho ou com oportunidades para poucos – talvez para os que tenham maior escolaridade. Por isso, as demandas por escolaridade e qualifi cação aumentam. As condições socioculturais dos pais No Brasil, 58,3 % dos pais ou responsáveis têm ensino fundamental incompleto e 7,5% declaram-se analfabetos ou sem nenhuma escolaridade. Apenas 2,85% declararam-se com ensino universitário com- pleto (INEP, 2005). Outros dados sobre o perfi l das famílias, segun- do o INEP, mostram que 73% dos responsáveis pelo estudo dos fi lhos são as mães. Quanto às oportunidades de entretenimento cultural das famílias, ainda segundo o INEP, 84% declaram assistir à televisão todos os dias, 74% lêem raramente ou nunca jornais de circulação diária e 74% raramente ou nunca lêem livros. A utilização do computador é citada por 10% dos responsáveis entrevistados e o acesso à Internet, por apenas 6,9%. Os pais dos grupos focais relatam um tipo de vida familiar em que há pouco lazer e no qual as atividades culturais são muito raras, resumindo- se a alguns passeios. Algumas mães retomaram os estudos em cursos de EJA que funcionam nas escolas dos fi lhos, outras participam de atividades comunitárias promovidas por igrejas. Os lugares indicados como de maior freqüência no bairro ou na cidade em que moram os familiares são os templos de várias religiões, os postos de saúde, as associações de moradores e os centros comunitários. Muitos pais reclamam da falta de oportunidades de lazer. As festas freqüentadas pelas famílias são as quermesses, festas de padroeiros e festas juninas. Quando há oportunidade, participam de ativida- des nas escolas de samba e nos postos de saúde (prevenção a acidentes). Ou seja, usufruem ofertas lúdicas e culturais oferecidas pelas instituições comunitárias, já que a própria privação socioe- conômica não lhes permite usufruir as oferecidas pelo mercado. Mesmo assim, as atividades culturais acabam sendo ocasionais, pontuais. São palestras na es- cola com médicos dos postos de saúde, aulas de catequese na escola, empréstimo de instrumentos musicais da escola de samba para organização de fanfarra etc. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 27 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 O destaque na preparação do aluno para o mundo do trabalho expressa uma enorme redução da função social da escola. Concentram-se expectativas no estudo como possível alavanca da sobrevivência, perdendo-se seu sentido socializador pleno, partícipe da construção de identidades e de fortalecimento da coesão social. É preciso considerar que a ausência de um debate social amplo tem situado a discussão do problema escola/tra- balho apenas no interior da escola, quando, na realida- de, ela não é a responsável direta pela questão. Falta um olhar mais globalizado para o ser humano, propiciando aprendizagens que desenvolvam o humano (...) ajudar essa população mais carente e discriminada a ter ferramentas para a sobrevivência e a ter seu potencial humano mais desenvolvido e trabalhado. Coordenadora pedagógica Em contextos de pobreza e privação, a função so- cial da escola – construção de identidades e pertenci- mento, fortalecimento da coesão social e de padrões de conduta civilizatória, domínio de ferramentas para o acesso ao conhecimento (letramento2 ) e para a partici- pação na vida pública – parece subsumida numa apre- ensão pragmático-reducionista. Num país como o Brasil, grande parte da desigual- dade é causada por diferenças quanto a oportunida- des educacionais. Em nosso país, um jovem que nas- ce entre os 40% mais pobres tem probabilidade esta- tística zero de chegar ao ensino superior público, e 73% dos que têm acesso a esse nível de ensino pertencem aos 20% mais ricos da população (O Estado de S. Pau- lo, 11/08/2006). Assim, a sociedade brasileira condena os pobres a um horizonte restrito de oportunidades, caracterizando- se como estruturalmente injusta. Um olhar sobre a história da educação brasileira mostra o silêncio da sociedade no debate sobre as po- líticas educacionais e sua relação com a desigualdade e a pobreza. Escola e alunos Ao responder sobre a escola desejada, os alunos fa- lam em acolhimento e inclusão, que, sem dúvida, in- tegram outra função social da maior importância. Para eles, essas condições vêm acompanhadas de estética, limpeza e circulação, padrões de civilidade da socieda- de contemporânea. Os adolescentes aprendem na experimentação e na circulação em diversos espaços e territórios a que têm acesso e aprendem compelidos no e pelo apelo da so- ciedade da excelência cultural. Exigem uma socialização negociadora mais que disciplinar ou tutelar. Assim, a escola precisa compreender e explorar a nova racionalidade cognitiva dos nossos adolescentes, cuja velocidade pragmática não aceita processos seqüenciais, mas exige um aprendizado em espiral, agarrando de for- ma descentrada e difusa a totalidade das informações. Esta é, talvez, a maior lição a ser aprendida pelos educa- dores: a gestão do tempo e dos aprendizados. É fundamental se valer do modo cognitivo de apren- der dos adolescentes e oportunizar as atividades de ex- perimentação e circulação requeridas por eles. A escola ainda parece relegar essa dimensão estratégica. Hoje se afi rma a importância da articulação e do envolvimento em projetos-redes no território para facilitar o trânsito entre possibilidades variadas de busca de aprendizado. Notas 1 A pesquisa “A escola pública na opinião dos pais” (INEP, 2005-a) aponta duas expectativas dos pais que confi rmam essa constatação: pedem a generalização do ensino de informática e acesso a computadores e Internet para seus fi lhos e maior disseminação de informações sobre características das profi ssões e do mercado de trabalho. 2 De acordo com Street, um dos teóricos da área (citado por Soares, 1998, p. 75), letramento é um termo-síntese para resumir as práticas sociais de leitura e escrita e tem um signifi cado ideológico, do qual não pode ser separado. “Letramento tem a ver com as práticas sociais que integram a produção e a leitura de materiais escritos, valores, normas socioculturais subjacentes ao que é considerado um desempenho letrado numa dada situação” (Leal, 2003, p. 8). Um olhar sobre a história da educação brasileira mostra o silêncio da sociedade no debate sobre as políticas educacionais e sua relação com a desigualdade e a pobreza. 28 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 O que está por trás do ensino da leitura e da escrita, com- promisso primordial da escola com todas as gerações? Ou: por que temos insistido tanto na necessidade de criar condições para que todos os alunos dominem com propriedade a leitura e a escrita? Porque ler e escrever são modos que facultam ao pensamento se organizar, compreender, reelaborar e es- tabelecer relações. Ler e escrever são liberdades maio- res, possibilidades reais que as pessoas têm de encon- trar seus direitos, de acessar e inscrever suas histórias, de situar no mundo a si mesmas e aos demais. A leitura e a escrita promovem o desenvolvimen- to de uma série de capacidades cognitivas fundamen- tais − são o pano de fundo da aprendizagem dos con- teúdos, base para o avanço em qualquer área do co- nhecimento. Para além da ampliação da própria subjetividade, o domínio da leitura e da escrita permite tanto o desen- volvimento intelectual quanto uma inserção social mais qualifi cada, neste país em que a falta de acesso ao mun- do letrado é sem dúvida um poderoso fator de desigual- dade. Por isso, quanto menor for o grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos, tanto maior será a importância de se garantir esse aprendizado. A impossibilidade de participação no espaço social está ligada ao não-domínio da língua. Aprender a se co- municar pode favorecer a participação na vida social por meio do diálogo, espaço de encontros e desencontros, permeado por negociações, trocas de pontos de vista, acesso a novos conhecimentos. Este exercício de permanente interlocução articula defesa de idéias, a contraposição de argumentos, a ela- boração de perguntas e respostas, construção de reper- tório de assuntos, a organização de fi os narrativos. Embora caiba à família o ensino da fala de uso do- méstico (e isso tem sido feito, já que, ao atingir a ida- de escolar, os alunos têm competência lingüística ver- 4 Aprender a ler, a escrever, a estudar. Aprender a aprender. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 29 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Conceber o estudo como objeto de ensino é respon- sabilidade da escola. Quando se estuda, as diferentes práticas da linguagem aparecem tão intimamente rela- cionadas que separá-las resultaria arbitrário. Eu dei uma prova hoje. Estou trabalhando com a Revolução Russa, na 8a série. Em vez de fazer uma série de perguntas, eu pedi que eles escrevessem o que tinham aprendido sobre Revolução Russa – criar um texto explicando a Revolução Russa. Eles têm que saber explicar e não fi car respondendo a perguntas. Professora Ler, escrever, ouvir e falar são habilidades que apa- recem tanto nas atividades escolares quanto nas extra- escolares. O domínio dessas habilidades fundamen- tais permite expressar e compreender idéias, emoções, pensamentos e intenções, ou seja, possibilita uma re- lação consigo mesmo, com o outro e com o mundo que se traduz em uma existência mais digna, plena de sen- tidos e atuante. Os PCN2 difundiram a idéia de que o trabalho com le- tramento ultrapassa o simples domínio do código alfabé- tico e os limites das aulas de Português. Muitas escolas já conseguiram transpor, para sua prática esta idéia. Quando tenho oportunidade, venho para a biblioteca e leio um conto que conheço previamente. Tem um conto sobre um detetive que, a partir de uma série de pistas, descobre o assassino. E aí eu pergunto para eles [alunos]: “Isso que o assassino fez aqui tem a ver com raciocínio matemático?” A princípio, eles falam que não, mas eu pergunto: “Que tipo de raciocínio ele fez?” É um raciocínio dedutivo, próprio da Matemática. Eles gostam muito desse tipo de coisa. Professor 3 Ao explicitar para os alunos que as histórias de sus- pense e de detetives têm a ver com Matemática, o pro- fessor mostra uma lógica implícita no desvelamento das pistas que pode ser transferida para o pensamento mate- mático. As habilidades de leitura requeridas para a com- preensão dessas histórias guardam semelhanças com as necessárias à resolução de problemas. Incorporar todos os alunos à cultura escrita é fazer com que sejam membros plenos da comunidade de leito- res e escritores. Embora seja incontestável que a escola deva ensinar a ler e a escrever, o que se propõe atualmen- te é uma redefi nição do trabalho com leitura e escrita. E quais são as competências que os usuários da lín- bal), aprender a adequar a fala aos diferentes contex- tos de uso exige que se ponham em jogo outros inter- locutores e outros espaços de interlocução. Comunidade de leitores e escritores É preciso conhecer a cultura em que a escola está inserida para pensar num projeto voltado para essa comunidade. Isso inclui mapear os níveis e tipos de letramento dessa comunidade: as pessoas lêem o quê? Usam a leitura para quê?1 Fazer parte da cultura letrada signifi ca participar da comunidade de leitores e escritores. Saber manejar o in- tertexto social, em função do qual se interpreta a vida, propicia a construção de uma visão própria da realida- de, porque se pode ver o próprio mundo a partir do que se sabe sobre outros mundos. Nós fi zemos, ano passado, com a 7a série a primeira noite das resenhas literárias. Os alunos leram muitos livros, de vários autores, e se apresentaram no Teatro Municipal. Isso aguçou a curiosidade. Esse ano, a gente vai fazer com a 6a série, porque os alunos pediram. Diretora O desafi o para a escola está em construir uma cul- tura partilhada, em que a língua não seja vista só como um conteúdo instrumental, mas como um meio de in- serção cultural. No entanto, é muito comum que na escola os alunos tenham acesso somente ao livro didático e que as ati- vidades de ler e escrever se circunscrevam às aulas de Língua Portuguesa. Mais do que isso: freqüentemente essas atividades se apresentam de forma escolarizada, sem vínculo com as situações reais de uso. Eu trabalho os decimais com folhetos de supermercados que os alunos trazem. A gente brinca de supermercado, cada um faz sua compra, lendo no folheto, e depois faz as contas. Eu trabalho com esses textos que eles estão acostumados, porque às vezes olham na lousa e não entendem. Com esses folhetos, que fazem parte do dia-a-dia deles, eles têm bons resultados. Professora Criar condições para que os alunos aprendam a es- tudar e sejam cada vez mais capazes de fazê-lo com au- tonomia é uma das prioridades do ciclo II. 30 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 gua precisam construir e que a escola precisa garantir? Em linhas gerais: • Ler diferentes gêneros discursivos e recorrer a eles segundo propósitos distintos signifi ca conseguir ma- nejar o texto escrito, ou seja, transitar por ele e en- frentá-lo para buscar respostas para problemas que precisaramser resolvidos; encontrar uma informação específi ca, colecionar argumentos para defender ou se contrapor a uma idéia, conhecer outros modos de vida, divertir-se, ampliar o repertório literário, ma- ravilhar-se com as formas de se usar a linguagem para criar novos sentidos, conhecer autores signifi - cativos, conversar com outros leitores sobre as im- pressões, sensações e idéias provocadas pela lei- tura, recomendar ou não determinada leitura etc. • Escrever diferentes gêneros, e respeitar seus pro- pósitos, signifi ca conseguir comunicar, por escrito e para destinatários reais, idéias, fatos, pontos de vista, pedidos, reclamações, instruções, histórias, poesias, desejos etc. Além disso, deve-se levar em conta que cada situação comunicativa da escrita tem conteúdos específi cos e características textuais de- fi nidas, que precisam ser respeitados. • Comunicar-se oralmente respeitando as diferentes situações da expressão oral signifi ca adequar o con- teúdo da fala à situação de uso, ao interlocutor e ao gênero. Ao assumirmos, portanto, que à escola cabe a for- mação de usuários competentes da língua, deveríamos criar sentidos justamente ao produzir essas práticas, pois assim elas constituiriam representações compatí- veis com a cultura dos que as constroem. Eu não gosto de ler os textos que me dão aqui na escola. São pequenos, chatos, têm um monte de assunto nada a ver, tudo misturado. Eu gosto é de livro de verdade. Acabei de ler Estação Carandiru, do Dráuzio Varella, e depois vi o fi lme também. Aluno Além de artifi cializar os propósitos das práticas so- ciais de leitura, escrita e comunicação oral, a inevitável distribuição dos conteúdos no tempo pode levar a es- cola a fragmentar os objetos de ensino. Sabemos que resolver esses problemas não é tarefa simples. Por isso, a idéia a se perseguir é a do compartilha- mento (entre todos os sujeitos) de um importante pro- pósito educativo da escola – formar cidadãos da cultura escrita, verdadeiros usuários da leitura, capazes de ler e entender qualquer gênero e de se expressar oralmen- te e por escrito –, já que temos um compromisso com a inclusão social e, portanto, com a ruptura do abismo sociocultural existente em nosso país. Nesse sentido, também se deve ter, como meta, con- ciliar crescimento profi ssional com desenvolvimento pessoal no campo da leitura e da escrita. A construção do hábito de ler O repertório faz toda a diferença. Se o professor não lê jornais, revistas, livros de literatura com regularidade, isso difi culta o domínio dos gêneros que circulam nesses suportes. É essencial ser usuário freqüente da leitura e da escrita.2 As análises do SAEB informam que um grande núme- ro de alunos conclui a 8a série do ensino fundamental em nível de letramento abaixo do esperado, e que ape- nas 10% dos alunos brasileiros têm habilidades de lei- tura compatíveis com a terminalidade do curso. Essa situação é alarmante, já que muitos alunos, ainda que estejam freqüentando a escola, estão em si- tuação de exclusão, por não terem desenvolvido o do- mínio de ferramentas básicas para compreender e usu- fruir o mundo da cultura letrada e para ter acesso ao co- nhecimento das outras áreas. Em 2001, o SAEB investigou o efeito de variáveis in- tra e extra-escolares sobre o desempenho dos alunos. Quantidade de livros em casa, hábitos de leitura,4 fazer especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 31 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 lição de casa e gostar de estudar são fatores que estão associados positivamente ao rendimento escolar. O hábito da leitura é um elemento positivo ainda mais preciso do que apenas a posse do livro − pode acrescentar 13 pontos na média de desempenho dos alunos da 8a série em Matemática e, em Português, 10 pontos. Toda vez que eu começava a minha aula, eu lia um conto. Dali a pouco, os alunos começaram a pedir o livro. Professora Alunos de uma das escolas visitadas disseram que “a professora só passa texto, não fala nada. Não lê jun- to com a sala, só dá texto e depois dá visto...”. Ou seja, a leitura não tem signifi cado para eles, pois é tratada de forma burocrática, mera rotina escolar. As contribuições da didática ainda não foram as- similadas por muitos professores no cotidiano do “fa- zer” e, por isso, talvez o ensino de 5a a 8a ainda esteja baseado na “abordagem tradicional” (Mizukami, 1986, apud Dias-da-Silva, 1997, p. 25), o que não seria nega- tivo se ao menos levasse em conta os aspectos impor- tantes dessa abordagem – apresentação de grandes obras, de grandes autores. Ocorre que a prática dos professores de ciclo II pa- rece habitar um não-lugar, nem lá (ensino tradicional), nem cá (sociointeracionismo, construtivismo...). Com isso se quer dizer que, se as equipes docen- tes já deram um passo no sentido de saber o que deve ser feito, ainda precisam avançar no sentido de como fazer. Pontualmente, há situações que revelam avanços. Numa das escolas pesquisadas, estudantes das 5as sé- ries apreciam a leitura e dizem que a professora “leva os alunos ao cantinho da leitura e lê para eles”. As palavras dos alunos, colhidas nos grupos fo- cais, coincidem com as de vários autores5 que investi- garam as condições necessárias para se formarem lei- tores, o que permite refl etir sobre tudo o que os alu- nos podem aprender nas situações em que professo- res lêem para eles e nas situações em que são convida- dos a ler por conta própria,0 sem cobranças (por exem- plo, no canto da leitura). Isabel Solé destaca a impor- tância do fato de as atividades de leitura estarem con- textualizadas, ligadas aos interesses dos alunos e diri- gidas a um objetivo: Parece-me que uma atividade de leitura será motivadora para alguém se o conteúdo estiver ligado aos interesses da pessoa que tem que ler e, naturalmente, se a tarefa em si corresponde a um objetivo. Em uma classe, pode ser muito difícil contentar os interesses de todas as crianças com relação à leitura e fazê-los coincidir com os do professor, que supostamente interpreta as prescrições das propostas curriculares. Entretanto, todas as escolas contam com atividades de biblioteca ou de “leitura livre”, em que é possível que os interesses do leitor tenham primazia sobre outros parâmetros (Solé, 1998). Além de a leitura livre e sem cobranças poder ocupar lugar de honra na rotina escolar, outra modalidade, também apontada pelos alunos, precisa entrar em cena: a leitura que o professor faz para sua turma, já que “não devemos esquecer que o interesse também se cria, se suscita e se educa e que em diversas ocasiões ele depende do entusiasmo e da apresentação que o professor faz de uma determinada leitura e das possibilidades que seja capaz de explorar” (Solé, 1998). Investigações didáticas já mostraram que, mesmo quando o aluno sabe ler sozinho, é preciso que viva mo- mentos em que ouça/veja leituras feitas por leitores mais experientes, porque pode aprender, por exemplo: • dependendo do gênero textual, uma história, uma no- tícia da atualidade, um poema, um jogo, a forma de vida de um animal etc.; • que há diferentes grupos de textos: os que emitem opinião, os que usam palavras de outras línguas, os que rimam, os que apresentam transgressões (“cau- sos”), os que informam etc.; • que os textos aparecem em diferentes suportes: jor- nais, livros, enciclopédias, revistas etc.; • que os textos se organizam de maneiras diferentes; • que muitas vezes uma palavra desconhecida pode ser entendida pelo contexto e que só interrompemos a leitura para buscar seu signifi cado se ela for real- mente imprescindível à compreensão do texto; • que se lê por prazer; para compartilhar um texto com um auditório; para aprender a ler; para verifi car o que se compreendeu; para obter uma informação etc. Na enquete, há contradições na visão dos professo- res: enquanto 55,46% afi rmaram que “os alunos não gos- tam de ler e de escrever”, apenas 13,92% responderam que o mais importante no trabalho da escola é “garan- tir a aprendizagem da leitura e produção de texto para todos os alunos”. 32 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Mais ainda: 33,11% dos professores disseram que os alunos chegam ao ciclo II sem saber ler e 28, 6%, sem saber escrever. 59,44% disseram que, embora os alu- nos consigam ler, não entendem o que lêem e 71 % afi r- mam que, embora a maioria dos alunos consiga escre- ver, seus textos apresentam muitos problemas de con- teúdo, ortografi a, gramática e caligrafi a. Esses dados revelam sérios comprometimentos das práticas de ensino da leitura que ocorrem na escola. De- lia Lerner ilumina a questão: É possível ler na escola? Essa pergunta pode parecer estranha: por que colocar em dúvida a viabilidade da leitura em uma instituição cuja missão fundamental sempre foi precisamente a de ensinar a ler e escrever? Contudo, a “desnaturalização” que a leitura sofre na escola tem sido eviden- ciada de forma irrefutável. (...) por que a leitura – tão útil na vida real, para cumprir diversos propósitos – aparece na escola como uma atividade gratuita, cujo único objetivo é aprender a ler? (...) Por que usar textos específi cos para ensinar, diferentes dos que são lidos fora da escola? (...) A leitura aparece desvinculada dos propósitos que lhe dão sen- tido no uso social porque a construção do sentido não é considera- da uma condição necessária para a aprendizagem. A teoria ofi cial na escola parece considerar – diria Piaget – que o funcionamento cognitivo das crianças é totalmente diferente do funcionamento cognitivo dos adultos: enquanto que estes aprendem somente o que lhes é signifi cativo, as crianças poderiam aprender aquilo que lhes ensinam, independentemente de poder ou não atribuir-lhe sentido. (...) Quando o trabalho se realiza com uns poucos livros que, além disso, pertencem ao gênero texto escolar, bloqueia-se a possibili- dade de surgirem diferentes maneiras de ler (Lerner, 2002). Ao ler ou escutar uma leitura, tem-se a chance de construir sentidos para textos de diferentes gêneros, aprender como manejá-los e como transitar por eles. Este universo de aprendizagens que compõe a leitura só se torna possível quando se elege o texto como unidade mí- nima de sentido e quando se aproximam os propósitos da leitura feita na escola da leitura feita na vida. Os alunos dos grupos focais afi rmam que na escola lêem mais os livros didáticos, embora também façam re- ferências gerais a livros (sem nomear os gêneros), his- tórias em quadrinhos, reportagens, atlas e dicionários. Isso corrobora a informação de que alguns professores têm procurado incluir outros portadores textuais para de- senvolver a leitura. Na enquete EducaRede, as respostas ao item 21 (a res- peito do trabalho de leitura e produção de texto propos- to pelos professores) apontam para o problema do mo- dismo que reina na educação. Dos professores, 65,89% disseram propor leituras com diferentes propósitos e 24,01% revelaram trabalhar com textos de uso social, idéias essas amplamente divulgadas pela didática atu- al (os PCN, por exemplo). Duas questões se colocam aqui. A primeira é obser- var como as propostas têm sido encaminhadas em sala de aula (muitas vezes existe uma distância enorme en- tre saber o que deve ser feito e saber como fazer o que deve ser feito). A segunda pede o cruzamento de duas respostas – enquanto tantos professores disseram propor aos alu- nos leituras com diferentes propósitos, apenas 22,41%, ao responder à questão 22 (Quais leituras você faz com mais freqüência?), mostraram maior trânsito entre os gê- neros literários (romance, conto, crônica, poesia). A maior incidência de respostas a esse item (69,95%) refere-se à leitura de textos informativos (jornais e revis- tas) ou de estudo (54,50%). Mesmo entendendo a importância de apresentar di- versos tipos de texto aos alunos, a escola ainda precisa incorporar à rotina diferentes modalidades organizati- vas − leitura livre, retirada de livros da biblioteca, proje- tos mais voltados para um único gênero, atividades per- manentes usando vários gêneros, seqüências de ativi- dades e atividades ocasionais. Soma-se a esta, a necessidade de acolher refl exiva- mente as orientações didáticas, para romper com o re- ducionismo e com a simplifi cação dos objetos de conhe- cimento, que são, por natureza, complexos. Em algumas áreas do currículo, os alunos ouvidos nos grupos focais não se reconhecem como leitores. Em Matemática, por exemplo, muitos declararam que não costumam ler, o que mostra uma concepção de lei- tura freqüentemente desenvolvida na cultura escolar, que, em geral, não enfatiza o trabalho com a interpreta- ção de enunciados de problemas e que tem caracterís- ticas específi cas. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 33 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Considerando-se as pesquisas que hoje apontam exa- tamente para a difi culdade de interpretação dos enuncia- dos como uma das causas do fracasso em Matemática, vê-se a necessidade de se trabalhar mais profundamen- te esse gênero. Em Arte, os alunos reconhecem o trabalho com outras linguagens – música e artes visuais –, mas não que lêem ou produzem textos; assim, a área poderia privilegiar o tra- balho com textos teatrais, biografi as de artistas, matérias de jornal específi cas e leitura de imagens. São poucos os alunos que dizem ler nas aulas de Edu- cação Física, área do conhecimento que muito poderia ex- plorar os textos instrucionais (regras de jogos) ou jornalís- ticos (cadernos de esportes). Em História e Geografi a, menciona-se a leitura de dife- rentes gêneros textuais, embora eles não sejam especifi ca- dos. Assim como a Matemática, ambas as áreas poderiam explorar mais a leitura de gráfi cos, tabelas e esquemas. Língua Portuguesa é a área a que mais os alunos atri- buem aprendizagens da leitura, da escrita e da comuni- cação oral. Muitos consideram que a importância dessa disciplina está em ensinar a norma culta, a possibilidade de se comunicar bem, de falar e escrever bem. Há que se perguntar se, por trás disso, existe a idéia do ensino da língua mais centrado na gramática do que no letramento e na função social que ela assume no cotidiano. Quando perguntados sobre a leitura fora da escola, os alunos também fazem referência geral a livros, seguidos dos gibis, jornais, revistas e a Bíblia. Poucos têm material de leitura em casa e há os que declaram ler apenas o livro didático, mesmo em casa, pois gostam de ler, mas não têm acesso a outros materiais. Alguns fazem referência a livros ou revistas retirados da biblioteca da escola e livros didá- ticos e paradidáticos emprestados pelos professores. Boa parte dos alunos de 5a série ouvidos nos grupos focais aprecia a biblioteca escolar e diz retirar livros para ler em casa. Os alunos entre 11 e 12 anos também mencionam histórias em quadrinhos da Turma da Mônica e livros de poemas, contos de fadas, fábulas, terror, sus- pense, histórias sobre futebol, biografi as, livros sobre sexo e sobre drogas. Entre os alunos de 14 e 15 anos, citam-se revistas, novela, horóscopo, a revista Super Interessante, “tudo o que cair na mão”, histórias em qua- drinhos da Turma da Mônica e livros de romance, terror, aventura e poemas. A construção da capacidade de escrever Quanto à produção de textos na escola, os alunos dos grupos focais mencionaram mais a cópia, a escrita de breves respostas a perguntas formuladas pelo profes- sor e a de textos a que chamam “trabalho escolar”; não citam os gêneros, ou seja, não se vêem como autores. Chama a atenção a fala de um aluno da 5a série: “Agora minha escrita é bem boa porque a gente está tendo con- tato com mais textos”. Estas evoluções não são “naturais”, dependem do contato direto com textos escritos, das oportunidades que se oferecem aos alunos para que escrevam por con- ta própria, da observação de modelos escritores e das in- tervenções e atividades que os ajudem a pensar e a apri- morar suas formas de escrever. Escrever um texto não depende só da capacidade de fazê-lo ortografi camente correto, mas também do conhe- cimento sobre as formas e os usos da linguagem escri- ta, construindo-o a partir de parâmetros textuais que ad- vêm das leituras. Para que os alunos possam conhecer as diferentes formas e usos da língua, devem ser postos em situações signifi cativas de produção, escrevendo de próprio punho e/ou ditando um texto para outra pessoa e que terá destinatários reais. O professor pode ser a pessoa que escreve o que di- tam os alunos, que, assim, aprendem: • a organizar a seqüência dos fatos; • a reler de tempos em tempos o que já se escreveu, antes de continuar escrevendo; • a levar em conta palavras e expressões característi- cas do gênero em que se está escrevendo; • a considerar destinatários reais que não tiveram aces- so ao texto-fonte, o que cria a necessidade de a pro- dução fi car clara e coerente; • a revisar um texto buscando sinônimos para repeti- ções, corrigindo concordâncias, aprimorando modos de dizer etc. Ao ler ou escutar uma leitura, tem-se a chance de construir sentidos para textos de diferentes gêneros, aprender como manejá-los e como transitar por eles. 34 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 A construção de um texto é campo fértil para se tra- balharem todas as questões do português escrito, pois só dentro dos textos (ao contrário do que ocorre com pa- lavras e frases soltas) as regras, as normas e as conven- ções da língua ganham sentido. Quando consultados sobre a produção de textos fora da escola, o que os alunos mais mencionam são bilhe- tes e poemas. Todo mundo aqui é “escritor”. Até poema a gente escreve. Lá em casa, eu escrevi um poema de rima, até. Ficou legal. Uma vez, teve um concurso; escrevi um poema que concorreu. Eu escrevo poema de quatro linhas ou então poesia. Infelizmente, a Internet está ao alcance de muito pou- cos. A troca de e-mails poderia complementar esse prazer da escrita de bilhetes/mensagens. Além disso, hoje sabe- mos das inúmeras vantagens de se produzirem textos no computador – indicação de erros, ausência do problema da legibilidade da letra, organização (recortar-colar). Os gestores acham que a escrita é um problema de aprendizagem dos alunos na passagem do ciclo I para o ciclo II. Questionados sobre trabalhos realizados pela coordenação para desenvolver a produção textu- al dos alunos, falam em projetos de reforço e recupe- ração, o que talvez indique que o trabalho ainda não é entendido como atividade permanente do cotidiano da sala de aula. Uma das coordenadoras pedagógicas menciona um projeto de reforço em alfabetização, pois considera que os alunos chegam à 5a série com muitas difi culdades em escrita. Segundo ela, é preciso até retomar a cartilha, embora admita que os alunos já identifi quem as letras e escrevam palavras e frases. É preciso investigar as diferentes concepções que subjazem ao trabalho com produção textual na escola e aprofundar as discussões em torno das expectativas sobre os níveis de letramento ao longo do percurso es- colar, com ênfase na passagem para a 5a série, momen- to em que os alunos começam a lidar com a leitura e a escrita em oito disciplinas diferentes. Os professores de cada disciplina deveriam ser sen- sibilizados para se envolver num trabalho conjunto que gerasse avanços, por aproximações sucessivas, nos ní- veis de letramento, de modo que as intervenções peda- gógicas se fi zessem ao longo do processo e não se res- tringissem a sanar difi culdades. Respondendo às questões do Portal EducaRede, 28,15% dos professores consideram que os alunos che- gam ao ciclo II sem saber escrever, 69,21% indicam que, embora a maioria de seus alunos consiga escrever, seus textos apresentam muitos problemas de conteúdo, or- tografi a, gramática e caligrafi a. Apenas 21,69% dizem que, apesar de problemas or- tográfi cos e gramaticais, o conteúdo dos textos produzi- dos pelos alunos é de boa qualidade, o que indica uma ampliação do olhar didático. E apenas 12,75% acham que, ao escrever, os alunos usam recursos próprios dos gêneros textuais (expressões que lhes são característi- cas, estruturas, linguagem mais ou menos formal, de- pendendo do gênero), o que demonstra ainda uma frá- gil compreensão de que a leitura alimenta a escrita. Em suma, se é papel da escola garantir a todos os alunos a aprendizagem da leitura e da escrita, é preci- so buscar as formas como cada área do conhecimento pode contribuir para isso. Como concretizar uma proposta de leitura e escrita em todas as áreas, sem que cada uma perca sua espe- cifi cidade? Como a escola pode ampliar a construção de conhecimento no processo de letramento dos alu- nos? De quem é a responsabilidade de letrar os alunos de 5a a 8a série? Ensinar a ler e a produzir, nas diversas áreas do co- nhecimento, textos orais ou escritos que circulam em especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 35 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 e emancipação social, que toma forma e corpo na ação pedagógica. O letramento insere-se no âmbito das deci- sões curriculares tomadas pela comunidade escolar. A construção da capacidade de aprender Decidir na incerteza e agir na urgência: esta é uma maneira de caracterizar a especialização dos professores. Perrenoud, 2000. Para se aliar aos alunos e atender suas necessidades de aprendizagem, cumprindo o objetivo de democratiza- ção da educação, é preciso ter autonomia profi ssional. Se o professor tem um aluno que não sabe ler e escrever, ele não vai lhe ensinar gramática porque está no currícu- lo, vai ensiná-lo a ler e a escrever – e precisa saber tomar essa decisão rapidamente. Para gerar aprendizagens de fato, precisamos de pro- fessores que se mostrem conhecendo e não conhecedo- res. Os professores têm que se dar o direito de questio- nar, de reconhecer a importância da interação e da produ- ção conjunta com os alunos, com os demais professores, com os pais, com a comunidade, criando vínculos saudá- veis, produtivos e afetivos. Os profi ssionais do ensino precisam começar a incluir a dimensão didática que há na avaliação, isto é, identi- fi car as necessidades de aprendizagens. Não adianta di- zer coisas como: “Este aluno é tímido, não fala nada” ou “Este fala muito bem”; é preciso saber identifi car os indi- cadores que nos informam se o aluno sabe, se está bem ou não em relação aos conteúdos de comunicação oral que queremos que aprenda (o mesmo vale para leitura, escrita...). É preciso que os professores observem o que os alunos não conseguem fazer e que obstáculos os im- pedem de fazê-lo. A prática, ou mesmo a idéia de que o conhecimen- to é construção, ainda não chegou de uma forma efetiva no interior da escola. Assim, pode-se ter a exata noção do sofrimento de uma aula de História na qual os instru- mentos fundamentais são o giz e o quadro, e a habilida- de mais exigida é a memória. Os rituais da curiosidade estão ausentes.7 Duas questões nos interessam aprofundar aqui: • a recuperação dos rituais de curiosidade na sala de aula; • o papel da leitura e da produção de textos na apren- dizagem de todas as disciplinas. nossa sociedade é ensinar a ler e a produzir mapas, grá- fi cos, fórmulas matemáticas, representações do movi- mento humano, música, teatro, dança, desenho, es- culturas, fi lmes, fotografi as, pinturas, contos, fábulas, notícias, propagandas, poemas, enunciados de proble- mas, relatórios, relatos históricos etc. Tais conhecimen- tos são fundamentais para a formação da cidadania e a leitura do mundo. Acredita-se, portanto, que a responsabilidade de en- sinar a leitura e a produção de textos é da escola como um todo e, em particular, de todos os professores que atuam no ensino fundamental. O direito à leitura e à escrita O Projeto Leitura e Escrita: Desafi o de Todos visa cons- truir, com os educadores, uma prática de formação para garantir a todos os alunos o direito à aprendiza- gem da leitura e da escrita, dentro da qual está a alfa- betização. É importante envolver o conjunto dos professores, resgatando os fundamentos de cada disciplina e con- tribuindo para que crianças e jovens ampliem sua com- preensão do lugar onde vivem, bem como da realidade mais ampla, com vistas à sua transformação. O currículo do ensino fundamental é instrumento pri- vilegiado de construção de identidades, subjetividades 36 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Temos que nos reeducar, porque nós fomos educados de uma forma, nós viemos com certos limites, os alunos estão vindo com outros. Precisamos saber lidar com isso, saber lidar com o mundo deles, que é bem diferente. Eles têm informática e a gente estava naquele mundinho... às vezes, nós não sabemos de coisas que eles sabem. Eles vêm com informações que a gente não tem. Professora No mundo atual, com tantos recursos, que lugar têm ocupado, na escola, os fi lmes, o jornal, as músicas, as fo- tografi as, as visitas a determinados lugares, a Internet, as conversas com as pessoas? Em que as práticas de en- sino têm se pautado mais: na fala que repete os conteú- dos organizados pelos autores de livros didáticos ou em diferentes fontes de informação cheias de vida, que pos- sam emprestar, ao que aparece nos livros, cor, forma, sa- bor, movimento? Em outras palavras: estamos oferecendo aos alunos diferentes oportunidades para que aprendam a gostar de aprender? O professor é alguém que deve transmitir a cultura de uma forma diferente da que existe hoje na escola, de uma forma mais interessante e mais apaixonada. Muitos profes- sores já são assim, não pela sua formação inicial ou pro- fi ssional, e sim pelas oportunidades que tiveram no âm- bito da família e da sociedade. Eu trabalho muito com fi lmes. Hoje mesmo eu passei Lutero para a 7a série, e a classe toda não piscou. Eu já passei Cruzadas, Tróia... Professora Tem uma professora aqui na escola fazendo um trabalho muito inte- ressante: trabalhando a História através das minisséries da Globo. Então, ela pega Canudos, por exemplo, e transporta. Professora Não queremos sugerir que aprender possa ser ape- nas divertido e gostoso... Há um lado da aprendizagem que requer esforço, dedicação, que nos faz trocar o delei- te de fazer aquilo que gostaríamos por uma necessidade que normalmente foi gerada fora de nós. Com os adoles- centes do ciclo II, isso não é diferente. Tentemos agora nos colocar no lugar deles (até porque já ocupamos esse lugar um dia...): trocar horas de skate, papo com os amigos, paqueras, leitura de revistas espe- cífi cas, músicas... por estudo? É difícil. Mais difícil ainda se não sabem estudar, se passam mais ou menos horas para, ao fi nal, não fi carem satisfeitos com o que ganham em troca. Temos que ser justos e satisfazê-los minimamente. Te- mos que ajudá-los a terem tempo para viver, especialmen- te essa fase tão rica da vida, e também a estudar de for- mas menos tediosas e, sobretudo, mais efi cazes. Assim, a promessa de que aprender tem também seus prazeres não fi ca esvaziada. Aqui temos campo fértil para começar a tratar do pa- pel da leitura e da produção de textos na aprendizagem de todas as disciplinas. No ciclo II, a pesquisa pode ser um excelente pretex- to para a aprendizagem importante de procedimentos de leitura e escrita. Por isso, o tema da pesquisa deve ser marcado pela intencionalidade. Que aprendizagens se esperam? Que conteúdos se abordarão? Que estratégias se usarão? É preciso organizar o trabalho em etapas e ter tempo para aprofundar o assunto da pesquisa, ampliando o co- nhecimento dos alunos e criando boas condições de curio- sidade e envolvimento. Como criar curiosidade? Há mui- tos modos. Por exemplo, levando os alunos a estabelece- rem relações entre diversas fontes: livros, fi lmes, exposi- ções, textos, entrevistas... Em geral, os professores reconhecem a necessidade dos alunos de aprender a pesquisar, selecionar informa- ções importantes, hierarquizá-las, relacioná-las, organizar as idéias e informações obtidas, produzir resumos. No en- tanto, a maioria dos professores sente difi culdade a res- peito de como fazer isso, considerando a complexidade da tarefa, a heterogeneidade de conhecimentos dos alunos, o tempo de que dispõem, a falta de certos recursos etc. Sobre a complexidade da tarefa, para além dos concei- tos, sejam eles de que disciplina forem, há outros conhe- cimentos em questão − os procedimentos que escritores e leitores experientes usam e que são observáveis. Quanto tempo se dedica a ensinar aos alunos os pro- cedimentos de grifos e anotações quando lêem para es- tudar, por exemplo? Tem-se entendido esse encaminha- mento como “perda de um tempo que já não se costuma ter” ou como ensino de ferramentas indispensáveis a de- terminados propósitos que, algumas vezes, têm a leitura e a escrita? Ainda pensando no tempo: será que um es- forço conjunto de todos os professores nesse investimen- to demoraria tanto assim? Embora muitos professores saibam que os alunos de- vem ter atitudes e comportamentos de estudante, não se especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 37 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 percebe que eles tomem medidas específi cas para essa construção, que é de sua responsabilidade. Ampliando a complexidade, portanto, entram em cena os conteúdos atitudinais – aprender a fazer perguntas, a colocar dúvidas, a trabalhar cooperativamente assumin- do diferentes papéis em um grupo, a se arriscar − porque o erro é parte do processo −, a pedir ajuda e a ajudar. A heterogeneidade, característica de todas as classes, precisa ser reconceituada pela escola. Se as diferenças fo- rem tomadas como uma grande vantagem para o trabalho, talvez se use a heterogeneidade a favor do ensino. Para isso, há que saber tirar partido dela, aproveitá-la, e não vê-la sempre como um obstáculo – o que um aluno não sabe (determinado conceito, procedimento, atitude) po- derá aprender com outro, e vice-versa. Uma coisa que funciona muito é a questão dos agrupamentos. Nas duplas ou trios, há muita troca de informações. Um que não sabe ler tanto é ajudado por outro que sabe e fi ca satisfeito em ajudar. Professora Outro aspecto que merece atenção são as possíveis fi - nalidades, de uma pesquisa feita pelos alunos, que não parecem muito claras para todos os professores. Este pon- to pede cuidado, porque determina as decisões que se to- marão ao longo do processo. Uma vez que se tenha clare- za sobre o porquê de se fazer uma pesquisa, professores e alunos poderão defi nir os rumos a serem tomados. Defi nem-se diferentes rotas de trabalho se: 1. se pretende que a classe aprenda mais sobre um as- sunto para fazer uma prova sobre ele; 2. se pretende que a classe aprenda mais sobre um assunto para escrever sobre ele no jornal ou no mural da escola, porque é de interesse coletivo; 3. se pretende mobilizar os alunos em torno de uma ques- tão comunitária e lhes dar mais responsabilidade sobre o assunto a respeito do qual propõem mudanças. O projeto sobre o bairro envolveu a escola toda, foi o projeto do ano. A gente saiu para colher dados no bairro. Os alunos participam muito, elaboraram perguntas. Era um projeto multidisciplinar, e cada profes- sor saía a campo com a visão da sua disciplina: o de Ciências focou o saneamento básico; o de História saiu pra ver a história do bairro, da escola, o nome das ruas, o porquê dos nomes, se tinha praça; o de Matemática trabalhou o Censo do bairro. Isso nós apresentamos na Câmara Municipal, na sala do prefeito. Tinha diferentes aprendizagens: pesquisa, coletas de dados, socialização. Então, foi um trabalho muito bonito, e nós tivemos visões do bairro que a gente não tinha. Eu nunca tinha ouvido falar em esgoto particular – então a gente quis saber o que era. Como aqui o bairro é muito carente, por exemplo, cortam a água, então um vizinho paga outro para usar e tomar banho, fazer xixi. A gente teve que andar, conversar. Teve resgate da origem das pessoas – muitos não têm registro de nascimento, então fomos ao cartório. A gente descobriu que 80% do nosso alunado mora com os avós, não mora com os pais. Um avô mora numa chácara, a gente foi lá, ele tocou berrante para os alunos. Professora Conceitos, atitudes, procedimentos – eis uma das equações, cheia de variáveis, que a escola precisa come- çar a enfrentar. Notas 1 Trecho da entrevista com a Profa. Dra. Roxane Helena Rojo, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Almanaque do Programa Escrevendo o Futuro, ano II, número 4, julho de 2006 2 Ibidem 1. 3 “A mudança na compreensão do processo pelo qual se aprende a ler e a escrever afetou também todo o ensino da língua. Permitiu que o conheci- mento produzido na área da lingüística encontrasse receptividade na escola e que, nestes últimos 20 anos, se produzisse experimentação pedagógica sufi ciente para construir, a partir dela, uma didática. Essa didática da língua – que trouxe os textos do mundo para dentro da escola e se preocupa em aproximar as práticas de ensino da língua das práticas de leitura e escrita reais – é a que vem sendo difundida pelo Ministério da Educação nos Parâmetros e Referenciais Curriculares Nacionais para a educação básica” (Telma Weisz, in: Ferrero e Teberosky, 1999). 4 Muitas são as produções didáticas que mostram que ler é, além de dominar o código, construir sentidos, esforçar-se para compreender, estabelecer relações entre diferentes leituras, dialogar com os textos escritos. 5 Entrevista Grupo 1: as mães lêem a Bíblia, revistas e esporadicamente livros de auto-ajuda; raramente lêem histórias para os fi lhos. Entrevista Grupo 2: nas famílias, sempre há quem tenha o hábito da leitura, embora apenas uma minoria declare ter livros em casa. É comum aos dois grupos ter poucos livros e jornais em casa. 6 Autoras como Isabel Solé e Delia Lerner (Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002) e Ana Teberosky (Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004), entre outros. 7 Afi rmação de uma coordenadora do Rio Grande do Sul, que aparece no Docu- mento de Avaliação do Projeto NEPSO (Nossa Escola pesquisa a sua opinião), publicado pelo Instituto Paulo Montenegro/Ação Educativa. Temos que ser justos e satisfazê-los minimamente. Temos que ajudá-los a terem tempo para viver, especialmente essa fase tão rica da vida, e também a estudar de formas menos tediosas e, sobretudo, mais efi cazes. 38 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 5 Caminhos e alternativas Para que os sistemas de ensino avancem, superando otimismos, pessimismos e críticas ingênuas, é preciso agir na complexidade sem simplifi cá-la, tendo em vista que a escola é expressão e presença de diversos fatores que não podem ser reduzidos a elementos que nos convêm e para os quais nossos saberes são, muitas vezes, insufi cientes para a tomada de decisões e para a ação. Muito se tem falado sobre efeito escola, efeito família e efeito comunidade no desempenho dos alunos. Famí- lias e comunidades têm grande peso na trajetória esco- lar: trazem bagagens culturais e repertórios de vida que podem melhorar menos ou mais as condições de apren- dizagem escolar. De fato, constata-se que o pouco letramento, o pre- cário acesso a bens e serviços, a pobreza e a situação de extrema desigualdade em que vivem muitas famílias e comunidades acabam sendo determinantes nos maus resultados de aprendizagem de crianças e adolescentes, pois reduzem o poder de infl uência da escola e de seu instrumental para processar o ensino. Por outro lado, tem-se observado que a escola pode potencializar signifi cativamente sua força e melhorar a vida dos alunos, à medida que repensar sua estrutura e organização e reconhecer a importância de compor com a família e com a comunidade. Daí a insistência na educação contextualizada e no exercício da função social da escola. É preciso fazer re- cortes, defi nir prioridades, correr riscos, integrar conhe- cimentos, sentimentos e compromissos. Lições aprendidas • À escola se apresentam hoje dois caminhos: seguir com o entendimento de que compete a ela a exclu- sividade do processo de ensino-aprendizagem ou compor-se com outros serviços, instituições e proje- tos existentes no território, com vistas a promover o desenvolvimento integral de seus alunos. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 39 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 • O ciclo II do ensino fundamental vive hoje um perío- do caracterizado por quantidade sem qualidade. Ges- tores e professores não têm uma concepção clara do currículo a ser desenvolvido, que respeite a especi- fi cidade de cada disciplina, como também propicie sua integração curricular. • A estrutura e o funcionamento do ciclo II difi cultam a implementação de um trabalho articulado e integra- do entre os profi ssionais que compõem o quadro do- cente, comprometendo a aprendizagem dos alunos. • De modo geral, o currículo pouco dialoga com a rea- lidade. • Ensinar é fazer com que os alunos aprendam e, para isso, são necessários um compromisso e um saber- fazer especializado, que permitam, ao professor, planejar si- tuações de aprendizagem em função do desempenho dos alunos e acompanhar os percursos individuais. • O trabalho de formação precisa acolher e encarar as resistências dos professores – muitas vezes, por não terem chance de ampliar seu repertório cultural e por desconhecerem alternativas pedagógicas inovadoras, acabam se apoiando em modelos que já se mostra- ram pouco efi cientes para garantir aos alunos apren- dizagens substantivas. Vale lembrar que a maioria dos professores que atua nas redes públicas de en- sino traz o histórico de uma formação inicial, como docente, precária, o que aumenta muito a necessida- de de o poder público investir em formação continu- ada para docentes. • Para a maioria dos professores, os sistemas de ava- liação praticados no país são alheios à realidade das escolas e aos modos peculiares como se desenvol- vem os currículos. Embora as avaliações já estejam consolidadas (pois acontecem desde 1996), nem a sociedade, nem os gestores dos sistemas as tomam como referência para replanejar a proposta pedagó- gica da escola. • Ainda não se conquistou concretamente o direito dos pais e dos alunos de saberem como as escolas são organizadas, quanto custam, que recursos recebem, o que produzem e que metas de aprendizagem têm. • Disciplina e, sobretudo, limpeza são para os alunos questões tão relevantes quanto as de ordem peda- gógica. Embora não seja intenção deste estudo de- senvolver o tema, parece importante deixar registra- da essa demanda clara dos alunos ouvidos nos gru- pos focais, lembrando que a ética e a estética não ca- recem de sofi sticação, mas de harmonia. Para a melhoria da qualidade da educação O conceito de educação integral preconizado pela LDB está centrado na ampliação de oportunidades de aces- so à educação e cultura para todos os brasileiros. Nes- se sentido, tão importante quanto estratégica é a cria- ção de uma rede articulada de diversos serviços, progra- mas, ações e atores sociais que colaborem na concreti- zação desse objetivo. Essa articulação não só é desejável como visivelmen- te mais enriquecedora. Experiências em outros países mostram que crianças, adolescentes e jovens conseguem ampliar signifi cativamente seu repertório e suas habili- dades e competências pelo acesso a outros espaços pú- blicos educativos, como ofi cinas de música, artes visu- ais, computação, esportes etc. , pois o contato com as diferentes propostas, projetos educativos e diversos in- terlocutores que os recebem e os orientam favorece seu desconfi namento social e cultural, ativando suas condi- ções de formação intelectual e de sociabilidade. A combinação de espaços e ações socioeducativas na composição de uma educação integral precisa ganhar adesão dos agentes da escola, para que seja reconheci- da e articulada à política pública de educação. A educação clama hoje por seu sentido multisseto- rial. É convocada a compor uma política social em sua inteireza, o que exige o reconhecimento de sua incom- pletude e a necessária complementaridade entre servi- ços e atores sociais. A articulação entre escola e programas socioeducati- vos é um modo virtuoso de produzir educação/cultura/ proteção social com vistas a romper com o ciclo redutor da pobreza e da exclusão social. A educação ... é convocada a compor uma política social em sua inteireza, o que exige o reconhecimento de sua incompletude e a necessária complementaridade entre serviços e atos sociais. 40 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 É uma via de mão dupla: ao cumprir sua função de ensino da leitura e escrita e o acesso a conhecimentos, a escola favorece a inclusão social, da mesma forma que os demais serviços e projetos do território, ao realizar ações para o desenvolvimento infanto-juvenil, asseguram a densidade desejada nas aprendizagens oferecidas. Numa sociedade em que se impõe a necessidade de conhecimentos e aprendizados, o corporativismo impe- de que entrem, na escola, políticas de vida desenhadas pelas comunidades ou por outras políticas públicas. A situação atual exige um novo enraizamento da es- cola na comunidade e no território, supondo o reconhe- cimento mútuo e o fazer compartilhado. Uma vez que a universalização do ensino fundamen- tal foi praticamente atingida, agora é preciso voltar o foco das políticas para a aprendizagem, com máxima atenção à continuidade de planos, projetos e ações educacionais. Há que se assumir um projeto nacional que não seja in- terrompido a cada mandato e conclame a sociedade civil para um esforço coletivo em prol da educação. O Plano Nacional de Educação (PNE) e o recente Pla- no de Desenvolvimento da Educação (PDE) sinalizam esse longo prazo, introduzindo estratégias e metas que prometem maior efetividade social da política pública de educação. A Constituição Federal enseja uma gestão pública par- tilhada e democrática, regulando inclusive a formação e a presença de conselhos paritários para decisão e con- trole do desempenho das políticas públicas. No entan- to, há uma visível ambigüidade do Estado em relação a essas consignas. No Brasil, praticamos uma descentra- lização truncada, com claras difi culdades de reconheci- mento e convivência entre sistemas de ensino autôno- mos (municipal, estadual e federal), que deveriam ser necessariamente solidários. Ainda não se concretizou um projeto nacional efe- tivamente comprometido com a descentralização polí- tico-administrativa, como prescreve a LDB. O papel da esfera estadual de governo está subsumido na condu- ção da política pública. As novas condições global/local exigem, das esferas estadual e municipal, forte papel co- ordenador das políticas que asseguram a qualidade da educação básica. O PNE, lei aprovada em 2001, preconizava que to- dos os estados e municípios se articulassem para a ela- boração dos seus respectivos planos. O poder executi- vo no estado de São Paulo encaminhou a proposta de plano estadual de educação em 15 de outubro de 2003 para aprovação na Assembléia Legislativa, e ela ainda não foi votada. Isso revela que todos os segmentos so- ciais precisam se comprometer com as necessidades estruturais que todas as esferas públicas devem reali- zar no campo da educação, quanto a suas fi nalidades e seu fi nanciamento. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 41 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Avançando o olhar para o interior da escola, observa- mos que são graves os problemas na estrutura do ciclo II: organização da grade curricular em faixas de 40 a 50 mi- nutos de aula para cada disciplina, desempenho solitá- rio da função docente e rotatividade e absenteísmo dos professores. A conseqüência desastrosa é o abortamen- to de projetos político-pedagógicos consistentes que as- segurem aprendizado efetivo. Não há continuidade, não há vínculos que produzam aprimoramento contínuo no fa- zer da escola. Banaliza-se um bem precioso para os alu- nos e para o povo de uma nação. Para a melhoria da qualidade da educação, é impera- tivo que os poderes públicos criem mecanismos legais de fi xação dos gestores e dos docentes nas escolas. As inúmeras tentativas de mudança na estrutura do ci- clo II – entre as quais cabe destacar: a proposta de se or- ganizar a grade curricular em módulos de 80 minutos, a de se manter o quadro de professores relativamente estável por meio de um incremento salarial e de um número fi xo de horas numa mesma instituição – têm quase sempre ca- ído por terra e não são implementadas de fato. Essa situação revela um paradoxo, pois, por outro lado, temos uma legislação educacional que instituiu a fl exibilida- de tanto na estrutura e organização dos sistemas de ensino quanto na defi nição e implementação do currículo (Brasil, LDB, 1996, Título IV, art. 8o; Título V, artigos 23 a 28). Os encaminhamentos propostos aqui já estão formu- lados, embora não se materializem nas orientações políti- cas. Convêm relembrá-los: alteração dos planos de carrei- ra de modo a garantir quadros estáveis nas escolas, com salários dignos, aumento da jornada escolar para no mí- nimo cinco horas, projetos político-pedagógicos que te- nham sentido para a comunidade, implementação de pro- jetos socioeducativos no contraturno escolar, com concur- so de iniciativas existentes na comunidade, oxigenação da equipe escolar com introdução de outros perfi s profi s- sionais e presença de professores-tutores por série. Os incentivos para a carreira do magistério devem ser acompanhados da responsabilização das escolas com a aprendizagem oferecida, ou seja, deve-se fazer da apren- dizagem a principal medida do êxito educacional. Para isso, os gestores e as equipes docentes devem se res- ponsabilizar pelo cumprimento das metas educacionais. A questão remete à necessidade urgente de os sistemas de ensino estabelecerem parâmetros e metas de apren- dizagem para as escolas. Dentro da escola, embora muito se discuta a ques- tão do currículo, o fato é que ele ainda é encarado mais como guia de conteúdos do que como compromisso de se garantirem níveis básicos de aprendizagem. A falta de defi nição clara de expectativas de aprendi- zagem em cada uma das séries do ensino fundamental e de formas de monitoramento e avaliação em relação a essas expectativas acarreta a ausência de padrões que defi nam níveis de aprendizagem desejáveis. De modo geral, nos sistemas escolares da América Latina, o conceito de padrões educacionais ainda não é aceito de fato pelas escolas. Por outro lado, a ausên- cia desses padrões tem sérias implicações na educação, pois são eles que indicam as metas que se espera que as escolas atinjam. Os sistemas educacionais que não especifi cam o que querem de suas escolas têm pouca probabilidade de con- seguirem o que almejam. Ao expressar claramente o que se espera das escolas em termos de aprendizagem e di- vulgar essa visão, os padrões educacionais permitirão à sociedade acompanhar e exigir efetividade dos siste- mas educacionais. A definição de padrões e expectativas educacio- nais deve ser articulada com a formação de professo- res, com as orientações didáticas, com os materiais pe- dagógicos, com os orçamentos e recursos e com as ava- liações nacionais. Outro aspecto a ser considerado é que hoje o nível de informação exigido dos cidadãos não se restringe aos conhecimentos acadêmicos. Os elaboradores de currículo e os que se dedicam à sua implementação, incluindo-se os professores, preci- sam fazer esforços para reduzir a imensa distância que separa o conhecimento formal curricular e o conhecimen- to produzido no mundo. Os sistemas educacionais que não especifi cam o que querem de suas escolas têm pouca probabilidade de conseguirem o que almejam. 42 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 É importante analisar o impacto das tecnologias no universo fatiado em que atua o professor do ciclo II. Tem sido muito difícil para o professor mudar sozinho os pro- cedimentos didáticos. Assim, a maioria das escolas vive o contraste entre o avanço das tecnologias do conheci- mento e a pouca mudança nos procedimentos pedagó- gicos. O avanço da tecnologia, que se descortina com gran- de velocidade, será o universo futuro das pessoas que hoje formamos. Por isso, é preciso certo destemor e ou- sadia para superar a lenta assimilação que a escola faz das implicações que essas tecnologias trazem para o en- sino e a aprendizagem. Embora a globalização seja um fato indiscutível, a lo- calização também o é. Grande parte do que chamamos de qualidade de vida depende da iniciativa local. Muitos estudos atestam a importância do desenvol- vimento local, constatando que, quanto mais se desen- volve a globalização, mais as pessoas carecem do local, buscando melhorar as condições de vida no seu entor- no imediato. Com o peso crescente das iniciativas locais, a escola não deve se aferrar a conhecimentos gerais, mas abrir-se à compreensão de como os conhecimentos gerais se ma- terializam em possibilidades de ação no plano local. A inserção do conhecimento local no currículo e nas atividades escolares implica signifi cativa infl exão na ro- tina escolar. Os trabalhos de campo não podem fi car res- tritos à história oral do bairro, eles devem incorporar a construção sistemática do conhecimento da realidade regional e garantir a assimilação de conceitos e o cruza- mento de conhecimentos entre diversas áreas, rearticu- lando informações que na escola, em geral, são segmen- tadas em disciplinas. Na gestão do conhecimento, é papel da escola re- descobrir o manancial de saberes que existe em cada re- gião, valorizá-lo e socializá-lo de forma organizada, para que seja apreendido em sua dimensão mais ampla pe- las gerações futuras. A proposta é a de inversão de foco: em vez de centrar o compromisso no mero cumprimento formal de conteú- dos, comprometer-se fortemente com o ensino e com a aprendizagem dos alunos. Não podemos deixar os professores e a escola sempre na situação de apenas constatarem o mau desempenho de seus alunos. O professor precisa ser ajudado a des- especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 43 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 cobrir por que o aluno não está conseguindo aprender, qual o obstáculo que ele está encontrando. Portanto, o professor precisa aprender a fazer diagnósticos mais es- pecífi cos dos avanços dos alunos e de suas difi culdades. Observados os problemas, há que transformá-los em no- vas situações de aprendizagem. Valorizar mais o processo de aprendizagem do que o produto signifi ca saber o que os alunos estão aprenden- do ou não, acompanhar o efeito das ações realizadas. Tudo isso aponta para a necessidade de redefi nição das competências profi ssionais dos professores. Não basta serem especialistas em uma matéria ou terem um conjunto de boas atividades para aplicar. A aprendizagem dos alunos depende do envolvimento co- letivo dos professores na exploração de diferentes e pos- síveis soluções. É preciso se perguntar: qual a proposta de coope- ração possível e interativa que estamos gerando com e entre os professores? É preciso formar, no coletivo, uma rede refl exiva sobre a coerência de novas práticas, para se potencializarem o planejamento e a gestão dos pro- gressos dos alunos. O novo papel dos professores precisa ser compatível com os eixos de renovação propostos à escola: • colocar os alunos no centro da ação pedagógica; • individualizar e diversifi car os percursos de formação; • rever tempos de aprendizagem; • diversifi car a pedagogia; • praticar uma avaliação mais formativa do que norma- tiva; • conduzir projetos; • desenvolver o trabalho em equipe docente e respon- sabilizar-se coletivamente pelos alunos; • recorrer aos métodos ativos; • recorrer aos procedimentos de projeto; • recorrer ao trabalho com problemas abertos e com si- tuações problemáticas; • desenvolver as competências e a transferência de co- nhecimentos e educar para a cidadania. Formação de professores A formação de professores precisa partir da análise das práticas reais e de suas evoluções, devendo encontrar objetos de saber que sejam ao mesmo tempo teóricos e práticos. Essa perspectiva precisa ser assumida desde a formação inicial, levando-se em conta: • A capacidade de descrever as práticas e selecionar os conhecimentos que ensejam o “o que” dessas práti- cas. • A consciência dos sentidos dos objetos de ensino para compartilhar com os alunos os sentidos de sua aprendizagem. • A imersão na prática e a criação de boas situações- problema, que justifi quem a busca de conhecimen- tos teóricos para a melhor compreensão da situação de ensino-aprendizagem. Já sabemos que de nada adiantam as formações pon- tuais ou compactas. Colaborações de longo prazo são es- senciais para que os professores possam avançar. Nesse sentido, é necessária uma profunda revisão do aproveita- mento do horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC) como possível espaço para a formação continuada. A formação precisa dosar as exigências que faz aos professores, e uma das formas de fazê-lo é o trabalho em equipe: o estudo, a análise das situações complexas que os professores encontram, a observação mútua e a aná- lise coletiva dos dados dos alunos indicam as difi culda- des a serem enfrentadas conjuntamente. Para que a escola aprenda, é fundamental que os pro- fessores sejam conscientes de suas competências e fra- gilidades, por meio da investigação sistemática sobre o próprio trabalho. É urgente envolver ativamente os professores em seu crescimento profi ssional, para reinventarem a escola e se reinventarem como pessoas e como profi ssionais. Embora os sistemas de avaliação praticados no país encontrem grande resistência dos educadores, vale lem- brar que mensuram índices de aprendizagem, dando a ver uma situação que está muito aquém do aceitável. Pode-se explicar a resistência pela falta de uma cultu- ra de avaliação, pela incompreensão do tipo de resulta- dos que ela pode oferecer, pela desarticulação das ava- liações com o resto do sistema escolar, pela falta de cla- É urgente envolver ativamente os professores em seu crescimento profi ssional, para reinventarem a escola e se reinventarem como pessoas e como profi ssionais. 44 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 reza sobre suas metas e seus motivos e pela defi ciência da divulgação de resultados. As avaliações nacionais podem ter um papel relevan- te na melhoria da qualidade da educação, mas é preciso mudar os modos de se divulgarem seus resultados, uma vez que as informações sobre os resultados dos alunos não chegam de modo oportuno e acessível aos interes- sados: pais, alunos, professores e, mesmo, aos formu- ladores de políticas. É preciso dedicar atenção especial às escolas com os mais baixos índices de desempenho, apoiando-as na condução de alternativas próprias para o enfrentamento de seus problemas . A disseminação ampla de informações sobre o desem- penho das escolas pode criar um poderoso instrumento de participação para a população e levar as comunidades a reivindicarem providências de prefeitos, gestores e profes- sores. É uma possibilidade real para o controle social. As escolas e seus atores precisam ter mais consciên- cia de seu papel de prestadores de serviços à socieda- de , pois atuam numa instituição pública, que é mantida pela sociedade e a ela precisam prestar contas. Majoritariamente, os alunos da escola pública são pobres ou muito pobres. Retoma-se aqui um grave limi- te: os educadores não têm experiência para atuar em contextos de pobreza e não são formados para envol- ver e agregar valor à participação de famílias e comuni- dades pobres. A importância do gestor escolar Os gestores escolares precisam liderar um processo permanente de planejamento participativo na escola, em que professores, funcionários, alunos e pais discu- tam em conjunto: • o ambiente educativo da escola: as relações colabo- rativas que devem ser estabelecidas entre os profes- sores para a discussão de valores éticos e regras de convivência a serem trabalhados com os alunos; • o ambiente físico da escola: análise da situação dos espaços, com biblioteca, sala de multimídia, sala de informática, laboratório de ciências físicas e biológi- cas. Estão equipados adequadamente? Estão sendo usados de maneira efi caz para a aprendizagem? especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 45 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Aequipe responsável pela pesquisa que resultou neste texto agradece a contribuição dos educado- res, pais e alunos de escolas públicas dos municípios de Bebedouro, São Bernardo do Campo e São Carlos que, gentilmente, forneceram informações imprescin- díveis à elaboração deste estudo. Também aos profes- sores de todo o país que, voluntariamente, responde- ram à enquete promovida pelo Educarede. A equipe faz extensivo seu agradecimento aos edu- cadores do Cenpec que participaram das leituras críticas: Adriano Vieira, Anna H. de Almeida Pires Altenfelder Silva, Antônio Aparecido Primo, Carola Arregui, Isa Guará, Ivone do Canto Almeida, Lenir Morgado da Silva, Liliane Petris, Luiza Esmeralda Faustinoni, Luzia Sueli Bernardi, Maria Estela Ber- gamin, Maria Isabel Iorio Soncin, Maria José Regi- nato Ribeiro, Maria Júlia Azevedo, Maria Terezinha Teles Guerra, Silas Martins Junqueira, Sônia Madi, Sônia de Oliveira Nudelmam, Sônia Silva, Vanda Noventa Fonseca e Zoraide Faustinoni da Silva. Agradecimento especial aos consultores que, em diversos momentos, debateram conosco as análi- ses produzidas: Bernadete Gatti, Maria Helena Gui- marães, Guiomar Namo de Mello e Sofi a Lerche. • a prática pedagógica adotada na escola: articulação constante entre ensino e avaliação; • a própria participação dos pais e de todos os agen- tes da sociedade na perspectiva da aprendizagem: nossas crianças estão aprendendo na escola? O que estão aprendendo? Essas respostas a escola deve à sociedade. Entende-se, em síntese, que, na essência de um pro- pósito emancipatório, está a participação pró-ativa da população-alvo. Na lógica dos direitos, o fundamento da ação é o próprio direito. Nesse sentido, acentuam-se estratégias voltadas para a aprendizagem dos alunos e o fortalecimento do vínculo escola-comunidade no cum- primento pleno da função educativa. Referências ALUNO repete dois anos, em média, de 1a a 8a . Folha de S.Paulo, São Paulo, 13 abr. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2006. 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Trad. de Claudia Schilling, Porto Alegre: Artmed, 1998. 4 Educação na segunda etapa do ensino fundamental 2 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 3 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Editorial N Um ciclo pouco estudado Em alguns deles, podemos perceber que, quando a realidade impõe um limite, dele mesmo brotam as expe- riências mais inovadoras, como aquelas que interligam a escola a outros programas locais, numa teia de apren- dizagens que alavanca a inclusão social. A universalização do acesso ao ensino fundamen- tal está praticamente atingida. Em relação aos indica- dores de qualidade e eqüidade, ainda estamos distan- tes dos padrões desejados e necessários ao desenvol- vimento nacional. Cada vez mais, um maior número de crianças e ado- lescentes pobres tem acesso à escola; porém, eles es- tão aprendendo menos e nem sempre conseguem termi- nar os estudos básicos. Agora é a qualidade da educação em nosso País que assume um sentido de urgência democrática, pois pre- cisamos de uma escola de boa qualidade para todos, apoiada numa política educacional compromissada e abrangente, que diminua as desigualdades regionais na educação. Socializamos neste caderno diversas refl exões refe- rentes ao segundo ciclo do ensino fundamental, pois há uma enorme demanda por dar lhe vez e voz na agenda de prioridades da educação básica. Esperamos contribuir para que educadores e secreta- rias de educação que atuam no Ciclo II do Ensino Funda- mental se sintam estimulados a inovar, garantindo uma educação de qualidade para todos. Maria Alice Setubal Diretora Presidente do Cenpec esta edição queremos ilu- minar um ciclo esquecido: a segunda etapa do ensi- no fundamental, 5a a 8a séries (ou 6a a 9a), freqüenta- da por mais de 15 milhões de alunos brasileiros. Para isso, o Cenpec realizou um cuidadoso estudo em nível nacional para conhecer melhor essa problemática, re- fl etir sobre ela e apontar caminhos para resolver alguns problemas. Para além de um decálogo de faltas e fragilidades, o estudo realizado pelo Cenpec dialoga com as comple- xas características do Ciclo II, que guarda algumas ca- racterísticas: • Ensino organizado num conjunto de disciplinas mi- nistradas por professores especialistas que partem da suposição de que o aluno já tenha se alfabetizado e ad- quirido trânsito mais competente na leitura e escrita, as- sim como maior autonomia para aquisição de novos co- nhecimentos e competências. • Ensino direcionado a pré-adolescentes e adoles- centes. • Ensino majoritariamente gerido pela esfera de go- verno estadual, enquanto o primeiro ciclo já se encon- tra municipalizado. Percorrendo o território de 5a a 8a séries, dois foram os eixos escolhidos pelo olhar dos pesquisadores: • a função social da escola e o papel da leitura; • a produção textual nas diferentes disciplinas. Na busca de ampliar o debate, convidamos vários es- pecialistas para adensar a temática central deste cader- no. Assim, da fragilidade da autoridade docente à indis- ciplina dos alunos até as experiências positivas de uni- versalização com melhoria da aprendizagem – caso do Acre e de Goiás –, vários retratos são apresentados. 4 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Sumário editorial Um ciclo pouco estudado Maria Alice Setubal 3 especial: estudo cenpec Educação na segunda etapa do ensino fundamental Um momento signifi cativo da vida escolar 7 1. Retratos do ciclo II do ensino fundamental 8 2. Uma complexa situação de ruptura 10 3. Os dados e suas revelações 18 4. Aprender a ler, a escrever, a estudar. Aprender a aprender. 28 5. Caminhos e alternativas 38 Maria Amabile Mansutti, Maria Cristina Zelmanovits, Maria do Carmo Brant de Carvalho, Verónica Guridi. entrevista A escola na berlinda Julio Groppa Aquino analisa a conjuntura educacional brasileira 47 relato de prática Leitura e escrita: ainda um desafi o. Maria Estela Bergamin 58 relato de prática pedagógica Projeto Gente Nova: matemática, poesia, leitura e geometria, para viver as diferenças . Ana Paula de Oliveira 66 artigo O que deve ser feito para melhorar as escolas paulistas? Norman Gall 69 artigo A importância das relações humanas na escola Maria Malta Campos 77 refl exão sobre a prática Como dar signifi cado social e científi co ao cotidiano do aluno Maria Aparecida Perez 82 artigo Leitura e produção de texto no ensino fundamental Zoraide Faustinoni 87 5 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 artigo Refl exões sobre a formação de professores para o ensino fundamental 95 Sheila Roberti Pereira da Silva relato de prática Reorientação Curricular em Goiás: um processo participativo. Maria José Reginato Ribeiro e Meyri Venci Chieffi 100 artigo Seriam eles indomáveis protagonistas? Yara Sayão 105 relato de prática Roda, Rede: prevenção, letramento e inclusão social. Cristina Fernandes de Souza 110 relato de prática Nas escolas rurais de Acrelândia, garantia de acesso à segunda etapa. 115 Elisabete da Assunção José e Vanda Noventa Fonseca mosaico 118 6 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 educação na segunda etapa do ensino fundamental especial: estudo cenpec 7 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Conhecer em detalhes para apontar caminhos seguros busca pela educação de qualidade tem sido alvo das ações sociais da Volkswagen do Brasil desde sua instalação no país, há mais de 50 anos. A maior expressão desse valor é representada pela Fundação Volkswagen, a qual, des- de 1979, cumpre com a missão de promover e realizar ações que contribuam para a melhoria da qualidade da educação pública de crianças e adolescentes. Sabemos que muito se tem feito pela educação pública em nosso país, que, além do poder público, conta com ações promovidas pelas organizações da sociedade civil e com o investimento do setor priva- do. De maneira geral, o foco das atenções é voltado à educação de base, já que esta é responsável pelos anos iniciais da formação de um cidadão. Entretanto, o encerramento desta fase tão importante, o II Ciclo do Ensino Fundamental (6o ao 9o ano) é indicado, por pes- quisas e testes nacionais, como o momento em que é evidenciado o fracasso escolar, uma vez que a maioria das escolas não consegue apresentar resultados nos ganhos de aprendizagem dos alunos. As razões pela quais nos deparamos ano a ano com os drásticos índices desse cenário motivaram-nos a realizar a pesquisa “Retratos do Ensino Fundamental: 6o ao 9o ano”, em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), apresentada nessa revista. O estudo teve o objetivo de compreender e refl etir sobre as condições em que se desenvolvem o ensino e a aprendizagem no Ciclo II do Ensino Fundamental e oferecer subsídios para uma discussão mais profunda sobre os problemas e difi culdades enfrentados nessa fase. Esperamos que esta pesquisa seja uma ferramenta efi caz para ampliarmos as perspectivas de atuação dos educadores em prol da formação dos alunos do 6o ao 9o ano e que, em um futuro próximo, os testes nacio- nais contabilizem índices positivos na formação dos novos cidadãos brasileiros. Eduardo de A. Barros Diretor Superintendente da Fundação Volkswagen Um momento signifi cativo da vida escolar A 8 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 MARIA AMABILE MANSUTTI MARIA CRISTINA ZELMANOVITS MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO VERÓNICA GURIDI* * Maria Amabile Mansutti é professora especialista, autora de diversas publicacões sobre o ensino de Matemática e assessora de coordenação do Cenpec; Maria Cristina S. Zelmanovits é pedagoga, assessora da coor- denação do Cenpec e já assessorou vários projetos de literatura e artes em escolas, museus e outras instituições; Maria do Carmo Brant de Carvalho é doutora em Serviço Social e coordenadora geral do Cenpec; Verónica Guridi é licenciada em Matemática, mestra em Educa- ção e pesquisadora do Cenpec. Retratos do ciclo II do ensino fundamental Este texto apresenta um estudo realizado em 2005 e 2006, pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educa- ção, Cultura e Ação Comunitária – Cenpec, com o apoio da Fundação Volkswagen, antes da ampliação do ensi- no fundamental para nove anos. Procura conhecer e compreender as condições em que se desenvolvem o ensino e a aprendizagem na se- gunda etapa do ensino fundamental – 5a a 8a série – e, a partir de suas conclusões, propõe uma série de reco- mendações.1 Inicialmente, foram estudadas três escolas públicas dos municípios paulistas de São Carlos, Bebedouro e São Bernardo do Campo.2 O trabalho, contudo, ampliou-se, incorporando a opinião de 560 professores do segundo ciclo que participaram de uma pesquisa no portal Edu- caRede: www.educarede.org.br. A possibilidade de fazer uma consulta de âmbito na- cional aos professores cadastrados no portal pareceu- nos uma boa forma de se adensarem as informações, tor- nando-as mais consistentes, sobretudo porque a adesão dos professores à pesquisa foi espontânea, conferindo signifi cado particular aos dados coletados. O trabalho com pré-adolescentes e adolescentes O ponto de partida deste estudo foi o Projeto Ler e Es- crever, desenvolvido pelo Cenpec em 23 escolas de muni- cípios da rede pública do Estado de São Paulo.3 No decor- rer desse projeto, fi zeram-se entrevistas abertas com pro- fessores e gestores, cujos resultados motivaram a equi- 1 9 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 pe do Cenpec a procurar o aprofundamento e a sistema- tização de informações sobre a segunda etapa. As pesquisas e ações de formação, empreendidas jun- to às escolas e aos agentes do segundo ciclo, sustentam a análise que ora apresentamos. Para compreender esse quadro e criar estratégias para suplantar o baixo desempenho escolar dos alunos, fo- mos buscar referências na política educacional brasileira e no comportamento societário contemporâneo, que dita fortemente o funcionamento de suas instituições. Foi a partir dessa base que voltamos nosso olhar para as com- plexas características desta etapa de 5a a 8a série: • ensino organizado num conjunto de disciplinas mi- nistradas por professores especialistas que partem do pressuposto de que o aluno já tenha se alfabeti- zado e adquirido trânsito mais competente na leitu- ra e escrita, assim como maior autonomia para aqui- sição de novos conhecimentos e competências; • ensino dirigido a pré-adolescentes e adolescentes; • ensino majoritariamente gerido pela esfera de gover- no estadual, ao passo que o primeiro ciclo já está mu- nicipalizado. Este estudo se enquadra nas abordagens qualitativas de pesquisa, enfatizando os signifi cados que os atores conferem às ações. O foco não é estabelecer relações causais entre variáveis, mas responder à questão: o que está acontecendo aqui? Por isso, a escolha da pesquisa qualitativa, a qual busca a compreensão, valoriza o contexto e considera os múltiplos aspectos presentes numa situação dada como natural.4 As informações foram obtidas por meio de fontes: a) primárias • entrevistas abertas com professores e gestores (20); • grupos focais com alunos (48) e familiares (30) das três escolas selecionadas; • questionário apresentado no Portal EducaRede, res- pondido voluntariamente por 568 professores que atuam no ensino fundamental de diversos estados; b) secundárias • dados nacionais sobre o ensino fundamental cole- tados junto ao Instituto Nacional de Pesquisa Edu- cacional (INEP), Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb); • trabalhos anteriores do Cenpec; • textos de especialistas na área (constantes da bibliografi a). Ao adentrar o território de 5a a 8a série, procuramos observar, sobretudo, a percepção dos atores a respeito da função social da escola e o papel da leitura e da pro- dução textual nas diferentes disciplinas. Entre estes dois eixos, situamos as práticas culturais, aqui compreendidas como o conjunto de conhecimentos que se criam e se preservam ou aprimoram por meio da comunicação e da cooperação entre indivíduos e insti- tuições em sociedade. As conclusões apresentadas retratam alguns aspectos importantes que infl uenciam e caracterizam a situação atual do ensino no ciclo II. Ainda que estas conclusões estejam subordinadas às condições e peculiaridades das escolas participantes, acreditamos que apontam proble- mas e difi culdades enfrentados, de modo geral, pelas es- colas públicas brasileiras que atuam nesse segmento. Socializamos este trabalho com o intuito de contribuir para as refl exões desenvolvidas por secretarias de educa- ção e educadores atuantes na segunda etapa do ensino fundamental e estimular a inovação, sempre necessária, à garantia de uma educação de qualidade para todos. Notas 1 Considerando que há diferenças na nomeação deste período do Ensino Fundamental nos municípios e estados brasileiros, em razão de diferentes alternativas de divisão em ciclos, nesta edição utilizaremos preferencial- mente o termo: segunda etapa do ensino fundamental, mas, igualmente, podemos referirmo-nos ao Ciclo II ou segundo ciclo, sempre em relação ao ensino fundamental de 5a a 8a série ou de 6o a 9o ano. 2 A escolha deveu-se ao fato de o Cenpec desenvolver ações de formação com professores da segunda etapa do ensino fundamental nesses municípios. 3 Esse projeto insere-se no Programa Território Escola, realizado em 66 muni- cípios, em parceria com a Fundação Volkswagen. 4 Segundo Marli André – em discussão realizada no Cenpec em 2005 – este tipo de pesquisa é mais bem identifi cado como “interpretativa”, pois o termo “qualitativo” às vezes é tomado como oposto de quantitativo. Assim, neste estudo, preferimos falar em pesquisa descritivo-interpretativa. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 10 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Uma complexa situação de ruptura Não é simples fazer a caracterização da situação da se- gunda etapa do ensino fundamental. Aqui, focalizaremos as questões relacionadas aos protagonistas do processo de ensino e aprendizagem e às condições políticas que o sustentam. Protagonistas: alunos e professores A passagem da 4a para a 5a série é tida como uma ex- periência peculiar e signifi ca ruptura entre dois ciclos da vida escolar. A 5a série, em particular, momento em que se concre- tiza essa ruptura, vem sendo apontada por professores como um dos maiores desafi os no ensino fundamental, quando se vivem cotidianamente grandes difi culdades, parcamente enfrentadas de fato. Entre outros, dois fatores concorrem para explicar essa situação: a passagem da etapa da infância para a adolescência e a nova organização escolar. Sobre o primeiro fator, pode-se afi rmar que, nas so- ciedades modernas, a passagem da infância para a ma- turidade ocupa um tempo maior e se desenvolve de for- ma menos clara, menos institucionalizada e ritualizada do que em sociedades tradicionais. Hoje, não dispomos de marcas para indicar os limites entre essas etapas. Até pouco tempo atrás, os diplomas conferidos pelo cumpri- mento dos ciclos da escolarização eram tomados pela so- ciedade como símbolos de passagem e sinalizavam uma certa mudança de status. Hoje, essas marcas estão dilu- ídas, e não se sabe quando termina a infância e quando começa a adolescência. Embora haja diferentes interpretações, a visão pre- dominante tende a considerar a adolescência uma fase que antecede a vida social plena. É também reconheci- da como um período de mudanças físicas, emocionais e intelectuais, atravessadas por contextos culturais que ensejam diversas expressões do “ser adolescente”. A adolescência se revela menos como período de transi- 2 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 11 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 ção entre a infância e a vida adulta e mais como um pro- cesso de construção sociocultural. Do ponto de vista dos adolescentes, a vida é o tempo presente. Conquistas de novas competências e maior li- berdade na vida pública ampliam sua visão de mundo e provocam fascínio por esse momento. Signifi cativas mu- danças no desenvolvimento físico, emocional e psicoló- gico repercutem fortemente no comportamento e trazem expectativas relacionadas à afetividade, à sexualidade, à necessidade de liberdade. A intensidade dessas descobertas leva a uma extrema valorização do convívio entre pares, fazendo com que a sociabilidade ocupe posição central na vivência do ado- lescente. Grupos de amigos são espaços importantíssi- mos na busca de respostas para suas questões. As peculiaridades desse momento de vida têm sido ig- noradas ou mesmo combatidas pela sociedade e suas ins- tituições, que partem da idéia de que é preciso preparar os adolescentes para a vida adulta e pouco se pergun- tam sobre o que eles precisam viver agora, em termos de valores a serem privilegiados em sua formação. A escola, de certa forma, refl ete essa idéia e também acaba por considerar muito pouco as potencialidades dessa fase – grande capacidade de envolvimento/entre- ga, de questionamento/crítica e de refl exão, além do di- namismo e do entusiasmo. Por desconsiderar estas peculiaridades e potenciali- dades − ou por reduzi-las a seus aspectos negativos −, tanto a sociedade quanto a escola acabam perdendo a capacidade de diálogo com os adolescentes e não conse- guem promover, para a maioria, o tão almejado preparo consistente para a vida adulta. A passagem da primeira para a segunda etapa marca o início da convivência do aluno com uma organização institucional desconhecida: horário compartilhado por diversas matérias e professores, outros níveis de exigên- cia, diferentes expectativas quanto à conduta em sala de aula e à organização do trabalho escolar, novas rela- ções professor-aluno e diferentes abordagens de ensino e aprendizagem. Os aspectos positivos que essa organização escolar poderia favorecer − a diversidade de aprendizagens e a possibilidade de convívio com diferentes professores, por exemplo − acabam sendo pouco potencializados em ex- periências formativas para os alunos. Acentuando essa discrepância, a organização curricu- lar do ciclo II passa a se dividir em disciplinas distintas, abordadas isoladamente, por diferentes professores. O rompimento com a totalidade impede que se pro- jetem objetivos comuns, que se exercitem o diálogo e os pactos consensuais, e que os sujeitos se reconheçam como potenciais aliados em torno de uma causa. A frag- mentação evidenciada na vida escolar de certa forma se constitui no refl exo da fragmentação que acontece na so- ciedade, podendo causar desorientação social. De modo geral, os professores do ciclo II avaliam que os alunos vêm do ciclo anterior com um domínio de co- nhecimentos muito aquém do desejável. A falta de uma análise mais consistente de como acontecem o ensino e a aprendizagem no ciclo anterior muitas vezes leva a uma repetição de conteúdos ou à introdução de conteú- dos novos, sem vínculos com o que já foi estudado. Em conseqüência, os estudos começam a se confi gu- rar, para os alunos, como algo sem sentido, que foge de sua possibilidade de compreensão, com pouca utilida- de prática, o que acaba gerando representações e sen- timentos hostis em relação ao conhecimento. Se o aluno não reconhece o valor do conhecimento, que é seu principal elo com o professor, que importân- cia a escola pode ter para ele? Além disso, de modo ge- ral, os professores não são sufi cientemente preparados nas licenciaturas para o trabalho com pré-adolescen- tes e adolescentes. Esse fato compromete a capacidade formativa da escola, que não consegue contribuir para a construção da identidade e do projeto de vida de seus alunos. Como se sabe, esta construção é um processo particularmente crítico na segunda etapa. Singularidades e universalidades A percepção de diferentes modos de ser, possibilitada pelo aumento da autonomia, pela ampliação dos espa- ços de circulação pública e pelo desenvolvimento da ca- pacidade refl exiva, afeta a compreensão de mundo dos adolescentes. A intensa circulação de informações faz com que eles entrem em contato − e de alguma forma interajam − com dimensões locais e globais, mesclan- Se o aluno não reconhece o valor do conhecimento, que é seu principal elo com o professor, que importância a escola pode ter para ele? 12 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 do singularidades e universalidades, o que interfere di- retamente em seu processo de identifi cação e gera uma tensão permanente diante da questão: “Quem sou, por onde e para onde vou?”. Essa tensão se acentua nas séries fi nais do ciclo II, quando, para a maioria dos alunos, começa a se confi gu- rar a grande preocupação com a continuidade dos estu- dos e com o futuro profi ssional. Muitos já trabalham e têm responsabilidades econômicas com a família; para uma signifi cativa parcela desse grupo, o fi m da 8a série marca também o fi m da vida escolar. Os que pretendem conti- nuar os estudos terão que disputar uma vaga no ensino médio e, muitas vezes, conjugar trabalho e estudo. Para estes, o acesso à universidade é mais uma pro- messa do que possibilidade de concretização: hoje, no Brasil, apenas 10,4% dos jovens entre 18 e 24 anos es- tão na faculdade. (Estado de S. Paulo, 2006). Entre os jovens de 15 a 17 anos, apenas 46,4% encontram-se no Ensino Médio.1 Para ajudar na construção da identidade do adoles- cente, é preciso entender quais esferas da vida são sig- nifi cativas para ele. Nesse sentido, o campo de escolhas que se lhe apresenta são as experiências socioculturais locais e globais; a identidade vivida mais como ação do que como situação amplia a esfera de liberdade pessoal e o exercício da decisão. Quando a escola se afasta dessas questões e deixa de ser um espaço de referência para os alunos, sobretudo para os que vivem em situação de vulnerabilidade, ela perde sua função. Deixa de ser formativa, no sentido de ajudar os alunos a construírem um projeto de vida que não signifi que apenas um projeto para um futuro distan- te, mas um posicionamento, no presente, em relação a seu meio social, a sua realidade e aos recursos que en- contram para lidar com o cotidiano. O fazer diário dos professores não permite uma visão otimista sobre o ciclo II: profi ssionais nem sempre bem- sucedidos, solitários e desmotivados pela precária va- lorização profi ssional, trabalhando de modo repetitivo, muitas vezes alvos de críticas e acusações, incomodados com a falta de solução para muitas de suas difi culdades, embora se mostrem ávidos por mudanças, podem resis- tir quando se lhes apresentam idéias inovadoras. As condições físicas das escolas também merecem atenção. Dados do Edudata Brasil (INEP, 2005-b) mos- tram que as escolas não contam com uma infra- estrutura adequada para implementar suas aulas no ciclo II e para desenvolver metodologias variadas que ultrapassem as paredes da sala de aula. Metade das escolas de ciclo II não dispõe de biblio- teca (49,25%) ou de quadra de esportes (44,68%); mais de 75% não têm laboratório de ciências; 70% não têm sala de TV/vídeo para uso dos alunos e professores, e apenas 36,29% contam com laboratório de informática. Isso signifi ca que, em muitas escolas, o único espaço de aprendizagem disponível é a sala de aula. O acesso à Internet é bastante restrito. Num mundo altamente informatizado, onde a Internet é uma impor- tante fonte de conhecimentos, 60% das escolas de ci- clo II não têm acesso à rede. Esta situação comprome- te seriamente a inclusão digital dos alunos e difi culta a realização de pesquisas na escola, estratégia altamente valorizada pelos alunos e que poderia motivá-los para a aprendizagem dos conteúdos escolares. Além da falta de infra-estrutura, há as fragilidades na formação inicial dos docentes. A vocação bacharelesca e enciclopédica dos cursos de licenciatura não forma pro- fessores especialistas para atuarem no ciclo II do ensino fundamental, sem falar na deterioração causada pelas li- cenciaturas curtas e na precariedade dos estágios. A primeira etapa da construção de sua autonomia como aprendiz de professor terá de ser a problematização de sua própria formação básica. Ele vai ensinar o que QUADRO 1 – INFRA-ESTRUTURA DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE 5A A 8A SÉRIES BRASIL 2005 Condições físicas das escolas número percentual Escolas públicas de 5a a 8a série – 2005 46.700 100,00% Biblioteca 20. 845 44,63% Laboratório de informática 12.965 27,76% Laboratório de ciências 7.924 16,96% Quadra de esportes 23.272 49,83% Sala para tv e vídeo 14.252 30,51% TV, vídeo e antena parabólica 24.536 52,53% Computadores 30.183 64,63% Acesso à Internet 14.842 31,78% Abastecimento de água 46.645 99,88% Energia elétrica 45.374 97,16% Esgoto 45.708 97,87% Fonte: MEC/INEP, 2005 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 13 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 aprendeu no ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior. É, portanto, necessário que assuma o controle do que aprendeu e do que falta. (Mello, 2006).2 Geralmente, o refl exo dessa situação tem sido uma cultura escolar centrada no ensino vertical, no verbalis- mo e no conhecimento proveniente da autoridade do pro- fessor ou do livro didático. Monotonia, repetição e uma certa displicência relegaram a atividade educativa a um plano secundário, ao qual se dispensa tratamento for- mal para se atenderem exigências mínimas previstas e no qual os conteúdos e a disciplina na sala de aula têm sido as principais questões a enfrentar. Contexto educacional Nas últimas duas décadas, a política educacional brasi- leira visou prioritariamente à universalização do acesso ao ensino fundamental, em cumprimento à exigência es- tabelecida pela Constituição de 1988, que determinou a obrigatoriedade desse nível de ensino e o dever dos sis- temas públicos de assegurarem sua oferta. Nesse período, o crescimento das matrículas inten- sifi cou-se devido à prioridade da universalização e ao estabelecimento de parcerias entre as três esferas de governo. Assim, a taxa de escolarização da população de 7 a 14 anos avançou de 67%, em 1970, para 97% em 2003 (Castro, 2005). Avanço signifi cativo, em que pe- sem as profundas desigualdades regionais nas condi- ções de oferta e a imensa massa de brasileiros adultos que são analfabetos. Apesar da expansão do ensino fundamental, o sis- tema educacional brasileiro é afunilado, revelando que o país ainda não conseguiu oferecer à população o ple- no acesso a todos os níveis de ensino. Agravando o pro- blema, avaliações nacionais mostram elevadas taxas de repetência, abandono, distorção idade-série e baixo de- sempenho dos alunos. Quantitativamente, esses patamares nos aproximam da universalização do ensino fundamental, mas, segun- do os indicadores de qualidade e eqüidade, ainda esta- mos longe dos padrões desejados e necessários. Cada vez mais um maior número de crianças e adolescentes pobres tem acesso à escola, mas o que aprendem é insufi ciente e não dá garantia para o término do estudo básico. Os investimentos na educação estão aumentando, porém o gasto por aluno3 ainda é insufi ciente para ga- rantir a todos uma educação de qualidade. Outro fato a considerar é que, dado o alto índice de alunos que não chegam a completar o ensino fundamental, os recursos públicos direcionados para o ensino médio e superior acabam favorecendo os mais ricos. Posto que praticamente já atingimos a universaliza- ção, a qualidade da educação assume um sentido de ur- gência democrática. Lutar para melhorar a qualidade do ensino básico signifi ca mais qualidade para todos, por- tanto, uma nova qualidade em uma sociedade que co- loca a educação como direito de cidadania. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), recém-criado pelo MEC, mostra claramente as de- sigualdades regionais na educação e, sobretudo, atesta a baixa qualidade do ensino. O IDEB permite ao gestor públi- co um monitoramento mais assertivo das redes de ensino básico, assim como defi ne metas de melhoria progressiva da educação nos municípios. Numa escala de zero a 10, o IDEB 2005 aponta os índices de desenvolvimento da edu- cação básica por escola, município e estado. Até recentemente, a política pública nacional de edu- cação permaneceu praticamente estadualizada, sem uma clara regulação federativa de seu desempenho. A partir de 1996, com a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), asseguraram-se as condições fundamentais para um regime efetivo de cooperação entre estados e municípios, para a autonomia crescen- te dos sistemas de ensino, para o fi nanciamento do en- sino fundamental, para a autonomia das escolas e a for- mação dos professores. Foi, sem dúvida, expressiva a redefi nição do papel do Ministério da Educação, resgatando sua função de agên- cia formuladora e reguladora de políticas públicas. O Fun- do de Manutenção e Valorização do Ensino Fundamen- tal e de Valorização do Magistério (Fundef), também insti- tuído em 1996, e o Fundo de Desenvolvimento da Educa- ção Básica (Fundeb), em 2006, os Parâmetros Curricula- res Nacionais (PCN), de 1998, os Sistemas de Avaliação QUADRO 2 – TAXAS DE RENDIMENTO ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL 1999 A 2004 Indicador 1999 2000 2001 2003 2004 Aprovação 78,3% 77,3% 79,4% 79,6% 78,7% Reprovação 10,4% 10,7% 11,0% 12,1% 13,0% Abandono 11,3% 12,0% 9,6% 8,3% 8,3% Fonte: MEC/INEP, 2005 14 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 de Desempenho são condições de enorme importância para a regulação pública da educação nacional e tam- bém para sua viabilização. No entanto, ainda vigora no país uma descentraliza- ção truncada, com evidentes difi culdades de reconheci- mento e convivência entre sistemas de ensino autôno- mos (municipal, estadual e federal). Não há um projeto nacional claramente comprometido com a descentraliza- ção político-administrativa, como prescreve a LDB. Por outro lado, a simultaneidade de sistemas resul- ta em falta de organicidade, de racionalidade dos recur- sos e de coordenação, com grande prejuízo para os alu- nos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, coexistem um sistema estadual responsável por quase 70% da rede de ensino fundamental e um sistema municipal responsá- vel por 30,86%. Retoma-se hoje a importância da regulação nacional com maior compromisso coordenador das esferas estadual e municipal. As novas articulações entre global e local exi- gem, das esferas estadual e municipal, maior protagonismo e responsabilidade na condução da educação básica. Descuido refl exivo A mudança mais importante da última década foi o au- mento das matrículas de 5a a 8a série. Entre 1999 e 2005, as matrículas se mantiveram em torno dos 15 milhões de alunos4 (Quadro 3). Em relação a 1997, houve um aumen- to de 2 milhões de alunos nesse segmento. Quanto à reprovação, segundo dados no INEP, em 1997, o percentual de reprovados foi de 13%, caindo para 10,7% em 1999 e voltando a aumentar entre os anos de 2002 e 2005. Em 2002, o percentual de alunos reprovados alcan- çou 9,6% e, em 2005, chegou a quase 13%, o mesmo de 1991. Este dado é preocupante e indica que a cultura da reprovação parece resistir até mesmo à implementação de políticas como a progressão continuada. Embora o índice de distorção idade-série venha cain- do – o que é positivo – em 2004, o IBGE constatou uma média de 9,9 anos para a conclusão do ensino funda- mental (Folha de S.Paulo, 2006). Reprovação e evasão acarretam custos adicionais para o sistema de ensino e, além disso, há prejuízos para os pró- prios alunos, quando tentam entrar no mercado de trabalho sem a necessária qualifi cação. Contrariando o discurso da sociedade brasileira sobre o valor da educação como possibilidade de maior inclu- são social e inserção no mundo do trabalho, uma parte da população estudantil desiste da escola, desestimu- lada pelos baixos índices de desempenho, pela distân- cia entre seus objetivos e os da escola e por pressão dos fatores econômicos e sociais. Em 1997, o índice de alunos evadidos do ciclo II che- gou a 12%. Nos anos seguintes, caiu muito pouco e vem se mantendo constante, em torno de 10%.5 As políticas públicas de enfrentamento da evasão, algumas delas li- gadas ao combate ao trabalho infantil, parecem não ter sido sufi cientes para reverter esse quadro. De cada 100 crianças matriculadas na 1a série do en- sino fundamental, apenas 54 concluem a 8a série. Entre os jovens de 15 a 17 anos, apenas 44% cursam o ensino médio e, na zona rural, este índice cai para 22%.6 Nesse cenário, não há dúvida de que os mais penaliza- dos são os adolescentes e jovens dos setores populares − os que trilham um percurso escolar com interrupções e tam- bém os que acabam sendo excluídos da escola. Portanto, o que se coloca hoje para a escola é o seu compromisso com os grupos da população castigados pela pobreza. Para os que permanecem na escola, a qualidade dos estudos também é uma questão. Segundo resultados do SAEB 2003, confi rmados pelos dados da Prova Brasil 2005, aproximadamente um terço dos alunos do ciclo II estavam nos estágios “muito crítico” e “crítico” quanto às competências fundamentais em Língua Portuguesa, ou seja, eles não tinham as habilidades de leitura exigi- das do ensino fundamental. Embora freqüentassem a es- cola, eram alunos que, de certa forma, estavam numa si- tuação de exclusão. As avaliações nacionais indicam um grande número de alunos que está concluindo a 8asérie, mas tem nível de letramento abaixo do esperado – ape- nas 10% dos alunos brasileiros têm habilidades de leitu- ra compatíveis com a terminalidade do curso. QUADRO 3 – MATRÍCULAS NO ENSINO FUNDAMENTAL (CICLO II) Ano Matrícula total 1999 15.120.666 2000 15.506.442 2001 15.570.405 2002 15.769.975 2003 15.519.627 2004 15.238.306 2005 15.069.056 Fonte: MEC/INEP, 2005 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 15 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Alfabetismo funcional De toda a população brasileira, apenas 26%7 consegue ler e entender algo maior do que um texto curto e sim- ples. Em pleno século XXI, vivemos num país onde apro- ximadamente três quartos da população são funcional- mente analfabetos. No caso da matemática, as avaliações retratam uma situação ainda mais aguda: em 2003, chegou a 57,1% o índice de alunos nos estágios “crítico” e “muito crítico”, ou seja, que não conseguiam responder a comandos ope- racionais elementares, compatíveis com a 8a série. Apro- ximadamente 21% dos que chegam à 8a série têm ape- nas habilidades compatíveis com a 4a série, o que equi- vale a dizer que quase nada se acrescentou, a esses alu- nos, em quatro anos de estudo.8 Como se sabe, o objetivo primordial das avaliações de desempenho escolar é levantar dados para que os siste- mas públicos de ensino possam investir na melhoria da qualidade das escolas. Mas, apesar da implementação de políticas educacionais em âmbito nacional − como o Programa Nacional do Livro Didático, o Programa Nacio- nal de Biblioteca na Escola, a divulgação de Parâmetros e Referências Curriculares para o Ensino Fundamental e vários programas de formação de professores realizados por secretarias de educação −, o que se conclui é que es- sas políticas não chegam a infl uenciar de fato o desem- penho escolar no ciclo II. As estatísticas e os balanços periódicos que divul- gam, com certo alarde, o baixo desempenho dos alunos também não têm impulsionado a produção de novos co- nhecimentos, para sensibilizar a sociedade e as escolas a pensarem em propostas inovadoras que contribuam para resolver o problema. Mesmo entre teses dos cursos de Pedagogia e Psico- logia, embora exista uma signifi cativa produção sobre vários aspectos e elementos do ensino brasileiro, não é comum encontrarem-se pesquisas que tratem especifi - camente da segunda etapa. Ainda há poucas referências teóricas, estudos investi- gativos e orientações didáticas dedicadas ao ciclo II, so- bretudo quando se consideram os investimentos em es- tudos, pesquisas e formação de professores dirigidos ao ciclo I, à educação infantil ou à alfabetização. Este descaso para com a produção teórica acerca do segundo ciclo parece indicar não só a baixa prioridade dada a pesquisas e projetos inovadores nesse segmento, como também, sobretudo, um vazio de políticas públicas para produzir mudanças efetivas e necessárias. Condições societárias A escola pública é fi lha da modernidade e do estado re- publicano de massas. Nela se depositou a maior das es- peranças de emancipação do homem: liberdade de pen- sar, agir e ler o mundo. Nesse projeto, a educação tem importância crucial: é a única forma de imunizar o espírito humano contra as investidas do obscurantismo − mediação necessária para o alcance da autonomia. Hoje, diante dos dados da educação pública e do de- sempenho escolar, fala-se da escola como lugar do fra- casso e, ao mesmo tempo, como lugar em que a socie- dade deposita enormes expectativas. Para olhar com mais profundidade esta situação, é preciso levar em conta a complexidade da sociedade atual e suas mudanças: • avanços cumulativos da ciência e da tecnologia; • processos de globalização da produção e do consumo; • transformação produtiva, fi nanceirização da econo- mia, precarização das relações de trabalho, quebra da sociedade salarial; • sociedade altamente urbanizada, complexa, multifa- cetada, tecida pela velocidade das mudanças e, sobre- tudo, pelo maior acesso à informação e ao consumo; O descaso para com a produção teórica acerca do segundo ciclo parece indicar um vazio de políticas públicas para produzir mudanças efetivas e necessárias. QUADRO 4 – PORCENTUAL DE ESTUDANTES NOS ESTÁGIOS DE CONSTRU- ÇÃO DE COMPETÊNCIA LÍNGUA PORTUGUESA – 8A SÉRIE EF − BRASIL Estágio 2001 2003 Adequado 10,3% 9,3% Intermediário 64,8% 63,8% Crítico 20,1% 22% Muito crítico 4,9% 4,8% Total 100% 100% Fonte: SAEB, 2001-2003 16 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 • cidadão-consumidor mais exigente e cônscio de seus direitos; • presença constante de movimentos sociais, que as- sumem papel central não só nas mudanças de pa- drões socioculturais, como também na defi nição da agenda política dos Estados e das empresas; • organizações não-governamentais como expressão da nova sociedade civil, alargando a esfera pública e exigindo maior interlocução política com o Estado e as empresas; • revolução informacional em curso, transformando a mídia em espaço político preponderante; • nova qualidade de vida reivindicada por todos: longe- vidade, queda da mortalidade infantil, escolaridade; • fragilização política do Estado-nação; • distância aguda entre países ricos e pobres; • unilateralidade político-econômica, défi cits públicos crônicos, ajustes fi scais. O sistema público de ensino não é uma ilha. Está envolvido por esse contexto sociopolítico, que também o determina. A educação no mundo atual está cercada por um novo conjunto de expectativas. Não basta pro- duzir escolaridade, exige-se que a educação alavanque o crescimento e o desenvolvimento econômico; comba- ta a pobreza e as desigualdades sociais e produza co- esão social. Neste novo contexto, o Estado tem papel central na regulação e na garantia da prestação dos serviços de di- reito dos cidadãos. Não se compreende mais o Estado como agente único da ação pública. Espera-se que cum- pra sua missão de intelligentsia do fazer público e, em conseqüência, exerça papel indutor e articulador de es- forços governamentais e societários em torno de priori- dades da política pública. A política social no país impõe uma nova arquitetu- ra de atenção pública: • fundada na lógica da cidadania, que promova ações integradoras em torno do cidadão e do local como ei- xos de um desenvolvimento sustentável; • que promova ações integrais, pois o cidadão já não quer ser reconhecido como um somatório de neces- sidades e direitos; • que reconheça a necessária complementaridade en- tre serviços e atores sociais. O novo modo de pensar o arranjo e a gestão da po- lítica social derruba a força da setorialização das políti- cas ditas sociais e reforça a tendência de programas-rede que agregam diversos serviços, projetos, sujeitos e or- ganizações no âmbito do microterritório. Esta nova confi guração exige deslocamentos na con- dução da política de educação: • A centralidade no território passou a ser chave para se obter efetividade da política. É no microterritório que se pode operar uma articulação do conjunto das polí- ticas, retotalizar a política social e conformá-la às reais demandas e necessidades dos cidadãos. É o lugar do fortalecimento da coesão social, um dos objetivos no- bres da ação pública. • A educação deve ser concebida em sentido multidi- mensional. Políticas de cultura, assistência social, es- porte e meio ambiente adentram os espaços educa- cionais para produzir projetos e serviços socioeduca- tivos, oferecendo aprendizagens extra-escolares que complementam as escolares. • Crianças e adolescentes das novas gerações não apren- dem só por meios seqüenciais lineares, eles se envol- vem cada vez mais em processos difusos e descentra- dos, ditados por uma nova racionalidade cognitiva, de que fazem parte a experimentação e a circulação. As tecnologias de informação e comunicação exercem aqui forte sedução, pois se vive numa sociedade cres- centemente marcada pela idéia de conhecimentos e aprendizados compartilhados. • A busca da eqüidade − procuramos construir uma po- lítica social pautada na igualdade. As fraturas nesse processo estão claras para todos nós: a política edu- cacional não consegue garantir efetiva igualdade de oportunidades, nem tampouco contempla conteúdos socialmente signifi cativos, porque não se ajusta à di- nâmica de âmbitos sociais distintos. Resulta daí o hoje valorizado paradigma da eqüidade − oferta de múlti- plas e distintas oportunidades para assegurar eqüida- de, produzindo igualdade de resultados. • Metas de aprendizagem tornaram-se um valor na bus- ca da eqüidade. A produção do conhecimento científi co e tecnológico vem apresentando mudanças: “Em vez de uma inteligên- cia que separa o complexo do mundo em pedaços isolados, fraciona os problemas e unidimensionaliza o multidimen- sional, como afi rma Edgar Morin, precisamos de uma pers- pectiva que integre, organize e totalize” (Nogueira, 2001, p. 35). Boaventura Santos complementa: “Os objetos têm fron- teiras cada vez menos defi nidas, constituídas por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 17 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles” ( Santos, 2000, p. 73 ). O que se observa hoje é um professor lançado na es- cola e no ensino sem formação para enfrentar estas no- vas condições. Falta-lhe domínio didático, compreensão dos processos de aprendizagem e, até mesmo, apropria- ção dos objetos de conhecimento. A fragilidade da escola no exercício de sua função social nos remete à maior co- brança da Universidade na formação dos profi ssionais. Estes não estão sendo preparados para o agir educativo competente na vida contemporânea e em contextos de pobreza, não há refl exão e exploração pedagógica das relações entre escola e território e não há formação para reconhecer e atuar junto a outros espaços de aprendiza- gem existentes na comunidade. A grave situação que vem se apresentando na esco- la pública brasileira tem apontado para um círculo per- verso, constituído de imobilismo vocalizado e erosão silenciosa. O imobilismo vocalizado se manifesta no jogo de “empurra-empurra” dos diversos atores: “os alunos vêm do primeiro ciclo sem base”, “quanto mais o aluno pre- cisa, menos a família aparece na escola”, “a formação dos professores deixa a desejar”, “o poder público não resolve”, “os salários do professor são muito baixos”. Estas queixas têm-se incorporado na representação co- letiva como senso comum e, retroalimentando-se, ge- ram imobilismo. A erosão silenciosa se revela nas pouquíssimas mu- danças signifi cativas na organização e nas dinâmicas desse segmento de ensino, nos resultados apresenta- dos pelos alunos nos exames nacionais e no próprio absenteísmo constatado entre boa parte dos professo- res nas escolas. É bem verdade que, entre os fatores que geram indife- rença, conformismo e impotência, estão: a falta de uma política educacional traduzida não apenas em Parâme- tros Curriculares, como também em metas de aprendiza- gem; a falta de um comando gestor efetivo das esferas estadual e municipal; a falta de um projeto de carreira que valorize e redefi na a docência; e a falta de uma ava- liação de desempenho que represente um claro dispo- sitivo de monitoramento e entendimento da ação edu- cacional, resultando em guia de mudanças. Embora nos sistemas de ensino ainda se preservem valores do passado – normas e hábitos institucionaliza- dos –, o que acontece nas salas de aula e nos corredores, as relações interpessoais, com suas intimidades e seus confl itos, a multiplicidade das lógicas e das linguagens, ou seja, o dia-a-dia das escolas se impõe como momen- to privilegiado para a busca de alternativas e consensos nunca antes experimentados. A um observador não atento às diferenças ou às trincas, rupturas e buscas que se processam nesse cotidiano, o que aparece – e isso se observa na maioria dos relatos da pesquisa em educação – é uma espécie de unicidade técnica abstrata com uma rotina massacrante. Isso está posto também na realidade escolar. Porém sua apresentação como face única das salas de aula, pela descrição das atividades dos professores como apenas uma atividade instru- mental, de ensino de soluções e dicas, de algoritmos e técnicas, não deixa entrever a multiplicidade de ocorrências próprias dos cotidianos de pessoas em relação, no caso uma relação pedagó- gica, com determinadas intencionalidades, em ambientes culturais heterogêneos (Gatti, 2005). Notas 1 Dados extraídos do Projeto Juventude, 2004, p. 25-26, Secretaria Nacional da Juventude. 2 Guiomar Namo de Mello, em entrevista para Nova Letra, n. 3, ano 2006, publicação do CEDAC (Centro de Estudos e Documentação para a Ação Comunitária). 3 O gasto por aluno é calculado dividindo-se o total de recursos investidos anualmente pelo número de alunos matriculados na rede pública por ní- veis/modalidades de ensino. 4 Em 2002, houve 15.769.975 matrículas no ciclo II e, em 2005, 15.069.056. 5 Em 1999, o índice de reprovação foi de 10,4%; em 2002, de 9,8% e, fi nal- mente, em 2005, de 10% (fonte: INEP). 6 “É tão difícil copiar?”. Revista Época, edição 413, de 13/04/2006. São Paulo: Ed. Globo, 2006. 7 Os dados são do Instituto Paulo Montenegro (IPM), braço social do Grupo Ibope; estão no Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf, 2005) – Leitura e Escrita, pesquisa nacional realizada pelo Ibope Opinião. Referem-se à população brasileira na faixa de 15 a 64 anos de idade. Segundo o INAF, 30% estão no nível “rudimentar”, ou seja, conseguem ler títulos ou frases, localizando uma informação bem explícita. Quase 33% são da classe C e 64%, das classes D e E. Apenas 6% deles usam computadores, mas 52% dizem ler jornais e 48%, revistas. Outros 38% dos brasileiros estão no nível “básico” de alfabetismo. Estes conseguem ler um texto curto, localizando uma informação explícita ou que exija uma pequena inferência. As principais defi ciências estão concentradas, portanto, entre pessoas das classes C, D e E. 8 Segundo dados do Inaf 2002, o nível de alfabetismo matemático caracte- riza-se pelo êxito na leitura de números de uso freqüente, em contextos específi cos (preços, horários, números de telefone, relógio, fi ta métrica). Na pesquisa, 32% dos brasileiros de 14 a 65 anos estão nesse nível. No nível 2, os entrevistados dominam a leitura de números naturais em qualquer ordem de grandeza, comparam números decimais em contextos envolven- do dinheiro e resolvem problemas envolvendo operações usuais (adição, subtração e multiplicação). Nesse nível, estão 44% dos entrevistados. No nível 3, estão os que têm capacidade para adotar e controlar estratégias para resolver problemas que demandam várias operações. Esse grupo cumpre, sem difi culdade, tarefas envolvendo cálculo proporcional e demonstra fa- miliaridade com mapas, tabelas e gráfi cos. Nesse nível encontra-se apenas 21% da população brasileira entre 15 e 64 anos. 18 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Os dados e suas revelações Neste capítulo serão apresentados os dados empíricos coletados em nosso estudo sobre a educação na segun- da etapa do Ensino Fundamental, buscando destacar as fragilidades e as potências não perdidas, para uma aná- lise afi rmativa e algumas recomendações. Lembramos que nossas fontes foram: os grupos fo- cais que fi zemos nas três escolas selecionadas – de Be- bedouro, de São Carlos e de São Bernardo do Campo –, as entrevistas abertas com professores e gestores dessas escolas e os questionários respondidos voluntariamente através do Portal EducaRede. Cenário das informações Breve caracterização das escolas Escola de Bebedouro: A escola fi ca num bairro de po- pulação com baixa renda, com sérios problemas so- ciais, que não tem espaços e equipamentos coletivos de cultura e lazer para uso dos moradores. Hoje, a es- cola municipal já tem o ciclo II do ensino fundamental, o que representa novidade e crescimento; até 2003, o curso terminava no ciclo I. Muito organizada e limpa, com recantos e ambientes aconchegantes, arte nas pa- redes, causa uma impressão positiva desde a entrada. Essa escola tem um papel social importante no entor- no e é muito valorizada pela comunidade. Escola de São Carlos: A escola atende população de bai- xa renda e fi ca numa região periférica, que não oferece cultura e lazer para os habitantes. Integrada à rede es- tadual de ensino, tem três ou quatro salas de cada sé- rie, de 5a a 8a . Chama a atenção seu aspecto geral pou- co cuidado, com instalações mal conservadas e grades internas nos corredores. Pais e alunos se declararam in- comodados com o estado da escola. 3 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 19 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 QUADRO 5 - DADOS DAS ESCOLAS – 2006 Bebedouro São Carlos São Bernardo do Campo Níveis de ensino Educação infantil Ensino fundamental Educação de jovens e adultos Ensino fundamental Ensino médio Educação de jovens e adultos Ensino fundamental Ensino médio turnos 3 3 3 turmas 12 31 40 alunos 308 1.847 1.150 professores 26 85 80 Fonte: SEE/CENP, 2006 GRÁFICO 1 - PROFESSORES PESQUISADOS POR FAIXA ETÁRIA 45,00% 40,00% 35,00% 30,00% 25,00% 20,00% 15,00% 10,00% 5,00% 0% entre 21 e 30 anos entre 31 e 40 anos entre 41 e 50 anos entre 51 e 60 anos acima de 61 anos Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 300 250 200 150 100 50 0% menos de 5 anos - 114 entre 6 e 10 anos - 115 entre 11 e 20 anos - 242 mais de 21 anos GRÁFICO 2 - TEMPO DE ATUAÇÃO NO SEGUNDO CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL A maioria dá aula em várias séries e 28% deles são responsáveis por mais de uma disciplina; 177 são professores de Língua Portuguesa Tempo de atuação predominante: de 11 a 20 anos Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 Escola de São Bernardo do Campo: O bairro em que está a escola é bem urbanizado, residencial, com pa- drão de construção de boa qualidade, mas também ca- rece de espaços e equipamentos coletivos de cultura e lazer para uso dos moradores. Nos últimos anos, a es- cola passou por várias modifi cações e acaba de se es- tabilizar com ensino fundamental e médio completos sob uma mesma direção. Funciona nos três períodos, e apresenta boas condições gerais de manutenção e lim- peza de pátios externos, com arredores bem cuidados e árvores frutíferas recém-plantadas. Perfi l dos professores Dos 568 professores do ciclo II que responderam à enquete no Portal EducaRede, 345 (60,63% ) são do Es- tado de São Paulo. Função social da escola A função social da escola, em princípio, apóia-se no conjunto de expectativas colocadas em torno da educa- ção. Algumas dessas expectativas estão expressas em documentos da política nacional (LDB, PCN...), outras estão na voz da sociedade civil, das agências multila- terais, de ativistas e teóricos da educação. Os múltiplos interesses que acompanham essas ex- pectativas visam desde ao desenvolvimento humano e ao exercício da cidadania até a seu papel na redução da pobreza e no aumento da competitividade dos paí- ses em desenvolvimento. A função social da escola se espelha no conjunto dessas expectativas e se expressa como compromisso contextualizado, com a promoção da autonomia inte- 20 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% A - ir ao cinema/teatro/shows musicais B - ir a museus e exposições C - ir a centros culturais D - ler E - ir a bibliotecas públicas/livrarias F - fazer esportes G - ir a parques H - nenhuma das alternativas anteriores G H E F D C B A Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 GRÁFICO 4 - HÁBITOS DE LAZER DOS PROFESSORES 39% jornais, revistas 12% romances, crônicas e contos 2% livros de auto-ajuda 17% textos veiculados pela Internet 29% textos e estudos relacio- nados ao meu trabalho 1% nenhuma das alternativas anteriores Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 GRÁFICO 3 - TIPO DE LEITURA MAIS FREQÜENTE DOS PROFESSORES 70% 60% 50% 40% 3% 20% 10% 0% A - oferta de espaços de lazer e cultura B - oferta de serviços básicos (hospitais, postos de saúde, escolas etc.) C - questões de infra-estrutura (calçamento, saneamento, escoamento) D - questões de infra-estrutura urbana (melhoria de moradia, fachadas, áreas verdes) E - nenhuma das alternativas anteriores Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 A B C D E GRÁFICO 6 - O QUE MUDARIA NA COMUNIDADE ONDE A ESCOLA ESTÁ INSERIDA 50% 40% 30% 20% 10% 0% A 2,99% B 8,79% C 47,80% D 28,30% E 31,28% GRÁFICO 5 - VISÃO DOS PROFESSORES SOBRE A INTERAÇÃO DE SUA ESCOLA COM A COMUNIDADE A - nenhuma das alternativas anteriores B - não existe integração entre escola e comunidade C - embora escola e comunidade considerem importante se rela- cionar, ainda não foi conquistada uma forma interessante de se fazer isso com freqüência D - existe uma integração que vem evoluindo a cada ano E - existe integração por meio do programa Escola da Família, que promove abertura da escola nos fi ns de semana Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 21 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 GRÁFICO 7 - ESPAÇOS UTILIZADOS PELOS PROFESSORES ALÉM DA SALA DE AULA Biblioteca Quadra Sala de informática Laboratório Sala de vídeo Parques e praias Espaços de organi- zações comunitárias Centros Culturais Nenhuma das alter- nativas anteriores Centros Esportivos Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 lectual dos indivíduos pela via do aprendizado das fer- ramentas básicas de acesso ao mundo da cultura e do conhecimento. Os ditames sobre a função social da escola não são novos, e sua tarefa essencial continua sendo a de pro- mover o acesso ao conhecimento universal. O novo se traduz no modo e na condição de exercício dessa fun- ção, e é sobre isso que é preciso refl etir. Primeiro, essa função só se cumpre se o ensino e a aprendizagem são contextualizados, exigindo relação entre escola, território e comunidade. Outra exigência é que a escola esteja sintonizada e entrelaçada com todos os demais serviços do território, com vistas à proteção dos cidadãos e ao desenvolvimen- to desse território. Por isso, caminha para uma ação con- junta com os demais serviços públicos e comunitários. Já se avançou bastante ao se aliarem educação e pro- teção social no fazer educativo junto às crianças e ado- lescentes marcados pela pobreza: a merenda escolar, o Bolsa Família e o PETI (Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil) são exemplos dessa atuação articu- lada. Mas temos avançado pouco na ação conjunta com as demais políticas públicas, projetos da comunidade e na relação com as famílias. Escola e comunidade No exercício de sua função social, a escola precisa de um forte enraizamento na comunidade em que se inse- re, supondo reconhecimento mútuo e ação conjunta. A aprendizagem é mediada por relações densas com a co- munidade e, portanto, é fundamental esclarecer o que entendemos por forte enraizamento. • Conhecimento efetivo do universo de seus moradores – seus saberes, valores, potências e fragilidades. Aprendi- zagens contextualizadas dependem do estabelecimento de relações dialógicas entre os saberes de vida presentes na comunidade e os objetos de conhecimento universal, possibilitando a apropriação signifi cativa dos conteúdos que a escola tem a responsabilidade de ensinar. • Conhecimento dos serviços existentes na comunida- de – unidades, programas e agentes comunitários de saúde, bibliotecas, centros de cultura, centros de es- porte, serviços socioassistenciais. Não basta identifi - car os serviços públicos; é preciso conhecer as inicia- tivas da própria comunidade visando a processos de articulação e complementariedade. 22 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 • Reconhecimento de que as famílias dos alunos também são importantes mediadoras de conhecimento, mesmo que em condições precárias de escolaridade. Estabelecer a vinculação escola-comunidade signifi - ca trilhar um caminho de mão-dupla: comunidade aden- trando a escola e escola incluindo necessidades e sabe- res da comunidade local. Nos grupos focais e na enquete, constatou-se um es- forço das equipes das escolas no estreitamento da rela- ção com as comunidades. Ao mesmo tempo, observou- se que o conhecimento sobre as comunidades é limita- do e superfi cial. Este é um bairro residencial, não há espaços e instituições por aqui perto. (...) Tem um ginásio aqui, mas os alunos vão sozinhos. Essa comunidade caminha sozinha, ela “se auto-abastece”. É uma comunidade que está muito presente na escola. (...) Não há parce- rias. O que a gente costuma fazer é levar os alunos para passeios pela comunidade. Mas não há um trabalho sistemático. Coordenador pedagógico Os alunos falam que não têm dinheiro para ir nesses lugares. (...) A questão do isolamento aqui é forte. Às vezes é difícil logisticamente você arrumar um transporte para levar os alunos. Professor Ah... gente, eu vou atrás, escrevo, ligo, faço de tudo para conseguir parcerias. Nós temos muito contato com as instituições daqui e até com as universidades. Só que você tem que ir atrás, tem que fi car ligado, senão nada acontece. Eu brigo muito, no bom sentido, todo mundo aqui sabe, me conhece. Diretor Segundo os alunos ouvidos nos grupos focais, a es- cola é lugar de socialização. A questão que se coloca, no entanto, é que não há socialização densa sem circulação e vivências na comunidade/cidade. E isso lhes falta. A nossa escola tem uma característica muito assistencialista. Eu não vou conseguir mudar isso – por quê? É um dos bairros mais antigos da cidade, está dentro do distrito industrial, só que é muito pobre, o pessoal daqui não tem oportunidades. Eu lutei por um supletivo de 5a a 8a . Fiz o maior auê, mas infelizmente não fui atendida. Você vai ver que muitas das nossas crianças estão descalças. Eu ligo lá para uma loja de calçados e pergunto: vocês não têm aí tênis na ponta de estoque para me fornecer? E eu recebo. Então, tem essa marca assistencialista. Todas nós, aqui fazemos, Interesses e compromissos em relação à educação Os interesses disputados na sociedade presente podem ser assim sintetizados: • Como escolha pragmática – alternativa de redução da violência. Nossos fi lhos têm de receber uma educação diferente, que os ensine a compreender o mundo diferente (...) E as crianças dos países em desenvolvimento têm de receber uma educação diferente para não serem criadas para odiar. Essas não são questões fi losófi cas, teóricas. São questões pragmáticas, são o tema de hoje, para que os nossos fi lhos possam viver em paz. JAMES D. WOLFENSOHN, Presidente do Banco Mundial - Bird, jornal O Estado de S. Paulo, 17.03.2002. • Como estratégia de enfrentamento da concorrência mundial e desenvolvimento de capital humano. O investimento em educação é o ativo social de maior retorno. A cada ano adicional de estudo, a renda do trabalho aumenta, em média, 16%. Cada ano a mais na escolaridade média da população brasileira provoca um aumento de 0,35% no cresci- mento econômico per capita e uma redução de 0,26% na taxa anual de crescimento da população. MARCELO NERI, jornal Folha de S.Paulo, 20.12.2001, C-6. • Como compromisso ético e cívico. Que a educação tenha sua importância traduzida em ações capazes de alterar as condições sociais, oferecendo para todos os brasileiros uma chance de se tornarem pessoas que se orgu- lham de si mesmas, de suas capacidades, e que os habilitem a transitar e dialogar de modo competente sobre um novo projeto de sociedade que precisamos ter. CENPEC, 2004 • Conhecimento e articulação com as iniciativas e pro- jetos socioeducativos existentes na comunidade, de modo a facilitar o trânsito entre os vários espaços de aprendizagem, bem como a relação com os vários me- diadores de conhecimento ali presentes. • Co-autoria de projetos de interesse comum da comu- nidade e da escola. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 23 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Faixa etária Lazer Atividades Culturais 11 a 12 anos Conversar (meninas) Brincar: jogos de rua, soltar pipa Esporte, bicicleta Ver TV Dançar Ouvir música Ficar no computador jogando games Dormir Ofi cinas de texto, arte, dança (Projeto Semeando o Futuro) Grupo de adolescentes na igreja Ler Desenhar Jogar xadrez 14 a 15 anos Futebol Grafi tar Ver TV Ouvir música; tocar. Fofocar Jogando games e Orkut ou MSN com amigos Handebol, basquete, Baralho: truco Dormir Cursos de Computação Cursinho de encaminhamento para o merca- do de trabalho Música: aprender a tocar instrumentos Grupos de teatro Sair com amigos; ir ao cinema, ao shopping QUADRO 6 - A VIDA NA FAMÍLIA E NA COMUNIDADE: LAZER E ATIVIDADES CULTURAIS (ALUNOS) OBS.: Apenas uma menina, em cada grupo de alunos, menciona espontaneamente a leitura como atividade de lazer. Fonte: Enquete Cenpec/Educarede 2006 pliação do universo cultural dos alunos e 63,39% enten- dem que espaços de lazer e cultura na comunidade em que está a escola são mais necessários do que serviços básicos, apontados apenas por 28,15%. Os dados da enquete informam ainda que muitos pro- fessores circulam com seus alunos – usam espaços como bibliotecas (64,07%), salas de vídeo (67,05%) e salas de informática (46,52%) – mas poucas respostas indicaram centros esportivos (2,15%), quadras (11,09%) e laborató- rios (8,28%), espaços que são justamente de muito in- teresse dos alunos do ciclo II. Chama atenção o fato de 10,76% dos professores não fazerem qualquer menção a atividades fora do espaço escolar. É preciso considerar que a educação está imersa na cultura. A educação se coloca no social, em ambientes escolares e similares, organizada em torno de proces- sos de construção que conectam as pessoas com a cul- tura em que se inserem, com signifi cados que se fazem públicos e compartilhados, mas cujos sentidos se criam nas relações que medeiam seu modo de estar nos am- bientes e com as pessoas (Gatti, 2005). Escola e família Retoma-se aqui um limite já apontado antes: embora trabalhem muitas vezes em ambientes de privação, os sempre dá jeito. A gente parece que adota... claro que nós somos professores, mediadores do conhecimento, só que, acima de tudo, nós somos humanos também. Diretora Quanto à relação com a comunidade, na enquete EducaRede, 32% dos professores afi rmam participar de alguns eventos da comunidade onde está a escola. Per- centual semelhante afi rma não ter disponibilidade para qualquer envolvimento, embora reconheça a importân- cia da interação comunidade-escola. Constatou-se neste estudo que ainda são poucos os planos/projetos contínuos de relação escola e comuni- dade. A escola pouco vê/reconhece em seu entorno as potências, mesmo em situações graves de pobreza, e toma poucas iniciativas para compor parcerias com a própria comunidade. Nos grupos focais, revelou-se que os educadores não se percebem como sujeitos instituintes, e sim instituídos. Falta-lhes uma posição político-pedagógica mais fi rme em relação ao direito de aprender em contextos de po- breza, o que leva muitas vezes a posturas assistencia- listas e isolacionistas, mesmo quando se tem consciên- cia de que este não é o caminho. Perguntada sobre o que poderia ser melhorado na es- cola, a maioria dos professores (52,12%) indicou a am- 24 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 educadores não têm experiência para atuar nesses con- textos, não são capacitados para envolver e agregar va- lor à participação das famílias e tampouco a escola pa- rece desenvolver uma cultura de acolhimento dos pais que produza espontaneidade e confi ança. Assim, outro fator de isolamento da escola é sua relação com as fa- mílias dos alunos. Os pais vão à escola quando convocados pelos ges- tores ou pelos professores, fechando um círculo no qual a relação se estabelece a partir de problemas ou obriga- ções, e não de potencialidades ou de tarefas comuns que os envolvam. A própria palavra “convocação” sugere uma relação de poder hierarquizada, e não acolhimento. Lahire (1999) fala sobre o mito construído pelos pro- fessores a respeito da omissão parental. Ignorando as lógicas das confi gurações familiares, professores dedu- zem, a partir dos comportamentos e desempenhos esco- lares dos alunos, que os pais não se incomodam com os fi lhos. É preciso destacar uma certa injustiça interpretati- va que se comete quando se evoca uma omissão ou ne- gligência dos pais. “Omissão” ganha aí uma conotação moralizadora, pois remete a uma escolha deliberada dos pais que nem sempre corresponde à realidade. Os discursos sobre essa omissão se apóia no fato de que os pais não são “vistos” na escola, e essa invi- sibilidade é interpretada como indiferença pelos assun- tos escolares. Embora os pais nem sempre acompanhem seus fi - lhos como a escola ou o imaginário da sociedade gosta- riam, em suas falas nos grupos focais aparece fortemen- te a idéia de que é importante acompanhar suas tarefas escolares, ainda que nem sempre consigam dar o supor- te sufi ciente, seja por falta de tempo, seja por não domi- narem plenamente os conteúdos escolares. Enquanto eu viver, minha meta é ter os fi lhos na escola. O que eu mais faço é incentivar. Procuro sentar, olhar caderno, fazer a lição junto. Eu aprendi a tabuada depois de muitos anos de fazer junto com meu fi lho. Os alunos dos grupos focais reconhecem a preocupa- ção dos pais em acompanhar sua vida escolar: Minha mãe não deixa eu faltar. E eu também não gosto de faltar. A minha mãe se preocupa e quer que eu estude mais. Quando fi co um dia sem catar o caderno, ela [mãe] pega no meu pé. Os dados sugerem uma relação pais-escola mediada por estratégias de “prestação de contas” via reuniões. Essa estratégia é sem dúvida limitada para gerar parti- cipação – cria apenas canais de informação e de rela- ções superfi ciais, sem induzir confi ança ativa ou proje- tos compartilhados. Convocamos as famílias bimestralmente. Elaboro as pautas com os professores e a direção. Geralmente é para discutir as notas, faltas, relacionamento com os professores. Coordenador pedagógico A direção e a coordenação convocam bimestralmente ou quando necessário; as reuniões são sempre realizadas no período noturno. A pauta é organizada no HTPC e contém acolhimento, uma leitura e informes sobre o rendimento dos alunos, procurando destacar seus avanços. Coordenador pedagógico A escola ajuda os pais a partir do momento em que eles querem ser ajudados. Os pais têm que entender que a escola é de portas abertas para eles: se eles quiserem fazer uma visita, é só chegar e avisar na Secretaria. Coordenador pedagógico Analisando as falas de pais e educadores, vêem-se presença e modos de participação que devem ser com- preendidos não nas suas limitações, problemas ou difi - culdades, e sim como potência, pois os pais acreditam na escola. Se isso for reconhecido como potência, será possível construir interlocução, diálogo entre iguais na tarefa complementar de educar. A efetiva participação da família não tem sido reconhe- cida como um valor pela escola; prescinde-se dela porque há mesmo dúvidas entre os agentes escolares sobre a legiti- midade dessa participação. O ensino é percebido como fun- ção precípua dos educadores e, portanto, a participação das famílias nesse âmbito pode signifi car ingerência. De fato, é preciso entender melhor onde cabe essa participação, pois ela não é necessária para melhorar o desempenho escolar dos alunos, mas para a construção de um projeto educa- cional que tenha sentido para a comunidade. De modo geral, os educadores procuram introduzir os pais na escola, mas fazem-no de modo ambíguo: ao mesmo tempo que valorizam sua presença, também a interpretam, às vezes, como intromissão pedagógica, o que suscita sentimentos de “ataque/defesa”. Quan- do, por exemplo, os pais vão conversar sobre proble- mas de aprendizagem dos filhos e pedir explicações especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental sobre seu desempenho, é comum que se leiam estas fa- las como reclamações ou queixas em relação ao traba- lho desenvolvido. Assim, a relação escola-família é um campo ainda atravessado por mútuas incompreensões, por imaginá- rios construídos coletivamente que devem ser ressigni- fi cados. É preciso romper estereótipos e estabelecer ca- nais de comunicação mais efetiva e positiva entre am- bos, sobretudo no ciclo II, quando a formação dos ado- lescentes demanda uma atuação conjunta e articulada entre família e escola. Na enquete realizada pelo portal EducaRede, quase metade dos professores (47,86%) afi rmou que ainda não se conquistou uma efetiva relação família/escola, mas 31,46% responderam que uma possibilidade para essa integração tem sido alcançada através do Programa Es- cola da Família, realizado pelo governo do estado de São Paulo, ou de programas de mesmo gênero em ou- tros estados. Também na enquete, 83,94% dos professores acre- ditam que a família, por diferentes motivos, acaba atri- buindo à escola a responsabilidade pela educação dos alunos e 37,26% disseram que a família está distante da educação escolar. Para 44%, a escola busca se aproximar da família co- municando o trabalho que realiza por meio de, no mínimo, dois encontros anuais ou convidando com freqüência as fa- mílias para exposições de trabalhos dos alunos, apresen- tações teatrais, atividades desportivas etc. (40,56%). Crença na escola No discurso dos pais participantes dos grupos focais, a representação da função social da escola é permeada pela crença no potencial escolar de transformar a reali- dade de seus fi lhos: querem dar a eles a oportunidade que não tiveram, querem equipá-los para a vida. Os pais de um dos grupos focais atribuem à escola a função civilizadora das novas gerações e não se sen- tem capazes de cumprir essa função sozinhos. Avaliam a escola mais em seus aspectos disciplinares/compor- tamentais do que nos conteúdos de ensino. Embora afi r- mem que a escola é fonte de instrução e conhecimento, eles também esperam que ela dê referências de normas 26 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 de bom comportamento. Consideram a escola uma das únicas oportunidades de seus fi lhos adquirirem noções de civilidade e boa convivência. Os pais de outro grupo focal valorizam a escola, mas não chegam a vê-la como “salvação” ou único caminho para crianças e jovens ascenderem socialmente. Para esse grupo, a “falência da família” precedeu e, de cer- ta forma, gerou a “falência da escola”. Ao observarem, em maior ou menor grau, a fragilida- de das famílias quanto à sua função educativa, os pais aceitam a fragilidade da escola e se agarram a uma ex- pectativa mais pragmática e possível: preparação para o mundo do trabalho1 . Mando meu fi lho na escola porque eu quero que ele seja alguém na vida, que tenha mais oportunidades das que eu tive para conseguir um emprego melhor. Pai Os alunos reafi rmam essa posição, em suas falas nos grupos focais: Sem estudo, não se vai a lugar nenhum. Não se consegue nada. Não consegue emprego. Minha mãe disse que hoje os donos das empresas fi caram mais rigorosos ainda; antes, podia ser com ginásio, agora, tem que ter faculdade ou terceiro colegial. Essas expectativas se explicam pelo imaginário que envolve a pobreza – é uma compreensão calcada na vi- são tutelar de que os pobres só podem enfrentar a pri- vação com trabalho. O anseio dos pais de que a esco- la prepare para o trabalho não deixa de ser legítimo, uma vez que as pesquisas econômicas apontam que mais anos de escolaridade revertem em maior percen- tual de renda. Um ano adicional de escolaridade no Brasil signifi ca, na média, um aumento de 14% na renda do indivíduo. Eduardo Giannetti da Fonseca, O Estado de S. Paulo, 11.08.2006. Por outro lado, a análise conjuntural aponta uma sociedade com poucas oportunidades de trabalho ou com oportunidades para poucos – talvez para os que tenham maior escolaridade. Por isso, as demandas por escolaridade e qualifi cação aumentam. As condições socioculturais dos pais No Brasil, 58,3 % dos pais ou responsáveis têm ensino fundamental incompleto e 7,5% declaram-se analfabetos ou sem nenhuma escolaridade. Apenas 2,85% declararam-se com ensino universitário com- pleto (INEP, 2005). Outros dados sobre o perfi l das famílias, segun- do o INEP, mostram que 73% dos responsáveis pelo estudo dos fi lhos são as mães. Quanto às oportunidades de entretenimento cultural das famílias, ainda segundo o INEP, 84% declaram assistir à televisão todos os dias, 74% lêem raramente ou nunca jornais de circulação diária e 74% raramente ou nunca lêem livros. A utilização do computador é citada por 10% dos responsáveis entrevistados e o acesso à Internet, por apenas 6,9%. Os pais dos grupos focais relatam um tipo de vida familiar em que há pouco lazer e no qual as atividades culturais são muito raras, resumindo- se a alguns passeios. Algumas mães retomaram os estudos em cursos de EJA que funcionam nas escolas dos fi lhos, outras participam de atividades comunitárias promovidas por igrejas. Os lugares indicados como de maior freqüência no bairro ou na cidade em que moram os familiares são os templos de várias religiões, os postos de saúde, as associações de moradores e os centros comunitários. Muitos pais reclamam da falta de oportunidades de lazer. As festas freqüentadas pelas famílias são as quermesses, festas de padroeiros e festas juninas. Quando há oportunidade, participam de ativida- des nas escolas de samba e nos postos de saúde (prevenção a acidentes). Ou seja, usufruem ofertas lúdicas e culturais oferecidas pelas instituições comunitárias, já que a própria privação socioe- conômica não lhes permite usufruir as oferecidas pelo mercado. Mesmo assim, as atividades culturais acabam sendo ocasionais, pontuais. São palestras na es- cola com médicos dos postos de saúde, aulas de catequese na escola, empréstimo de instrumentos musicais da escola de samba para organização de fanfarra etc. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 27 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 O destaque na preparação do aluno para o mundo do trabalho expressa uma enorme redução da função social da escola. Concentram-se expectativas no estudo como possível alavanca da sobrevivência, perdendo-se seu sentido socializador pleno, partícipe da construção de identidades e de fortalecimento da coesão social. É preciso considerar que a ausência de um debate social amplo tem situado a discussão do problema escola/tra- balho apenas no interior da escola, quando, na realida- de, ela não é a responsável direta pela questão. Falta um olhar mais globalizado para o ser humano, propiciando aprendizagens que desenvolvam o humano (...) ajudar essa população mais carente e discriminada a ter ferramentas para a sobrevivência e a ter seu potencial humano mais desenvolvido e trabalhado. Coordenadora pedagógica Em contextos de pobreza e privação, a função so- cial da escola – construção de identidades e pertenci- mento, fortalecimento da coesão social e de padrões de conduta civilizatória, domínio de ferramentas para o acesso ao conhecimento (letramento2 ) e para a partici- pação na vida pública – parece subsumida numa apre- ensão pragmático-reducionista. Num país como o Brasil, grande parte da desigual- dade é causada por diferenças quanto a oportunida- des educacionais. Em nosso país, um jovem que nas- ce entre os 40% mais pobres tem probabilidade esta- tística zero de chegar ao ensino superior público, e 73% dos que têm acesso a esse nível de ensino pertencem aos 20% mais ricos da população (O Estado de S. Pau- lo, 11/08/2006). Assim, a sociedade brasileira condena os pobres a um horizonte restrito de oportunidades, caracterizando- se como estruturalmente injusta. Um olhar sobre a história da educação brasileira mostra o silêncio da sociedade no debate sobre as po- líticas educacionais e sua relação com a desigualdade e a pobreza. Escola e alunos Ao responder sobre a escola desejada, os alunos fa- lam em acolhimento e inclusão, que, sem dúvida, in- tegram outra função social da maior importância. Para eles, essas condições vêm acompanhadas de estética, limpeza e circulação, padrões de civilidade da socieda- de contemporânea. Os adolescentes aprendem na experimentação e na circulação em diversos espaços e territórios a que têm acesso e aprendem compelidos no e pelo apelo da so- ciedade da excelência cultural. Exigem uma socialização negociadora mais que disciplinar ou tutelar. Assim, a escola precisa compreender e explorar a nova racionalidade cognitiva dos nossos adolescentes, cuja velocidade pragmática não aceita processos seqüenciais, mas exige um aprendizado em espiral, agarrando de for- ma descentrada e difusa a totalidade das informações. Esta é, talvez, a maior lição a ser aprendida pelos educa- dores: a gestão do tempo e dos aprendizados. É fundamental se valer do modo cognitivo de apren- der dos adolescentes e oportunizar as atividades de ex- perimentação e circulação requeridas por eles. A escola ainda parece relegar essa dimensão estratégica. Hoje se afi rma a importância da articulação e do envolvimento em projetos-redes no território para facilitar o trânsito entre possibilidades variadas de busca de aprendizado. Notas 1 A pesquisa “A escola pública na opinião dos pais” (INEP, 2005-a) aponta duas expectativas dos pais que confi rmam essa constatação: pedem a generalização do ensino de informática e acesso a computadores e Internet para seus fi lhos e maior disseminação de informações sobre características das profi ssões e do mercado de trabalho. 2 De acordo com Street, um dos teóricos da área (citado por Soares, 1998, p. 75), letramento é um termo-síntese para resumir as práticas sociais de leitura e escrita e tem um signifi cado ideológico, do qual não pode ser separado. “Letramento tem a ver com as práticas sociais que integram a produção e a leitura de materiais escritos, valores, normas socioculturais subjacentes ao que é considerado um desempenho letrado numa dada situação” (Leal, 2003, p. 8). Um olhar sobre a história da educação brasileira mostra o silêncio da sociedade no debate sobre as políticas educacionais e sua relação com a desigualdade e a pobreza. 28 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 O que está por trás do ensino da leitura e da escrita, com- promisso primordial da escola com todas as gerações? Ou: por que temos insistido tanto na necessidade de criar condições para que todos os alunos dominem com propriedade a leitura e a escrita? Porque ler e escrever são modos que facultam ao pensamento se organizar, compreender, reelaborar e es- tabelecer relações. Ler e escrever são liberdades maio- res, possibilidades reais que as pessoas têm de encon- trar seus direitos, de acessar e inscrever suas histórias, de situar no mundo a si mesmas e aos demais. A leitura e a escrita promovem o desenvolvimen- to de uma série de capacidades cognitivas fundamen- tais − são o pano de fundo da aprendizagem dos con- teúdos, base para o avanço em qualquer área do co- nhecimento. Para além da ampliação da própria subjetividade, o domínio da leitura e da escrita permite tanto o desen- volvimento intelectual quanto uma inserção social mais qualifi cada, neste país em que a falta de acesso ao mun- do letrado é sem dúvida um poderoso fator de desigual- dade. Por isso, quanto menor for o grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos, tanto maior será a importância de se garantir esse aprendizado. A impossibilidade de participação no espaço social está ligada ao não-domínio da língua. Aprender a se co- municar pode favorecer a participação na vida social por meio do diálogo, espaço de encontros e desencontros, permeado por negociações, trocas de pontos de vista, acesso a novos conhecimentos. Este exercício de permanente interlocução articula defesa de idéias, a contraposição de argumentos, a ela- boração de perguntas e respostas, construção de reper- tório de assuntos, a organização de fi os narrativos. Embora caiba à família o ensino da fala de uso do- méstico (e isso tem sido feito, já que, ao atingir a ida- de escolar, os alunos têm competência lingüística ver- 4 Aprender a ler, a escrever, a estudar. Aprender a aprender. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 29 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Conceber o estudo como objeto de ensino é respon- sabilidade da escola. Quando se estuda, as diferentes práticas da linguagem aparecem tão intimamente rela- cionadas que separá-las resultaria arbitrário. Eu dei uma prova hoje. Estou trabalhando com a Revolução Russa, na 8a série. Em vez de fazer uma série de perguntas, eu pedi que eles escrevessem o que tinham aprendido sobre Revolução Russa – criar um texto explicando a Revolução Russa. Eles têm que saber explicar e não fi car respondendo a perguntas. Professora Ler, escrever, ouvir e falar são habilidades que apa- recem tanto nas atividades escolares quanto nas extra- escolares. O domínio dessas habilidades fundamen- tais permite expressar e compreender idéias, emoções, pensamentos e intenções, ou seja, possibilita uma re- lação consigo mesmo, com o outro e com o mundo que se traduz em uma existência mais digna, plena de sen- tidos e atuante. Os PCN2 difundiram a idéia de que o trabalho com le- tramento ultrapassa o simples domínio do código alfabé- tico e os limites das aulas de Português. Muitas escolas já conseguiram transpor, para sua prática esta idéia. Quando tenho oportunidade, venho para a biblioteca e leio um conto que conheço previamente. Tem um conto sobre um detetive que, a partir de uma série de pistas, descobre o assassino. E aí eu pergunto para eles [alunos]: “Isso que o assassino fez aqui tem a ver com raciocínio matemático?” A princípio, eles falam que não, mas eu pergunto: “Que tipo de raciocínio ele fez?” É um raciocínio dedutivo, próprio da Matemática. Eles gostam muito desse tipo de coisa. Professor 3 Ao explicitar para os alunos que as histórias de sus- pense e de detetives têm a ver com Matemática, o pro- fessor mostra uma lógica implícita no desvelamento das pistas que pode ser transferida para o pensamento mate- mático. As habilidades de leitura requeridas para a com- preensão dessas histórias guardam semelhanças com as necessárias à resolução de problemas. Incorporar todos os alunos à cultura escrita é fazer com que sejam membros plenos da comunidade de leito- res e escritores. Embora seja incontestável que a escola deva ensinar a ler e a escrever, o que se propõe atualmen- te é uma redefi nição do trabalho com leitura e escrita. E quais são as competências que os usuários da lín- bal), aprender a adequar a fala aos diferentes contex- tos de uso exige que se ponham em jogo outros inter- locutores e outros espaços de interlocução. Comunidade de leitores e escritores É preciso conhecer a cultura em que a escola está inserida para pensar num projeto voltado para essa comunidade. Isso inclui mapear os níveis e tipos de letramento dessa comunidade: as pessoas lêem o quê? Usam a leitura para quê?1 Fazer parte da cultura letrada signifi ca participar da comunidade de leitores e escritores. Saber manejar o in- tertexto social, em função do qual se interpreta a vida, propicia a construção de uma visão própria da realida- de, porque se pode ver o próprio mundo a partir do que se sabe sobre outros mundos. Nós fi zemos, ano passado, com a 7a série a primeira noite das resenhas literárias. Os alunos leram muitos livros, de vários autores, e se apresentaram no Teatro Municipal. Isso aguçou a curiosidade. Esse ano, a gente vai fazer com a 6a série, porque os alunos pediram. Diretora O desafi o para a escola está em construir uma cul- tura partilhada, em que a língua não seja vista só como um conteúdo instrumental, mas como um meio de in- serção cultural. No entanto, é muito comum que na escola os alunos tenham acesso somente ao livro didático e que as ati- vidades de ler e escrever se circunscrevam às aulas de Língua Portuguesa. Mais do que isso: freqüentemente essas atividades se apresentam de forma escolarizada, sem vínculo com as situações reais de uso. Eu trabalho os decimais com folhetos de supermercados que os alunos trazem. A gente brinca de supermercado, cada um faz sua compra, lendo no folheto, e depois faz as contas. Eu trabalho com esses textos que eles estão acostumados, porque às vezes olham na lousa e não entendem. Com esses folhetos, que fazem parte do dia-a-dia deles, eles têm bons resultados. Professora Criar condições para que os alunos aprendam a es- tudar e sejam cada vez mais capazes de fazê-lo com au- tonomia é uma das prioridades do ciclo II. 30 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 gua precisam construir e que a escola precisa garantir? Em linhas gerais: • Ler diferentes gêneros discursivos e recorrer a eles segundo propósitos distintos signifi ca conseguir ma- nejar o texto escrito, ou seja, transitar por ele e en- frentá-lo para buscar respostas para problemas que precisaramser resolvidos; encontrar uma informação específi ca, colecionar argumentos para defender ou se contrapor a uma idéia, conhecer outros modos de vida, divertir-se, ampliar o repertório literário, ma- ravilhar-se com as formas de se usar a linguagem para criar novos sentidos, conhecer autores signifi - cativos, conversar com outros leitores sobre as im- pressões, sensações e idéias provocadas pela lei- tura, recomendar ou não determinada leitura etc. • Escrever diferentes gêneros, e respeitar seus pro- pósitos, signifi ca conseguir comunicar, por escrito e para destinatários reais, idéias, fatos, pontos de vista, pedidos, reclamações, instruções, histórias, poesias, desejos etc. Além disso, deve-se levar em conta que cada situação comunicativa da escrita tem conteúdos específi cos e características textuais de- fi nidas, que precisam ser respeitados. • Comunicar-se oralmente respeitando as diferentes situações da expressão oral signifi ca adequar o con- teúdo da fala à situação de uso, ao interlocutor e ao gênero. Ao assumirmos, portanto, que à escola cabe a for- mação de usuários competentes da língua, deveríamos criar sentidos justamente ao produzir essas práticas, pois assim elas constituiriam representações compatí- veis com a cultura dos que as constroem. Eu não gosto de ler os textos que me dão aqui na escola. São pequenos, chatos, têm um monte de assunto nada a ver, tudo misturado. Eu gosto é de livro de verdade. Acabei de ler Estação Carandiru, do Dráuzio Varella, e depois vi o fi lme também. Aluno Além de artifi cializar os propósitos das práticas so- ciais de leitura, escrita e comunicação oral, a inevitável distribuição dos conteúdos no tempo pode levar a es- cola a fragmentar os objetos de ensino. Sabemos que resolver esses problemas não é tarefa simples. Por isso, a idéia a se perseguir é a do compartilha- mento (entre todos os sujeitos) de um importante pro- pósito educativo da escola – formar cidadãos da cultura escrita, verdadeiros usuários da leitura, capazes de ler e entender qualquer gênero e de se expressar oralmen- te e por escrito –, já que temos um compromisso com a inclusão social e, portanto, com a ruptura do abismo sociocultural existente em nosso país. Nesse sentido, também se deve ter, como meta, con- ciliar crescimento profi ssional com desenvolvimento pessoal no campo da leitura e da escrita. A construção do hábito de ler O repertório faz toda a diferença. Se o professor não lê jornais, revistas, livros de literatura com regularidade, isso difi culta o domínio dos gêneros que circulam nesses suportes. É essencial ser usuário freqüente da leitura e da escrita.2 As análises do SAEB informam que um grande núme- ro de alunos conclui a 8a série do ensino fundamental em nível de letramento abaixo do esperado, e que ape- nas 10% dos alunos brasileiros têm habilidades de lei- tura compatíveis com a terminalidade do curso. Essa situação é alarmante, já que muitos alunos, ainda que estejam freqüentando a escola, estão em si- tuação de exclusão, por não terem desenvolvido o do- mínio de ferramentas básicas para compreender e usu- fruir o mundo da cultura letrada e para ter acesso ao co- nhecimento das outras áreas. Em 2001, o SAEB investigou o efeito de variáveis in- tra e extra-escolares sobre o desempenho dos alunos. Quantidade de livros em casa, hábitos de leitura,4 fazer especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 31 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 lição de casa e gostar de estudar são fatores que estão associados positivamente ao rendimento escolar. O hábito da leitura é um elemento positivo ainda mais preciso do que apenas a posse do livro − pode acrescentar 13 pontos na média de desempenho dos alunos da 8a série em Matemática e, em Português, 10 pontos. Toda vez que eu começava a minha aula, eu lia um conto. Dali a pouco, os alunos começaram a pedir o livro. Professora Alunos de uma das escolas visitadas disseram que “a professora só passa texto, não fala nada. Não lê jun- to com a sala, só dá texto e depois dá visto...”. Ou seja, a leitura não tem signifi cado para eles, pois é tratada de forma burocrática, mera rotina escolar. As contribuições da didática ainda não foram as- similadas por muitos professores no cotidiano do “fa- zer” e, por isso, talvez o ensino de 5a a 8a ainda esteja baseado na “abordagem tradicional” (Mizukami, 1986, apud Dias-da-Silva, 1997, p. 25), o que não seria nega- tivo se ao menos levasse em conta os aspectos impor- tantes dessa abordagem – apresentação de grandes obras, de grandes autores. Ocorre que a prática dos professores de ciclo II pa- rece habitar um não-lugar, nem lá (ensino tradicional), nem cá (sociointeracionismo, construtivismo...). Com isso se quer dizer que, se as equipes docen- tes já deram um passo no sentido de saber o que deve ser feito, ainda precisam avançar no sentido de como fazer. Pontualmente, há situações que revelam avanços. Numa das escolas pesquisadas, estudantes das 5as sé- ries apreciam a leitura e dizem que a professora “leva os alunos ao cantinho da leitura e lê para eles”. As palavras dos alunos, colhidas nos grupos fo- cais, coincidem com as de vários autores5 que investi- garam as condições necessárias para se formarem lei- tores, o que permite refl etir sobre tudo o que os alu- nos podem aprender nas situações em que professo- res lêem para eles e nas situações em que são convida- dos a ler por conta própria,0 sem cobranças (por exem- plo, no canto da leitura). Isabel Solé destaca a impor- tância do fato de as atividades de leitura estarem con- textualizadas, ligadas aos interesses dos alunos e diri- gidas a um objetivo: Parece-me que uma atividade de leitura será motivadora para alguém se o conteúdo estiver ligado aos interesses da pessoa que tem que ler e, naturalmente, se a tarefa em si corresponde a um objetivo. Em uma classe, pode ser muito difícil contentar os interesses de todas as crianças com relação à leitura e fazê-los coincidir com os do professor, que supostamente interpreta as prescrições das propostas curriculares. Entretanto, todas as escolas contam com atividades de biblioteca ou de “leitura livre”, em que é possível que os interesses do leitor tenham primazia sobre outros parâmetros (Solé, 1998). Além de a leitura livre e sem cobranças poder ocupar lugar de honra na rotina escolar, outra modalidade, também apontada pelos alunos, precisa entrar em cena: a leitura que o professor faz para sua turma, já que “não devemos esquecer que o interesse também se cria, se suscita e se educa e que em diversas ocasiões ele depende do entusiasmo e da apresentação que o professor faz de uma determinada leitura e das possibilidades que seja capaz de explorar” (Solé, 1998). Investigações didáticas já mostraram que, mesmo quando o aluno sabe ler sozinho, é preciso que viva mo- mentos em que ouça/veja leituras feitas por leitores mais experientes, porque pode aprender, por exemplo: • dependendo do gênero textual, uma história, uma no- tícia da atualidade, um poema, um jogo, a forma de vida de um animal etc.; • que há diferentes grupos de textos: os que emitem opinião, os que usam palavras de outras línguas, os que rimam, os que apresentam transgressões (“cau- sos”), os que informam etc.; • que os textos aparecem em diferentes suportes: jor- nais, livros, enciclopédias, revistas etc.; • que os textos se organizam de maneiras diferentes; • que muitas vezes uma palavra desconhecida pode ser entendida pelo contexto e que só interrompemos a leitura para buscar seu signifi cado se ela for real- mente imprescindível à compreensão do texto; • que se lê por prazer; para compartilhar um texto com um auditório; para aprender a ler; para verifi car o que se compreendeu; para obter uma informação etc. Na enquete, há contradições na visão dos professo- res: enquanto 55,46% afi rmaram que “os alunos não gos- tam de ler e de escrever”, apenas 13,92% responderam que o mais importante no trabalho da escola é “garan- tir a aprendizagem da leitura e produção de texto para todos os alunos”. 32 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Mais ainda: 33,11% dos professores disseram que os alunos chegam ao ciclo II sem saber ler e 28, 6%, sem saber escrever. 59,44% disseram que, embora os alu- nos consigam ler, não entendem o que lêem e 71 % afi r- mam que, embora a maioria dos alunos consiga escre- ver, seus textos apresentam muitos problemas de con- teúdo, ortografi a, gramática e caligrafi a. Esses dados revelam sérios comprometimentos das práticas de ensino da leitura que ocorrem na escola. De- lia Lerner ilumina a questão: É possível ler na escola? Essa pergunta pode parecer estranha: por que colocar em dúvida a viabilidade da leitura em uma instituição cuja missão fundamental sempre foi precisamente a de ensinar a ler e escrever? Contudo, a “desnaturalização” que a leitura sofre na escola tem sido eviden- ciada de forma irrefutável. (...) por que a leitura – tão útil na vida real, para cumprir diversos propósitos – aparece na escola como uma atividade gratuita, cujo único objetivo é aprender a ler? (...) Por que usar textos específi cos para ensinar, diferentes dos que são lidos fora da escola? (...) A leitura aparece desvinculada dos propósitos que lhe dão sen- tido no uso social porque a construção do sentido não é considera- da uma condição necessária para a aprendizagem. A teoria ofi cial na escola parece considerar – diria Piaget – que o funcionamento cognitivo das crianças é totalmente diferente do funcionamento cognitivo dos adultos: enquanto que estes aprendem somente o que lhes é signifi cativo, as crianças poderiam aprender aquilo que lhes ensinam, independentemente de poder ou não atribuir-lhe sentido. (...) Quando o trabalho se realiza com uns poucos livros que, além disso, pertencem ao gênero texto escolar, bloqueia-se a possibili- dade de surgirem diferentes maneiras de ler (Lerner, 2002). Ao ler ou escutar uma leitura, tem-se a chance de construir sentidos para textos de diferentes gêneros, aprender como manejá-los e como transitar por eles. Este universo de aprendizagens que compõe a leitura só se torna possível quando se elege o texto como unidade mí- nima de sentido e quando se aproximam os propósitos da leitura feita na escola da leitura feita na vida. Os alunos dos grupos focais afi rmam que na escola lêem mais os livros didáticos, embora também façam re- ferências gerais a livros (sem nomear os gêneros), his- tórias em quadrinhos, reportagens, atlas e dicionários. Isso corrobora a informação de que alguns professores têm procurado incluir outros portadores textuais para de- senvolver a leitura. Na enquete EducaRede, as respostas ao item 21 (a res- peito do trabalho de leitura e produção de texto propos- to pelos professores) apontam para o problema do mo- dismo que reina na educação. Dos professores, 65,89% disseram propor leituras com diferentes propósitos e 24,01% revelaram trabalhar com textos de uso social, idéias essas amplamente divulgadas pela didática atu- al (os PCN, por exemplo). Duas questões se colocam aqui. A primeira é obser- var como as propostas têm sido encaminhadas em sala de aula (muitas vezes existe uma distância enorme en- tre saber o que deve ser feito e saber como fazer o que deve ser feito). A segunda pede o cruzamento de duas respostas – enquanto tantos professores disseram propor aos alu- nos leituras com diferentes propósitos, apenas 22,41%, ao responder à questão 22 (Quais leituras você faz com mais freqüência?), mostraram maior trânsito entre os gê- neros literários (romance, conto, crônica, poesia). A maior incidência de respostas a esse item (69,95%) refere-se à leitura de textos informativos (jornais e revis- tas) ou de estudo (54,50%). Mesmo entendendo a importância de apresentar di- versos tipos de texto aos alunos, a escola ainda precisa incorporar à rotina diferentes modalidades organizati- vas − leitura livre, retirada de livros da biblioteca, proje- tos mais voltados para um único gênero, atividades per- manentes usando vários gêneros, seqüências de ativi- dades e atividades ocasionais. Soma-se a esta, a necessidade de acolher refl exiva- mente as orientações didáticas, para romper com o re- ducionismo e com a simplifi cação dos objetos de conhe- cimento, que são, por natureza, complexos. Em algumas áreas do currículo, os alunos ouvidos nos grupos focais não se reconhecem como leitores. Em Matemática, por exemplo, muitos declararam que não costumam ler, o que mostra uma concepção de lei- tura freqüentemente desenvolvida na cultura escolar, que, em geral, não enfatiza o trabalho com a interpreta- ção de enunciados de problemas e que tem caracterís- ticas específi cas. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 33 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Considerando-se as pesquisas que hoje apontam exa- tamente para a difi culdade de interpretação dos enuncia- dos como uma das causas do fracasso em Matemática, vê-se a necessidade de se trabalhar mais profundamen- te esse gênero. Em Arte, os alunos reconhecem o trabalho com outras linguagens – música e artes visuais –, mas não que lêem ou produzem textos; assim, a área poderia privilegiar o tra- balho com textos teatrais, biografi as de artistas, matérias de jornal específi cas e leitura de imagens. São poucos os alunos que dizem ler nas aulas de Edu- cação Física, área do conhecimento que muito poderia ex- plorar os textos instrucionais (regras de jogos) ou jornalís- ticos (cadernos de esportes). Em História e Geografi a, menciona-se a leitura de dife- rentes gêneros textuais, embora eles não sejam especifi ca- dos. Assim como a Matemática, ambas as áreas poderiam explorar mais a leitura de gráfi cos, tabelas e esquemas. Língua Portuguesa é a área a que mais os alunos atri- buem aprendizagens da leitura, da escrita e da comuni- cação oral. Muitos consideram que a importância dessa disciplina está em ensinar a norma culta, a possibilidade de se comunicar bem, de falar e escrever bem. Há que se perguntar se, por trás disso, existe a idéia do ensino da língua mais centrado na gramática do que no letramento e na função social que ela assume no cotidiano. Quando perguntados sobre a leitura fora da escola, os alunos também fazem referência geral a livros, seguidos dos gibis, jornais, revistas e a Bíblia. Poucos têm material de leitura em casa e há os que declaram ler apenas o livro didático, mesmo em casa, pois gostam de ler, mas não têm acesso a outros materiais. Alguns fazem referência a livros ou revistas retirados da biblioteca da escola e livros didá- ticos e paradidáticos emprestados pelos professores. Boa parte dos alunos de 5a série ouvidos nos grupos focais aprecia a biblioteca escolar e diz retirar livros para ler em casa. Os alunos entre 11 e 12 anos também mencionam histórias em quadrinhos da Turma da Mônica e livros de poemas, contos de fadas, fábulas, terror, sus- pense, histórias sobre futebol, biografi as, livros sobre sexo e sobre drogas. Entre os alunos de 14 e 15 anos, citam-se revistas, novela, horóscopo, a revista Super Interessante, “tudo o que cair na mão”, histórias em qua- drinhos da Turma da Mônica e livros de romance, terror, aventura e poemas. A construção da capacidade de escrever Quanto à produção de textos na escola, os alunos dos grupos focais mencionaram mais a cópia, a escrita de breves respostas a perguntas formuladas pelo profes- sor e a de textos a que chamam “trabalho escolar”; não citam os gêneros, ou seja, não se vêem como autores. Chama a atenção a fala de um aluno da 5a série: “Agora minha escrita é bem boa porque a gente está tendo con- tato com mais textos”. Estas evoluções não são “naturais”, dependem do contato direto com textos escritos, das oportunidades que se oferecem aos alunos para que escrevam por con- ta própria, da observação de modelos escritores e das in- tervenções e atividades que os ajudem a pensar e a apri- morar suas formas de escrever. Escrever um texto não depende só da capacidade de fazê-lo ortografi camente correto, mas também do conhe- cimento sobre as formas e os usos da linguagem escri- ta, construindo-o a partir de parâmetros textuais que ad- vêm das leituras. Para que os alunos possam conhecer as diferentes formas e usos da língua, devem ser postos em situações signifi cativas de produção, escrevendo de próprio punho e/ou ditando um texto para outra pessoa e que terá destinatários reais. O professor pode ser a pessoa que escreve o que di- tam os alunos, que, assim, aprendem: • a organizar a seqüência dos fatos; • a reler de tempos em tempos o que já se escreveu, antes de continuar escrevendo; • a levar em conta palavras e expressões característi- cas do gênero em que se está escrevendo; • a considerar destinatários reais que não tiveram aces- so ao texto-fonte, o que cria a necessidade de a pro- dução fi car clara e coerente; • a revisar um texto buscando sinônimos para repeti- ções, corrigindo concordâncias, aprimorando modos de dizer etc. Ao ler ou escutar uma leitura, tem-se a chance de construir sentidos para textos de diferentes gêneros, aprender como manejá-los e como transitar por eles. 34 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 A construção de um texto é campo fértil para se tra- balharem todas as questões do português escrito, pois só dentro dos textos (ao contrário do que ocorre com pa- lavras e frases soltas) as regras, as normas e as conven- ções da língua ganham sentido. Quando consultados sobre a produção de textos fora da escola, o que os alunos mais mencionam são bilhe- tes e poemas. Todo mundo aqui é “escritor”. Até poema a gente escreve. Lá em casa, eu escrevi um poema de rima, até. Ficou legal. Uma vez, teve um concurso; escrevi um poema que concorreu. Eu escrevo poema de quatro linhas ou então poesia. Infelizmente, a Internet está ao alcance de muito pou- cos. A troca de e-mails poderia complementar esse prazer da escrita de bilhetes/mensagens. Além disso, hoje sabe- mos das inúmeras vantagens de se produzirem textos no computador – indicação de erros, ausência do problema da legibilidade da letra, organização (recortar-colar). Os gestores acham que a escrita é um problema de aprendizagem dos alunos na passagem do ciclo I para o ciclo II. Questionados sobre trabalhos realizados pela coordenação para desenvolver a produção textu- al dos alunos, falam em projetos de reforço e recupe- ração, o que talvez indique que o trabalho ainda não é entendido como atividade permanente do cotidiano da sala de aula. Uma das coordenadoras pedagógicas menciona um projeto de reforço em alfabetização, pois considera que os alunos chegam à 5a série com muitas difi culdades em escrita. Segundo ela, é preciso até retomar a cartilha, embora admita que os alunos já identifi quem as letras e escrevam palavras e frases. É preciso investigar as diferentes concepções que subjazem ao trabalho com produção textual na escola e aprofundar as discussões em torno das expectativas sobre os níveis de letramento ao longo do percurso es- colar, com ênfase na passagem para a 5a série, momen- to em que os alunos começam a lidar com a leitura e a escrita em oito disciplinas diferentes. Os professores de cada disciplina deveriam ser sen- sibilizados para se envolver num trabalho conjunto que gerasse avanços, por aproximações sucessivas, nos ní- veis de letramento, de modo que as intervenções peda- gógicas se fi zessem ao longo do processo e não se res- tringissem a sanar difi culdades. Respondendo às questões do Portal EducaRede, 28,15% dos professores consideram que os alunos che- gam ao ciclo II sem saber escrever, 69,21% indicam que, embora a maioria de seus alunos consiga escrever, seus textos apresentam muitos problemas de conteúdo, or- tografi a, gramática e caligrafi a. Apenas 21,69% dizem que, apesar de problemas or- tográfi cos e gramaticais, o conteúdo dos textos produzi- dos pelos alunos é de boa qualidade, o que indica uma ampliação do olhar didático. E apenas 12,75% acham que, ao escrever, os alunos usam recursos próprios dos gêneros textuais (expressões que lhes são característi- cas, estruturas, linguagem mais ou menos formal, de- pendendo do gênero), o que demonstra ainda uma frá- gil compreensão de que a leitura alimenta a escrita. Em suma, se é papel da escola garantir a todos os alunos a aprendizagem da leitura e da escrita, é preci- so buscar as formas como cada área do conhecimento pode contribuir para isso. Como concretizar uma proposta de leitura e escrita em todas as áreas, sem que cada uma perca sua espe- cifi cidade? Como a escola pode ampliar a construção de conhecimento no processo de letramento dos alu- nos? De quem é a responsabilidade de letrar os alunos de 5a a 8a série? Ensinar a ler e a produzir, nas diversas áreas do co- nhecimento, textos orais ou escritos que circulam em especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 35 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 e emancipação social, que toma forma e corpo na ação pedagógica. O letramento insere-se no âmbito das deci- sões curriculares tomadas pela comunidade escolar. A construção da capacidade de aprender Decidir na incerteza e agir na urgência: esta é uma maneira de caracterizar a especialização dos professores. Perrenoud, 2000. Para se aliar aos alunos e atender suas necessidades de aprendizagem, cumprindo o objetivo de democratiza- ção da educação, é preciso ter autonomia profi ssional. Se o professor tem um aluno que não sabe ler e escrever, ele não vai lhe ensinar gramática porque está no currícu- lo, vai ensiná-lo a ler e a escrever – e precisa saber tomar essa decisão rapidamente. Para gerar aprendizagens de fato, precisamos de pro- fessores que se mostrem conhecendo e não conhecedo- res. Os professores têm que se dar o direito de questio- nar, de reconhecer a importância da interação e da produ- ção conjunta com os alunos, com os demais professores, com os pais, com a comunidade, criando vínculos saudá- veis, produtivos e afetivos. Os profi ssionais do ensino precisam começar a incluir a dimensão didática que há na avaliação, isto é, identi- fi car as necessidades de aprendizagens. Não adianta di- zer coisas como: “Este aluno é tímido, não fala nada” ou “Este fala muito bem”; é preciso saber identifi car os indi- cadores que nos informam se o aluno sabe, se está bem ou não em relação aos conteúdos de comunicação oral que queremos que aprenda (o mesmo vale para leitura, escrita...). É preciso que os professores observem o que os alunos não conseguem fazer e que obstáculos os im- pedem de fazê-lo. A prática, ou mesmo a idéia de que o conhecimen- to é construção, ainda não chegou de uma forma efetiva no interior da escola. Assim, pode-se ter a exata noção do sofrimento de uma aula de História na qual os instru- mentos fundamentais são o giz e o quadro, e a habilida- de mais exigida é a memória. Os rituais da curiosidade estão ausentes.7 Duas questões nos interessam aprofundar aqui: • a recuperação dos rituais de curiosidade na sala de aula; • o papel da leitura e da produção de textos na apren- dizagem de todas as disciplinas. nossa sociedade é ensinar a ler e a produzir mapas, grá- fi cos, fórmulas matemáticas, representações do movi- mento humano, música, teatro, dança, desenho, es- culturas, fi lmes, fotografi as, pinturas, contos, fábulas, notícias, propagandas, poemas, enunciados de proble- mas, relatórios, relatos históricos etc. Tais conhecimen- tos são fundamentais para a formação da cidadania e a leitura do mundo. Acredita-se, portanto, que a responsabilidade de en- sinar a leitura e a produção de textos é da escola como um todo e, em particular, de todos os professores que atuam no ensino fundamental. O direito à leitura e à escrita O Projeto Leitura e Escrita: Desafi o de Todos visa cons- truir, com os educadores, uma prática de formação para garantir a todos os alunos o direito à aprendiza- gem da leitura e da escrita, dentro da qual está a alfa- betização. É importante envolver o conjunto dos professores, resgatando os fundamentos de cada disciplina e con- tribuindo para que crianças e jovens ampliem sua com- preensão do lugar onde vivem, bem como da realidade mais ampla, com vistas à sua transformação. O currículo do ensino fundamental é instrumento pri- vilegiado de construção de identidades, subjetividades 36 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Temos que nos reeducar, porque nós fomos educados de uma forma, nós viemos com certos limites, os alunos estão vindo com outros. Precisamos saber lidar com isso, saber lidar com o mundo deles, que é bem diferente. Eles têm informática e a gente estava naquele mundinho... às vezes, nós não sabemos de coisas que eles sabem. Eles vêm com informações que a gente não tem. Professora No mundo atual, com tantos recursos, que lugar têm ocupado, na escola, os fi lmes, o jornal, as músicas, as fo- tografi as, as visitas a determinados lugares, a Internet, as conversas com as pessoas? Em que as práticas de en- sino têm se pautado mais: na fala que repete os conteú- dos organizados pelos autores de livros didáticos ou em diferentes fontes de informação cheias de vida, que pos- sam emprestar, ao que aparece nos livros, cor, forma, sa- bor, movimento? Em outras palavras: estamos oferecendo aos alunos diferentes oportunidades para que aprendam a gostar de aprender? O professor é alguém que deve transmitir a cultura de uma forma diferente da que existe hoje na escola, de uma forma mais interessante e mais apaixonada. Muitos profes- sores já são assim, não pela sua formação inicial ou pro- fi ssional, e sim pelas oportunidades que tiveram no âm- bito da família e da sociedade. Eu trabalho muito com fi lmes. Hoje mesmo eu passei Lutero para a 7a série, e a classe toda não piscou. Eu já passei Cruzadas, Tróia... Professora Tem uma professora aqui na escola fazendo um trabalho muito inte- ressante: trabalhando a História através das minisséries da Globo. Então, ela pega Canudos, por exemplo, e transporta. Professora Não queremos sugerir que aprender possa ser ape- nas divertido e gostoso... Há um lado da aprendizagem que requer esforço, dedicação, que nos faz trocar o delei- te de fazer aquilo que gostaríamos por uma necessidade que normalmente foi gerada fora de nós. Com os adoles- centes do ciclo II, isso não é diferente. Tentemos agora nos colocar no lugar deles (até porque já ocupamos esse lugar um dia...): trocar horas de skate, papo com os amigos, paqueras, leitura de revistas espe- cífi cas, músicas... por estudo? É difícil. Mais difícil ainda se não sabem estudar, se passam mais ou menos horas para, ao fi nal, não fi carem satisfeitos com o que ganham em troca. Temos que ser justos e satisfazê-los minimamente. Te- mos que ajudá-los a terem tempo para viver, especialmen- te essa fase tão rica da vida, e também a estudar de for- mas menos tediosas e, sobretudo, mais efi cazes. Assim, a promessa de que aprender tem também seus prazeres não fi ca esvaziada. Aqui temos campo fértil para começar a tratar do pa- pel da leitura e da produção de textos na aprendizagem de todas as disciplinas. No ciclo II, a pesquisa pode ser um excelente pretex- to para a aprendizagem importante de procedimentos de leitura e escrita. Por isso, o tema da pesquisa deve ser marcado pela intencionalidade. Que aprendizagens se esperam? Que conteúdos se abordarão? Que estratégias se usarão? É preciso organizar o trabalho em etapas e ter tempo para aprofundar o assunto da pesquisa, ampliando o co- nhecimento dos alunos e criando boas condições de curio- sidade e envolvimento. Como criar curiosidade? Há mui- tos modos. Por exemplo, levando os alunos a estabelece- rem relações entre diversas fontes: livros, fi lmes, exposi- ções, textos, entrevistas... Em geral, os professores reconhecem a necessidade dos alunos de aprender a pesquisar, selecionar informa- ções importantes, hierarquizá-las, relacioná-las, organizar as idéias e informações obtidas, produzir resumos. No en- tanto, a maioria dos professores sente difi culdade a res- peito de como fazer isso, considerando a complexidade da tarefa, a heterogeneidade de conhecimentos dos alunos, o tempo de que dispõem, a falta de certos recursos etc. Sobre a complexidade da tarefa, para além dos concei- tos, sejam eles de que disciplina forem, há outros conhe- cimentos em questão − os procedimentos que escritores e leitores experientes usam e que são observáveis. Quanto tempo se dedica a ensinar aos alunos os pro- cedimentos de grifos e anotações quando lêem para es- tudar, por exemplo? Tem-se entendido esse encaminha- mento como “perda de um tempo que já não se costuma ter” ou como ensino de ferramentas indispensáveis a de- terminados propósitos que, algumas vezes, têm a leitura e a escrita? Ainda pensando no tempo: será que um es- forço conjunto de todos os professores nesse investimen- to demoraria tanto assim? Embora muitos professores saibam que os alunos de- vem ter atitudes e comportamentos de estudante, não se especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 37 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 percebe que eles tomem medidas específi cas para essa construção, que é de sua responsabilidade. Ampliando a complexidade, portanto, entram em cena os conteúdos atitudinais – aprender a fazer perguntas, a colocar dúvidas, a trabalhar cooperativamente assumin- do diferentes papéis em um grupo, a se arriscar − porque o erro é parte do processo −, a pedir ajuda e a ajudar. A heterogeneidade, característica de todas as classes, precisa ser reconceituada pela escola. Se as diferenças fo- rem tomadas como uma grande vantagem para o trabalho, talvez se use a heterogeneidade a favor do ensino. Para isso, há que saber tirar partido dela, aproveitá-la, e não vê-la sempre como um obstáculo – o que um aluno não sabe (determinado conceito, procedimento, atitude) po- derá aprender com outro, e vice-versa. Uma coisa que funciona muito é a questão dos agrupamentos. Nas duplas ou trios, há muita troca de informações. Um que não sabe ler tanto é ajudado por outro que sabe e fi ca satisfeito em ajudar. Professora Outro aspecto que merece atenção são as possíveis fi - nalidades, de uma pesquisa feita pelos alunos, que não parecem muito claras para todos os professores. Este pon- to pede cuidado, porque determina as decisões que se to- marão ao longo do processo. Uma vez que se tenha clare- za sobre o porquê de se fazer uma pesquisa, professores e alunos poderão defi nir os rumos a serem tomados. Defi nem-se diferentes rotas de trabalho se: 1. se pretende que a classe aprenda mais sobre um as- sunto para fazer uma prova sobre ele; 2. se pretende que a classe aprenda mais sobre um assunto para escrever sobre ele no jornal ou no mural da escola, porque é de interesse coletivo; 3. se pretende mobilizar os alunos em torno de uma ques- tão comunitária e lhes dar mais responsabilidade sobre o assunto a respeito do qual propõem mudanças. O projeto sobre o bairro envolveu a escola toda, foi o projeto do ano. A gente saiu para colher dados no bairro. Os alunos participam muito, elaboraram perguntas. Era um projeto multidisciplinar, e cada profes- sor saía a campo com a visão da sua disciplina: o de Ciências focou o saneamento básico; o de História saiu pra ver a história do bairro, da escola, o nome das ruas, o porquê dos nomes, se tinha praça; o de Matemática trabalhou o Censo do bairro. Isso nós apresentamos na Câmara Municipal, na sala do prefeito. Tinha diferentes aprendizagens: pesquisa, coletas de dados, socialização. Então, foi um trabalho muito bonito, e nós tivemos visões do bairro que a gente não tinha. Eu nunca tinha ouvido falar em esgoto particular – então a gente quis saber o que era. Como aqui o bairro é muito carente, por exemplo, cortam a água, então um vizinho paga outro para usar e tomar banho, fazer xixi. A gente teve que andar, conversar. Teve resgate da origem das pessoas – muitos não têm registro de nascimento, então fomos ao cartório. A gente descobriu que 80% do nosso alunado mora com os avós, não mora com os pais. Um avô mora numa chácara, a gente foi lá, ele tocou berrante para os alunos. Professora Conceitos, atitudes, procedimentos – eis uma das equações, cheia de variáveis, que a escola precisa come- çar a enfrentar. Notas 1 Trecho da entrevista com a Profa. Dra. Roxane Helena Rojo, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Almanaque do Programa Escrevendo o Futuro, ano II, número 4, julho de 2006 2 Ibidem 1. 3 “A mudança na compreensão do processo pelo qual se aprende a ler e a escrever afetou também todo o ensino da língua. Permitiu que o conheci- mento produzido na área da lingüística encontrasse receptividade na escola e que, nestes últimos 20 anos, se produzisse experimentação pedagógica sufi ciente para construir, a partir dela, uma didática. Essa didática da língua – que trouxe os textos do mundo para dentro da escola e se preocupa em aproximar as práticas de ensino da língua das práticas de leitura e escrita reais – é a que vem sendo difundida pelo Ministério da Educação nos Parâmetros e Referenciais Curriculares Nacionais para a educação básica” (Telma Weisz, in: Ferrero e Teberosky, 1999). 4 Muitas são as produções didáticas que mostram que ler é, além de dominar o código, construir sentidos, esforçar-se para compreender, estabelecer relações entre diferentes leituras, dialogar com os textos escritos. 5 Entrevista Grupo 1: as mães lêem a Bíblia, revistas e esporadicamente livros de auto-ajuda; raramente lêem histórias para os fi lhos. Entrevista Grupo 2: nas famílias, sempre há quem tenha o hábito da leitura, embora apenas uma minoria declare ter livros em casa. É comum aos dois grupos ter poucos livros e jornais em casa. 6 Autoras como Isabel Solé e Delia Lerner (Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002) e Ana Teberosky (Contextos de alfabetização inicial. Porto Alegre: Artmed, 2004), entre outros. 7 Afi rmação de uma coordenadora do Rio Grande do Sul, que aparece no Docu- mento de Avaliação do Projeto NEPSO (Nossa Escola pesquisa a sua opinião), publicado pelo Instituto Paulo Montenegro/Ação Educativa. Temos que ser justos e satisfazê-los minimamente. Temos que ajudá-los a terem tempo para viver, especialmente essa fase tão rica da vida, e também a estudar de formas menos tediosas e, sobretudo, mais efi cazes. 38 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 5 Caminhos e alternativas Para que os sistemas de ensino avancem, superando otimismos, pessimismos e críticas ingênuas, é preciso agir na complexidade sem simplifi cá-la, tendo em vista que a escola é expressão e presença de diversos fatores que não podem ser reduzidos a elementos que nos convêm e para os quais nossos saberes são, muitas vezes, insufi cientes para a tomada de decisões e para a ação. Muito se tem falado sobre efeito escola, efeito família e efeito comunidade no desempenho dos alunos. Famí- lias e comunidades têm grande peso na trajetória esco- lar: trazem bagagens culturais e repertórios de vida que podem melhorar menos ou mais as condições de apren- dizagem escolar. De fato, constata-se que o pouco letramento, o pre- cário acesso a bens e serviços, a pobreza e a situação de extrema desigualdade em que vivem muitas famílias e comunidades acabam sendo determinantes nos maus resultados de aprendizagem de crianças e adolescentes, pois reduzem o poder de infl uência da escola e de seu instrumental para processar o ensino. Por outro lado, tem-se observado que a escola pode potencializar signifi cativamente sua força e melhorar a vida dos alunos, à medida que repensar sua estrutura e organização e reconhecer a importância de compor com a família e com a comunidade. Daí a insistência na educação contextualizada e no exercício da função social da escola. É preciso fazer re- cortes, defi nir prioridades, correr riscos, integrar conhe- cimentos, sentimentos e compromissos. Lições aprendidas • À escola se apresentam hoje dois caminhos: seguir com o entendimento de que compete a ela a exclu- sividade do processo de ensino-aprendizagem ou compor-se com outros serviços, instituições e proje- tos existentes no território, com vistas a promover o desenvolvimento integral de seus alunos. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 39 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 • O ciclo II do ensino fundamental vive hoje um perío- do caracterizado por quantidade sem qualidade. Ges- tores e professores não têm uma concepção clara do currículo a ser desenvolvido, que respeite a especi- fi cidade de cada disciplina, como também propicie sua integração curricular. • A estrutura e o funcionamento do ciclo II difi cultam a implementação de um trabalho articulado e integra- do entre os profi ssionais que compõem o quadro do- cente, comprometendo a aprendizagem dos alunos. • De modo geral, o currículo pouco dialoga com a rea- lidade. • Ensinar é fazer com que os alunos aprendam e, para isso, são necessários um compromisso e um saber- fazer especializado, que permitam, ao professor, planejar si- tuações de aprendizagem em função do desempenho dos alunos e acompanhar os percursos individuais. • O trabalho de formação precisa acolher e encarar as resistências dos professores – muitas vezes, por não terem chance de ampliar seu repertório cultural e por desconhecerem alternativas pedagógicas inovadoras, acabam se apoiando em modelos que já se mostra- ram pouco efi cientes para garantir aos alunos apren- dizagens substantivas. Vale lembrar que a maioria dos professores que atua nas redes públicas de en- sino traz o histórico de uma formação inicial, como docente, precária, o que aumenta muito a necessida- de de o poder público investir em formação continu- ada para docentes. • Para a maioria dos professores, os sistemas de ava- liação praticados no país são alheios à realidade das escolas e aos modos peculiares como se desenvol- vem os currículos. Embora as avaliações já estejam consolidadas (pois acontecem desde 1996), nem a sociedade, nem os gestores dos sistemas as tomam como referência para replanejar a proposta pedagó- gica da escola. • Ainda não se conquistou concretamente o direito dos pais e dos alunos de saberem como as escolas são organizadas, quanto custam, que recursos recebem, o que produzem e que metas de aprendizagem têm. • Disciplina e, sobretudo, limpeza são para os alunos questões tão relevantes quanto as de ordem peda- gógica. Embora não seja intenção deste estudo de- senvolver o tema, parece importante deixar registra- da essa demanda clara dos alunos ouvidos nos gru- pos focais, lembrando que a ética e a estética não ca- recem de sofi sticação, mas de harmonia. Para a melhoria da qualidade da educação O conceito de educação integral preconizado pela LDB está centrado na ampliação de oportunidades de aces- so à educação e cultura para todos os brasileiros. Nes- se sentido, tão importante quanto estratégica é a cria- ção de uma rede articulada de diversos serviços, progra- mas, ações e atores sociais que colaborem na concreti- zação desse objetivo. Essa articulação não só é desejável como visivelmen- te mais enriquecedora. Experiências em outros países mostram que crianças, adolescentes e jovens conseguem ampliar signifi cativamente seu repertório e suas habili- dades e competências pelo acesso a outros espaços pú- blicos educativos, como ofi cinas de música, artes visu- ais, computação, esportes etc. , pois o contato com as diferentes propostas, projetos educativos e diversos in- terlocutores que os recebem e os orientam favorece seu desconfi namento social e cultural, ativando suas condi- ções de formação intelectual e de sociabilidade. A combinação de espaços e ações socioeducativas na composição de uma educação integral precisa ganhar adesão dos agentes da escola, para que seja reconheci- da e articulada à política pública de educação. A educação clama hoje por seu sentido multisseto- rial. É convocada a compor uma política social em sua inteireza, o que exige o reconhecimento de sua incom- pletude e a necessária complementaridade entre servi- ços e atores sociais. A articulação entre escola e programas socioeducati- vos é um modo virtuoso de produzir educação/cultura/ proteção social com vistas a romper com o ciclo redutor da pobreza e da exclusão social. A educação ... é convocada a compor uma política social em sua inteireza, o que exige o reconhecimento de sua incompletude e a necessária complementaridade entre serviços e atos sociais. 40 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 É uma via de mão dupla: ao cumprir sua função de ensino da leitura e escrita e o acesso a conhecimentos, a escola favorece a inclusão social, da mesma forma que os demais serviços e projetos do território, ao realizar ações para o desenvolvimento infanto-juvenil, asseguram a densidade desejada nas aprendizagens oferecidas. Numa sociedade em que se impõe a necessidade de conhecimentos e aprendizados, o corporativismo impe- de que entrem, na escola, políticas de vida desenhadas pelas comunidades ou por outras políticas públicas. A situação atual exige um novo enraizamento da es- cola na comunidade e no território, supondo o reconhe- cimento mútuo e o fazer compartilhado. Uma vez que a universalização do ensino fundamen- tal foi praticamente atingida, agora é preciso voltar o foco das políticas para a aprendizagem, com máxima atenção à continuidade de planos, projetos e ações educacionais. Há que se assumir um projeto nacional que não seja in- terrompido a cada mandato e conclame a sociedade civil para um esforço coletivo em prol da educação. O Plano Nacional de Educação (PNE) e o recente Pla- no de Desenvolvimento da Educação (PDE) sinalizam esse longo prazo, introduzindo estratégias e metas que prometem maior efetividade social da política pública de educação. A Constituição Federal enseja uma gestão pública par- tilhada e democrática, regulando inclusive a formação e a presença de conselhos paritários para decisão e con- trole do desempenho das políticas públicas. No entan- to, há uma visível ambigüidade do Estado em relação a essas consignas. No Brasil, praticamos uma descentra- lização truncada, com claras difi culdades de reconheci- mento e convivência entre sistemas de ensino autôno- mos (municipal, estadual e federal), que deveriam ser necessariamente solidários. Ainda não se concretizou um projeto nacional efe- tivamente comprometido com a descentralização polí- tico-administrativa, como prescreve a LDB. O papel da esfera estadual de governo está subsumido na condu- ção da política pública. As novas condições global/local exigem, das esferas estadual e municipal, forte papel co- ordenador das políticas que asseguram a qualidade da educação básica. O PNE, lei aprovada em 2001, preconizava que to- dos os estados e municípios se articulassem para a ela- boração dos seus respectivos planos. O poder executi- vo no estado de São Paulo encaminhou a proposta de plano estadual de educação em 15 de outubro de 2003 para aprovação na Assembléia Legislativa, e ela ainda não foi votada. Isso revela que todos os segmentos so- ciais precisam se comprometer com as necessidades estruturais que todas as esferas públicas devem reali- zar no campo da educação, quanto a suas fi nalidades e seu fi nanciamento. especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 41 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Avançando o olhar para o interior da escola, observa- mos que são graves os problemas na estrutura do ciclo II: organização da grade curricular em faixas de 40 a 50 mi- nutos de aula para cada disciplina, desempenho solitá- rio da função docente e rotatividade e absenteísmo dos professores. A conseqüência desastrosa é o abortamen- to de projetos político-pedagógicos consistentes que as- segurem aprendizado efetivo. Não há continuidade, não há vínculos que produzam aprimoramento contínuo no fa- zer da escola. Banaliza-se um bem precioso para os alu- nos e para o povo de uma nação. Para a melhoria da qualidade da educação, é impera- tivo que os poderes públicos criem mecanismos legais de fi xação dos gestores e dos docentes nas escolas. As inúmeras tentativas de mudança na estrutura do ci- clo II – entre as quais cabe destacar: a proposta de se or- ganizar a grade curricular em módulos de 80 minutos, a de se manter o quadro de professores relativamente estável por meio de um incremento salarial e de um número fi xo de horas numa mesma instituição – têm quase sempre ca- ído por terra e não são implementadas de fato. Essa situação revela um paradoxo, pois, por outro lado, temos uma legislação educacional que instituiu a fl exibilida- de tanto na estrutura e organização dos sistemas de ensino quanto na defi nição e implementação do currículo (Brasil, LDB, 1996, Título IV, art. 8o; Título V, artigos 23 a 28). Os encaminhamentos propostos aqui já estão formu- lados, embora não se materializem nas orientações políti- cas. Convêm relembrá-los: alteração dos planos de carrei- ra de modo a garantir quadros estáveis nas escolas, com salários dignos, aumento da jornada escolar para no mí- nimo cinco horas, projetos político-pedagógicos que te- nham sentido para a comunidade, implementação de pro- jetos socioeducativos no contraturno escolar, com concur- so de iniciativas existentes na comunidade, oxigenação da equipe escolar com introdução de outros perfi s profi s- sionais e presença de professores-tutores por série. Os incentivos para a carreira do magistério devem ser acompanhados da responsabilização das escolas com a aprendizagem oferecida, ou seja, deve-se fazer da apren- dizagem a principal medida do êxito educacional. Para isso, os gestores e as equipes docentes devem se res- ponsabilizar pelo cumprimento das metas educacionais. A questão remete à necessidade urgente de os sistemas de ensino estabelecerem parâmetros e metas de apren- dizagem para as escolas. Dentro da escola, embora muito se discuta a ques- tão do currículo, o fato é que ele ainda é encarado mais como guia de conteúdos do que como compromisso de se garantirem níveis básicos de aprendizagem. A falta de defi nição clara de expectativas de aprendi- zagem em cada uma das séries do ensino fundamental e de formas de monitoramento e avaliação em relação a essas expectativas acarreta a ausência de padrões que defi nam níveis de aprendizagem desejáveis. De modo geral, nos sistemas escolares da América Latina, o conceito de padrões educacionais ainda não é aceito de fato pelas escolas. Por outro lado, a ausên- cia desses padrões tem sérias implicações na educação, pois são eles que indicam as metas que se espera que as escolas atinjam. Os sistemas educacionais que não especifi cam o que querem de suas escolas têm pouca probabilidade de con- seguirem o que almejam. Ao expressar claramente o que se espera das escolas em termos de aprendizagem e di- vulgar essa visão, os padrões educacionais permitirão à sociedade acompanhar e exigir efetividade dos siste- mas educacionais. A definição de padrões e expectativas educacio- nais deve ser articulada com a formação de professo- res, com as orientações didáticas, com os materiais pe- dagógicos, com os orçamentos e recursos e com as ava- liações nacionais. Outro aspecto a ser considerado é que hoje o nível de informação exigido dos cidadãos não se restringe aos conhecimentos acadêmicos. Os elaboradores de currículo e os que se dedicam à sua implementação, incluindo-se os professores, preci- sam fazer esforços para reduzir a imensa distância que separa o conhecimento formal curricular e o conhecimen- to produzido no mundo. Os sistemas educacionais que não especifi cam o que querem de suas escolas têm pouca probabilidade de conseguirem o que almejam. 42 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 É importante analisar o impacto das tecnologias no universo fatiado em que atua o professor do ciclo II. Tem sido muito difícil para o professor mudar sozinho os pro- cedimentos didáticos. Assim, a maioria das escolas vive o contraste entre o avanço das tecnologias do conheci- mento e a pouca mudança nos procedimentos pedagó- gicos. O avanço da tecnologia, que se descortina com gran- de velocidade, será o universo futuro das pessoas que hoje formamos. Por isso, é preciso certo destemor e ou- sadia para superar a lenta assimilação que a escola faz das implicações que essas tecnologias trazem para o en- sino e a aprendizagem. Embora a globalização seja um fato indiscutível, a lo- calização também o é. Grande parte do que chamamos de qualidade de vida depende da iniciativa local. Muitos estudos atestam a importância do desenvol- vimento local, constatando que, quanto mais se desen- volve a globalização, mais as pessoas carecem do local, buscando melhorar as condições de vida no seu entor- no imediato. Com o peso crescente das iniciativas locais, a escola não deve se aferrar a conhecimentos gerais, mas abrir-se à compreensão de como os conhecimentos gerais se ma- terializam em possibilidades de ação no plano local. A inserção do conhecimento local no currículo e nas atividades escolares implica signifi cativa infl exão na ro- tina escolar. Os trabalhos de campo não podem fi car res- tritos à história oral do bairro, eles devem incorporar a construção sistemática do conhecimento da realidade regional e garantir a assimilação de conceitos e o cruza- mento de conhecimentos entre diversas áreas, rearticu- lando informações que na escola, em geral, são segmen- tadas em disciplinas. Na gestão do conhecimento, é papel da escola re- descobrir o manancial de saberes que existe em cada re- gião, valorizá-lo e socializá-lo de forma organizada, para que seja apreendido em sua dimensão mais ampla pe- las gerações futuras. A proposta é a de inversão de foco: em vez de centrar o compromisso no mero cumprimento formal de conteú- dos, comprometer-se fortemente com o ensino e com a aprendizagem dos alunos. Não podemos deixar os professores e a escola sempre na situação de apenas constatarem o mau desempenho de seus alunos. O professor precisa ser ajudado a des- especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 43 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 cobrir por que o aluno não está conseguindo aprender, qual o obstáculo que ele está encontrando. Portanto, o professor precisa aprender a fazer diagnósticos mais es- pecífi cos dos avanços dos alunos e de suas difi culdades. Observados os problemas, há que transformá-los em no- vas situações de aprendizagem. Valorizar mais o processo de aprendizagem do que o produto signifi ca saber o que os alunos estão aprenden- do ou não, acompanhar o efeito das ações realizadas. Tudo isso aponta para a necessidade de redefi nição das competências profi ssionais dos professores. Não basta serem especialistas em uma matéria ou terem um conjunto de boas atividades para aplicar. A aprendizagem dos alunos depende do envolvimento co- letivo dos professores na exploração de diferentes e pos- síveis soluções. É preciso se perguntar: qual a proposta de coope- ração possível e interativa que estamos gerando com e entre os professores? É preciso formar, no coletivo, uma rede refl exiva sobre a coerência de novas práticas, para se potencializarem o planejamento e a gestão dos pro- gressos dos alunos. O novo papel dos professores precisa ser compatível com os eixos de renovação propostos à escola: • colocar os alunos no centro da ação pedagógica; • individualizar e diversifi car os percursos de formação; • rever tempos de aprendizagem; • diversifi car a pedagogia; • praticar uma avaliação mais formativa do que norma- tiva; • conduzir projetos; • desenvolver o trabalho em equipe docente e respon- sabilizar-se coletivamente pelos alunos; • recorrer aos métodos ativos; • recorrer aos procedimentos de projeto; • recorrer ao trabalho com problemas abertos e com si- tuações problemáticas; • desenvolver as competências e a transferência de co- nhecimentos e educar para a cidadania. Formação de professores A formação de professores precisa partir da análise das práticas reais e de suas evoluções, devendo encontrar objetos de saber que sejam ao mesmo tempo teóricos e práticos. Essa perspectiva precisa ser assumida desde a formação inicial, levando-se em conta: • A capacidade de descrever as práticas e selecionar os conhecimentos que ensejam o “o que” dessas práti- cas. • A consciência dos sentidos dos objetos de ensino para compartilhar com os alunos os sentidos de sua aprendizagem. • A imersão na prática e a criação de boas situações- problema, que justifi quem a busca de conhecimen- tos teóricos para a melhor compreensão da situação de ensino-aprendizagem. Já sabemos que de nada adiantam as formações pon- tuais ou compactas. Colaborações de longo prazo são es- senciais para que os professores possam avançar. Nesse sentido, é necessária uma profunda revisão do aproveita- mento do horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC) como possível espaço para a formação continuada. A formação precisa dosar as exigências que faz aos professores, e uma das formas de fazê-lo é o trabalho em equipe: o estudo, a análise das situações complexas que os professores encontram, a observação mútua e a aná- lise coletiva dos dados dos alunos indicam as difi culda- des a serem enfrentadas conjuntamente. Para que a escola aprenda, é fundamental que os pro- fessores sejam conscientes de suas competências e fra- gilidades, por meio da investigação sistemática sobre o próprio trabalho. É urgente envolver ativamente os professores em seu crescimento profi ssional, para reinventarem a escola e se reinventarem como pessoas e como profi ssionais. Embora os sistemas de avaliação praticados no país encontrem grande resistência dos educadores, vale lem- brar que mensuram índices de aprendizagem, dando a ver uma situação que está muito aquém do aceitável. Pode-se explicar a resistência pela falta de uma cultu- ra de avaliação, pela incompreensão do tipo de resulta- dos que ela pode oferecer, pela desarticulação das ava- liações com o resto do sistema escolar, pela falta de cla- É urgente envolver ativamente os professores em seu crescimento profi ssional, para reinventarem a escola e se reinventarem como pessoas e como profi ssionais. 44 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 reza sobre suas metas e seus motivos e pela defi ciência da divulgação de resultados. As avaliações nacionais podem ter um papel relevan- te na melhoria da qualidade da educação, mas é preciso mudar os modos de se divulgarem seus resultados, uma vez que as informações sobre os resultados dos alunos não chegam de modo oportuno e acessível aos interes- sados: pais, alunos, professores e, mesmo, aos formu- ladores de políticas. É preciso dedicar atenção especial às escolas com os mais baixos índices de desempenho, apoiando-as na condução de alternativas próprias para o enfrentamento de seus problemas . A disseminação ampla de informações sobre o desem- penho das escolas pode criar um poderoso instrumento de participação para a população e levar as comunidades a reivindicarem providências de prefeitos, gestores e profes- sores. É uma possibilidade real para o controle social. As escolas e seus atores precisam ter mais consciên- cia de seu papel de prestadores de serviços à socieda- de , pois atuam numa instituição pública, que é mantida pela sociedade e a ela precisam prestar contas. Majoritariamente, os alunos da escola pública são pobres ou muito pobres. Retoma-se aqui um grave limi- te: os educadores não têm experiência para atuar em contextos de pobreza e não são formados para envol- ver e agregar valor à participação de famílias e comuni- dades pobres. A importância do gestor escolar Os gestores escolares precisam liderar um processo permanente de planejamento participativo na escola, em que professores, funcionários, alunos e pais discu- tam em conjunto: • o ambiente educativo da escola: as relações colabo- rativas que devem ser estabelecidas entre os profes- sores para a discussão de valores éticos e regras de convivência a serem trabalhados com os alunos; • o ambiente físico da escola: análise da situação dos espaços, com biblioteca, sala de multimídia, sala de informática, laboratório de ciências físicas e biológi- cas. Estão equipados adequadamente? Estão sendo usados de maneira efi caz para a aprendizagem? especial: estudo cenpec educação na segunda etapa do ensino fundamental 45 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Aequipe responsável pela pesquisa que resultou neste texto agradece a contribuição dos educado- res, pais e alunos de escolas públicas dos municípios de Bebedouro, São Bernardo do Campo e São Carlos que, gentilmente, forneceram informações imprescin- díveis à elaboração deste estudo. Também aos profes- sores de todo o país que, voluntariamente, responde- ram à enquete promovida pelo Educarede. A equipe faz extensivo seu agradecimento aos edu- cadores do Cenpec que participaram das leituras críticas: Adriano Vieira, Anna H. de Almeida Pires Altenfelder Silva, Antônio Aparecido Primo, Carola Arregui, Isa Guará, Ivone do Canto Almeida, Lenir Morgado da Silva, Liliane Petris, Luiza Esmeralda Faustinoni, Luzia Sueli Bernardi, Maria Estela Ber- gamin, Maria Isabel Iorio Soncin, Maria José Regi- nato Ribeiro, Maria Júlia Azevedo, Maria Terezinha Teles Guerra, Silas Martins Junqueira, Sônia Madi, Sônia de Oliveira Nudelmam, Sônia Silva, Vanda Noventa Fonseca e Zoraide Faustinoni da Silva. Agradecimento especial aos consultores que, em diversos momentos, debateram conosco as análi- ses produzidas: Bernadete Gatti, Maria Helena Gui- marães, Guiomar Namo de Mello e Sofi a Lerche. • a prática pedagógica adotada na escola: articulação constante entre ensino e avaliação; • a própria participação dos pais e de todos os agen- tes da sociedade na perspectiva da aprendizagem: nossas crianças estão aprendendo na escola? O que estão aprendendo? Essas respostas a escola deve à sociedade. Entende-se, em síntese, que, na essência de um pro- pósito emancipatório, está a participação pró-ativa da população-alvo. Na lógica dos direitos, o fundamento da ação é o próprio direito. Nesse sentido, acentuam-se estratégias voltadas para a aprendizagem dos alunos e o fortalecimento do vínculo escola-comunidade no cum- primento pleno da função educativa. Referências ALUNO repete dois anos, em média, de 1a a 8a . Folha de S.Paulo, São Paulo, 13 abr. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 jul. 2006. 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Entre suas obras, destacam-se Indisciplina: o contraponto das escolas democráticas (Editora Moderna, 2003), Diálogos com educadores: o cotidiano escolar interrogado (Moderna, 2002), Do cotidiano escolar: ensaios sobre a ética e seus avessos (Summus, 2000) e Confrontos na sala de aula: uma leitura institucional da relação professor-aluno (Summus, 1996). Participou, como co-autor, de Família: modos de usar (Papirus, 2006), Em defesa da escola (Papirus, 2004), Os direitos humanos na sala de aula: a ética como tema transversal (Moderna, 2001) e de Ofício de professor: aprender para ensinar (Abril, 2001). Colunista da revista Educação, identifi cado como um dos mais atuantes analistas da educação do Brasil, Groppa tem freqüentado simpósios, seminários e debates, apresentando sempre opiniões contundentes sobre a educação. segundo ciclo do ensino fundamental tem recebido mui- to pouca atenção dos estudiosos da educação nacional e dos poderes públicos responsáveis pelo sistema educati- vo. Estamos esquecendo especialmente a escola que ofe- recemos às camadas populares da sociedade e é nela que se encontram milhões de pré-adolescentes e ado- lescentes que ensaiam sua entrada no mundo do conhe- cimento e da vida social, com toda sua diversidade. Por isso mesmo, é preciso tecer os fi os que ligam a vida na escola e fora dela. Essa trama, tecida com as ferramen- tas do conhecimento escolar e das novas expressões, vi- vências e interesses da adolescência, pode ajudar a or- ganizar uma experiência escolar signifi cante para alunos e para a equipe escolar. Mas o desejo cívico de universalização do ensino, com qualidade e aprendizagem para todos, precisa superar esse momento de perplexidade e se constituir num com- promisso coletivo mais refl etido, que ajude a superar os mitos e entraves que ainda acompanham a discussão so- bre a escola pública de hoje. ENTREVISTA A ESCOLA NA BERLINDA Julio Groppa Aquino analisa a conjuntura educacional brasileira* 48 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Cadernos Cenpec enviou dez conjuntos de questões ao pensador Julio Groppa Aquino. Para ele, precisamos “cultivar horizontes inéditos, mes- mo sabendo de antemão que não sera nossa geração que deles desfrutará”. É por meio de seu estilo direto e incisivo que ele res- pondeu aos questionamentos de Cadernos Cenpec. Suas respostas, ao mesmo tempo refl exivas e calcadas numa re- alidade irrefutável, convencem-nos de que, se quisermos melhorar a educação em nosso país, precisamos agir rápi- do e investir corajosamente no presente para vislumbrar- mos um futuro promissor. Confi ram! Isa Maria Ferreira da Rosa Guará 1. Depósito da infância e da adolescência pobres Cadernos Cenpec - A valorização da educação e a mo- bilização em prol da melhoria da escola pública pare- ce refl etir uma crença na potencialidade da educação para a promoção do desenvolvimento do país. Esta é uma aposta possível? Julio Groppa Aquino - As escolas públicas são, talvez, as instituições que espelham mais fielmente as profun- das mutações socioculturais do país nas últimas dé- cadas. Pelo fato de elas terem de se haver cotidiana- mente com a observância de um direito constitucional extensível, em tese, a todo e qualquer cidadão, presu- me-se que as escolas têm sofrido na pele o impacto da democratização, mais do que qualquer outra instituição social. Mas aquilo que deveria ser tomado como uma conquista social sem precedentes e motivo de regozijo para a presente geração de brasileiros nem sempre é vivido assim pelos protagonistas escolares. Entre eles, é freqüente a nostalgia da velha escola elitista e meri- tocrática, o que parece representar uma espécie de re- trocesso do ponto de vista dos avanços democráticos das últimas décadas. Temos testemunhado, nos últimos 40 anos, dois grandes efeitos conexos do processo de democratiza- ção escolar: • a implacável estigmatização do ensino público; • a privatização irrefreável do setor. Estes dois processos culminarão na fl agrante des- valorização do magistério e no abandono paulatino do projeto consistente de educação para as massas. O sal- do fi nal: as práticas escolares estatais, marcadas por uma letargia ético-política, vêm abdicando de sua fun- ção pedagógica e se transformando tão-somente num depósito da infância e da adolescência pobres ou, em outros termos, uma prática de faz-de-conta que se con- verte rapidamente num barril de pólvora, sempre pron- to a ir aos ares. Enquanto isso, dos extratos sociais populares aos mais abastados, todos afi rmam que a educação seria a principal responsável pela promoção do desenvol- vimento socioeconômico e cultural do país. Os exce- dentes de subempregados com formação universitá- ria, ou aqueles que exercem funções não relacionadas ao seu campo original de formação, são exemplos do ufanismo de tal lógica. É possível afi rmar, pois, que a escolarização é uma condição necessária, mas não su- fi ciente, para promover o decantado desenvolvimen- to nacional. A mesma argumentação vale para a alegação, em princípio, louvável, de que a educação promoveria re- dução das desigualdades sociais. A mostra do ilusio- nismo de tal lógica é a cisão irreconciliável entre ensi- no estatal, convertido em assistencialismo para pobres, por meio de uma oferta pedagógica aligeirada, fraciona- da e diluída, e ensino privado, convertido em mercanti- lização farsesca para ricos, por meio da oferta de mais um produto de grife, pragmático e com destinação cer- ta: a preparação técnica para os vestibulares. Deve-se então admitir que a conjuntura educacional é um retrato fi el das desigualdades estruturais do país, conservadas, no caso da escola pública, por meio da pauperização das condições de trabalho e da própria fragilização da imagem social do trabalhador da educa- ção, o que traz como conseqüência a desqualifi cação crescente dos quadros docentes e, por conta disso, a depreciação dos serviços prestados. O tal “apagão do ensino médio” é uma mostra irrefutável do que já está em curso. Mais correto seria dizer que hoje vivemos um estado de calamidade latente na educação nacional. 2. Faltam acesso, permanência e aprendizado. Cenpec - As expectativas da sociedade brasileira hoje sobre a educação tropeçam em dados desanimadores da educação pública e do desempenho escolar. Se já conseguimos melhorar o ingresso na escola, ainda não tivemos êxito na aprendizagem. A boa qualidade da edu- 49 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 cação assume um sentido de urgência democrática? O que representa exatamente essa qualidade? JGA. A qualidade da educação vem-se tornando uma evocação indiscriminada que, pelo desgaste semântico, pode acarretar generalizações indevidas. Ao amalgamar sentidos distintos, a alegação da falta de boa qualidade da educação pública pode cometer certa injustiça em re- lação ao intrincado processo de democratização escolar – por sinal, longe de ser encerrado. Se a ação escolar for avaliada segundo a multidimen- sionalidade de propósitos que lhe é inerente, a quei- xa do baixo nível da qualidade talvez não se justifi que por completo. Por exemplo, do ponto de vista da socia- lização das crianças e jovens, é certo que a escola pú- blica cumpre um papel inestimável. Ela acolhe cotidia- namente mais de um quarto da população de um país continental como o nosso, oferecendo às crianças e jo- vens um assento e um número de registro, os quais si- nalizam o reconhecimento estatal mínimo de sua cida- dania – algo que não se vê em relação a outros direitos sociais previstos constitucionalmente. E mais: pelo fato de ter se defrontar com uma mas- sa de pessoas oriundas de diferentes realidades socio- culturais, a escola pública revela-se um laboratório vivo das oportunidades e dos limites do convívio democrá- tico – aquilo que não pode ser quantifi cado em avalia- ção de qualquer tipo. Os corredores e os pátios tumul- tuados das escolas são provas cabais de uma institui- ção marcada por uma intensíssima diversidade huma- na e cultural que, bem ou mal, é capaz de criar seus me- canismos de auto-regulação. Se, por um lado, a função socializadora é um exem- plo louvável do trabalho escolar, por outro, o mesmo não pode ser dito em relação ao alcance pedagógico de sua ação. O rendimento escolar do alunado aferido nos testes de desempenho é, amiúde, razão de desa- lento e perplexidade coletivos. Mostra do embotamen- to de uma geração de alunos que sequer conseguiria ler e escrever? Mais honesto seria avaliar os resultados formais da escolarização como efeito da cambaleante atenção so- cial oferecida às crianças e jovens pobres. O processo de democratização escolar tem evidenciado a refratária ou, na melhor hipótese, custosa disposição de deter- minados segmentos sociais – aí incluídos os profi ssio- nais da educação – em relação à maioria de seus con- cidadãos. Daí um veredicto possível da escola pública contemporânea: nada parece haver de errado com seus passos, uma vez que seus resultados espelham a medi- da exata de nossos compromissos coletivos para com as camadas populares da sociedade. Tal diagnóstico seria aplicável aos três patamares da democratização escolar: acesso, permanência e aprendi- zado. Passadas quase quatro décadas do início do pro- cesso de democratização, ainda não se conseguiu uni- versalizar o direito ao acesso; o direito à permanência – via progressão continuada – tem sido o pomo da discór- dia entre os profi ssionais. Quanto ao direito ao aprendi- zado, estamos a léguas de seu enfrentamento. Entretanto, trata-se de três dimensões articuladas e indissociáveis. Isso porque não se democratiza o ensi- no sem a universalização de seu acesso. Este, porém, não se sustenta por si só. É preciso que os alunos re- alizem a travessia escolar sem interrupção e que, por fi m, ela se converta numa experiência signifi cativa no que diz respeito a uma inteligibilidade tão sólida quan- to transformadora da vida e do mundo à sua volta – o que quer dizer: bom aprendizado. No que tange à democratização escolar, é certo que estamos diante de uma promessa histórica ainda não cumprida, já que é apenas com a observância estrita do direito ao aprendizado que os direitos de acesso e de permanência se justifi cam e se mantêm. 3. A demonização da progressão continuada CC. Os professores (e as pesquisas confi rmam) dizem que os alunos chegam ao ciclo II sem saber ler e sem sa- ber escrever corretamente ou, pelo menos, dentro do es- perado para esse nível. A estratégia da progressão conti- nuada tem sido apontada como o “bode expiatório” des- sa situação e mesmo alguns pais de alunos reclamam da aprovação automática como um desestímulo para o É preciso que os alunos realizem a travessia escolar sem interrupção e que ela se converta numa experiência signifi cativa no que diz respeito a uma inteligibilidade tão sólida quanto transformadora da vida e do mundo à sua volta... 50 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 estudo. O tema vazou até para o discurso dos candida- tos nas últimas eleições. O que precisa ser decidido, na política educacional, para se manterem os propósi- tos da progressão continuada garantindo que os alu- nos aprendam? JGA. Já em seus primórdios, o processo de democratiza- ção escolar encontrou seu ponto de infl exão mais agudo: a reprovação e seu desdobramento ulterior, a evasão. Um contingente enorme de crianças, sistematicamente repro- vadas, em particular nos primeiros anos, era e ainda é ex- cluído da vivência escolar, mormente em razão da supos- ta falta de condições satisfatórias para o aproveitamento escolar. Raros são os profi ssionais da educação que não avalizam tal argumentação, a qual encontrará seu apogeu na alegação de um quantum recorrente de “alunos-proble- ma” que povoariam as salas de aula. Para que se tenha uma idéia do impacto da cultura da reprovação, tomemos o Relatório da UNESCO, Educação para todos 2006 – professores e educação de qualidade, com base em 2002. Seus dados revelam que os educado- res brasileiros reprovaram 21% das crianças matriculadas nos quatro primeiros anos do ensino fundamental, o que situa o país no 16o posto dentre os 45 países – em sua maioria, rincões africanos oriundos de guerras civis – com as mais altas taxas de reprovação do planeta. Já partir da década de 1980, despontaram as propos- tas de progressão continuada que, rechaçadas de Norte a Sul, vêm-se convertendo no mais resistente bode expia- tório da educação nacional. Mal afamadas, mal interpre- tadas e, principalmente, mal conduzidas, tais propostas conheceram um desdobramento colateral cumulativo: o baixíssimo teor da aprendizagem do alunado. Como com- preender o incômodo fato de que a maioria dos alunos, na passagem para o segundo ciclo do ensino fundamen- tal, sequer logra redigir um texto minimamente coerente ou dominar operações matemáticas simples? Como jus- tifi car o injustifi cável? A resposta tem sido uma só: demonizando a progres- são continuada e saudando o velho sistema reprovató- rio. Uma resposta equivocada, já que em confl ito aberto com o direito à permanência escolar, e igualmente tenden- ciosa, porque onera apenas uma parte dos envolvidos, a mais indefesa, por sinal. Trata-se de uma mostra também dos riscos da apropriação enviesada de um princípio po- lítico-pedagógico de monta, o do direito à progressão es- colar, convertido paradoxalmente em álibi para seu aves- so absoluto. Impossível acatar tal ajuizamento da conjuntura edu- cacional, a despeito da defesa acalorada da maioria de seus profi ssionais. Isso porque a progressão continuada baseia-se no princípio, comprovadíssimo, aliás, de que a reprovação gera exclusão e, no limite, mais violência social. Portanto, o que deveria estar na berlinda não é a legitimidade da progressão continuada e sim sua con- secução prática. Interpretada, na maioria das vezes, como mera “apro- vação automática”, ela exige esforços adicionais indis- pensáveis: - em primeiro lugar, a reordenação radical dos fazeres em sala de aula, atentando para uma outra noção de ambi- ência pedagógica, não mais lastreada nem pelo conhe- cimento enciclopédico e reiterativo, nem pelas coorde- nadas estritas de mando/obediência; - em segundo lugar, a atenção complementar e sistemá- tica aos alunos em situação de vulnerabilidade pedagó- gica – uma destinação mais honrosa para os tais profes- sores “eventuais”, por exemplo. Desse modo, talvez pudéssemos fazer valer o princípio de que a escolarização deve ser não apenas mínima e obrigatória, tal como reza a lei, mas também progres- siva e consecutiva. Sem vontade política para tal tomada de consciência, o sonho de uma escola republicana cai por terra. 4. Descompasso entre formação e profi ssão CC. O contato do Cenpec com gestores e educadores em todo o Brasil mostra que o professor hoje é lançado na escola e no ensino sem formação para enfrentar as no- vas condições da escola e dos alunos. Falta-lhe domínio didático, compreensão dos processos de aprendizagem e até mesmo apropriação dos objetos de conhecimento. A fragilidade da escola no exercício de sua função social nos remete à maior cobrança da Universidade na forma- ção dos profi ssionais. As licenciaturas atuais dão conta da refl exão e da instrumentação dos professores para a nova realidade educativa? JGA. Boa parte dos diagnósticos acerca dos entraves da educação pública aponta para o despreparo de seus profi ssionais para enfrentar os desafi os de uma escola que se anuncia democrática e que, ao mesmo tempo, tem de se defrontar com a complexidade sociocultural do alunado das camadas populares. Nesse viés de aná- lise, a fragilidade da ação docente seria fruto, primeiro, 51 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 de uma formação inicial defi citária – o que nos remete à discussão do papel da Universidade na formação dos profi ssionais da educação e, em particular, da situação dos cursos de licenciatura. A maioria dos profi ssionais atuando nas redes públi- cas é oriunda das faculdades privadas, cuja lógica em- presarial, salvo raras exceções, contradiria os propósi- tos últimos do trabalho público. E os licenciados egres- sos das universidades públicas, supostamente mais bem qualifi cados, teriam como destinação prioritária a rede privada de ensino, em razão dos melhores salários. Eis aqui uma distorção histórica de difícil resolução em cur- to e médio prazos. Uma possível contribuição imediata da universidade pública para a escola básica poderia se dar pela via de modelos alternativos (e mais efetivos) de estágio profi s- sionalizante – o que requereria um programa de forma- ção de que as universidades públicas, em sua maioria, ainda não dispõem; isso porque, muitas vezes, a forma- ção de professores coloca-se aí como um contrapeso da formação de pesquisadores. Outra possibilidade de con- tribuição, agora mais ousada, seria aquela da prestação de serviços compulsórios, por determinado período de tempo posterior à conclusão do curso, por aqueles for- mados pela universidade pública. Uma proposta dema- siado utópica, mas justa, sem dúvida. Seja como for, o que está em questão quando se evo- ca o papel da universidade em relação à escola básica é o decantado descompasso entre a formação universitá- ria e o exercício profi ssional do educador. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, por mais bem-sucedida, a formação inicial jamais será sufi cien- te nem unifi cadora das infi ndáveis confi gurações práti- cas do ofício. Isso porque, além do caráter permanente e inesgotável da formação do trabalhador da educação, a multiplicidade e a complexidade dos saberes neces- sários ao trabalho educacional (sejam aqueles relativos aos campos específi cos de conhecimento, sejam aque- les ligados à área pedagógica lato sensu) inviabilizam qualquer esforço de totalização formativa. De modo geral, a formação inicial fi rma-se, no limi- te, como uma introdução ao estado da arte do campo e não necessariamente como uma iniciação pragmática às contingências do exercício profi ssional. Atribuir, pois, à formação universitária a responsabilidade pelos desca- minhos da profi ssão é outra distorção à qual nos habi- tuamos na educação brasileira. Uma distorção até certo ponto injusta, porque as crí- ticas à formação universitária trazem, em seu bojo, uma queixa, sem dúvida, legítima: a defasagem entre o que se pensa e o que se faz em educação. Nesse sentido, no perímetro universitário, uma mirada analítico-conceitual sobre os dilemas concretos do cotidiano escolar é mui- tas vezes preterida em favor de um abstracionismo teó- rico, típico das práticas de formação inicial. Enquanto isso, na outra ponta do processo, a urgên- cia aplicacionista das práticas faz com que os profi ssio- nais abdiquem prontamente de uma refl exão sólida so- bre o que é ali vivido em favor da primazia do tirocínio, quando a experiência passa a ser a fonte única de todos os saberes possíveis do campo profi ssional. Eis aqui esboçado o quadro de desequilíbrio entre as demandas práticas e a oferta formativa no campo educa- cional. Aproximá-las exigiria alguns passos para a frente da Universidade e outros para trás da empiria pedagógi- ca. Um esforço conjunto que poderia perfeitamente ser oportunizado pelos estágios profi ssionalizantes – oca- sião privilegiada de confl ito, mas também de coopera- ção entre ambas as esferas. 5. Maciça formação artística, literária e humanística. CC. A maioria dos professores que atua nas redes públi- cas de ensino traz o histórico precário de formação inicial. Os professores pertencem a segmentos mais pobres da população e seu repertório cultural é mais restrito. Com 52 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 um salário limitante, o contato com livros, jornais e outros bens culturais não se expande. Que política educacional seria indicada para a superação desses limites? JGA. Os programas de formação continuada, quando vol- tados exclusivamente ao suposto aprimoramento técni- co-pedagógico (e, atualmente, a um famigerado “desen- volvimento pessoal”) dos profi ssionais, revelam um sal- do pífi o – o que inclui as reuniões pedagógicas sema- nais, as palestras e congressos sazonais, até mesmo os cursos de especialização de média duração. Muitas vezes conduzidas por um sem-número de su- postos prestadores de serviços alheios ao campo peda- gógico e mais interessados num quinhão mercadológi- co ascendente, as modalidades de formação continua- da têm-se mostrado igualmente reféns das demandas es- pontaneístas da categoria profi ssional, como a auto-aju- da e os psicologismos rasteiros. Nada mais disparatado em relação às necessidades da escola pública atual. O que fazer? Não há alternativa além de se investir maciçamente na formação artística e humanística dos profi ssionais, por meio da imersão sistemática em prá- ticas culturais destacadas. De pronto, que os espaços de formação restrinjam-se à oferta de obras culturais de qualidade. E que as bibliotecas das escolas sejam freqüentadas com mais assiduidade – o que vale tanto para os profes- sores quanto para os alunos. Oxalá Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa possam nos auxiliar a compreender a complexa mecânica do ato de viver (também e principalmente numa sala de aula) à moda da criação artística. Não custaria tentar. 6. Disjunção dos universos escolar e juvenil CC. No segundo ciclo do ensino fundamental, os horários são compartilhados por diferentes matérias e professo- res e há novas exigências e expectativas para os alunos em relação à conduta em sala de aula e à organização do trabalho escolar. Para alguns alunos, os estudos come- çam a se confi gurar como algo sem sentido, que foge de sua possibilidade de compreensão e que têm pouca uti- lidade prática. Como se pode potencializar essa diversi- dade de experiências neste momento específi co da vida dos pré-adolescentes? JGA. Pouca atenção tem sido oferecida ao segundo ciclo do ensino fundamental. E é exatamente aí que começam a se avolumar os contratempos da educação básica. É aí também que entram em cena os professores “especialis- tas”, designação essa mais prenhe de ambigüidade do que de suposta especifi cidade. Para os alunos, o ingresso no segundo ciclo é marcado por uma espécie de rito clássico de iniciação escolar: - a diversidade e aprofundamento das disciplinas; - a maior complexidade das tarefas e das responsabili- dades; - a mudança da relação com os professores, agora múlti- plos e distintos. Em suma, inicia-se aí a “maioridade” discente, coin- cidente inclusive com os ritos de passagem da adoles- cência. Trata-se de um momento da vida experienciado com expectativa, mas que, não raras vezes, pode acar- retar a disjunção dos universos escolar e juvenil, redun- dando no desapego ao modus vivendi escolar. Trata-se, pois, de um momento crucial da escolarização, tal como hoje ela se dispõe. Segundo o sociólogo francês François Dubet, o siste- ma escolar não mais oferece um enquadramento da vida juvenil, o que faz com que os jovens tenham de construir por si mesmos o sentido de sua vivência escolar, antes as- segurada pela adesão aos papéis institucionais. Daí que a construção da subjetividade juvenil, antes contígua à vi- vência do papel discente, dar-se-ia agora num duplo re- gistro: dentro e fora da escola. Dubet aponta, então, quatro desfechos para a experi- ência subjetiva da juventude na escola: 1. a justaposição da subjetividade ao papel discente – quando os interesses dos alunos são convergentes aos estudos; 2. a dissociação entre subjetividade e papel discente – quando os alunos apenas se integram à escola, por meio de condutas ritualísticas, mas não se incorporam a ela verdadeiramente; 3. a negativização da subjetividade pelo papel discente – quando os alunos sucumbem aos julgamentos escola- res que os invalidam, incapacitando-os; 4. o antagonismo da subjetividade frente ao papel discen- te – quando os alunos reagem aos julgamentos escola- res, agindo de modo transgressivo ou violento. Apenas no primeiro caso, amiúde raro e circunscrito a segmentos sociais privilegiados, temos algo que se apro- ximaria do efeito clássico da institucionalização escolar. Os outros três desfechos seriam resultantes dos novos processos de desinstitucionalização escolar, nunca antes testemunhados com tamanha força. Ou, então, que antes 53 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 despontavam como efeitos colaterais, ou mesmo margi- nais, das práticas escolares. O cenário esboçado pelo teórico francês não deixa dú- vidas: é preciso atentar para o descompasso entre a vida na escola e fora dela. Daí uma decisão pedagógica sensa- ta: o diálogo ininterrupto do conhecimento escolar com as formas de vida encarnadas pelos jovens – algo possível de ser levado a cabo por meio de um projeto político-pedagó- gico atento às necessidades e possibilidades da clientela escolar, sem que isso signifi que rendição às demandas ju- venis, muitas vezes sequer formuladas com clareza. Somem-se, a isso, ações centradas no desenvolvi- mento de projetos temáticos, bem como em metodolo- gias grupais conseqüentes, novamente sem que isso sig- nifi que adesão a um pout-porri teórico e metodológico, fa- cilmente conversível em vale-tudo pedagógico. Em suma: as iniciativas pedagógicas voltadas aos jo- vens têm de estar envoltas por um misto de rigor, dispo- sição e serenidade, lastreadas por um contrato de traba- lho claro entre as partes. Se a parte docente é cumprida, tudo leva a crer que o restante é conseqüência. Se assim conduzidos os esforços, teríamos uma esco- la em que o delicado diálogo assimétrico entre as duas ge- rações estaria mais ou menos equacionado, sem o apelo fácil do revanchismo em relação aos mais novos. Afi nal, todo convívio escolar transformador será sempre media- do por um certo grau de acolhimento e generosidade que emoldure silenciosamente os fazeres cotidianos. 7. Indisciplina discente e autoridade docente CC. - O que acontece nas salas de aula e nos corredores, as relações interpessoais, com suas intimidades e seus con- fl itos, a multiplicidade das lógicas e das linguagens, ou seja, o dia-a-dia das escolas, tem sido um campo de ten- sões e não de alternativas e consensos. O professor per- deu a legitimidade diante dos alunos? Para os alunos pes- quisados, disciplina e, sobretudo, limpeza são questões tão relevantes quanto as de ordem pedagógica. Essa de- manda por regras claras e ambiente agradável pode ser um bom indicativo para a escola, mas concretamente as queixas sobre a indisciplina e até mesmo a violência nas relações e em relação ao patrimônio escolar são crescen- tes. O que está acontecendo com a autoridade do profes- sor e com as normas básicas de civilidade na convivên- cia escolar? JGA. - As relações pessoais representam certamente o nú- cleo mais instável da vida nas escolas e apontam invaria- velmente para duas temáticas inter-relacionadas: a indis- ciplina discente e a autoridade docente. Os vínculos cotidianos entre os protagonistas escola- res, marcados às vezes por confrontos agudos, outras ve- zes por um esforço velado de domesticidade, fi ndam por revelar os percalços do projeto escolar contemporâneo. Em que pese a alegação de que a indisciplina é um fe- nômeno generalizado e observável por todos e qualquer um, mais apropriado seria tomá-la não como caracterís- tica emblemática da infância e da juventude atuais, tam- pouco como predisposição particular de alguns alunos em situação de desvantagem social, familiar etc., e sim como um conjunto de atos transgressivos circunscritos aos có- digos normativos em uso em determinado contexto pe- dagógico – quer pela obscuridade ou pela rigidez das normas de conduta ali norteadoras, quer por sua im- plausibilidade ou, ainda, sua inefi cácia. Em suma: tra- François Dubet A prática como forma de conhecimento Conhecido por suas pesquisas sobre a juventude marginalizada na França, François Dubet quis viven- ciar os dilemas da escola francesa contemporânea. Durante um ano, ele trabalhou como professor de História e Geografi a em um colégio da periferia de Bordeaux, França. François Dubet é pesquisador do Centre d’Analyse et d’Intervention Sociologiques (CNRS – École des Hautes Études en Sciences Sociales), professor titular e chefe do Departamento de Sociologia da Universidade de Bordeaux II e mem- bro sênior do Institute Universitaire de France. É autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais: La galère: jeunes en survie. Paris: Fayard, 1987; Les lycéens. Paris: Seuil, 1991; Sociologie de l’experience. Paris: Seuil, 1994 (Edição portuguesa: Lisboa, Instituto Piaget, 1997) e A l’école (com Danilo Martucelli) Paris: Seuil, 1966. Adaptado de: 54 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 ta-se de um conjunto de micropráticas transgressivas das normas escolares ali em vigor – sem contar a legi- timidade, ou não, delas. Se o ato indisciplinado fosse ajuizado dessa manei- ra, não se correria o risco de confundi-lo com os fenô- menos da incivilidade e da violência, visto que não se trata de ocorrências com uma mesma raiz. A indiscipli- na remete precisamente aos usos e costumes escolares, ao passo que a incivilidade aponta para a inobservân- cia das regras de polidez mais gerais, enquanto a vio- lência refere-se à intimidação física e/ou moral contra outrem pelos mais variados motivos – esta infi nitamen- te menos freqüente do que as outras duas. Se partirmos do pressuposto de que onde houver normas haverá transgressão, será necessário admitir que ambas são termos indissociáveis de uma mesma equação. Disso decorre que os contratempos discipli- nares remetem mais à natureza e ao teor da interven- ção docente do que propriamente ao perfi l dos trans- gressores da ordem escolar, visto que o ato indiscipli- nado evoca uma correlação imediata com o manejo da autoridade docente – ora pelo excesso, ora pela falta dela. Daí ser possível concluir que se trata de um efei- to possível, mas não necessário, do tipo de relação es- tabelecida nas salas de aula atualmente. As tentativas de compreensão do fenômeno disci- plinar fi ndam por se endereçar a hipóteses exógenas aos fazeres pedagógicos, ausentando assim a inter- venção docente do quadro explicativo do fenômeno. O ato indisciplinado, quase sempre, encontrará uma al- ternativa de administração tão corriqueira quanto in- frutífera: a tentativa de correção atitudinal do aluna- do “desviante”. Isso acontece porque o ato indisciplinado é compre- endido, na maioria das vezes, como expressão: - de distúrbios psíquicos individuais – a famigerada “falta de limites”; ou - de conjunturas sociais problemáticas – as tais “famí- lias desestruturadas”, por exemplo; ou - da desacomodação institucional operada pela incor- poração de um contingente populacional alheio às roti- nas pedagógicas clássicas – o lado supostamente obs- curo da democratização escolar. Primeiro a advertência, depois a represália, por fi m o encaminhamento externo: eis o roteiro prévio das estratégias de manejo dos infratores escolares, todas elas trazendo em seu bojo, por um lado, a iminência do desvio de função e da desincumbência profi ssio- nal e, por outro, a exclusão de uma parcela crescen- te do alunado. Na contramão de tais estratégias e tendo em mente que o enfrentamento do ato indisciplinado será sem- pre contingencial, é preciso enfatizar que apenas a pa- lavra cotizada em sala de aula poderia fazer frente ao impacto desagregador dos incidentes disciplinares – o que conclama novamente a autoridade docente e a re- lação professor-aluno. Isso porque toda vez que o professor relega a atua- ção propriamente pedagógica a um segundo plano, a instituição escola entra em risco de colapso. Sempre que voltada a funções não pedagógicas, a relação pro- fessor-aluno conhece um princípio de dissolução, visto que o pacto de confi ança institucional se quebra. Daí a aposta no recurso do contrato pedagógico. Tal perspectiva requer um claro compromisso ético e político dos profi ssionais da educação. Compromisso ético no que diz respeito a formas narrativas laboriosas, marcadas pelo apego incondicional aos saberes acumu- lados e à sua reapropriação inventiva. Compromisso po- lítico no que se refere a formas de relação legitimadas por ambos os parceiros da ação pedagógica, por meio das quais seja possível a construção de regras de traba- lho e de convívio expressamente democráticas. Novos protocolos, portanto, que apostem no reen- cantamento do mundo escolar, lastreado pela premis- sa da educabilidade de todos os alunos, em quaisquer condições – obrigação última de uma escola que se pre- tenda democrática. 8. Crise de responsabilidade na família e na escola CC. Na enquete realizada pelo Portal Educarede, 83,94% dos professores acreditam que a família, por diferen- tes motivos, acaba atribuindo à escola a responsabilida- de pela educação dos alunos e 37,26 % disseram que a família está distante da educação escolar. No entanto, a ... a relação entre família e escola ocorre numa tensa zona de fronteira, ambas sempre em disputa pela delimitação de suas responsabilidades contíguas e cambiantes. 55 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 fala dos pais indica sempre uma preocupação com a es- cola dos fi lhos, mas eles se sentem pouco à vontade para participar. Qual é o grau de responsabilidade da esco- la pela educação dos alunos e em que é necessária uma participação mais ativa dos pais no ensino de 5a a 8a sé- ries? A “crise da família” precedeu e, de certa forma, ge- rou a “crise da escola”? JGA. Abarcando duplamente as instituições família e es- cola, a noção de crise da educação tornou-se um dos em- blemas do momento histórico presente, marcado por um movimento irrefreável de desencaixe e desregulamenta- ção das práticas sociais tais como eram reconhecidas até um passado próximo. Alguns vêm denominando os novos tempos como pós-modernidade, hipermodernidade, mo- dernidade líquida etc. Daí não haver razão para tomarmos as transformações da família como precedentes ou geradoras dos imbróglios escolares. Ambas instituições são coetâneas e igualmen- te herdeiras das mutações sociohistóricas. Do ponto de vista educativo, o efeito mais agudo de tais mutações parece ser a perplexidade dos mais velhos em relação aos hábitos e condutas da infância e da ju- ventude, muitas vezes tidas como insolentes ou, de modo oposto, excessivamente conformadas. Três disposições passam então a acompanhar os pro- tagonistas sociais responsáveis pelo trato com os mais novos: - a melancolia traiçoeira dos supostos “bons tempos” que não voltam mais; - a esgarçadura da visão coletiva de futuro, resultando num nítido desassossego quanto ao mundo que abrigará nossos fi lhos e alunos; - a mútua responsabilização, por parte de pais e pro- fessores, pelos descaminhos do trabalho educativo. Mais correto, então, seria admitir que a relação en- tre família e escola ocorre numa tensa zona de fronteira, ambas sempre em disputa pela delimitação de suas res- ponsabilidades contíguas e cambiantes. Uma relação de confl ito e ambigüidade porque crivada pela imbricação de determinados afazeres ou, algumas vezes, pela inver- são deles – por exemplo, quando a escola espera que os pais sejam acompanhantes pedagógicos de seus alunos, enquanto a família espera que os profi ssionais da educa- ção sejam “segundos pais” para seus fi lhos. Expectativas fadadas ao fracasso, afi nal. A instabilidade da relação família/escola se anuncia já na própria Constituição do país. Lá, a educação é tor- nada dever indistinto tanto do Estado quanto da família. Família, nesse caso, remete ao âmbito informal primeiro, ao passo que ao Estado, por meio da escolarização (seja ela estatal, seja privada), caberia a cota formal da tarefa educativa. E logo se fazem pressentir os mal-entendidos daí decorrentes. Exemplos disso são: da parte das escolas, a convic- ção de que boa parcela dos problemas práticos dos edu- cadores se deveria à desestruturação familiar do aluna- do – clichê repetido por nove entre dez profi ssionais da educação brasileira. Da parte das famílias, a atribuição de funções antes atinentes ao âmbito familiar, relaciona- das à guarda e à tutela moral da infância e da juventude, o que acarretaria uma infl ação das demandas atribuídas aos profi ssionais e, conseqüentemente, o ofuscamento das ações pedagógicas. Ora, qualquer delimitação das fronteiras institucionais de cada uma das práticas deveria evitar o bordão mais co- mum no meio educativo: o “trabalho a quatro mãos”. Qua- tro mãos que atuariam juntas apenas nos casos de êxito pedagógico, pois quando há fracasso de alguma ordem, as mãos parentais são as mais responsabilizadas. Se, por um lado, os pais têm a obrigação de delegar a educação formal de seus fi lhos aos profi ssionais respon- sáveis, por outro, os educadores têm de honrar esse com- promisso evitando a intromissão abusiva na dinâmica in- terna das famílias, por mais que se imaginem convoca- dos a tal. Ainda que sejam instituições vizinhas, são bas- tante díspares em seus perímetros de atuação. O que as distingue é o enfrentamento das questões da vida priva- da (na família) e os da vida pública (na escola). Daí a im- prescindível atitude de discrição que deve presidir a rela- ção família/escola. No que diz respeito à participação dos pais, a atitude de delegação confi ante deveria somar-se à do encoraja- mento diuturno das crianças para o enfrentamento da vida coletiva, materializado nas pequenas batalhas do dia-a- dia escolar. Trata-se de um universo imensurável de des- cobertas oferecidas pelas relações entre os pares escola- res e, principalmente, pelos mais velhos – desde que es- tes não abram mão de seu papel de guardiões do bem comum escolar. 9. Experiências educativas criativas e inovadoras CC. Os resultados dos exames nacionais evidenciam que, nos bairros periféricos, o ensino tende a ser ain- 56 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 da mais defi citário. Episódios de violência e indiscipli- na são citados como empecilhos ao bom desenvolvi- mento da escolaridade. As periferias das grandes ci- dades precisam de um modelo novo de escola, com ou- tras funções, outros profi ssionais, contratos e horários? Como fi xar os professores nas escolas, evitando a roti- na das transferências? JGA. No Brasil, há hoje 30 milhões de alunos concen- trados no ensino fundamental público, em suas esfe- ras federal, estadual e municipal, mais outros três mi- lhões atendidos pelo ensino privado: cifras iguais à de todo o contingente populacional do Canadá e duas ve- zes o do Chile. Se partirmos do pressuposto de que a incorporação e a acomodação da população às escolas são necessa- riamente graduais e, portanto, vagarosas, já que devem compatibilizar forças sociais múltiplas e dissonantes, faz-se necessário levar em conta os enormes entraves, tanto aqueles de ordem político-administrativa quan- to os de mentalidade social e profi ssional, que se in- terpõem a uma intervenção de magnitude continental, como é o caso brasileiro. As avaliações atuais da escolarização pública têm revelado resultados impressionantes no que diz respei- to ao precário desenvolvimento das habilidades míni- mas que deveriam e poderiam ser desenvolvidas pelo trabalho escolar. Tais resultados têm delatado uma es- pécie de imobilidade aguda da instituição escolar, imo- bilidade esta corporifi cada em usos e costumes peda- gógicos inócuos e repetidos à exaustão. Urge, pois, a criação de experiências pedagógicas radicalmente dis- tintas das que hoje dispomos. E é exatamente em con- textos improváveis que, paradoxalmente, elas por ve- zes despontam. Os dados aferidos por uma pesquisa de campo rea- lizada pelo UNICEF em parceria com o MEC, junto a 33 escolas públicas distribuídas pelo país, as quais tive- ram bom desempenho na “Prova Brasil”, revelam algo merecedor de atenção: ilhadas em contextos pauperi- zados (em todos os sentidos), experiências efi cazes de ordenação das rotinas organizacionais e pedagógicas vicejam incólumes. Experiências de alto teor ético-político, a despeito de seu anonimato e acanhamento. Experiências não necessariamente modelares, mas que poderiam inspi- rar pactos rigorosos dos outros profi ssionais com ações expressamente inclusivas, sem que isso representasse qualquer espécie de vulnerabilidade ou danação insti- tucional. Experiências dignifi cantes, enfi m. A pesquisa do UNICEF e do MEC fi gura como um si- nalizador daquilo que, de algum modo, é intuído por muitos: oriundas mais da vontade coletiva dos segmen- tos envolvidos do que da tutela externa, experiências escolares emancipadoras são plenamente possíveis, seja nos bairros periféricos das grandes cidades, seja em rincões afastados. Mais ainda, é exatamente lá, nas bordas do tecido social, que o trabalho escolar parece angariar mais va- lor e signifi cado para a comunidade que dele se vale. E é exatamente lá que a vontade de mudança dos profi s- sionais da educação parece encontrar um terreno fértil e ávido para a experimentação e a consecução de for- mas alternativas e profícuas dos fazeres escolares. Isso posto, cabe ressaltar que medidas organizacio- nais genéricas – como a fi xação de profi ssionais por meio de remuneração adicional; práticas e rotinas pe- dagógicas compensatórias etc. – são necessárias, mas não inteiramente sufi cientes para uma possível altera- ção da ambiência educativa de determinados estabe- lecimentos de ensino, marcados tanto pelo abandono dos poderes públicos quanto pela conseqüente deser- ção profi ssional daqueles a eles ligados – o que pode ocorrer, inclusive, também com escolas centrais e seu público em menor desvantagem socioeconômica. O que parece mais contar, afi nal, são a vontade política e a determinação pedagógica dos protagonistas escolares rumo à criação e à mudança, ambas atentas à preservação do legado cultural que lastreia as narrativas escolares. É ta- refa magna dos profi ssionais, pois, assegurar práticas que aspirem à conversão do espaço escolar num bem comum inestimável – aquilo que ele já o é, em sua raiz. 10. Pacto pela revitalização dos fazeres escolares CC. - Embora a descentralização da gestão educativa caminhe rapidamente, ainda temos uma descentraliza- ção truncada, com evidentes difi culdades de reconhe- cimento e convivência entre sistemas de ensino autô- nomos municipal, estadual e federal. O sucesso dos sistemas municipais de ensino depen- de da descentralização maior de recursos, para além do Fundeb, ou de investimentos maiores na formação de competências locais para a gestão administrativa e pedagógica dos sistemas? 57 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Nesse sentido, os mecanismos de participação exis- tentes – o Conselho de Escola, a Associação de Pais e Mestres, o Grêmio Escolar com raras exceções, torna- ram-se mecanismos formais de participação, sem alma e motivação para construir uma verdadeira comunida- de educativa. Que canais seriam indicados hoje para fortalecer a es- cola na construção de um projeto político-pedagógico mais participativo? JGA. - Descentralização de recursos e fomento a com- petências locais são dois elementos convergentes e in- dispensáveis no que se refere ao “desengessamento” e, portanto, à maior democratização dos sistemas. Es- pecifi camente no que tange ao segundo elemento, o processo de municipalização do ensino fundamental é uma mostra de resultados signifi cativos. Não obstante a efi cácia de iniciativas de tal natu- reza, é certo que a convivência entre os três sistemas padece da falta de um eixo dorsal comum, a despeito da proposta, por exemplo, dos Parâmetros Curricula- res Nacionais – uma iniciativa com pouca penetração nas salas de aula. O caso dos PCN é ilustrativo do descompasso entre as políticas públicas e a base dos sistemas. Daí a ne- cessidade de que transformações substantivas do mo- dus operandi escolar emanem do próprio cotidiano es- colar/pedagógico e que atentem para as especifi cida- des regionais/locais. É imperioso, portanto, que tais iniciativas tenham em vista a ambiência institucional de cada estabelecimento de ensino, salvaguardando sua autonomia. Isso não signifi ca apego exclusivo aos mecanismos de participação e decisão locais – os conselhos, asso- ciações, grêmios etc. – visto que, muitas vezes, eles po- dem se tornar dispositivos formais, desinvestidos de seu papel fomentador do diálogo da escola com a co- munidade. Eles são tão-somente canais de participação dos diferentes segmentos nas decisões. Deve-se lem- brar, portanto, que o lastro democrático de determina- da ação escolar não se resume à prática da participa- ção representativa nos órgãos decisórios. Democratizar a realidade escolar obriga-nos a ter de nos haver com uma engrenagem complexa e moro- sa, que se movimenta de modo não linear, ao sabor de avanços e recuos. Assim, deliberações internas ou di- retrizes mais gerais só serão levadas a cabo se os pro- tagonistas escolares as legitimarem e as incorporarem a seus fazeres – o que requer a formulação de um gran- de pacto civil em favor da revitalização dos fazeres esco- lares. Um pacto de cima para baixo, da esquerda para a direita, que envolva não apenas a atuação orgânica dos segmentos profi ssionais diretamente envolvidos, como também a continência vigorosa da sociedade civil. Sem tal disposição política, qualquer diretriz ou deliberação, por mais bem-intencionadas, tendem a soçobrar. Mais pormenorizadamente, trata-se de um grande pacto coletivo estruturado segundo princípios mínimos e alheios a propósitos redentores ou imediatistas, mas sempre lastreados pela premissa da educabilidade efe- tiva de toda criança ou jovem, em qualquer situação. Talvez assim se possa confrontar a cultura de estigma- tização do ensino público e de sua clientela, orquestra- da por determinados setores sociais, e, com isso, sedi- mentar a premissa da escolarização de qualidade como sinônimo de um direito coletivo conquistado a duras penas, jamais um privilégio individual adquirível so- mente nas instituições privadas. Um pacto desse quilate requereria disposição e per- severança de seus signatários. Isso porque quando nos debruçamos sobre o fato educativo, uma transformação substancial é morosa, fruto de anos de investimentos pesados, não apenas do ponto de vista material, como também, fundamentalmente, ideológico. Some-se a isso o fato de que os profi ssionais atuais pertencem a uma geração que tem de ensinar o que não aprendeu – o que ainda exige um forte investimento pessoal. Não obstante os desafi os conjunturais, nada nos impede de cultivarmos horizontes inéditos, mesmo sa- bendo de antemão que não será a nossa geração que deles desfrutará. Este é o preço da necessária generosidade em rela- ção aos mais novos; só resta saber se estamos dispos- tos aos sacrifícios que tal escolha impõe. Não obstante os desafi os conjunturais, nada nos impede de cultivarmos horizontes inéditos, mesmo sabendo de antemão que não será a nossa geração que deles desfrutará. 58 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 A proposta deste texto é mostrar como um projeto de formação continuada, que articula o currículo com a rea- lidade, assume o trabalho com a leitura e a escrita como compromisso de todos, e, contando com a autoria do pro- fessor, pode se transformar em uma alternativa para me- lhorar os resultados da aprendizagem dos alunos. Como surgiu o Projeto Desde a sua fundação, o Cenpec desenvolve ações que visam à melhoria do ensino fundamental, mas é a partir de 1996, com a realização do Projeto Ensinar e Aprender1 — implementado no Paraná, em São Paulo, no Espírito Santo, em Goiás e no Mato Grosso — que inicia um tra- balho efetivo com a segunda etapa do ensino fundamen- tal ou de 5a a 8a séries do ensino fundamental. Ensinar e Aprender é um projeto de formação de pro- fessores especialistas de área, com apoio de material di- dático, que visa garantir a conclusão do ensino funda- mental para alunos com defasagem idade-série. O desenvolvimento desse projeto fortaleceu a idéia de que era preciso construir propostas que ajudassem a melhorar a aprendizagem dos alunos nessa etapa do ensino fundamental. Com esse propósito, em 2005, o Cenpec e a Fundação Volkswagen iniciaram um trabalho conjunto, destinado à formação de professores e gesto- res que atuam nesse ciclo de ensino. A realização desse trabalho e o contato intenso com os professores e gestores das escolas participantes ge- raram a necessidade de compreender melhor as condi- ções em que se desenvolvem o ensino e a aprendizagem. Iniciou-se então, paralelamente a essa formação, um es- tudo2 com essa preocupação. Surgia, assim, o Projeto Leitura e Escrita: desafi o de todos. Atualmente, esse Projeto integra o Programa Territó- rio Escola, desenvolvido em parceria com a Fundação Volkswagen. O Programa Território Escola tem três propostas- chave: - articular a atuação da escola com as práticas cul- turais do território em que está inserida, buscando dar sentido às aprendizagens dos alunos; - ampliar o letramento como ferramenta de base para o acesso ao conhecimento e à cidadania; - somar esforços com outros espaços educativos da comunidade, na perspectiva da educação e da proteção integral de crianças e de adolescentes. A denominação Território Escola foi intencionalmen- te escolhida por sugerir uma refl exão sobre as concep- ções que consideram a escola e a comunidade um ter- ritório onde pulsam relações humanas e onde é possí- vel estabelecer vínculos de pertinência entre institui- ções e serviços públicos de atendimento a crianças e adolescentes. Assim, é muito importante o protagonismo dos agen- tes da escola e da comunidade, pois a escola só poten- cializa a sua prática articulando-se e complementan- do-se com outros recursos, espaços e sujeitos presen- tes no território. Integram o Programa Território Escola os seguintes projetos: - Entre na Roda; - Estudar pra Valer; - Brincar; - Ações em Rede; - Leitura e Escrita: desafi o de todos. O Projeto iniciou suas atividades por meio de uma parceria com as diretorias regionais de ensino (órgãos regionais da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo) de São Carlos e São Bernardo do Campo e a Rede Municipal de Bebedouro, e envolveu 131 escolas e 408 * Maria Estela Bergamin é pedagoga e coordenadora da área de Educação e Sistemas de Ensino do Cenpec. RELATO DE PRÁTICA Leitura e escrita: ainda um desafi o. Maria Estela Bergamin* 59 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 educadores (professores, coordenadores pedagógicos e gestores). Seu objetivo é desenvolver a capacidade de leitura e produção de textos, nas diferentes áreas do conhecimen- to, com alunos de 5a a 8a série, ampliando suas possibi- lidades de leitura do mundo e inserção sociocultural. Compartilha-se assim, entre todos os professores, in- dependente da área em que atuam, a responsabilidade de criar situações intencionais de aprendizagem de lei- tura e de produção de textos orais e escritos. Nesse sentido, pretende-se que os alunos tenham, além do domínio do conteúdo específi co de cada com- ponente curricular, condições de entrar em contato com diferentes linguagens, gêneros e portadores textuais pre- sentes no mundo. O mundo contemporâneo e o papel da escola Vivemos em um mundo que exige, cada vez mais, co- nhecimento amplo dos usos que se fazem das linguagens nas diversas práticas sociais. No cotidiano, no trabalho, nas relações pessoais, na política, na escola, enfi m, nas mais diferentes situações de comunicação, é importante dominar os instrumentos que permitam o acesso a no- vas informações, aos saberes e à cultura de modo geral, e à participação social. O domínio da leitura e da produção de textos que cir- culam em todas as esferas do mundo contemporâneo é um verdadeiro divisor social: sem ele, a participação do indivíduo fi ca limitada. Em uma sociedade dinâmica, por onde circulam tantas informações, as necessidades vão muito além do conhecimento para decodifi car, reconhe- cer as letras e escrever o nome. Educar, nessa sociedade, não se restringe à transmis- são de conhecimentos, por mais relevantes e atualizados que possam ser. Demandam-se pessoas capazes de rea- lizar leituras autônomas e críticas, de modo que possam utilizar o conhecimento adquirido para o seu desenvol- vimento pessoal e do grupo no qual estão inseridas. Exi- ge-se também que elas saibam se comunicar por meio da linguagem, de forma adequada, ajustando o discur- so às características do contexto, escolhendo o gênero e os recursos lingüísticos pertinentes. Entre os inúmeros papéis que a escola precisa desem- penhar atualmente na sociedade, a formação de leito- res e escritores competentes talvez seja o mais vital. Ao cumprir esse papel, a escola estará fornecendo, ao es- tudante, os instrumentos necessários para que consiga buscar, analisar, selecionar e organizar as informações complexas do mundo contemporâneo. No Brasil, os resultados das avaliações de leitura re- afi rmam o papel fundamental da escola na formação do leitor. Essa responsabilidade é tanto maior quanto me- nor for o grau de letramento das comunidades onde vi- vem os alunos. Os resultados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional – INAF mostram que a escolaridade é o princi- pal fator de promoção das habilidades e práticas de lei- tura, sendo que os níveis mais altos são atingidos so- mente por aqueles que completaram as 8as séries do ensino fundamental. Conclusões semelhantes são apontadas pelo Progra- ma Internacional de Avaliação de Alunos – PISA, que in- clui o ensino médio. Os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB informam que há um aumento da profi ci- ência em leitura ao longo da escolaridade, mas mostram também que, da 4a para a 8a série, esse aumento é mo- desto. Há, ainda, um número signifi cativo de alunos que concluem o ensino fundamental com muitas difi culdades para compreender o que lê e produzir textos simples. Essa situação fi ca particularmente comprometedora nas séries fi nais do ensino fundamental. Nessa etapa da escolaridade, sai de cena o professor polivalente e en- tram os professores especialistas nas diferentes disci- plinas do currículo. Muitos desses professores esperam que as capaci- dades de leitura e escrita dos alunos que recebem es- tejam estabilizadas e em altos patamares, o que não se verifi ca nas avaliações externas. Além disso, sentem-se despreparados para lidar com a baixa profi ciência que observam. Sabe-se ainda que a estrutura e o funciona- mento desse ciclo de ensino difi cultam a implementa- ção de um trabalho articulado e integrado entre os pro- fi ssionais docentes. Em uma sociedade dinâmica, por onde circulam tantas informações, as necessidades vão muito além do conhecimento para decodifi car, reconhecer as letras e escrever o nome. 60 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Esse cenário nos leva a perguntar: • Se formar leitores e escritores competentes é uma necessidade crucial, por que não envolver todos os professores de 5a a 8a série nesse desafi o? • Por que deixar uma tarefa tão complexa apenas para o professor de português? • Como isso pode ser viabilizado sem que cada uma das disciplinas perca a sua especifi cidade? Conexão entre currículo e vida A quantidade de informação acumulada no mundo atual e a velocidade com que essas informações são amplia- das, revistas e substituídas fazem com que o ensino e a aprendizagem privilegiem o desenvolvimento de habili- dades para buscar informações, selecionar, interpretar, relacionar e processar conhecimentos. Cada área do conhecimento tem sua importância na formação do leitor e do autor de textos orais e escritos. Assim, é o conjunto dos educadores que irá garantir a ampliação do acesso das crianças e jovens ao mundo letrado. Mas, evidentemente, existe uma diferença en- tre o trabalho de leitura e de produção em Língua Por- tuguesa e nas outras áreas: para a Língua Portuguesa, a leitura e a produção de textos são os objetos de ensi- no e aprendizagem. Já, segundo Zoraide Faustinoni da Silva: (...) os professores das outras áreas utilizam a leitura e a escrita como instrumentos para a aprendizagem de conteúdos de sua área. As capacidades de leitura e pro- dução funcionam como ferramentas que se relacionam dialeticamente com os conteúdos dessas áreas. Trata-se de uma relação de mão dupla. Para que aprendam os conteúdos das áreas, os alunos precisam saber explorar um texto, o que signifi ca: • localizar informações; • fazer inferências; • identifi car idéias principais; • distinguir fato de opinião; • reconhecer a intencionalidade do autor; • avaliar criticamente as informações e os argumen- tos; • lidar com o vocabulário específi co da área etc. Por outro lado, os conteúdos das diferentes áreas, seus conceitos, habilidades, valores e procedimentos concorrem para a ampliação do letramento, tornando o sujeito mais apto a ler o mundo em que vive (Faustino- ni, 2006). Esse trabalho com a leitura e a produção de texto em todas as áreas do currículo insere-se num movimento mais amplo de organização curricular, que se conecta com as realidades culturais do aluno e com o território onde se situa a escola. Para serem signifi cativas, as vivências em sala de aula precisam estar relacionadas às práticas culturais dos alunos: o lazer, o trabalho, o estudo, as relações do cotidiano, as religiões, os rituais etc. O conhecimento dessas práticas e o acesso a dife- rentes espaços, na escola e fora dela, no bairro e na ci- dade, são fundamentais para ampliar os níveis de letra- mento dos alunos. A falta de sintonia entre o currículo escolar e a realida- de tem sido apontada como uma das causas do desinte- resse dos adolescentes pela escola e pelos estudos. Essa falta de sintonia se manifesta, em primeiro lu- gar, na distância que se estabelece entre os conheci- mentos universais, veiculados pelas diferentes discipli- nas, e o território onde se localiza a escola e vivem os alunos: a vivência é um atributo do lugar; é nele que se estabelecem as relações sociais com as instituições e com o trabalho e que se desenvolvem a subjetivida- de e a cultura. 60 61 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 A relação do indivíduo com a vida é mediada pelo lu- gar em que ele vive. A aprendizagem implica construção de sentido, e o que faz sentido para os alunos são suas vivências e práticas culturais: as relações sociais que es- tabelecem, os saberes que já trazem para a escola, as crenças e os valores com os quais se identifi cam. Essa etapa da escolaridade coincide com o momento em que eles estão passando da infância para a adoles- cência; assim, os confl itos são acentuados e quase tudo é questionado: o mundo dos adultos, a escola, seus con- teúdos e seus métodos. Como pode haver aprendizagem com um currículo apartado da vida que pulsa ao redor da escola? A escola estará compreendendo o aluno com o qual lida e o espaço em que ele vive, se intensifi car a sua prá- tica na vida do lugar e se enraizar no território. Cabe a ela representar a cultura local, valorizá-la, disseminá-la, propiciando o intercâmbio entre ela e o que é disposto no mundo, para melhorar a vida do sujeito de aprendi- zagem e de sua comunidade. Além disso, a escola deve considerar o processo his- tórico da globalização e a presença das mídias e tec- nologias no território e procurar responder a algumas questões: • Como isso se manifesta no local? • Que percepções os alunos têm dessas relações? • Como os conhecimentos universais podem des- velar essas questões? Interpretar as variáveis e contribuir para que os es- tudantes compreendam os processos sociais que ocor- rem no lugar onde vivem, a partir dos conceitos especí- fi cos das diferentes áreas do conhecimento, é, portan- to, o grande papel da escola pública. É importante também que a escola se articule com ou- tras instituições e serviços locais, principalmente os de caráter educacional, potencializando e complementando a formação necessária às nossas crianças e jovens. Em decorrência desse cenário, o currículo escolar pre- cisa dialogar com a dimensão e a velocidade da cultura global. Segundo Chaveiro (2006): (...) a escola, e sua prática, deve mediar o lugar com o global, respeitando o que é singular e aprendendo com o que é universal. (...) A vida e o conhecimento juntos podem então esclarecer o mundo que existe no lugar e efetivar uma consciência do modo como o lugar participa do mundo. O Projeto e suas propostas curriculares O fortalecimento do papel dos professores como leito- res, escritores e autores de atividades curriculares para seus alunos é outro aspecto bastante valorizado no Pro- jeto. Isso porque, além de colocar o professor como pro- dutor de conhecimento, ele pretende disseminar as ati- vidades produzidas, contribuindo para a sua irradiação em outros municípios. Para realizar essas fi nalidades, o Projeto oferece um programa de formação continuada sistemática, com du- ração de três anos, destinado a professores e gestores que atuam no ciclo de 5a a 8a série. A participação des- ses educadores está condicionada à adesão. Esse programa prevê momentos presenciais e a dis- tância e é realizado sob a forma de ofi cinas, conduzidas pelo Cenpec, nos municípios que aderiram ao Projeto. Nessas ofi cinas, professores e gestores têm a oportu- nidade de refl etir sobre os critérios para selecionar os conteúdos e os temas em cada uma das áreas, discutir e desenvolver as novas práticas docentes, buscar novas formas de trabalho com a leitura e a escrita em sala de aula e produzir as atividades curriculares seqüenciadas para seus alunos. Vejamos como os princípios do Projeto estão se con- cretizando nas diferentes áreas e que propostas curricu- lares estão sendo construídas. Propostas para todas as disciplinas Leia, a seguir, um resumo das propostas elaboradas, em conjunto, pelos formadores do Cenpec e os profes- sores de São Carlos, fruto do Programa de Formação de- senvolvido nesse município, em 2006. A relação do indivíduo com a vida é mediada pelo lugar em que ele vive.(...)Como pode haver aprendizagem com um currículo apartado da vida que pulsa ao redor da escola? 62 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 ARTE Maria Teresinha Teles Guerra Formadora do Cenpec na área de Artes. Educar para a produção e a compreensão das ma- nifestações artísticas contribui de forma inequívoca para a leitura de mundo e das inúmeras culturas, para o letramento, para a ampliação do olhar sobre si próprio e sobre o outro. Essa concepção orientou a organização dos trabalhos dos professores de Arte, que defi niram CIDARTE como tema, numa clara demonstração da inexistência de fronteiras entre o território da arte e o da cidade; vendo-o como algo híbrido, imbricado de valores simbólicos, com um grande, amplo e profundo acervo artístico, histórico e cultural, pa- trimônio material e imaterial da cidade e dos que nela habitam. Os professores optaram pelas Artes Visuais como a linguagem a ser trabalhada durante a formação, consi- derando a presença maciça da imagem nas sociedades contemporâneas e a urgência da formação de leitores e produtores nestes códigos. Foram privilegiadas quatro de suas modalidades: • Fotografi a — com foco na fi gura humana em seus contextos; • História em Quadrinhos — a temática é a cidade; • Desenho — que privilegia a arquitetura urbana e a instalação como forma de denúncia daquilo que, na cidade, seria urgente interferir. Em seu transcorrer, pretende-se investigar as ma- nifestações artísticas e estéticas locais, bem como os equipamentos culturais disponíveis na cidade de São Carlos, a fi m de promover uma relação de intercâmbio entre a escola, o entorno, a cidade e a região. A arquitetura da cidade será objeto de observação e estudo, com seus monumentos, museus, teatros, parques, casarios, cemitérios, outdoors, vitrines, propa- ganda, publicidade, grafi tes, pichação, lendas, festas, manifestações culturais etc. O trabalho com a leitura e a produção textual terá, como tema central de análise, os textos não-verbais. Também será dada atenção especial à linguagem verbal, em suas modalidades escrita e oral, de forma que os alunos desenvolvam habilidades para realizar pesquisas, registros e entrevistas, produzir resenhas e se apropriar da produção artística da humanidade também por meio do estudo da História das Artes. CIÊNCIAS Maria isabel iorio soncini Formadora do Cenpec na área de Ciências. Considerando que a escola é mais viva e os conhe- cimentos da área mais signifi cativos para o aluno quando ele consegue identifi car as relações entre o que aprende na escola e seu cotidiano, que a escola não pode estar separada da comunidade e que o conhecimento não pode fi car fechado em si mesmo, para abordar o tema escolhido para desenvolvimen- to das ofi cinas de formação — “Terra e Universo – a morada de todos nós” — foi proposto aos alunos que investigassem o que pensam suas famílias a respeito das origens da Terra e do Universo. A partir dessas representações, trabalhando-se com a metodologia da problematização, desenvol- veu-se um conjunto de atividades de observação de espaços da cidade — como aterros, praças, a região da microbacia do bairro de Aracy — em integração com Geografi a e com projetos ambientais locais. Durante todo o processo, os alunos são convida- dos a argumentar, ler e produzir textos de diferentes gêneros: relatórios, tabelas, quadros, gráficos, esquemas, imagens, músicas, poemas. O desenvolvimento da oralidade também tem seu lugar no ensino de Ciências por meio da discussão de idéias; defesas de pontos de vista com argumentos; exposição de dúvidas, de hipó- teses e de conclusões e realização de seminários. GEOGRAFIA Silas martins junqueira Formador do Cenpec na área de Geografi a. O trabalho de formação em Geografi a terá como base a realização de um estudo do meio no bairro de Cidade Aracy, onde se desenvolvem também os projetos Ações em Rede e Entre na Roda. Essa ação tem como objetivo colocar os edu- cadores em contato com a realidade do bairro, ao mesmo tempo que se apropriam da metodologia do estudo do meio, com seus momentos específi cos de planejamento, saída a campo e retorno. Pretende-se direcionar o estudo para que os professores refl i- tam e problematizem as práticas culturais locais, 63 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 conhecendo os lugares, as pessoas, as instituições e o que expressam, propondo, inclusive, possíveis ações de melhorias. Em princípio, haverá um esforço para articular os líderes comunitários, as ONGs, os projetos, os órgãos públicos e demais instituições que lá atuam, na intenção de que se conheçam e possam agir con- juntamente no bairro. O passo seguinte implica a articulação dos produtos obtidos no estudo do meio com os conceitos geográfi cos de lugar, paisagem, território e territorialidade. O trabalho com a leitura e a produção de textos se dá durante todo o desenvolvimento da proposta, com a utilização de diversos gêneros que utilizam diferentes linguagens: fotos, depoimentos, entre- vistas, croquis, relatórios. MATEMÁTICA Lenir morgado da silva Formadora do Cenpec na área de Matemática. Refl etir sobre o ensino da Matemática implica pen- sar sobre a sua natureza e os processos de produção do seu saber. É de fundamental importância analisar o que é a Matemática, qual seu objeto de estudo, por que e para que se ensina Matemática. Além da sua dimensão formativa — auxilia na forma- ção intelectual do sujeito, desenvolve um tipo particular de pensamento e raciocínio — ela tem papel instrumen- tal — constitui uma ferramenta útil para a execução de atividades cotidianas — e contribui para a interpretação e a intervenção do indivíduo na sociedade. Na elaboração de sua proposta de formação, a área levou em conta tanto essas diferentes dimensões quanto a necessidade de considerar os conhecimentos prévios trazidos pelos estudantes e a realidade em que vivem. Assim, foi escolhido o tema “Estatística”, enfati- zando-se o estudo de gráfi cos como meio de explicitar o uso social da leitura. O trabalho proposto apresenta diversas situações em que se faz necessário a leitura de gráfi cos, por exemplo, em artigos da mídia impressa e televisiva. A metodologia escolhida foi a de Resolução de Problemas com foco na problematização, investigação e leitura de enunciados. HISTÓRIA Antonio Aparecido Primo Formador do Cenpec na área de História. A área adota uma concepção de História segundo a qual tanto historiadores quanto professores reali- zam seus trabalhos a partir de problemas e/ou temas trazidos pelo presente, relacionando-os ao passado e refl etindo sobre o futuro. Nessa ótica, o ensino parte de questões do presente, volta ao passado para ampliar as refl exões e retorna ao presente. E é segundo ela que o tema defi nido pelos professores de História para os trabalhos de formação — “História, memória, juventude, família e diversidade cultural” — será desenvolvido, conside- rando-se diferentes famílias que viveram na cidade de São Carlos, em momentos históricos distintos, relacionando-os com o panorama geral do país e do mundo. Nesta proposta, ressalta-se ainda a importância de os alunos perceberem que um texto constitui uma versão do conhecimento histórico. O uso de docu- mentos históricos — principalmente se for observada a tendência atual de considerar documentos os tex- tos escritos (ofi ciais, jornalísticos, literários(...), as construções e as organizações dos espaços urbanos e rurais, a música, a dança, as imagens (pinturas, fotos, fi lmes, propagandas, charges etc.), os gestos, a tradição oral etc. — abre possibilidades para que o professor trabalhe com variados gêneros e lingua- gens, aspecto fundamental para ampliar o letramento dos estudantes. EDUCAÇÃO FÍSICA Adriano Vieira Formador do Cenpec na área de Educação Física. Propõe-se a construção de um currículo crítico para ser desenvolvido nas aulas de Educação Física, levando em conta as necessidades dos alunos, seus saberes e sua cultura. Sendo a cidade o lugar da vivência do sujeito, cabe à Educação Física ajudar o aluno a se instrumentalizar para se movimentar adequadamente nesse espaço. É importante compreender que os alunos já se movimentam e o fazem mergulhados em sua cultura 64 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 e nas interações com outros, na cidade onde moram. Movimentam-se para trabalhar, estudar, divertir-se, interagir nos grupos, significando e ressignificando seus movimentos e as suas fi nalidades. Então, é preciso saber mais sobre essas ações dos alunos e conhecer as características da cidade para serem problematizadas nas aulas. Nesse currículo, as habilidades de leitura e de produção de textos, assim como os conhecimentos específi cos da área, são essenciais. Para se apropriar dos conhecimentos da área, o aluno utiliza diversas linguagens: audiovisual, corporal/ges- tual, musical, plástica e, sobretudo, a linguagem verbal – escrita e falada –, pois muitos dos conhecimentos estudados, organizados e sistematizados pela Educação Física encontram-se materializados em livros, revistas, jornais, almanaques, vídeos, discos, fi tas cassetes(...) LÍNGUA PORTUGUESA Luiza Esmeralda Faustinoni Formadora do Cenpec na área de Língua Portuguesa. A língua materna é a nossa porta de entrada para o mundo da cultura. Pela linguagem, nos comunica- mos, expressamo-nos, defendemos pontos de vista, partilhamos idéias, produzimos cultura, participamos da vida social. Desde que nascemos, iniciamos um aprendizado sempre acompanhado pela Língua, como sistema simbólico, e pela linguagem, como atividade discursiva e cognitiva. Na nossa sociedade, a leitura e a produção de textos verbais são práticas culturais que permeiam outras práticas culturais. Partindo desses pressupostos, a área de Língua Portuguesa defi niu, como foco, o conhecimento dos hábitos de leitura e de produção de texto dos alunos, mães e pais, bem como as vivências culturais do en- torno: manifestações culturais, momentos de lazer, freqüência a bibliotecas, teatros, museus. Pretendeu-se, com isso: conhecer os repertórios de letramento dos alunos e das famílias; identifi car que acesso eles têm aos equipamentos culturais disponí- veis na comunidade mais próxima e mais distante e como usufruem deles; aumentar as possibilidades de uso dos espaços educativos do entorno para a amplia- ção dos níveis de letramento. Buscou-se, ainda, durante a formação, propiciar aos alunos a possibilidade de conhecer os diferentes discursos que circulam na sociedade e desenvolver habilidades para que possam reconhecer qual a sua intencionalidade, fomentar o senso crítico e produzir textos adequados às diferentes situações de vida. Apropriação conceitual e metodológica O envolvimento dos gestores das escolas e das secre- tarias e/ou órgãos regionais, pertencentes ao município parceiro, também é fundamental. Ele possibilita a irra- diação do Projeto dentro das escolas e para outras es- colas do município. No caso do município de São Carlos, a equipe técni- ca da Diretoria de Ensino, por meio de seus Assistentes Técnicos Pedagógicos - ATPs, desenvolve ofi cinas de for- mação que se articulam com aquelas realizadas pela equipe do Cenpec, complementando-as. Esse envolvimento possibilita que os professores e ges- tores das escolas e das secretarias se apropriem da con- cepção e metodologia do Projeto e possam dar continui- dade a ele, mesmo depois que a equipe do Cenpec e da Fundação Volkswagen encerrarem as suas atividades. A avaliação do Projeto e alguns resultados O Projeto tem uma metodologia de acompanhamento e avaliação dos processos, resultados e impactos que são obtidos nas escolas e nas secretarias de educação dos municípios onde é realizado. A gestão desse acompanhamento é viabilizada de for- ma compartilhada entre os diferentes parceiros: a Funda- ção Volkswagen, o município participante e o Cenpec. São realizadas reuniões entre esses parceiros para planeja- mento conjunto e monitoramento dos resultados parciais, além de visitas conjuntas de acompanhamento a algumas escolas do município que aderiram ao Projeto. Alguns aspectos vêm sendo monitorados pela Ges- tão do Programa: • Como os professores das diferentes áreas do conhe- cimento estão trabalhando com a leitura e escrita nas escolas? • Como eles estão relacionando os conteúdos com as práticas culturais do Território? 65 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 • Os gestores escolares estão acompanhando e sub- sidiando o trabalho dos professores? • Como tem sido organizado e conduzido o horário de trabalho coletivo nas escolas (HTPC)? • Tem havido disseminação do Projeto para outras escolas do município? • Os alunos estão melhorando sua capacidade de leitura e escrita? Após um ano e meio de desenvolvimento do projeto, já se evidenciam resultados: • Os professores de todas as áreas do conhecimento elaboraram, durante os encontros de formação, atividades de aprendizagem encadeadas, a serem desenvolvidas em sala de aula. Estas atividades foram construídas a partir de um tema seleciona- do, levando-se em conta tanto as vivências dos alunos quanto os conceitos-chave de cada área do currículo. Nas propostas elaboradas para o desenvolvimento dos conteúdos, a leitura e a produção de textos ganharam atenção especial. • O trabalho extrapolou os muros da escola e se estendeu para a comunidade. O estudo do meio, as entrevistas, a observação e a análise dos es- paços da cidade e de sua arquitetura, a utilização de mapas e gráfi cos, a análise de documentos históricos, as pesquisas sobre os hábitos de leitura da comunidade e a identifi cação de manifestações culturais possibilitaram a elaboração de propostas didáticas sintonizadas com o meio em que os alu- nos vivem, dando sentido à busca do conhecimen- to. Essa forma de trabalho gerou aprendizagem para os professores, colocando-os como autores de sua própria prática e fortalecendo uma atitude profi ssional mais refl exiva e investigativa. • Em relação aos gestores, houve um fortaleci- mento do seu papel de articulador do currículo, quer no interior da escola, quer entre a escola e a comunidade. Sua participação nas diferentes ações do Projeto os aproximou dos professores, aumentando sua cumplicidade, facilitando o acompanhamento do ensino e da aprendizagem. Em muitas escolas, esse envolvimento possibilitou a disseminação do Projeto para outros professores que não participaram da formação. Em 2007, os municípios de São Sebastião, Cara- guatatuba e Peruíbe implantaram o Projeto em suas escolas. Esse movimento indica que muitos profes- sores e gestores estão mobilizados para buscar no- vos caminhos que conduzam à melhoria da qualida- de da educação oferecida nesse ciclo de ensino. In- dica também que esse desafi o pode ser mais bem en- frentado quando partilhado com outros atores da so- ciedade, quando se transforma num desafi o de todos. Referências FAUSTINONI da Silva, Zoraide. Leitura e produção de textos no ensino fundamen- tal. Currículo em Debate, Goiás, SEE, Caderno 3, 2006. CHAVEIRO, Eguimar Felício. A escola pública entre o lugar e o mundo. Currículo em Debate, Goiás, SEE, Caderno 3, 2006. FUNDAÇÃO VOLKSWAGEN/Cenpec. Entre na Roda: leitura na escola e na comu- nidade. Introdução. São Paulo: 2006. Notas 1 Nesse Projeto, propõe-se que a seleção dos conteúdos se paute por critérios de abrangência explicativa para a compreensão da sociedade e da realidade local, e que as habilidades de leitura e de produção de textos, orais e escritos, sejam o eixo integrador das diferentes áreas do conhecimento. 2 Os resultados deste estudo se encontram no especial Estudos Cenpec, nesta edição. 66 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Decidi ser professora de Matemática por querer trans- mitir o amor que sentia por essa ciência aos meus alunos e, assim, ajudá-los em sua aprendizagem, estimulando- os a gostar da matéria sem ter medo de aprender. Quan- do comecei a lecionar, pensei em colocar em prática o que sempre quis, e foi aí que as difi culdades começaram. A primeira delas era a de não ser professora efetiva e, portanto, todo ano, era designada para uma escola di- ferente; às vezes, até num mesmo ano, passava por vá- rias escolas. O meu propósito, como professora, de cer- ta forma, era colocado em prática, mas nunca conseguia saber se havia obtido algum resultado, pois não era pos- sível sequer verifi car os progressos de qualquer de mi- nhas turmas. Muitas vezes pensei em desistir, pois me sentia “re- mando contra a maré”, porém, sempre acontecia algo que me trazia esperanças e me fazia continuar. Quan- do fui efetivada em uma escola pública, onde hoje le- ciono, fi quei motivada porque poderia, enfi m, acompa- nhar meus alunos e verifi car se eu estava no caminho certo. Essa escola fi ca em Itirapina, uma cidade peque- na do interior de São Paulo, em um bairro que sofre dis- criminação. Felizmente, a situação está mudando gra- ças à escola, à comunidade do bairro, às ONGs e ao po- der público local. Os alunos, em grande parte, são carentes e esta ca- rência não está relacionada somente às condições fi nan- ceiras. A escola tem um papel de suma importância em suas vidas, portanto, eu, como uma educadora nessa ins- tituição, tinha uma enorme responsabilidade e não po- deria, de forma alguma, decepcionar os alunos ou não cumprir a minha função. Uma de minhas turmas era de 5a série e eu teria a oportunidade de acompanhá-los até o término do ensi- no fundamental, então, não poderia falhar, minha práti- ca pedagógica seria responsável pelo sucesso ou o fra- casso deles. Notei falas e atitudes preconceituosas entre os alu- nos, e percebi que seria necessário trabalhar esse as- sunto com eles, sem deixar de lado os conteúdos mate- máticos que queria abordar. Geometria para estimular a convivência Desenvolvi, então, um projeto de trabalho intitulado Gente Nova. Nele, os alunos perceberam a importância de conviver com as diferenças e seus benefícios. Com esse objetivo, preparei uma seqüência de atividades para que eles pudessem se conhecer melhor e também refl e- tir sobre as regras de convivência e os valores sociais. Ao mesmo tempo, ensinei-lhes algumas noções e conceitos de geometria e resolução de problemas. Conversei com todos sobre o projeto para que pudes- sem conhecer seus objetivos e as razões que me levaram a planejá-lo, de forma que se envolvessem nas ativida- des. Em seguida, convidei-os a ouvir a canção Aquarela, de Toquinho. Inicialmente, procurei saber se os alunos conheciam a música — do que ela tratava — o composi- tor e o cantor, se já a tinham escutado antes e se gosta- vam da canção. Essa conversa foi mediada com perguntas e orienta- ções para a organização da exposição oral. Algumas re- gras foram lembradas: esperar a vez de falar, falar um de cada vez, respeitar a fala do outro(...) Esse momento foi importante para o grupo e houve bastante troca de in- formações. Muitos já tinham ouvido a canção, mas não haviam prestado atenção nos seus signifi cados. Assim, após ouvir a canção e acompanhar a leitura da letra, des- taquei, com os alunos, as belíssimas imagens que ela provoca e o jogo de palavras utilizado pelo compositor para despertar as emoções. Acrescentei também infor- * Ana Paula de Oliveira é professora de escolas públicas e partici- pante do Projeto Leitura e Escrita, em São Carlos, desde 2005. RELATO DE PRÁTICA PEDAGÓGICA Projeto Gente Nova: Matemática, poesia, leitura e geometria, para viver as diferenças. Ana Paula de Oliveira* 67 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 mações sobre o compositor e o cantor, que muitos não conheciam. A seguir, para desenvolver uma das atividades que compunham o projeto, dividi a classe de 32 alunos em grupos de quatro. Meu objetivo era trabalhar com a com- posição e a decomposição de fi guras planas e, ao mes- mo tempo, melhorar a oralidade, a escuta, a leitura e a produção de texto. Os alunos tiveram que resolver uma questão: repre- sentar, por meio de uma composição geométrica, um tre- cho da canção. Para isso, cada grupo recebeu uma estro- fe da música e uma folha com fi guras geométricas pla- nas (ver modelo abaixo). Cada grupo leu a sua estrofe e observou o quadro com a composição geométrica. Os alunos decidiram qual ilus- tração (representação gráfi ca) fazer enquanto escutavam a música. As produções foram realizadas em cartolina e cada grupo expôs oralmente sua produção e a disponi- bilizou para análise dos demais grupos. O grupo não especifi cou a qual estrofe a produção se referia. Dessa forma, os colegas tinham que resolver a questão: descobrir qual estrofe fora representada na ilus- xágono regular, dois triângulos eqüiláteros formam um losango, três triângulos eqüiláteros formam um trapézio isósceles etc.) Depois, conduzi uma discussão sobre a realização das atividades em grupo, por meio de perguntas que ti- nham o objetivo de nos fazer refl etir sobre as difi culda- des da tarefa, as formas de solução encontradas, as ne- gociações feitas com os colegas do grupo e com a clas- se, as atitudes e os comportamentos. Também foram es- tabelecidas metas para a correção dos problemas detec- tados. Para fi nalizar, os alunos leram a seguinte frase para refl exão e motivação: Somos todos anjos de uma asa só. E só podemos voar quando abraçados uns aos outros.1 Considero esse projeto bastante válido. Tive a opor- tunidade de acompanhar a mesma turma na 6a série e, novamente, na 8a, e notei que o Gente Nova estava pre- sente nas atitudes e nos discursos dos alunos em todas as atividades e projetos desenvolvidos. São fundamen- tais, para o progresso dos alunos, as possibilidades cria- das em sala de aula para a exposição oral organizada dos conhecimentos que eles trazem, a mediação do profes- sor para a organização desses conhecimentos, sua am- pliação e aprofundamento. É igualmente importante o trabalho em grupos, me- diado atentamente pelo professor, para a troca e a cons- trução coletiva dos conhecimentos, atitudes e valores. Os resultados foram visíveis também no desenvolvimen- to das habilidades de leitura e produção de textos orais e escritos. Continuo aplicando esse projeto, que hoje cha- mo de “Autoconhecimento para uma boa convivência”, e adaptando-o a cada uma de minhas turmas. Nota 1 In: A janela e o espelho (autor desconhecido). Disponível em: . tração do outro grupo. Nesse momento, os alunos pre- cisaram se organizar, escutar o outro e respeitar a sua opinião e conclusão. Também foi necessário justifi car a conclusão, argumentando a favor dela. Os alunos reconheceram os nomes das fi guras: hexá- gono regular, losango, triângulo eqüilátero, e suas com- posições (seis triângulos eqüiláteros compõem um he- 68 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 69 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 TV Globo, na sua novela Os Sete Pecados, mostra uma escola pública na periferia de São Paulo. A escola está coberta de grafi tes, ensina pouco e funciona sob ame- aça permanente de desordem. Uma jovem diretora ide- alista chega a essa escola prometendo melhorar o ensi- no e o aprendizado, mas desiste depois de uma guerra de comida na cantina da escola. Ela decide renunciar, porém um aluno pobre a convence a fi car, suplicando: “A senhora precisa fi car, é a única pessoa aqui que se preocupa com a gente, de outro jeito nunca vou apren- der nada nessa escola.” Nos registros sobre a educação pública não faltam exemplos de heroísmo individual – de diretores, profes- sores e estudantes – lutando contra a esterilidade e o desperdício de um sistema fracassado. Mas o desempe- nho do sistema como um todo – ou dos sistemas, nes- sa federação descentralizada de Estados e municípios – é tão ruim que, no geral, está corroendo a estabilida- de e o desenvolvimento futuro do Brasil. Os apelos para que se inicie uma reforma séria são ouvidos cada vez com mais intensidade. As reformas da educação pública normalmente começam sob condi- ções adversas. Seu sucesso depende da liderança polí- tica no topo das instituições públicas e também da mo- bilização no ponto mais baixo da pirâmide social que se benefi ciaria com escolas melhores. artigo A Norman Gall* * Norman Gall é diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Econo- mia Mundial , e-mail: . O que deve ser feito para melhorar as escolas paulistas?1 70 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva es- tabeleceu um prazo para as escolas brasileiras atingi- rem os níveis de desempenho médio encontrados nos países mais avançados: 2022. Que políticas e inves- timentos novos são necessários para que o Brasil se aproxime da meta? Desenvolvimento da capacidade institucional No início deste ano, e durante cinco semanas, uma equi- pe do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial realizou uma pesquisa de campo sobre a reforma es- colar em Nova York, entrevistando estudantes, profes- sores e diretores em escolas de bairros pobres, para saber que estratégias e métodos poderiam ser utili- zados para melhorar a educação pública em São Pau- lo e no Brasil. A principal lição desse trabalho é que o País precisa investir no desenvolvimento da capacida- de institucional. Descobrimos que as reformas realizadas em Nova York seguiram um modelo desenvolvido na Inglaterra nas duas últimas décadas, instituído no governo con- servador de Margaret Thatcher e consolidado na última década pelo governo trabalhista de Tony Blair. Segundo Michael Barber, que conduziu a reforma es- colar na Inglaterra de 1997 a 2005, as “reformas real- mente radicais” da era Thatcher-Blair progrediram com base em três idéias centrais: 1. a criação de padrões e responsabilidade; 2. a criação de capacidades e colaboração, “garantindo a oferta de professores e melhorando seus salários, criando oportunidades para as escolas colaborarem, e investindo no desenvolvimento profi ssional”; 3. a formação de um “quase-mercado em serviços pú- blicos, explorando o poder de escolha, a competição saudável, a transparência e os incentivos, e é nesse campo que o debate educacional está entrando ago- ra”. As condições adversas em São Paulo e Nova York têm sido o desempenho acadêmico precário, os altos índices de evasão escolar, a ausência de um padrão de ensino, a desordem crônica nas escolas, a falta de uma supervi- são efi caz, o desânimo e a apatia entre os professores e as poucas expectativas de um futuro melhor. No caso de São Paulo, a essas difi culdades deve-se acrescentar a proteção legal para as faltas freqüentes de muitos professores, o que agrava a desordem nas escolas e desmoraliza os alunos, e também a negligên- cia e a anarquia dos currículos e métodos de ensino que contribuem para as altas taxas de fracasso acadêmico. Além disso, a classe política do Brasil não tem muito interesse em promover os esforços a longo prazo para melhorar o ensino e o aprendizado. Em Nova York, o grupo que liderou a reforma escolar surgiu fora da classe política tradicional, conduzido pelo prefeito Michael Bloomberg, um empresário bilionário, e o secretário da Educação Joel Klein, advogado. Da mesma maneira, os líderes empresariais brasilei- ros começaram a fazer pressão em favor de melhorias no ensino público. Esses esforços precisam ser intensi- fi cados e expandidos para ganharem impulso. O Brasil tem algumas vantagens para melhorar suas escolas: 1. seu sistema federativo descentralizado abrange uma ampla variedade de Estados e municípios de diferen- tes tamanhos e perfi s econômicos e sociais. Essa di- versidade serve para experimentos com diferentes abordagens e estratégias locais; 2. refl etindo a preocupação generalizada sobre a qua- lidade do ensino público, o Governo Federal lançou recentemente o Plano de Desenvolvimento Educacio- nal (PDE), prometendo um grande fi nanciamento nos próximos anos; 3. o jovem ministro da Educação, Fernando Haddad, des- fruta da confi ança do presidente Lula e das lideran- ças educacionais; 4. os esforços para melhorar as escolas públicas con- tam com apoio político e fi nanceiro do setor privado. O Ministério da Educação adotou as metas propostas no plano “Todos pela Educação”, uma coalizão do se- tor privado; 5. o Estado de São Paulo, com uma população maior do que a da Argentina ou da Califórnia (41 milhões) e com um dos maiores sistemas escolares do mun- do (5,5 milhões de alunos) está em excelente situa- ção fi scal para fi nanciar a melhoria do ensino públi- co. Contará com impostos e royalties adicionais vin- dos da atividade econômica gerada pelas recentes descobertas de gás e petróleo na Bacia de Santos. Mais denúncias e diagnósticos do que soluções Apesar das críticas sobre a falência das escolas bra- sileiras, algumas iniciativas importantes vêm surgindo. 71 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 O Distrito Federal, com um sistema escolar que abran- ge 500 mil alunos, está adotando um currículo unifi ca- do e incentivos para o desempenho de escolas e pro- fessores, como parte das negociações salariais, e está implementando um dos primeiros programas de segu- rança escolar no Brasil. Em Minas Gerais, onde, a partir de 1991, as reformas no sistema educacional foram esporádicas, a eleição, pela comunidade, dos diretores de escolas aprovados em exames de qualifi cação se consolidou. Encontrou- se um meio para se demitir os professores defi cientes. E, mais importante, o nível de alfabetização dos alunos é testado depois dos seus dois primeiros anos na esco- la primária, para reforçar a aprendizagem. Em Pernambuco, o programa Procentro, patrocina- do pelo setor privado, oferece um ensino secundário de alta qualidade e em tempo integral em escolas pú- blicas de 20 cidades do interior. É mais fácil denunciar e diagnosticar as defi ciên- cias do ensino público brasileiro do que propor solu- ções viáveis. Como o Brasil é um vasto arquipélago de diversas comunidades, com diferentes níveis de desenvolvimen- to, o seu sistema federal descentralizado desencoraja iniciativas no campo educacional que possam abran- ger a nação inteira. Os investimentos precisam ser seletivos, basea- dos em iniciativas de estados e municípios que ten- tam melhorar as escolas locais e buscam apoio fi nan- ceiro e técnico. Esforços localizados e dispersos podem ser impor- tantes, embora qualquer empenho signifi cativo para melhorar as escolas do Brasil levará anos e exigirá uma estratégia a longo prazo coerente para superar estas di- fi culdades básicas: O que ensinar? É preciso um conteúdo maior e melhor. Uma razão para que as crianças brasileiras aprendam tão pouco na es- cola e apresentem um desempenho tão medíocre nos testes nacionais e internacionais é que não existe ne- nhum currículo adotado pelas autoridades municipais, estaduais ou federais. Os vagos “parâmetros curricula- res” do Ministério da Educação orientam muito pouco os professores quanto aos conteúdos na sala de aula. É ne- cessário um esforço dedicado para se adotarem padrões de aprendizagem e um currículo mais enriquecido. Implementação das mudanças Devem ser criados novos institutos, similares à Leader- ship Academy de Nova York, a fi m de treinar superviso- res, mentores e mestres a intervirem nas salas de aula para darem um suporte às melhorias na prática do en- sino. No momento, o sistema escolar brasileiro carece de uma capacidade institucional que promova um aper- feiçoamento do ensino e do aprendizado. Não existe supervisão ou apoio algum aos profes- sores no trato de suas próprias defi ciências e do fra- casso de um aluno no seu aprendizado. Entre as buro- cracias centrais e as escolas e professores não há ges- tores intermediários para implementar os padrões e as práticas. As novas metas anunciadas pelo Governo Federal e propostas por grupos privados não serão alcançadas sem que se promova esta gestão intermediária e a qua- lidade da supervisão. Para isso, são necessários inves- timentos. E, no caso da supervisão, ela é especialmen- te importante porque as universidades e institutos de pedagogia preparam mal os professores para o traba- lho em sala de aula. Novos incentivos Para melhorar o ensino público, é preciso uma reestru- turação dos incentivos. Professores, diretores, escolas inteiras e distritos es- colares precisam de recompensas pelo melhor desem- penho dos alunos. Ausências freqüentes de professo- res e diretores não devem ser toleradas. No momento, o sistema escolar brasileiro carece de uma capacidade institucional que promova um aperfeiçoamento do ensino e do aprendizado. 72 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 As regiões metropolitanas Entre as 14 cidades brasileiras com população de mais de 41 milhões de habitantes, o gigantesco sistema es- colar de São Paulo exibe as maiores difi culdades das áreas metropolitanas. Nos exames do Saresp, os alu- nos freqüentemente são questionados sobre temas que nunca lhes foram ensinados em sala de aula. A Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - Sead está elaborando os perfi s de todas as 5.800 es- colas do Estado de São Paulo, como matrículas, rota- ção de professores, resultados de testes, promoções, índices de evasão escolar e condições socioeconômi- cas. Com esses dados, que se acumularam na Secreta- ria da Educação Estadual sem utilização durante anos, as autoridades poderão direcionar suas intervenções baseando-se nas necessidades de cada escola. Os governos estaduais anteriores tiverem pouco in- teresse na solução de problemas sistêmicos da educa- ção pública. Até recentemente havia pouca pressão po- pular para uma melhora da qualidade do ensino e uma indiferença geral da classe política. O sistema não entrou em colapso por causa da de- manda pública por algum tipo de ensino e porque as escolas são uma fonte abundante de emprego formal e aposentadoria para professores e administradores que, em troca, propiciam um grande número de votos para as elites políticas. O sistema, em grande parte, é governado por incen- tivos perversos, que são as regras legais e os costumes de premiar comportamentos contrários aos objetivos declarados das instituições. O sistema não se impor- ta com resultados e parece funcionar visando mais ao benefício de seus empregados e menos ao das pesso- as que devem servir. Em Nova York, o lema da reforma do ensino é “Pri- meiro, as Crianças”. Não vemos esta prioridade em São Paulo. É preciso investir mais recursos no processo de aprendizagem. Isso implica criar um currículo básico que estabeleça metas claras para o ensino. Signifi ca a mudança de leis e regulamentos para reduzir as ausên- cias dos professores, um grande problema do sistema educacional brasileiro desde o século XIX. Implica ain- da o treinamento de supervisores e mentores para tra- balharem dentro das salas de aula com professores e alunos, com o objetivo de melhorar os resultados. Avaliação do progresso Os dados produzidos pelos exames estaduais e nacio- nais não são usados para diagnosticar e melhorar o de- sempenho do estudante. Em muitos casos, nem che- gam às escolas. Escandalosamente, os resultados dos testes promovidos pelo Sistema de Avaliação de Ren- dimento Escolar do Estado de São Paulo - Saresp não são nem mesmo publicados. Assim, os pais fi cam des- providos de informações vitais sobre o progresso aca- dêmico de seus fi lhos e suas escolas. O Ministério da Educação promete corrigir essa fa- lha, dando notas a todas as escolas do Brasil, como está sendo feito em Nova York. Mas é preciso melhorar a ava- liação, com conseqüências não só para um desempe- nho excelente como também para o medíocre. As escolas devem fazer anualmente uma auto-ava- liação e, junto com suas comunidades, estabelecer um plano de ação para melhorar seu desempenho nos tes- tes padronizados. A cada três anos, devem ser realizadas avaliações de qualidade por profi ssionais visitantes. As autoridades brasileiras também devem conside- rar a criação de uma superintendência autônoma para avaliar o desempenho escolar, no estilo da instalada recentemente no Chile. 73 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Signifi ca também descentralizar os poderes de de- cisão, dentro de uma estrutura geral, para uma direção regional e os diretores de escolas que, em troca, vão se responsabilizar pelos resultados. O sistema precisa investir na liderança regional. Em algumas regiões, devem ser desenvolvidos programas- piloto, como ocorreu no Bronx, onde novas estratégias e métodos foram experimentados antes de serem apli- cados em toda a cidade de Nova York. Os planos de estudos e os métodos de ensino de- vem ser enriquecidos para os 700 mil estudantes se- cundários de São Paulo, obrigados a estudar à noite, assistindo a aulas estéreis e entediantes. Programas especiais devem ser criados para alunos talentosos cujas necessidades são ignoradas, enquan- to professores e diretores lutam com a desordem crô- nica nas escolas. Deve ser desenvolvida uma capacidade institucio- nal para tratar desse problema, com o treinamento de especialistas em segurança escolar e a criação de am- bientes alternativos de aprendizagem para alunos pro- blemáticos que difi cultam o ensino. Sindicatos Na América Latina, como em outras sociedades, os sin- dicatos dos professores freqüentemente se opõem às reformas do ensino, dizendo que são obras de tecno- cratas de elite com objetivos não declarados de priva- tizar as escolas públicas, reduzir os custos e quebrar os sindicatos. Os sindicatos latino-americanos marcaram a sua oposição às reformas com greves, manifestações de pro- testo, campanhas na mídia e o seu voto nas eleições. Porém, no sistema federal do Brasil, os sindicatos de professores também são descentralizados, como os Estados e municípios. Alguns são geridos por buro- cratas de carreira, com pouco contato com os profes- sores, o que não cria oportunidades de diálogo e nego- ciação, com os líderes sindicais ou com a base de pro- fessores, sobre novos incentivos que não ameacem a perda de empregos. A qualidade da liderança sindical varia entre as lo- calidades, da mesma maneira que a liderança política de Estados e municípios. Em alguns lugares, especial- mente no México, República Dominicana e Minas Ge- rais na década de 1990, como também em Nova York no período de 2003 a 2007, houve negociações bem- sucedidas entre reformadores educacionais e os sindi- catos de professores. Escolas deterioradas signifi cam condições de tra- balho deterioradas. Assim, os sindicatos dos profes- sores, fora do Brasil, gradativamente se engajaram na reforma escolar. Alguns estão treinando e reciclando professores. Outros concordaram com os incentivos em função do desempenho. Em Nova York, Newark, Chicago, Boston, Baltimore, Miami e Minneapolis, os sindicatos acei- tam a responsabilidade na administração das esco- las públicas. É preciso investir mais recursos no processo de aprendizagem. Isso implica criar um currículo básico que estabeleça metas claras para o ensino. 74 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Em seu excelente livro Despite the Odds: The Conten- tious Politics of Education Reform, a professora Merilee Grindle, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Harvard, adverte que o futuro da reforma escolar é incerto “quando o apoio de professores é ig- norado, quando sindicatos hostis continuam se opon- do às mudanças e quando os incentivos para políticos, administradores, professores e pais acabam atuando contra as novas iniciativas”. E acrescenta: (...) as mudanças no sistema educacional precisam ser imple- mentadas em nível de sala de aula, para aumentar o grau de aprendizado das crianças das habilidades e capacidades neces- sárias. Isso implica a necessidade de vários níveis de executores para que as novas iniciativas prosperem. Em algum ponto dessa longa cadeia de responsabilidades pelas tomadas de decisão, as atividades de reforma podem esmorecer, vítimas da inércia, da contenção política, dos julgamentos errados, das invejas entre organizações e dos emaranhados logísticos (...) É preciso coragem para adotar uma reforma escolar No início desta série de quatro artigos, perguntamos: • Qual a relação entre ignorância e desordem social? • Como operar uma sociedade complexa sem uma po- pulação instruída? • Como serão nossas sociedades, daqui a dez ou 20 anos, se nossas crianças não conseguirem aprender? As autoridades de Nova York, numa atitude louvável, corajosamente decidiram enfrentar a realidade ameaça- dora da desordem e do fracasso das suas escolas, res- pondendo com soluções criativas para corrigir as defor- mações na estrutura e incentivos do sistema. Cometeram erros e se expuseram a uma intensa con- trovérsia política, porém seu trabalho já começa a mos- trar resultados. Tanto as notas nas provas de leitura e ma- temática como os índices de graduação melhoraram, e a violência nas escolas diminuiu. O secretário da Educação Joel Klein esteve em minha velha escola no Bronx, Evander Childs, para anunciar que 75 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 três pequenas escolas que funcionavam naquele prédio conturbado estavam formando 80% dos alunos do nível secundário, em comparação com os 31% em 2002. “As crianças precisam exercitar leitura, leitura, leitu- ra”, disse Steven Chernigoff, diretor da Bronx High Scho- ol for Writing and Communication Arts, escola superlo- tada, com 348 alunos, que ocupa um corredor no edi- fício da Evander Childs. E completa: “Grande parte da melhora se deve a um trabalho intensivo com os estu- dantes, individualmente ou em grupos pequenos. Esta- mos muito bem treinados na utilização de dados para acompanhar o progresso dos alunos a partir do momen- to em que entram em nossa escola. Explicamos a im- portância de eles se formarem no tempo certo. Se es- tão atrasados, oferecemos cursos de verão, aulas nos sábados e aulas individuais no fi m da tarde.” A decisão de se iniciar uma reforma escolar em Nova York foi tomada por um homem, o prefeito Bloomberg, fazendo eco à inquietação geral, nos Estados Unidos, sobre as defi ciências da educação pública. Em São Paulo, a decisão também depende de um homem, o governador José Serra, que se formou em es- colas públicas de São Paulo e no Instituto Politécnico, com doutorado em Economia pela Cornell University e que, exilado, trabalhou na Comissão Econômica para a América Latina – Cepal, das Nações Unidas, em San- tiago do Chile, e, mais tarde, no Instituto para Estudo Avançado em Princeton, antes de se tornar secretário do Planejamento do Estado de São Paulo, ministro do Planejamento e, depois, da Saúde. Estas credenciais impressionantes dão esperança para novas iniciativas, fazendo mais pela educação pú- blica do que os governos passados. Ser governador de São Paulo é missão repleta de problemas. Nos primeiros seis meses como governador, Serra concentrou seus esforços na obtenção de fi nan- ciamento federal para o Rodoanel em torno da Grande São Paulo, para melhorar os trens suburbanos, prover infra-estrutura sanitária para loteamentos ilegais em torno do reservatório de Guarapiranga e para reparar as rodovias rurais deterioradas. Em outras palavras, Serra focalizou o hardware do sistema, mais do que no software. O entanto, é o sof- tware que torna a sociedade produtiva. No campo da educação, Serra concentrou-se em ini- ciativas isoladas, como a contratação de 4 mil estagi- ários para auxiliarem na alfabetização de crianças nas duas primeiras séries do curso primário. Embora sejam medidas importantes, há necessida- de de uma ação integrada para solucionar os proble- mas sistêmicos do ensino público, que sofreu terrivel- mente por falta de ambição. Como terá se sentido o governador Serra quando a Folha de S. Paulo, no mês passado, mostrou a deterio- ração da Escola Estadual Firmino de Proença, do bair- ro da Mooca, onde ele estudou, com os alunos perden- do quatro aulas em alguns dias da semana, por falta de professores? “Nos dias de aula de ciências”, disse um aluno, “pas- samos o tempo fazendo o jogo da velha”. Nota 1 “Reforma do ensino em São Paulo e no Brasil” Este é o último de quatro artigos sobre reforma escolar, publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo, elaborados no Programa do Instituto Braudel Reforma do Ensino em São Paulo e no Brasil. O programa e os outros artigos podem ser acessados pelo site: . O Instituto Fernand Braudel está desenvolvendo um programa de pesqui- sas, debates e mobilização pública em prol da melhoria do ensino público em São Paulo e no Brasil. A partir de análises de experiências nacionais e internacionais bem-sucedidas, trabalha com gestores públicos, professo- res, políticos, empresários, pais e alunos para auxiliar no desenvolvimento de propostas de políticas e programas capazes de melhorar o ensino e o aprendizado na rede pública. O propósito do Instituto Fernand Braudel é somar esforços com lideranças que já demonstram interesse pela reforma do ensino. Série de artigos sobre a reforma da educação 1 O que deve ser feito? Norman Gall, O Estado de S. Paulo, 15 de julho de 2007. Disponível em: 2 Ordem e desordem nas escolas Norman Gall, O Estado de S. Paulo, 17 de junho de 2007. Disponível em: 3 O grande esforço de ensinar e aprender — Patrícia M. Guedes, O Estado de S. Paulo, 20 de maio de 2007. Disponível em: 4 A luta por melhores escolas em São Paulo e Nova York Norman Gall, O Estado de S. Paulo, 29 de abril de 2007. Disponível em: 5 Entrevista com o ministro da educação, Fernando Haddad. Ele vai salvar a educação?. Época, 30 de abril de 2007. Disponível em: 76 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 77 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 A importância das relações humanas na escola artigo “Até o intervalo tudo estava calmo, mas, de repente, soltaram uma bomba dentro do banheiro dos meninos. Um garoto saiu do banheiro desnorteado. Essa é apenas a primeira da noite. Aula de Química. A professora que normalmente não consegue explicar a matéria devido ao barulho ameaça sair da sala e chamar o vice-diretor. Antes que ela pensasse em sair, muitos foram embora. Mais um estrondo no pátio. Até me abaixei, pensando que vinha em minha direção. Na sala, a professora conseguiu explicar a matéria que vai cair na prova, já que a sala fi cou mais vazia. É uma pena que ela não consiga manter a ordem dentro da sala de aula.” Trecho do Diário de Aulas da aluna da rede pública de ensino médio de São Paulo, Sandra da Luz Silva, 2002, p. 6.1 uem segue o noticiário sobre a educação pública na mí- dia brasileira encontra muitas reportagens sobre a quali- dade da educação, geralmente baseadas nos resultados dos sistemas de avaliação – que agora permitem que a própria imprensa divulgue o rankings das escolas – e no- tícias sobre episódios de violência ocorridos em recintos escolares ou espaços próximos. Estas duas faces da realidade não costumam ser co- tejadas com outros tipos de informação que permitam contextualizar os retratos predominantemente negativos da escola pública, e também não são relacionadas entre si, como se os problemas de aprendizagem não tivessem nenhuma conexão com o padrão de relacionamento hu- mano vigente no cotidiano das escolas. Dissociação semelhante pode ser constatada na lite- ratura especializada. Quem pesquisa temas como currícu- lo, aprendizagem, alfabetização, entre outros, estabelece articulações causais com formação dos professores, mo- delos de gestão escolar, origem social dos alunos, mas raramente são reconhecidas, enquanto fatores relevan- tes para a qualidade da educação, questões relativas às interações humanas na escola, tanto entre profi ssionais e estudantes, como entre pares. O tema da relação entre * Maria Malta Campos é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação – Currículo da PUC/SP e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas. Maria Malta Campos* Q 78 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 a escola e a família é tratado, na maioria das vezes, ape- nas em seus aspectos mais formais, no que diz respeito, por exemplo, à participação dos pais em órgãos colegia- dos ou em reuniões pedagógicas. Paradoxalmente, em algumas pesquisas mais recen- tes que procuraram ouvir os protagonistas locais das escolas – diretores, professores, funcionários, alunos, pais e pessoas da comunidade – o clima humano da es- cola aparece sempre com grande destaque, seja como objeto de preocupação, seja como fator de valorização do trabalho realizado em determinadas unidades . De outra parte, as pesquisas sobre violência na es- cola constatam que os episódios mais dramáticos, que ganham destaque na imprensa, não costumam ser a re- gra na maioria das escolas; porém, esses estudos in- dicam que o padrão de confl itos, desentendimentos e desorganização, é, sim, bastante disseminado nas re- des públicas. Parece, então, que são muitas as evidências que apontam a necessidade de se prestar mais atenção a esse aspecto da vida escolar. Com efeito, o clima huma- no da escola pode ser entendido tanto como um meio, no sentido de que favorece ou não a aprendizagem, quanto como um fi m, pois se a escola deve também formar para a cidadania e o convívio social, essa formação ocorre prin- cipalmente no plano das experiências vividas pelas pes- soas que habitam a escola e seu entorno. Alguns resultados de pesquisa Em estudo que investigou as razões das diferenças de desempenho acadêmico na América Latina, comparan- do escolas do Brasil, Chile e Cuba, realizado por Mar- tin Carnoy e colaboradores (2003), entre outros fatores, foi constatado que as professoras brasileiras de tercei- ras séries, observadas nas aulas de Matemática,2 gas- tavam mais tempo e esforço, comparativamente a suas colegas dos dois outros países, controlando o compor- tamento de seus alunos. Nas palavras dos autores: As salas de aula brasileiras, às vezes, eram bastante caóticas, prin- cipalmente se comparadas com as turmas das escolas particulares chilenas e das escolas cubanas (p. 18). Observados a partir de vídeos gravados durante as au- las, os alunos do Brasil apresentavam maiores diferenças de idade, maior nível de pobreza e estudavam em clas- ses mais numerosas. De acordo com o trabalho: As crianças brasileiras e, em menor grau, as das escolas públicas do Chile às vezes fi cam obviamente entediadas e desinteressadas. Os confl itos entre alunos e professoras são mais freqüentes e, em certas ocasiões, as professoras parecem não ter muito controle sobre a turma (p. 19). Comparando os métodos de ensino utilizados, o ar- tigo observa que: O método mais estático das aulas brasileiras talvez seja uma maneira de exercer controle sobre os alunos, a fi m de manter a disciplina (p. 22). Outro aspecto enfatizado na comparação é o tempo gasto na cópia de exercícios da lousa. Enquanto no Chi- le e em Cuba as professoras já traziam os exercícios im- pressos para distribuir aos alunos, no Brasil geralmente os alunos tinham de copiá-los da lousa, o que deman- dava tempo deles e da professora. Esta e outras práti- cas, ao lado dos problemas de organização da classe, fa- ziam com que a produtividade das aulas brasileiras fos- se mais baixa do que nos outros países. Essa pesquisa não estava particularmente interessa- da no aspecto da disciplina, atendo-se mais ao exame do emprego do tempo, na metodologia e materiais utiliza- dos e no grau de difi culdade dos conteúdos abordados. Entretanto, os problemas de disciplina se fi zeram notar a partir dos resultados obtidos na observação sistemática dos vídeos, o que constitui um dado digno de nota. De forma semelhante, o Relatório Nacional sobre o PISA 2000 (INEP, 2001), focalizado nos resultados das provas de leitura e Matemática da amostra brasileira de alunos de 15 anos de idade de escolas públicas e priva- ... se a escola deve também formar para a cidadania e o convívio social, essa formação ocorre principalmente no plano das experiências vividas pelas pessoas que habitam a escola e seu entorno. 79 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 das, traz também alguns dados interessantes sobre a in- fl uência do “clima disciplinar” nas notas obtidas por alu- nos de diferentes níveis socioeconômicos e culturais. Esse indicador é composto por (...) informações coletadas sobre: a freqüência de interrupções nas aulas por questões disciplinares, o quanto a concentração dos alunos é prejudicada por atitudes de colegas, o respeito de- clarado pelos alunos a seus professores, com que freqüência os alunos declaram “matar aulas” e a relação de alunos com álcool e drogas. As escolas foram classifi cadas utilizando-se, como refe- rências, climas disciplinares: bom, médio ou degradado. Os resultados nas provas de leitura demonstram que “todos os alunos perdem com a degradação do clima disciplinar”. Porém, enquanto, para os alunos de nível social mais alto, a perda é relativamente pequena (um a dois pontos), para os alunos de nível socioeconômico baixo, as perdas são maiores (mais de 15 pontos). O relatório conclui que “o clima disciplinar deteriorado aumenta o impacto do nível socioeconômico e cultu- ral nos resultados escolares”. Ou seja, as característi- cas das escolas causam efeitos mais signifi cativos so- bre os resultados dos alunos mais pobres. Esse resultado faz lembrar as interpretações de Bernstein (1984) sobre as diferentes formas de compre- ensão que alunos de classe operária e de classe média demonstram sobre normas de comportamento mais ou menos explícitas no início da escolaridade. Bernstein argumentava que as normas mais sutis supostas no en- sino baseado na iniciativa das crianças – a que ele deu o nome de pedagogia invisível – são apreendidas com maior facilidade por alunos que já convivem com esse sistema na família. Em contraste, as crianças da classe trabalhadora estão acostumadas a normas claras e impostas de fora para dentro pelos adultos – pedagogia visível –, tendo difi culdade em aproveitar as oportunidades de apren- dizagem que se baseiam em normas interiorizadas pe- los alunos e em sua conseqüente maior autonomia para se conduzir na classe. As opiniões dos pais de alunos, analisadas por pes- quisa encomendada pelo INEP (2005) à Fundação Ces- granrio (Pinto et al, 2006), reforçam esses dados. A par- tir de questões levantadas sobre a qualidade da edu- cação, durante a realização de discussões em dez gru- pos focais, foram entrevistados dez mil pais, mães ou responsáveis, com fi lhos matriculados em escolas pú- blicas urbanas de todos os estados brasileiros, no iní- cio de 2005. Dentre os principais pontos que emergiram das dis- cussões dos grupos, destaca-se a percepção de que a escola pública atual é (...) o espaço da indisciplina, da transgressão e da desordem onde a autoridade mais se esvaziou na sociedade (p. 7). Os entrevistados nessa fase da pesquisa expressa- ram o desejo de que a autoridade de diretores e profes- sores fosse restaurada, que a escola se tornasse mais atrativa e motivadora para os alunos e que as secreta- rias de educação se tornassem menos omissas em rela- ção aos problemas de desorganização e falta de manu- tenção das escolas. Por outro lado, os pais demonstra- ram valorizar o trabalho dos professores e avaliaram as escolas de seus fi lhos mais positivamente do aquelas que haviam freqüentado. Na segunda etapa da pesquisa, essas percepções foram confi rmadas. Sobre a atuação dos diretores, 81% concordaram com a sugestão de que deveriam ser mais rigorosos com a disciplina dos alunos. Quanto aos pro- fessores, as respostas evidenciam uma apreciação ge- ralmente positiva da parte dos pais, apesar de 17,5% das respostas terem concordado com a afi rmação “os profes- sores costumam xingar os alunos” e 6% com “existe al- gum professor que agride os alunos”. No entanto, os aspectos que provocam mais críticas e descontentamentos são as faltas de professores e as greves: 75,8% dos pais concordam que um dos maiores problemas da escola pública é a falta constante de pro- fessores e 56,2% acham que acontecem greves demais. Um outro pomo de discórdia refere-se aos novos siste- mas de promoção adotados pelas escolas, entendidos como desestimuladores da aplicação aos estudos por parte dos alunos. O questionário também continha perguntas sobre dis- ciplina, insegurança e violência na escola. Metade dos en- trevistados respondeu afi rmativamente sobre a ocorrên- cia de brigas entre alunos e a necessidade de guardas nas escolas; 30% concordaram sobre a ocorrência de roubos e pichações na escola; o consumo de drogas foi aponta- do por apenas 15%, e o tráfi co, por 6% dos pais. É importante levar em conta a caracterização desses 80 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 pais de escola pública: quase 58,3% deles têm até o ensi- no fundamental incompleto; 7,5% são analfabetos e ape- nas 2,8% têm ensino superior. Mais de 73% tinham ren- da familiar de até três salários mínimos. Os hábitos de leitura mostram que 75% raramente lêem livros, revis- tas, jornais, mas 84% declaram assistir à televisão to- dos os dias. Somente 10% utilizam computador e ape- nas 6,9% acessam a Internet. As melhores oportunidades educacionais alcança- das por seus fi lhos são muito valorizadas por eles, mas suas preocupações revelam que percebem as difi culda- des que ainda impedem um maior aproveitamento es- colar, embora não tenham clareza sobre quais seriam as soluções mais indicadas para esses problemas. O es- tudo recomenda uma maior aproximação da escola com os pais, desejada por eles e necessária para a supera- ção dos problemas de qualidade constatados. A Consulta sobre a qualidade da educação na escola, pesquisa realizada em 22 escolas públicas e privadas dos estados de Pernambuco e Rio Grande do Sul, ou- viu, no fi nal de 2000, diretores, professores, funcioná- rios, alunos, pais e outras pessoas da comunidade so- bre suas concepções de como seria uma escola de qua- lidade3 (Campos, 2002). Seus resultados aproximam-se daqueles comentados anteriormente. Ao descrever como deveria ser uma boa escola, os entrevistados muitas vezes utilizavam expressões que indicavam os problemas conhecidos que deveriam ser evitados. Em Pernambuco, por exemplo, uma das pa- lavras mais signifi cativas presente nas respostas aber- tas foi “bagunça”, ao lado de limpeza e merenda, uma grande preocupação nesse Estado. Pais, alunos e funcionários revelaram maior preocu- pação com o bom estado de prédios e equipamentos, com a presença de professores competentes, ou seja, condições básicas do funcionamento escolar. Diretores e professores mencionaram aspectos mais abstratos da educação: desenvolvimento da cidadania, diversidade cultural, formação integral. O relatório observa que (...) ao contrário do que geralmente se assume, a sujeira, a de- sorganização e a falta de respeito a regras de convivência afetam sim os alunos e são percebidas como características que indicam falta de qualidade (p. 25). Por outro lado, os resultados apontam que tanto as equipes escolares quanto alunos e pais valorizam aque- les aspectos vinculados ao relacionamento humano na escola: convivência saudável, tratamento igualitário, cli- ma de colaboração, amizades. Esta dimensão não se encontra dissociada da aprendizagem, pois o prazer de aprender e o reconhecimento manifestado aos bons pro- fessores também foram manifestados nas respostas. A continuidade desse trabalho resultou na Consulta sobre a qualidade da educação infantil, desenvolvida da mesma forma que a anterior, em quatro estados, os dois anteriores mais Ceará e Minas Gerais. Nessa pesquisa tam- bém foram ouvidas crianças de 5 e 6 anos, entrevistadas em grupo4 (Cruz, 2006). Os depoimentos infantis, além de trazerem desejos de experiências prazerosas, como brin- cadeiras e comidas gostosas, associadas a uma boa cre- che ou pré-escola, também revelaram as preocupações das crianças com a limpeza e manutenção dos ambien- tes, assim como com as pequenas agressões do cotidiano, geralmente entre pares (“bater, empurrar, cuspir”, p. 71), mas em alguns casos mencionando as professoras (“pu- xar a orelha, dar merenda com força”, p. 71). O que parece transpirar nessas falas é a existência de muitas situações de confl itos entre crianças que, apa- rentemente, permanecem sem uma interferência edu- cativa dos adultos. A qualidade do ambiente de aprendizagem Ao analisar uma experiência de educação para a paz, de- senvolvida em escolas do México, Valenzuela (2004) ar- gumenta com o título de seu artigo: “Com violência, não há qualidade da educação”. Relatando o projeto coorde- nado por um grupo de educação popular, integrado por mulheres, e baseada em sua longa experiência de atua- ção em escolas públicas, a autora defende (...) a importância de criar e propiciar um clima de respeito, tole- rância e apreço pela diversidade, como premissas indiscutíveis para elevar a qualidade da educação, a partir do desenvolvimento das competências psicossociais para a resolução não violenta dos confl itos nas escolas de educação básica 5 (p. 112). Valenzuela critica a concepção de qualidade da edu- cação baseada exclusivamente em objetivos acadêmicos, comentando que permanecem em segundo plano 81 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 (...) aspectos como a educação em valores, o desenvolvimento de com- petências para resolver confl itos, a educação cívica e cidadã (p. 124). Essa preocupação aplica-se tanto a alunos como a professores e demais profi ssionais, pois, segundo ela, aprendizagens signifi cativas não ocorrem se os profes- sores impõem conteúdos ao ensinar e gritam ao tentar controlar crianças e adolescentes. Marília Spósito discute como a banalização da vio- lência (...) produz conseqüências importantes no âmbito da unidade escolar ao estruturar formas diversas de sociabilidade que reti- ram o caráter eventual ou episódico de determinadas práticas de destruição ou de uso da força (2007, p. 6). A autora interpreta a exacerbação desses problemas, no Brasil e em outros países, como sendo refl exo da mu- dança sofrida pela representação coletiva do acesso à educação, que já não mais estaria associada a oportuni- dades de mobilidade social como antes. Este (...) esgotamento do modelo de escolaridade voltado para a mobilidade social convive com o enfraquecimento da capacidade socializadora da escola enquanto instituição de formação das novas gerações (p. 17). Assim, os laços de sociabilidade signifi cativos que eventualmente se estabelecem na escola, entre pares e entre adultos e estudantes, independem de uma ação intencional da escola. Refl etindo sobre as pequenas e grandes violências observadas no cotidiano das escolas mexicanas, Valen- zuela defende a importância de considerar as relações humanas na escola com o mesmo sentimento de urgên- cia com que se discutem os resultados dos testes padro- nizados. De acordo com ela: (...) pouco nos ocupamos ou não damos a devida importância a aprender e desenvolver as habilidades e competências para viver melhor com nós mesmas e nós mesmos ou com quem nos cerca. Assim formamos seres dissociados, com grandes pretensões de acrescentar conhecimentos e saberes, porém carentes das ferramentas necessá- rias para um manejo adequado de sentimentos e emoções; carentes da auto-estima necessária para fazer frente aos desafi os da vida, sem saber como expressar adequadamente agravos e frustrações, como superar dores e perdas, como sentir empatia com aqueles que são di- ferentes de nós, como reconhecer nossas debilidades e pontos fortes, como enriquecermo-nos com as idéias diferentes, posições,formas de pensar e viver de outros e outras, como saber impor limites, quais são os momentos precisos para tomar decisões, como desenvolver nosso pensamento para ser críticos e críticas em situações que muitas vezes nos rebaixam, pois continuamos pensando de uma maneira dualista, sem nos dar conta de que a realidade e, em particular, a condição humana é plural, diversa e altamente complexa (p. 124-125). Referências BERNSTEIN, Basil. 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Notas 1 Depoimento de Sandra da Luz Silva in Braudel Papers, n. 31, p. 6, 2002. Disponível em: Acesso em 6/jul/2007. 2 Foram fi lmadas 10 a 12 aulas de matemática para a 3a série de cada país, durante o mês de agosto de 2000. No Brasil e em Cuba, a amostra incluía escolas públicas rurais e urbanas. No Chile, também fi zeram parte da amostra escolas privadas subsidiadas pelo Estado. As escolas brasileiras situavam-se no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. 3 A pesquisa, promovida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ouviu um total de 626 pessoas nos dois estados. As escolas de ensino fundamental e médio foram escolhidas de forma a garantir uma diversidade de situações: da capital e do interior, urbanas e rurais, de bairros centrais e periféricos, estaduais, municipais e privadas. 4 Foram realizadas entrevistas com 40 grupos de cerca de cinco crianças cada, em um total de 254 crianças nos quatro estados. Desse total, 47% freqüentava instituições públicas, 37% conveniadas e 16% particulares. 5 Tradução livre da autora. 82 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA Como dar signifi cado social e científi co ao cotidiano do aluno MARIA APARECIDA PEREZ* são voltadas para a melhoria da qualidade de vida na cidade de São Paulo, expressando suas idéias através das novas e tradicionais tecnologias e materiais diver- sos. Envolve diversas áreas do conhecimento de for- ma signifi cativa e contextualizada; desenvolve habi- lidades de trabalhos em grupos, pesquisa e questio- namento crítico da vida, da cultura e do funcionamen- to da cidade em que se vive. O projeto também pos- sibilita habilidades e vivências úteis ao desenvolvi- mento pessoal dos participantes, além de conteúdos como informática, edição de vídeo, animação, robó- tica e componentes eletrônicos. RPG – Rolling Player Game: jogo de encenação ou de dramatização que pode ser praticado de forma viven- ciada, com pessoas reais representando personagens, ou de forma eletrônica, por meio do computador. O RPG tem se tornado um poderoso recurso educacio- nal, pois todo e qualquer tema pode ser adaptado e desenvolvido, tais como: meio ambiente, diversida- de cultural, saúde, consumo, relações sociais, e as- sim por diante. O desenvolvimento da história e seus personagens, construção de cenários e fantasias exi- ge pesquisa sobre os temas, escrita, cálculo etc. Pos- sivelmente, a maior contribuição do RPG seja a de si- mular desafi os constantes para os participantes, per- mitindo que cada um assuma características do per- sonagem e descubra, brincando, novas formas de agir na vida real. Mão na Massa: ensino de Ciências por meio de um tema gerador – um projeto internacional, fruto da coopera- ção entre as Academias de Ciências francesa e brasi- leira, que visa à melhoria da educação científi ca, es- pecialmente nas séries iniciais do ensino fundamen- tal. As práticas de formação do projeto permitem aos educadores visualizar a construção dos mapas concei- tuais e a rede de conhecimento, bem como a constru- ção dos conteúdos signifi cativos a partir da realida- Quando exerci o cargo de Chefe de Gabinete e, depois, de Secretária de Educação da cidade de São Paulo, de fe- vereiro de 2002 a dezembro de 2004, no Governo Marta Suplicy, pude observar e acompanhar o desenvolvimen- to de vários projetos junto a escolas localizadas em dife- rentes regiões urbanas, em especial, na periferia. Consi- derávamos esses projetos especiais porque não se rela- cionavam diretamente com o currículo escolar. Na própria estrutura organizacional da Secretaria, es- ses projetos, quando propostos para as unidades esco- lares, eram acompanhados por uma equipe pedagógica específi ca, diferente das que eram responsáveis peda- gogicamente pelas áreas de educação infantil e pelo en- sino fundamental. Vejamos alguns deles: Educom Rádio: nasceu em 2001, de um contrato entre a Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo e o Núcleo de Comunicação e Educação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – NCE ECA-USP, com o objetivo de construir, nas es- colas públicas, um ambiente favorável às manifesta- ções da cultura de paz e à colaboração mútua entre os membros da comunidade educativa, combatendo as manifestações da violência, tanto física quanto sim- bólica. Para tanto, o NCE trabalha com a linguagem ra- diofônica, envolvendo professores, alunos e membros da comunidade educativa. O projeto destina-se a ca- pacitar alunos e professores do ensino fundamental para o uso de práticas de educomunicação por meio do uso do rádio. A cidade que a gente quer: esse projeto foi desenvolvido em parceria com o MIT. Permite aos participantes proje- tar e construir modelos e criar outras formas de expres- * Maria Aparecida Perez é ex-secretária de educação da cidade de São Paulo e doutoranda do International Education Doctorate Pro- gram – INEDD, do Departamento de Educação da Universidade de Siegen. 83 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 de da criança, da escola e da comunidade. A utiliza- ção dos kits da Experimentoteca como recurso e não como fi m didático-pedagógico em sala de aula permi- te, aos educadores, destacar a contextualização e a problematização investigativa. Apita Já: projeto de Educação para o Trânsito, desenvol- vida por intermédio de jogos grupais de raciocínio. Os jovens vão para as ruas, no entorno da escola, para conhecer a realidade do trânsito e de mobilidade en- frentada pela comunidade, eles colherão informações através de “estudos do meio” e criarão, num exercício democrático, projetos de intervenção. Da comunida- de, espera-se o seu engajamento na causa para que os jovens possam concretizar suas ações. A idéia é que seja criado um espaço para o diálogo e que, por meios deste exercício democrático, estas ações pos- sam realmente responder aos anseios destas comuni- dades por uma melhor qualidade de vida. As propos- tas complexas para sua realização, por exemplo, pas- sarelas para pedestres, introdução de linhas de ôni- bus, asfaltamento etc. foram encaminhadas às auto- ridades competentes. Primavera da Paz: Festival de Bandas e Fanfarras, ins- tituído por lei, para acontecer na primavera, aliado a um tema escolhido pelas escolas, como Direitos Hu- manos, Dia do Amigo etc. Uma comissão intersecreta- rial, composta pelas várias Secretarias Municipais sob a coordenação da Secretaria Municipal de Educação, é encarregada da sua organização. Os alunos, junto com o professor de música e outros profi ssionais da escola, pensam na música, no uniforme, na coreografi a que nem sempre respeita o formato da banda marcial. Elaboram o cronograma e o formato do Festival. 450 anos de São Paulo: visita a exposições; excursões aos locais vistos em fotos antigas; pesquisa, produ- ção e expressão de idéias sobre São Paulo, por meio de desenho, pintura, fotografi a ou escrita. Este traba- lho resultou numa publicação de 35 livros, 31 repre- sentando as escolas de cada uma das subprefeituras; um livro produzido pelos índios Guaranis nos CECI’s; um livro pelos alunos do MOVA; um pelo CEU Fran- ces e um pelo CEU Italiano, estes dois últimos, fruto de convênios com os consulados onde era ofertado o ensino bilíngüe. Banco na Escola: uma ação voltada para a formação de alunos, pais, professores e comunidade escolar, para a compreensão do Orçamento Municipal, principalmen- te no que diz respeito à aplicação dos recursos desti- nados à Educação. As metodologias pedagógicas, pro- cessos comunicativos contextualizados e tecnologias digitais em redes locais ou globais, quando bem uti- lizadas, podem propiciar a aprendizagem (individu- al ou coletiva) assistida por computador, conectado ou não em redes telemáticas. Desenvolver as chama- das competências de letramento informacional (ver- bal e numérico) implica fazer uso da leitura das nor- mas fi scais e dos relatórios orçamentários, compre- endê-los e debatê-los coletivamente, para colocá-los em ação, na prática. Desenvolver o educando e o conhecimento Todas as atividades desenvolvidas por esses projetos atraíam os educandos e, na maioria das vezes, aqueles considerados os “mais terríveis e indisciplinados” eram os que participavam mais ativamente delas, sentiam or- gulho em apresentar seus trabalhos publicamente e mos- travam mudança de comportamento ao perceber que as várias formas de aprender extrapolavam a sala de aula, onde fi cavam sentados, ouvindo e copiando. Com o tempo, fomos notando quanto esses projetos dialogavam com o conteúdo escolar e quanto conquis- tavam as crianças e, principalmente, os adolescentes. Essa constatação implicava várias perguntas: - O que esses projetos proporcionavam aos educandos? - O que e como esses alunos aprendiam? - Por que essas atividades atraíam os mais rebeldes? Na prática, na sala de aula, o professor tem diver- sas formas de apresentar o conhecimento para o aluno e gostaríamos de nos deter em duas delas que, sob nos- so olhar, são as mais defi citárias. Tomando como base as refl exões de Bernd Fichtner, podemos dizer que, numa primeira forma, o professor apresenta o conhecimento acabado, defi nido; assim, o conteúdo do ensino é entendido e percebido só como um resultado já pronto. Ensinar, desse modo, signifi ca uma simples transmissão literal de objetos e palavras do li- vro didático para os educandos. O ensino, neste caso, tem por objetivo a “fundamentação” de conhecimentos já prontos. E as conseqüências são bem conhecidas por nós: o educando é como um vasilhame onde “deposita- mos” conhecimento, como guardamos objetos. Numa segunda forma, o ensino é orientado apenas para o processo comunicativo, interativo, portanto, a co- 84 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 municação é mais signifi cativa do que o conteúdo. Nessa concepção, o contexto ensino-aprendizagem é, acima de tudo, uma inter-relação de interpretações, expectativas e compreensões, e a sala de aula passa a ser um lugar de expressões, sem nenhuma base para a construção real de conhecimento. Fala-se sobre algo, mas não se cons- trói o conteúdo mediante a própria atividade. Em ambos os casos, objeto e atividade de aprendi- zagem estão separados por não considerarem os sujei- tos sociais envolvidos na ação. São propostas que se en- caminham para o inverso do processo de aprendizagem desejado, ou seja, um processo de atividade e, ao mes- mo tempo, de desenvolvimento tanto do sujeito (edu- cando) quanto do objeto (conhecimento). As atividades de aprendizagem de “fundamentação” e “desenvolvimento” necessitam ser dialógicas para que os educandos sejam sujeitos da sua própria aprendiza- gem, de forma que as práticas pedagógicas ganhem sen- tido à medida que o conteúdo das matérias se relacio- ne com o cotidiano do educando. Olhar de novo para o que considerávamos projetos especiais exige uma série de refl exões: - Por que não trocar a sala de aula por outros ambien- tes, até externos à escola, à sua volta? - Por que não incentivar a comunidade do entorno da es- cola a participar do seu projeto político-pedagógico? - Por que não usar o lúdico nas matérias, como em Ma- temática, Ciências etc.? - E a arte e suas várias linguagens, onde elas aparecem? - Por que não possibilitar ao educando organizar suas ações em função de um tema proposto e de um resul- tado esperado? - Por que não conversar sobre os interesses dos alunos e, dialogicamente, tratá-los nas aulas, relacionando- os ao currículo? Depois da minha experiência na Secretaria e obser- vando outras experiências nacionais e internacionais, acredito que, se não vivenciarmos, no âmbito escolar, as contradições — sociais, culturais, econômicas e am- bientais — não teremos como responder às perguntas iniciais, tornando a escola atraente ou uma “belezura”, como dizia Paulo Freire. O educando, a partir de um tema proposto, pode or- ganizar a pesquisa, pensar no formato do projeto e como apresentá-lo, escrever sobre ele, organizar seu tempo, num pacto com os outros educandos que comporão seu grupo e o professor responsável. Assim, poderá realizar-se uma conexão entre genera- lização e troca, entre pensamento e comunicação, entre curiosidade e objetivo, permitindo que o aluno perceba a sua capacidade de compreender as representações do conhecimento na Matemática, Química, Biologia, Física, Português, Artes, Geografi a, História etc. O novo não tem formas velhas para se apresentar. O novo tem a ver com a possibilidade de o estudante refl e- tir, numa postura pró-ativa, sobre as informações recebi- das, e construir novas relações entre o saber estabeleci- do, o próprio saber e o processo de descoberta. Respeitar o educando como sujeito social exige uma nova organização didática e novas posturas dos professo- res e especialistas da educação. “A minha sala de aula, o meu aluno, a minha matéria” são expressões que pre- cisam desaparecer. Prática coletiva Todos os projetos citados, embora se apresentem com nome e objetos de estudo diferentes, têm em comum o uso de Roteiro de Pesquisa e dos Planos de Estudo, sem desprezar as tradicionais tecnologias, como a lousa, o giz ou o livro, nem as novas, como os computadores, na busca de informação. E o que são estes Roteiros e Pla- nos? Nada que seja desconhecido por nós, educadores, mas difi cilmente praticado coletivamente. Os Roteiros, como vêm sendo aplicados na experiên- cia da EMEF Amorim Lima, em São Paulo, tratam de te- mas e não de disciplinas. Os temas relacionam as ma- térias e os conteúdos curriculares sem separá-los — por exemplo, o aprendizado da escrita da palavra água é tra- balhado em conjunto com o seu signifi cado social e cien- tífi co, relacionando-a ao cotidiano do aluno. Os Planos de Estudo e Roteiros são planejados com os professores e pactuados com o aluno e as equipes que se formam entre eles desde o início do ano. O estu- do é coletivo, os alunos devem organizar seu tempo e a hierarquia dos temas de acordo com seus interesses. To- dos sabem que, durante o ano letivo, terão que dar con- ta de todos os temas constantes dos Roteiros: O trabalho de pesquisa é norteado por Roteiros Temáticos de Pesquisa, concebidos segundo a teoria dialógica de Bakhtin, e apoiado nos livros didáticos e paradidáticos. Apesar de usar tais livros de forma particular e não seqüencial, privilegiando uma transversalidade temática, e apesar de não se restringir a eles, o cc04_parteB_19.indd 84 cc04_parteB_19.indd 84 21/9/2007 11:33:09 21/9/2007 11:33:09 85 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Projeto reconhece o Plano Nacional do Livro Didático – PNLD como outra importante base prática e conceitual, além da sustentação em uma Política Pública Federal. Além do acompanhamento grupal e individual em sala, os alunos são acompanhados mais de perto por um tutor que, ao se ater a um grupo menor de alunos, poderá orientá-los com olhar mais atento e agudo, indicando e corrigindo rumos. Sendo a busca da autonomia um valor matricial do Projeto, e somente podendo ela fundar-se cada vez mais numa auto-ava- liação, cabe, preferencialmente, ao espaço da tutoria implantar e fomentar a auto-avaliação, numa gradual tomada de consciência, por parte dos alunos e educadores, de suas capacidades e de suas difi culdades. EMEF Amorim Lima – Projeto Pedagógico A experiência precisa se tornar possível, de forma que o novo e o desconhecido tenham lugar no processo de aprendizagem. Novas propostas, como os roteiros de pesquisas, precisam ser estruturadas para conter o fun- damento de sua própria explicação e do seu próprio de- senvolvimento, isto é, para que não sejam inteiramente reduzíveis àquilo que já é conhecido e familiar. Portanto, o desafi o do professor seria o de mostrar que o conhecimento, inclusive o já existente, é um processo de descoberta, fruto da curiosidade, abrindo assim, para os alunos, a consciência da capacidade humana para a construção de novos conhecimentos. A relação entre o conteúdo e a aprendizagem na sala de aula precisa ser construída para despertar o novo sem se fechar na eterna repetição do já sabido. Referências ABRAMO, H. W.; MARTONI, B. (Org.). Retratos da juventude brasileira – análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto da Cidadania e Fundação Perseu Abramo, 2005. CENPEC; ITAÚ SOCIAL; UNICEF. Muitos lugares para aprender. São Paulo, 2003. (Col. Educação & Participação). FICHTNER, Bernd. A escola histórico-cultural e a Teoria da Atividade: sua impor- tância na pedagogia moderna. Cadernos de Pesquisa, Universidade Federal de Santa Maria/Centro de Educação, p. 4-21, 1995. ______. Ensinar e aprender — um diálogo com o futuro: a abordagem de Vygotky. In: SILVA, Luis Heron; AZEVEDO, José Clóvis; SANTOS, Edmilson dos Santos (Org.). Identidade social e a construção do conhecimento. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997. p. 146-177. ______. A abordagem histórico-cultural na educação. Paixão de Aprender, Porto Alegre, Secretaria Municipal de Educação e Prefeitura Municipal de Porto Alegre, n. 10, p. 44-56, mar. 1997. FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. ______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. 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A minha sala de aula, o meu aluno, a minha matéria” são expressões que precisam desaparecer. cc04_parteB_19.indd 85 cc04_parteB_19.indd 85 21/9/2007 11:33:09 21/9/2007 11:33:09 86 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 cc04_parteB_19.indd 86 cc04_parteB_19.indd 86 21/9/2007 11:33:10 21/9/2007 11:33:10 87 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 artigo Leitura e produção de texto no ensino Zoraide Faustinoni* fundamental * Zoraide Faustinoni é autora de livros didáticos e pesquisadora do Cenpec da área de Gestão e Sistemas de Ensino. prendemos a ler e a produzir textos orais e escritos em diferentes espaços e grupos sociais. Há uma aprendiza- gem de fala, leitura e escrita que se dá por meio da es- cuta, do gesto, da observação, da imitação, de informa- ções colhidas em diferentes espaços e situações. A escola, no entanto, tem como função desenvolver um trabalho intencional, planejado e sistemático para ampliar essas aprendizagens e possibilitar, às novas gerações, o acesso a discursos mais complexos, como aqueles produzidos pela Ciência, pela esfera política e pela mídia. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9394, 1996) estabelece, como um de seus objetivos, (...) o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo (seção III, art. 32o, I). A escola é um importante espaço de letramento. E letramento, segundo Magda Soares (1998), (...) é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específi co, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Por exemplo: comprar e ler o jornal para se informar sobre o que acontece no mundo, escrever uma carta para a coluna do leitor, posicionando-se sobre deter- minada matéria, sentir prazer ao ler um romance, pre- encher um formulário ao solicitar um emprego etc. É também Magda Soares que nos chama a atenção para A cc04_parteB_19.indd 87 cc04_parteB_19.indd 87 21/9/2007 11:33:11 21/9/2007 11:33:11 88 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 o fato de que, muitas vezes, os sujeitos são capazes de comportamentos escolares letrados, mas são incapa- zes de lidar com os usos cotidianos da escrita em con- textos não escolares. Outros autores (Costa, 2000; Tfouni, 2002) enten- dem que o letramento inclui também a produção de tex- tos orais (por exemplo: a capacidade de fazer narrativas e relatos orais, de se sair bem numa entrevista, de par- ticipar de uma assembléia do sindicato ou do condomí- nio do prédio, de ministrar uma aula, de fazer uma ex- posição oral em um congresso ou seminário), uma vez que, nas sociedades letradas, há uma intersecção en- tre oralidade e escrita. Segundo Bakhtin (1929; 1990), os textos orais ou es- critos que produzimos são formas de expressão que se originam nas necessidades criadas em diferentes esfe- ras da comunicação humana. Essas formas de dizer não são inventadas a cada vez que nos comunicamos, elas estão à nossa disposição, circulam nos diferentes meios sociais, tenhamos ou não consciência delas. Os gêneros são formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, e podem ser defi - nidos por três aspectos básicos coexistentes: • seus temas: o que é dizível ou pode se tornar dizí- vel, por meio do gênero; • sua construção composicional: forma particular dos textos pertencentes ao gênero; • seu estilo: seleção, feita pelo autor, de recursos da língua — do vocabulário, de gramática — tendo em vista o gênero. Para Schenewly (2004), o gênero é uma ferramen- ta, um instrumento com o qual é possível exercer uma ação lingüística sobre a realidade. Segundo esse autor, o uso de uma ferramenta resulta em dois efeitos dife- rentes de aprendizagem: por um lado, amplia as capa- cidades individuais do usuário; por outro, aumenta seu conhecimento a respeito do objeto sobre o qual a fer- ramenta é utilizada. Linguagem e participação social No plano da linguagem, a aprendizagem dos diver- sos gêneros discursivos que socialmente circulam en- tre nós não somente amplia a competência lingüística e discursiva dos alunos, como também lhes aponta inú- meras formas de participação social que eles, usando a linguagem, podem ter como cidadãos. Ao aprender como são feitas e qual a fi nalidade das cartas argumentativas de solicitação e de reclamação, o aluno não apenas se apropria de informações sobre o seu conteúdo, a sua estrutura, o seu estilo e sobre a linguagem mais adequada a esse gênero, como também toma consciência de que os cidadãos têm o direito de reclamar e solicitar providências das autoridades competentes. cc04_parteB_19.indd 88 cc04_parteB_19.indd 88 21/9/2007 11:33:12 21/9/2007 11:33:12 89 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 Por exemplo, ao aprender a ler o jornal — a reconhe- cer as intenções de quem escreve, os recursos utiliza- dos para atingir determinado leitor, a comparar a forma como diferentes jornais publicam uma mesma notícia, quais assuntos são objeto de destaque etc. — os alu- nos começam a penetrar nessa esfera de comunicação tão importante para a formação de opinião. Ao aprender como são feitas e qual a fi nalidade das cartas argumentativas de solicitação e de reclamação, o aluno não apenas se apropria de informações sobre o seu conteúdo, a sua estrutura, o seu estilo e sobre a linguagem mais adequada a esse gênero, como tam- bém toma consciência de que os cidadãos têm o direi- to de reclamar e solicitar providências das autoridades competentes. Por meio de estudo de gêneros, tais como bulas de remédio e rótulos de embalagens, aprendem sobre os cuidados com a saúde e os direitos do consumidor. Ou ainda, no campo criativo, percebem que podem apre- ciar e criar textos para a fruição estética e refl exão crí- tica, como o poema, as letras de canções e as narrati- vas de fi cção em geral. É imprescindível, portanto, que a escola desenvol- va capacidades que possibilitem aos cidadãos a me- lhor participação possível em situações de fala e es- cuta, de leitura e produção de textos com diferentes finalidades. O que os exames de leitura indicam Exames de leitura, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB, e o Programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA e a pesquisa realiza- da pelo Instituto Montenegro com o objetivo de cons- truir um Indicador de Alfabetismo Funcional – INAF in- dicam aspectos que poderiam ser mais bem trabalha- dos pela escola. Sabemos que essas avaliações têm li- mites. A esse respeito, é importante conhecer as refl e- xões feitas por diferentes autores, como Ribeiro (2003) e Bonamino (2002). No entanto, apesar das ressalvas que possam ser feitas a essas avaliações, elas nos dão pistas do que pode ser melhorado, não apenas para o aluno sair-se bem no exame, como, sobretudo, para poder utilizar a leitura, a fala e a escrita para se situar no mundo, para lutar por direitos, para usufruir bens culturais, para pros- seguir com os estudos, para interferir nos rumos polí- ticos do país, para se inserir no mercado de trabalho, enfi m, para ser cidadão. Os resultados dos exames apontam: • pouca familiaridade com a diversidade de gêneros discursivos; • falta de hábito de voltar ao texto para responder a questões referentes a ele – em geral, os estudantes respondem com base no senso comum, consideran- do apenas as alternativas colocadas, sem relacioná- las ao texto; • difi culdade para: 1. inferir o signifi cado de termos desconhecidos, apoiando-se no contexto; 2. localizar informações e fazer inferências a partir de gráfi cos; 3. integrar informações advindas de um texto verbal contínuo e de um gráfi co; 4. perceber contradições no texto; 5. relacionar causa e conseqüência em textos mais longos. Essas avaliações reafi rmam o papel fundamental da escola na formação do leitor, pois os níveis mais altos são atingidos somente por aqueles que completaram as oito séries do ensino fundamental. No entanto, o au- mento do nível de letramento não tem acompanhado o aumento de escolaridade. A escolaridade da população brasileira vem aumen- tando signifi cativamente. Os dados do Instituto Brasilei- ro de Geografi a e Estatística - IBGE mostram, por exem- plo, que a parcela de pessoas de 15 a 64 anos com ape- nas quatro anos de estudo caiu de 37,9% para 33,6%, entre 2002 e 2005, enquanto que a proporção daque- les que completaram o ensino médio ou superior subiu de 35,5% para 40,8%, no mesmo período. No entanto, o desempenho dos brasileiros entre 15 e 64 anos mostra uma tendência de melhora em letramento em ritmo infe- rior ao da própria escolarização (Boletim INAF, 2007). Os primeiros resultados da pesquisa Estudo Longitu- dinal da Geração Escolar – Projeto GERES, publicados em 2006, indicam que as crianças realizam pouco progresso após a alfabetização inicial (http://www1.folha.uol.com. br/folha/educacao/ult305u18519.shtml, 03.04.2006). E os resultados do SAEB mostram que há um aumento da profi ciência em leitura ao longo da escolaridade, mas, da 4a para a 8a série, esse aumento é modesto. Esses dados não diminuem a importância da esco- larização, mas indicam que a atuação da escola precisa cc04_parteB_19.indd 89 cc04_parteB_19.indd 89 21/9/2007 11:33:13 21/9/2007 11:33:13 90 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 ser melhorada e que um trabalho bem planejado e con- sistente, com leitura e produção de textos, deve ser de- senvolvido. E esse trabalho será mais efetivo se a escola interagir com as práticas culturais de seus alunos. Evidentemente, não se trata apenas de melhorar o trabalho com a leitura e a produção de textos, como também de reprovar menos, de combater a defasagem idade-série, pois, se o ensino fundamental é tão impor- tante, é preciso garanti-lo para todos, na idade corre- ta prevista pela legislação. E, para isso, a escola públi- ca precisa contar com o apoio e orientação dos órgãos governamentais. Não basta avaliar, é preciso dar condições para que os educadores aprimorem seu trabalho e unam esfor- ços para que todos aprendam. Leitura e produção de texto em todas as áreas do ensino O desenvolvimento de capacidades de leitura e pro- dução de textos é uma tarefa de todos os componentes curriculares e não apenas de Língua Portuguesa. Nas aulas de Língua Portuguesa, os estudantes vão entrar em contato com diversos gêneros discursivos para apreender suas características e desenvolver ca- pacidades de leitura e produção de diferentes gêneros, que abordam os mais diversos temas, com variadas fi - nalidades. Nesse trabalho, o ideal é sempre preservar o máximo possível a função social que a leitura e a es- crita têm fora da escola. Cabe também à área de Língua Portuguesa o traba- lho de análise lingüística, de modo que os alunos se apropriem desses conhecimentos e possam ler e pro- duzir textos, em diferentes situações escolares e não- escolares, com clareza, coesão e correção gramatical e ortográfi ca. Os professores dos outros componentes curricula- res utilizam a leitura e a escrita como instrumento para a aprendizagem de conteúdos de sua área. Para que aprendam os conteúdos das áreas, os alunos preci- sam saber explorar um texto. Por outro lado, os conte- údos das diferentes áreas — conceitos, habilidades, va- lores, procedimentos que elas desenvolvem — concor- rem para a ampliação do letramento, tornando o sujei- to mais apto a compreender diferentes gêneros discur- sivos e a utilizar diferentes suportes textuais. Ler e compreender A leitura é um processo no qual o leitor realiza um tra- balho ativo de construção do signifi cado do texto. Para os leitores em formação, a mediação do professor é in- dispensável. Assim, antes de propor a leitura de um tex- to escrito, ou de um conjunto de textos, é preciso que o professor verifi que as difi culdades que ele apresen- tará para os alunos. A leitura é feita com diferentes objetivos: por prazer, para conhecer um determinado assunto, para se atua- lizar, para executar uma ação etc. Um dos primeiros cuidados é esclarecer os objetivos da leitura: por que vamos ler, o que buscamos nesse texto ou nesse suporte textual, o que vamos fazer com cc04_parteB_19.indd 90 cc04_parteB_19.indd 90 21/9/2007 11:33:14 21/9/2007 11:33:14 91 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 as informações que o texto traz, que conhecimentos queremos construir. É importante lembrar que, quan- do perdemos de vista o motivo para fazer alguma coi- sa, tornamos essa ação mecânica, sem sentido e não nos mobilizamos para realizá-la de fato. Em segundo lugar, é imprescindível verifi car o que os alunos já sabem sobre o assunto e também sobre o gênero discursivo e o suporte textual – onde o texto se encontra –, pois isso irá facilitar ou difi cultar a com- preensão. É importante que o professor chame a atenção dos alunos para: • os elementos contextualizadores – o título, a fon- te, a seção/capítulo de onde foram retirados, os da- dos sobre o autor, a época em que foi escrito etc.; • as possíveis intenções do autor – que informação quer transmitir, a quem quer convencer, que refl e- xões quer provocar, quem são seus prováveis inter- locutores. É interessante fazer perguntas com o objetivo de agu- çar a curiosidade e instigar a antecipação sobre o con- teúdo do texto, hipóteses que podem ser validadas ou rejeitadas na leitura subseqüente. Capacidades de leitura Antes mesmo de se ter um texto em mãos, temos que mobilizar determinadas capacidades de leitura. Assim, é preciso ajudar nossos alunos a: localizar e acessar fontes de consulta (bibliotecas, Internet, programas de rádio e TV, museus etc.); utilizar os fi chários impressos ou a Inter- net para localizar obras, autores, assuntos etc.; consultar índices; localizar uma matéria dentro do jornal; avaliar criticamente as fontes (saber se são confi áveis). Há capacidades que são comuns à leitura de diver- sos gêneros. Por exemplo: • reconhecer as características do gênero; • identifi car a fi nalidade do texto; • identifi car a intencionalidade do autor; • reconhecer os efeitos de sentido — a partir de recur- sos gráfi cos, sonoros, estilísticos, semânticos, mor- fossintáticos etc.; • localizar as informações explícitas; • inferir o sentido de uma palavra pelo contexto; • fazer as inferências globais; • identifi car os temas ou as idéias centrais; • estabelecer relações entre as partes de um texto; • relacionar o texto com conhecimentos do cotidiano ou especializado; • avaliar criticamente um texto. Outras capacidades são mais específi cas a um de- terminado gênero. Por exemplo: • identifi car o confl ito gerador do enredo — romance, novela, crônica, contos de fadas etc.; • distinguir o que é defi nição e o que é exemplo — textos didáticos, verbetes, artigos científi cos, teses acadêmicas etc.; • reconhecer as posições distintas sobre um mesmo tema — artigos de opinião, debate, editorial, teses acadêmicas etc.; • distinguir fato de opinião — reportagem, artigos de opinião, teses etc.; • estabelecer relação entre a tese e o argumento — editorial, teses acadêmicas, debate etc.; • identifi car a ordem seqüencial de procedimentos — experimentos, regras de jogo, instruções de monta- gem, receitas culinárias etc. É importante também ter em mente que uma mes- ma capacidade pode ser exercida de forma diferente, conforme o gênero. Por exemplo, é diferente localizar a informação num texto literário e num gráfi co. As re- lações que podem ser estabelecidas entre texto verbal e imagem são diferentes para a primeira página de um jornal e numa página do livro de Ciências. E há novas necessidades surgindo, por exemplo, a capacidade de lidar com o hipertexto. E quanto à produção de textos? No que se refere à produção de textos, é importante que os professores das diversas áreas pensem em ati- vidades em que a fala e a escrita tenham fi nalidade so- cial, por exemplo: comunicar algo, registrar, divulgar, in- formar, expor, alertar, agradar, relatar, convencer, emo- cionar, divertir etc. Quando falamos em produção, referimo-nos não so- mente aos textos escritos, como também aos orais. O principal objetivo de se ensinar gêneros orais na escola é desenvolver capacidades de uso social da fala, tanto nas práticas mais informais, isto é, aquelas da vida privada cotidiana — conversa, relato de experiência vi- vida, comentário — quanto nas mais formais, aquelas cc04_parteB_19.indd 91 cc04_parteB_19.indd 91 21/9/2007 11:33:15 21/9/2007 11:33:15 92 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 que ocorrem na esfera pública de comunicação — dis- cussão em grupo, assembléia, seminário, debate. O tra- balho com a produção oral de textos, muitas vezes es- quecido pela escola, desenvolve importantes capaci- dades de participação social. Para produzir textos em diferentes gêneros, é pre- ciso conhecê-los; assim, é necessário que essa diver- sidade seja utilizada e trabalhada nas aulas das dife- rentes disciplinas do currículo. A produção de texto re- quer planejamento. Esse planejamento implica tomada de decisões, como: • qual é o melhor gênero para o objetivo que se tem: emocionar, divertir, informar, convencer, instruir, ex- por, comunicar-se a distância etc; • quais são as características desse gênero: o que pode e o que não pode ser dito; • como se estrutura, que recursos lingüísticos podem ser utilizados; • a quem o texto se destina: onde vai circular. Além disso, é imprescindível atentar para o que já sa- bemos e para o que precisamos pesquisar sobre o assun- to que será tratado no texto, pois não basta saber como dizer, é indispensável também ter algo para dizer. E não basta produzir textos. É preciso que eles sejam aperfeiçoados, tanto no que se refere ao conteúdo da área, quanto aos aspectos relacionados à situação de produção, às características do gênero e à correção gra- matical — e ortográfi ca, no caso do texto escrito. Ainda que ensinar gramática de modo sistemático seja tarefa da área de Língua Portuguesa, ajudar o aluno a revisar o texto e a corrigir as inadequações é tarefa de todos os professores. Não se pode esperar que os estudantes construam sozinhos esses conhecimentos. Como fazer? Como desenvolver todas essas capacidades é o desa- fi o que se coloca a todos os professores. Quando pen- samos em leitura nas diferentes áreas do currículo es- colar, sabemos que essa leitura tem, em geral, fi nali- dade de estudo: ler para aprender. Isso não signifi ca que, nas aulas desses componentes curriculares, de- vam circular somente textos escolares ou de divulga- ção científi ca. O ideal é desenvolver a unidade de estudo lançan- do mão de diferentes gêneros: artigos de jornal, artigos O principal objetivo de se ensinar gêneros orais na escola é desenvolver capacidades de uso social da fala, tanto nas práticas mais informais, isto é, aquelas da vida privada cotidiana — conversa, relato de experiência vivida, comentário — quanto nas mais formais, aquelas que ocorrem na esfera pública de comunicação — discussão em grupo, assembléia, seminário, debate. cc04_parteB_19.indd 92 cc04_parteB_19.indd 92 21/9/2007 11:33:16 21/9/2007 11:33:16 93 Cadernos Cenpec 2007 n. 4 científi cos, ensaios, textos didáticos, poemas, história em quadrinhos, charges, gráfi cos, composições musi- cais, crônicas, romances, fotos, memórias, depoimen- tos, entrevistas, textos de humor, fi lmes etc. Em geral, esta forma já tem sido uma prática dos professores e está muito presente nos livros didáticos. A questão é como fazer uma adequada exploração desses diferentes textos e relacioná-los. Muitas vezes, a diversidade de textos está presente, mas todos os gê- neros são trabalhados da mesma forma e se pressupõe que o aluno consiga, sozinho, fazer as relações e refl e- xões sobre eles, sem a mediação do professor. No que se refere à produção de texto, em geral, as propostas são genéricas, não há explicitação do gêne- ro em que o texto deva ser produzido, nem orientações para produzi-lo, aperfeiçoá-lo e divulgá-lo. Como ponto de partida, há algumas perguntas que todos os professores precisam se fazer: • Em que situações a leitura e a produção são propos- tas nas aulas? • Há uma fi nalidade que justifi ca essa leitura e essa produção ou são meros exercícios escolares? • Os alunos são esclarecidos a respeito da fi nalidade da atividade de leitura ou de produção de um texto? • O que o professor espera que os alunos aprendam na sua área? • Que gêneros são mais adequados para cada conte- údo, tendo em vista essas aprendizagens? • O professor utiliza uma diversidade de fontes de consulta e de suportes textuais? • Apresenta diferentes gêneros, extraídos de diferen- tes fontes e suportes, para abordar um mesmo tema ou para desenvolver um mesmo conceito, por exem- plo: uma ilustração, um texto do livro didático, um gráfi co, uma reportagem ou artigo de jornal? • Incentiva e ajuda os alunos a comparar esses diferen- tes textos e a elaborar conclusões sobre o assunto, a concordar ou discordar, a se posicionar criticamente? • Incentiva os alunos a ler, a enfrentar as difi culdades de um texto mais longo e mais complexo? • Diante de textos mais complexos, ajuda-os a identi- fi car idéias, teses, argumentos; a inferir dados que não estão explícitos; a inferir o signifi cado de ter- mos desconhecidos; a relacioná-los com outros tex- tos lidos ou com experiências de vida? • Planeja situações em que os alunos possam demons- trar suas aprendizagens e divulgar suas produções para outras pessoas e não apenas para o professor e os colegas de classe? Cada área do conhecimento tem sua parte na forma- ção do leitor e do autor de textos orais e escritos. As- sim, é o trabalho conjunto dos educadores que irá ga- rantir a ampliação do acesso das crianças e jovens ao mundo letrado. Referências e sugestões de leitura BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochinov). Marxismo e fi losofi a da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1990. BONAMINO, A.; COSCARELLI, C.; FRANCO, C. Avaliação e letramento: concepções de aluno letrado subjacentes ao SAEB e ao PISA. Educação e Sociedade: Revista de Ciência da Educação, Centro de Estudos Educação e Sociedade, v. 23, n. 81 (Dossiê Letramento). São Paulo; Campinas: Cortez; CEDES, 2002. BRASIL. Ministério da Educação. Lei de diretrizes e bases da Educação. Brasília: MEC, 1996. ______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacio- nais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – Língua Portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. Cenpec. Estudar pra valer! Material de apoio ao Projeto Estudar pra Valer! São Paulo: 2005. COSTA, Sergio Roberto. Interação e letramento escolar: uma (re)leitura à luz vygotskiana e bakhtiniana. Juiz de Fora; São Paulo: UFJF; Musa Editora, 2000. DIONÍSIO, A. P., MACHADO, A. R., BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 2001. ______. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989. ______ (Org.). Os signifi cados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995. ______; MORAES, Silvia E. Leitura e Interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escola. Campinas: Mercado das Letras, 1999. LERNER, DELIA. Ler, escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002. MAYRINKI-SABINSON, M. L.T. O papel do interlocutor. In: ABAURRE, M. B. 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TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 2002. cc04_parteB_19.indd 93 cc04_parteB_19.indd 93 21/9/2007 11:33:18 21/9/2007 11:33:18 94 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cc04_parteC_16.indd 94 cc04_parteC_16.indd 94 21/9/2007 11:43:29 21/9/2007 11:43:29 95 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Refl exões sobre a formação de professores para o ensino fundamental artigo A SHEILA ROBERTI PEREIRA DA SILVA* produção acadêmica contemporânea parece ter inva- dido o ideário pedagógico, tanto no que diz respeito à formação inicial de professores quanto em relação aos programas de formação em serviço ou continuada. É for- te a infl uência dos estudos que têm chamado a atenção para a necessidade de dar o papel central ao professor nos processos de formação. A mudança do paradigma prescritivo, com ênfase nos métodos e procedimentos, para um modelo apoiado no conceito de professor refl exivo é tributária da evolução da pesquisa educacional no Brasil que, nas últimas dé- cadas, elegeu o cotidiano como locus privilegiado para a compreensão dos fenômenos e processos educacio- nais, os quais não são visíveis, em geral, por outros ti- pos de enfoque. Pode-se considerar que essa mudança nos enfoques de formação foi sendo gestada a partir do redireciona- mento dado à pesquisa educacional que, criticada por um certo abstracionismo pedagógico que lhe seria ca- racterístico (Azanha, 1992), volta-se, consoante às re- comendações dos estudiosos desse campo, para a vida cotidiana da escola, colocando-a em sua ambiência his- tórica, na tentativa de captar as efetivas transformações por que tem passado. * Sheila Roberti Pereira da Silva é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, professora e coordenadora do Curso de Pedagogia da UNIP de São José dos Campos. cc04_parteC_16.indd 95 cc04_parteC_16.indd 95 21/9/2007 11:43:32 21/9/2007 11:43:32 96 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A escola como locus de formação Ao fazer um balanço da pesquisa educacional no Bra- sil, Gouveia (1971), já no início da década de 1970, cha- mava a atenção para o necessário relacionamento en- tre a pesquisa e a ação e sobre a importância da pes- quisa na formulação da política educacional em suas li- nhas mais amplas. Indicava a pesquisadora, também, a necessidade de considerar a questão da pesquisa sob aspecto pouco valorizado, até então: “(...) a infl uência da pesquisa sobre o processo educacional propriamen- te dito, isto é, sobre o que acontece nas escolas” (Gou- veia, 1971, p. 17), anunciando, de certa maneira, a força que viria a ter o enfoque etnográfi co de pesquisa do co- tidiano escolar. Em outro estudo, Gouveia (1976) apontava o que se- ria, naquele momento, um dos “fl ancos mais desguar- necidos da pesquisa educacional no Brasil: os estudos da escola como organização social e dos sistemas admi- nistrativos em que a escola se insere” (Gouveia, 1976, p. 79), mais uma vez enfatizando a necessidade de se co- locar a escola no centro das investigações. De fato, houve um redirecionamento da pesquisa edu- cacional nas últimas décadas, sendo freqüente, na produ- ção acadêmica contemporânea, relatos de pesquisa de tipo etnográfi co que demonstram a importância de tomar a escola como lócus de formação, a partir de problemas concretos da realidade. É no cotidiano da escola que tudo acontece e que as soluções urgem. Alguns estudos, como o de Passos (1999), relevam esse princípio e apontam a ri- queza da troca e da colaboração entre os pares, sob uma perspectiva que valoriza o componente refl exivo, para o desenvolvimento profi ssional do professor. A partir dos estudos de Donald Schon e Antônio Nó- voa — dois dos autores que mais têm infl uenciado o pa- radigma dominante na formação de professores, no qual é central a idéia de “professor refl exivo” —, assistimos à emergência de uma nova racionalidade a orientar os pro- gramas de formação. Considera-se, nesse paradigma, que, em “zonas de indefi nição”, conforme formulação de Schon (Passos, 1999), ou em “zonas de sombra,” conforme pontua Per- renoud (2000) — para citar outro autor que tem infl uen- ciado muito as concepções sobre formação —, é que apa- recem situações complexas para as quais não se encon- tram respostas nos modelos prescritivos. Sendo assim, exige-se o diálogo com a situação com que se defronta o professor, processo por meio do qual ele pode atribuir maior sentido ao trabalho docente, con- dição para seu desenvolvimento profi ssional. Trata-se de perspectiva importante para se contem- plar no processo de produção do saber docente, cujas características são diferentes do saber normativo das prescrições pedagógicas. Quando as iniciativas de for- mação, mais do que respeitam, consideram a vivência – e os saberes construídos a partir deste nível da realida- de em intersecção com os saberes ditos pedagógicos – em suas defi nições de objetivos, conteúdos e metodo- logias de formação, abre-se a possibilidade de trabalhar na zona de representações dos professores, entendidas cc04_parteC_16.indd 96 cc04_parteC_16.indd 96 21/9/2007 11:43:33 21/9/2007 11:43:33 97 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 como fatos de palavras e de prática social, portanto, não redutíveis ao discurso (Lefebvre, 1983). Assim, as representações dos professores sobre os diferentes aspectos de sua prática podem ser tomadas como objeto de refl exão, de modo que eles possam sub- metê-las a uma crítica teórica, confrontando o vivido e o concebido, em direção a uma síntese superadora de certas concepções ou crenças que vão sendo geradas no dia-a-dia do trabalho pedagógico, as quais, por suas características acríticas ou reiterativas, bloqueiam um agir pedagógico transformador. O interesse pelas representações do professor como objeto de estudo é crescente, uma vez que a compreen- são de grande parte dos fenômenos e processos edu- cacionais pressupõe a análise do signifi cado dessas re- presentações docentes. Ao desvendar as condições por meio das quais determinadas representações dos pro- fessores se formam e se modifi cam, é possível vislum- brar quais mudanças são necessárias à transformação das práticas, tendo em vista tanto seu caráter retrospec- tivo, que possibilita conhecer as origens das representa- ções, quanto seu caráter prospectivo, o qual permite an- tecipar o futuro, como apontam vários estudos que anali- sam o cotidiano escolar (Silva, 1996, 2005; Penin, 1989, 1994, 1995). Esta necessidade de trabalhar as representações é apresentada, por Thuler e Perrenoud (2006, p. 364), como imperativa desde a formação inicial. Em um con- texto caracterizado pela diversidade de referências e prá- ticas, estes autores perguntam: “Que fazer em face da diversidade quando há que formular programas de for- mação inicial?”. Defendem, então, uma “formação para a coopera- ção”, já que, de acordo com os autores, este não é um elemento dominante na profi ssão de professor. Entre tantas representações que pululam no cotidiano esco- lar, Thuler e Perrenoud (2006) apontam a necessidade de problematizar o individualismo do professor. Segundo os autores, o individualismo não é uma questão apenas de caráter e, sim, de relação com as con- dições das ações de ensino, com convicções construídas na e pela trajetória pessoal e profi ssional, enfi m, com a história do professor. Esta observação sobre a importância de se conside- rar as histórias de vida remete-nos à abordagem biográ- fi ca que prioriza o papel do sujeito na sua formação, mediante seu percurso de vida ou de vida escolar (Bue- no et ali, 2006). A produção acadêmica, derivada de estudos que ado- tam a abordagem biográfi ca, mostra a necessidade de se conceber a vida como espaço de formação, revalorizan- do a noção de experiência (Bueno et ali, 2006), o que pode ser avaliado como uma perspectiva promissora para programas de formação de professores. Diálogo entre teoria e prática Os enfoques atuais de pesquisa a respeito de forma- ção do professor, ao inaugurarem uma nova epistemologia de formação, colocaram a escola no centro das preocupa- ções e, em relevo, a questão da subjetividade, a importân- cia de se perceber o professor como pessoa; evidenciaram, ainda, a necessidade do diálogo com a prática para acionar o processo refl exivo, trazendo novos desafi os à pesquisa, no sentido de avaliar o impacto prático dos programas de formação no desenvolvimento profi ssional dos professo- res, alicerçados nas novas bases epistemológicas em que se fundamentam. O que nos preocupa, de fato, é que, neste contexto do atual estágio de desenvolvimento das concepções sobre formação e de suas manifestações na prática de formação inicial e em serviço, em que se valoriza o diálogo com a prática, é fundamental redimensionar o lugar que ocupa a unidade entre teoria e prática nos processos de forma- ção de professores. Tanto naquela como nesta, parece que, afetada pela racionalidade prática que caracteriza o atual momento, verifi ca-se um desprezo pela teoria ou um aprofundamento da dicotomia entre teoria e prática, tantas vezes denunciada como um dos principais proble- mas enfrentados pelos programas de formação. Ao contrário do que se tem verifi cado, a formação do professor refl exivo não pode prescindir de um sólido em- basamento teórico, entendida a teoria em seu caráter an- É fundamental redimensionar o lugar que ocupa a unidade entre teoria e prática nos processos de formação de professores. cc04_parteC_16.indd 97 cc04_parteC_16.indd 97 21/9/2007 11:43:35 21/9/2007 11:43:35 98 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 tecipador de práticas não existentes e, como tal, como modelo que lhe serve de orientação, em um movimento de vai e vem, fundamental para a compreensão e avan- ço das práticas escolares. Como desprezar, no desenvol- vimento do professor refl exivo, a capacidade de anteci- par, na mente, as transformações que deseja fazer em sua prática? Como fazê-lo, sem a mediação teórica? Particularmente em relação à formação inicial, ao se fazerem as críticas aos modelos tradicionais, é necessário que sejam criadas as condições para que os licenciandos não assimilem a necessidade de fundamentação teórica ao mero verbalismo (Saviani, 2007, p. 109), lembrando que a experiência por si não é formadora. Por outro lado, “a adequada formação não pode ser imaginada com a simples e direta aplicação à situação de ensino de um saber teórico. Não se trata de substi- tuir uma orientação psicológica por outra, nem de am- pliar os estudos de ciências sociais...” (Azanha, 2004, p. 370). Trata-se, entre outras exigências, de se consi- derar a imensa variedade da situação escolar brasileira e tomá-la como ponto de partida da formulação de pro- postas de formação de docentes. A escola “deve ser o centro das preocupações teóricas e das atividades prá- ticas em cursos de formação de professores” (Azanha, 2004, p. 373). No que diz respeito ao professor especialista, embo- ra o eixo de sua formação situe-se junto às áreas espe- cífi cas, exige-se uma articulação diferente entre o espe- cífi co e o pedagógico, para além de uma relação apenas temporal de sucessão que a tradicional organização cur- ricular consagrou. Considerando, como Ludke (1994), que a competência básica do professor é o domínio do con- teúdo específi co, eis um desafi o que permanece, a des- peito de todas as indicações da literatura sobre forma- ção: romper com a dicotomia entre o conteúdo específi - co e a sua dimensão pedagógica. Tal superação tem sido difi cultada, entre outros fa- tores, pela contradição entre os modelos que prescre- vem como deve ser a formação dos professores e as práticas efetivas de licenciaturas, em que prevalecem a fragmentação das diferentes áreas do conhecimento e pouca ou nenhuma ênfase ao caráter refl exivo da ati- vidade acadêmica. Em vez de um currículo integrado que favoreça não só uma visão, e sim uma atitude interdisciplinar no tratamen- to didático dos conteúdos específi cos, predomina, nas prá- ticas de formação, a lógica disciplinar descolada, não raras vezes, dos problemas educacionais concretos, reforçando justamente o que se deseja romper. Assim, fi ca muito difi - cultada a tarefa de formar professores que adotem o para- digma interdisciplinar no ensino fundamental. Estágio em situações reais Para superar a distância ainda existente entre as pres- crições idealizadas do perfi l e das competências que o professor deve desenvolver, ou sobre como deve ser o ensino, a aprendizagem e a avaliação do aluno do en- sino fundamental e as práticas efetivas de formação de professores, é imprescindível redimensionar o papel do estágio como eixo articulador entre teoria e prática. O estágio, como atividade de observação, se dota- do de procedimentos teórico-metodológicos consisten- tes, pode contribuir para a refl exão e a compreensão da realidade educacional, na sua concretude, e, como tal, em sua diversidade. A realidade não é homogênea e a identifi cação e a compreensão dos problemas que ela apresenta é condição para a sua superação, a par- tir da idéia de que o existente contém os germens de seu vir a ser. Então, uma análise e uma refl exão rigorosa sobre a prática de ensino podem projetar elementos importantes na direção da sua transformação. Para isso, é necessá- ria a apropriação de ferramentas teóricas de observação cc04_parteC_16.indd 98 cc04_parteC_16.indd 98 21/9/2007 11:43:36 21/9/2007 11:43:36 99 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 e de interpretação da prática, pois é preciso: “Primeiro aprender, depois observar. Quem nada aprendeu, nada pode observar”, como afi rma Hanson (1975, p. 134). Por outro lado, o estágio não poderia se limitar à des- crição analítica do que acontece na escola ou na sala de aula. Para que se realize a unidade necessária entre teo- ria e prática, cujo esfacelamento difi culta ou impede uma compreensão crítica da realidade, é preciso que o está- gio transforme-se nesse espaço privilegiado para romper com a atual dicotomia , por meio de um projeto que via- bilize a participação do estagiário, na escola fundamen- tal, em situações reais de ensino-aprendizagem-avalia- ção e em situações reais de planejamento e desenvolvi- mento de projetos, a partir da eleição de problemas do cotidiano da escola que o estágio de observação permi- te identifi car. Assim, seria possível favorecer uma compreensão da vida escolar de maneira contextualizada, que supe- re o abstracionismo com que a escola e o professor são considerados nas propostas de formação docente e que contribua para o desenvolvimento de um ponto de vis- ta pedagógico que, como explica Azanha (2004, p. 373), não deve ser: (...) uma tentativa de aplicação de conhecimentos auferidos em possíveis descrições e explicações de “fatos” escolares, mas um esforço de compreensão da escola como um projeto institucional para transformar uma comunidade de professores e alunos onde ocorrem encontros de gerações numa comunidade espiritual fundada numa visão ética cujos efeitos educativos se prolongam além dos anos de escolaridade. Trata-se de tarefa bastante complexa, para cujo pre- paro não se pode dispensar tratamento homogeneizan- te. Pela complexidade do problema, os desafi os são múl- tiplos e diversos e, como tal, exigem respostas múltiplas e diversas de acordo com as características de determi- nados contextos que apontam específi cas necessida- des de formação. Por essa razão, esperamos que as contribuições da pes- quisa educacional não sejam reapropriadas pelos formado- res como modismos ou panacéias e que as questões como as aqui destacadas, dentre muitas outras não mencionadas, não escapem aos formuladores de diretrizes e propostas de formação do chamado professor refl exivo, enfatizado pela produção acadêmica e por programas de formação. Não se trata de mais um mero exercício retórico. Trata-se de dar a devida importância a esta questão, pela característica constitutivamente refl exiva da atividade docente. A escola “deve ser o centro das preocupações teóricas e das atividades práticas em cursos de formação de professores” Referências AZANHA, J. P. Uma idéia de pesquisa educacional. São Paulo: Edusp, 1992. ______. Uma refl exão sobre a formação do professor da educação básica. Educa- ção e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 369-378, maio/ago. 2004. BUENO, B. O.; CHAMLIAN, H. C.; SOUSA, C. de et al. Histórias de vida e autobio- grafi as na formação de professores e profi ssão docente (Brasil, 1985-2003). Educação e Pesquisa, v. 32, n. 2, p. 385-410, maio/ago. 2006. GOUVEIA, Aparecida Joly. A pesquisa educacional no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 1, p. 1-48, jul. 1971. ________. A pesquisa sobre educação no Brasil: de 1970 para cá. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 19 , p. 75-79, 1976. HANSON, N. Observação e Interpretação. In: MORGENBESSER, S. Filosofi a da Ciência. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1975. LEFEBVRE, H. La presencia y la ausencia: contribución a la teoria de las represen- taciones. México: Fondo de Cultura Econômica, 1983. LUDKE, M. Avaliação Institucional: formação de docentes para o ensino fundamen- tal e médio (as licenciaturas). 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A avaliação da aprendizagem no contexto da organização do ensino por ciclos com progressão continuada: um estudo a respeito de representações de professoras do ciclo I de uma escola municipal. 2005. Tese (Doutorado) – USP, São Paulo, 2005. cc04_parteC_16.indd 99 cc04_parteC_16.indd 99 21/9/2007 11:43:38 21/9/2007 11:43:38 100 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A Reorientação Curricular do 6o ao 9o ano, desenvolvida pela Secretaria de Educação do Estado de Goiás, de 2004 a 2006, constituiu um amplo processo de discussão do currí- culo da segunda fase do ensino fundamental. Assumiu for- ma bastante participativa, atingindo todas as escolas da rede estadual, as quais atendem, no conjunto, a 70% dos alunos matriculados neste nível de escolaridade. Seu principal objetivo foi ampliar a garantia do direito à educação de qualidade a todo adolescente e jovem des- se estado, entendendo que esse direito abrange o acesso, a permanência e a conclusão, com sucesso, do ensino fun- damental. Para isso, estabeleceu como metas: • a redução das taxas de evasão e repetência nas escolas estaduais; • a construção, pelas escolas, de propostas curriculares que considerem as aprendizagens específi cas de cada área do conhecimento, o universo cultural dos alunos e as apren- dizagens ligadas à leitura e à produção de texto; • a ampliação de espaços de discussão coletiva nas esco- las e nas subsecretarias. O desafi o da participação “(...)compreendo que a reorientação não está pronta; nós estamos construindo.” Professor da Subsecretaria Regional de Educação de Iporá “(...)o que os professores estão gostando é que a Re- orientação não está vindo de cima, estão se sentindo mais valorizados.” Professora da Subsecretaria Regional de Educação de Piracanjuba A opção pelo processo participativo fundamentou- se no propósito de valorizar os saberes dos profissio- nais de ensino que atuam em diferentes níveis do sis- tema, especialmente dos que fazem a educação no dia-a-dia da sala de aula. A crença é de que o currícu- lo de cada escola se modifica, de fato, à medida que o conjunto dos educadores se mobiliza para problema- tizar, estudar e discutir os fatores que provocam a ex- clusão de milhares de jovens e constroem juntos no- vos caminhos para a inclusão social. Quando o pro- fessor se compromete com as discussões, ele trans- forma sua prática, repensa o currículo. É preciso considerar que a discussão curricular do 6o ao 9° ano é bastante complexa e exige um grande fôlego e vontade política das secretarias de educação na implementação de ações legais, administrativas e pedagógicas, visando a modificar a estrutura e o fun- cionamento do ensino nesse nível de escolaridade. Sendo assim, para conceber o novo projeto, a se- cretaria foi buscar referências em um programa que ha- via sido iniciado em Goiás e continha iniciativas ino- vadoras. Trata-se do Programa Correção de Fluxo Es- colar - Acelera II, que, em 2001 e 2002, envolveu es- colas de 16 subsecretarias, das 38 existentes no Esta- do, e contou com a assessoria do Cenpec. Este Programa, destinado aos alunos com defasa- gem idade-série, de 5a a 8a série, exigiu: várias mu- danças na organização do ensino, como a elaboração de arranjos curriculares específicos, acompanhados da produção de materiais; a constituição de equipes multidisciplinares regionais, responsáveis pela for- mação continuada dos educadores dos municípios; e modificações na legislação do ensino, particular- mente no que se refere à avaliação da aprendizagem dos alunos. RELATO DE PRÁTICA Reorientação Curricular em Goiás: um processo participativo. Maria José Reginato Ribeiro Meyri venci Chieffi * * Maria José Reginato Ribeiro e Meyri venci Chieffi são pedagogas e coordenadoras de projetos da área de Gestão e Sistemas de Ensino do Cenpec. cc04_parteC_16.indd 100 cc04_parteC_16.indd 100 21/9/2007 11:43:39 21/9/2007 11:43:39 101 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 As parcerias “No Acelera tinha o Cenpec, agora temos também a Universidade, e isso é ótimo.” Professora da Subsecretaria Regional de Educação de Aparecida de Goiânia Com base nos resultados do Acelera II e identifi ca- da com as concepções sustentadas por esse programa, a secretaria buscou novamente o Cenpec para auxiliá- la no novo empreendimento: ampliar a discussão cur- ricular para toda a rede. Considerando a necessidade de enraizar o processo de reorientação no Estado, o Cenpec propôs a ampliação dessa parceria com docentes das diferentes áreas do conhecimento de universidades locais para, com isso, favorecer a troca dos acúmulos específi cos entre as diferentes instituições de ensino, a aproximação entre a formação inicial e a continuada dos professores e a continuidade da discussão curricular na rede. A parceria entre a SUEF (Superintendência do Ensi- no Fundamental), o Cenpec e a Universidade foi cons- truída processualmente, com todas as vicissitudes pró- prias do envolvimento de três instituições que tradicio- nalmente não têm a prática de trabalhar em conjunto. Isso exigiu afi nação de conceitos, superação de pre- conceitos e desprendimento para aprender uns com os outros, o que só foi possível porque uma visão po- lítica comum unia a todos em relação à garantia do di- reito à educação. Muitos foram os encontros entre os parceiros antes, durante e após os momentos de formação, além da co- municação à distância, para planejamento, avaliação e elaboração de subsídios. Assim, em 2005 e 2006, as três instituições e os educadores do estado de Goiás desfrutaram, por várias vezes, de momentos raros em que puderam discu- tir suas crenças e seus fazeres pedagógicos, juntos, em um mesmo espaço. Cabe ressaltar que os locais dos encontros – a estância de Caldas Novas, a cidade histórica de Pirinópolis e a capital, Goiânia – foram cui- dadosamente escolhidos para proporcionar, aos edu- cadores, tanto as condições de trabalho necessárias, quanto possibilidades de lazer e de ampliação de seu universo cultural. A formação “(...) esse processo não vai ter ponto fi nal, vai crescer cada vez mais...” Professora da Subsecretaria Regional de Educação de Quirinópolis Para que a formação chegasse a todas as escolas do Estado, ela foi organizada de forma a contemplar dois mo- vimentos: um centralizado e outro descentralizado. A formação centralizada reunia bimestralmente cerca de 400 educadores das 38 regiões do Estado, que tinham a responsabilidade de liderar o processo de reorientação em suas localidades. A maior parte desses educadores que compunham as equipes multidisciplinares dos ór- gãos regionais acumulava também a função docente em escolas da região, o que propiciava uma visão realista da pertinência das propostas e dos encaminhamentos feitos nesse fórum de discussão. Os encontros seguiam uma determinada rotina. Ini- ciavam-se com a apresentação e o debate do tema, que seria norteador dos trabalhos daquele encontro, realiza- dos por profi ssionais reconhecidos como autoridades no assunto. Em um segundo momento, os educadores, agrupados por subsecretarias, traziam notícias do projeto, com a ava- liação da equipe, indicando os avanços, as difi culdades encontradas e as necessidades de ajuda. Num terceiro momento, constituíam-se os grupos por área de conhecimento, na qual o objeto de trabalho era a concepção da área e sua abordagem metodológica, o que permitia trazer as práticas de sala de aula para a análise, tendo como pano de fundo o tema norteador do encontro e as metas da reorientação. Por fi m, as subsecretarias voltavam a se reunir para pla- nejar os momentos de formação em suas localidades. A formação centralizada desdobrava-se, assim, regio- nalmente, atingindo todas as escolas, por meio de en- contros das equipes multidisciplinares com os profes- sores, coordenadores pedagógicos e diretores do ensi- no fundamental. Esses encontros assumiam feições locais, mas guar- davam unidade com a formação centralizada nos objeti- vos, na temática e nas “tarefas” comuns. As “tarefas” a serem desenvolvidas, especialmente em uma escola específi ca da região, denominada escola-pes- cc04_parteC_16.indd 101 cc04_parteC_16.indd 101 21/9/2007 11:43:40 21/9/2007 11:43:40 102 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 quisa, consistiam numa estratégia para provocar a refl exão sobre a prática escolar, trazer a realidade da rede para a formação e instituir uma rotina de acompanhamento das equipes das subsecretarias às escolas. Versavam sobre as questões de fundo da reorientação curricular e envolviam os profi ssionais das escolas num processo de ação-refl exão-ação, valorizando os desdobra- mentos da formação “no chão da escola”. Os cadernos “Ao produzir os cadernos, nos redescobrimos como pro- dutores de conhecimento e percebemos a escrita como um importante canal de registro e documentação de um momento de grande fertilidade de diálogos na rede.” Especialista da comissão de redação da equipe de SUEF Os cadernos Currículo em Debate são produtos detes três anos de discussão sobre a escola, o currículo e a qua- lidade do processo de ensino-aprendizagem, no contexto do direito à educação. Foram elaborados quatro cadernos, com dois grandes objetivos. O primeiro era de registrar a vida dos preciosos encontros de formação centralizada e descentralizada, sis- tematizando e veiculando: as discussões, as polêmicas, as práticas dos educadores, a fundamentação teórica re- lativa à democratização da escola e ao ensino das áreas do conhecimento, bem como “as tarefas” realizadas pe- los educadores, as quais se tornavam objeto de refl exão e de estudo nos trabalhos de formação. O outro objetivo era construir um conjunto de subsí- dios para alimentar a continuidade do debate coletivo dos professores e técnicos nas escolas, nos grupos de estudo dos 246 municípios do estado e nas equipes regionais e centrail da secretaria. Os cadernos registraram as grandes temáticas nortea- doras da reorientação curricular, concomitantemente aos encontros de formação. Assim, cada um teve um foco es- pecífi co, a saber: • CADERNO 1: O direito à educação — desafi o da quali- dade. • CADERNO 2: Um diálogo com a rede — análise de da- dos e relatos. • CADERNO 3: Currículo e práticas culturais — as áreas do conhecimento. • CADERNO 4: Relatos de práticas pedagógicas. A produção dos cadernos contou com a participação de todos os segmentos envolvidos no processo de reorien- tação, com maior ou menor intensidade, dependendo da natureza do tema. Assim, as concepções das áreas do conhecimento e respectivas abordagens metodológicas foram propostas, discutidas e revistas várias vezes pelos professores das próprias disciplinas, de todo o Estado, nos encontros de formação, junto aos formadores do Cenpec, da SUEF e da Universidade. Esta, representada por docentes da Univer- sidade Federal de Goiás – UFG, Universidade Estadual de Goiás – UEG e Universidade Católica de Goiás – PUC, par- ceiros durante todo o processo da reorientação, contribuiu com vários artigos teóricos que foram compartilhados e discutidos com os professores, com a intenção de provo- car refl exões e torná-los co-autores dos documentos que expressam a reorientação curricular. Além disso, contribuíram também com o tratamento de informações, dados e relatos trazidos pelos professo- res de todas as regiões do Estado. Uma comissão de reda- ção foi constituída na SUEF, com a representação de dife- rentes áreas do conhecimento e a assessoria do Cenpec, para cuidar da concepção da coleção e de cada caderno, além de sua formatação. cc04_parteC_16.indd 102 cc04_parteC_16.indd 102 21/9/2007 11:43:40 21/9/2007 11:43:40 103 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O Cenpec desempenhou também o papel de leitor crí- tico de toda a coleção. Nos cadernos de Currículo em Debate, o leitor encontra as marcas do percurso feito pelos educadores de Goiás na luta pela garantia do direito à educação para toda criança e todo adolescente e, quem sabe, mesmo sendo de outro estado, apesar das distâncias e das diferenças, identifi - que-se com elas e se fortaleça no seu próprio percurso. Avanços e Desafi os “(...)com a reorientação curricular estamos todos le- vantando e analisando os dados da escola e, com isso, alguma coisa vai mudar.” Professora da Subsecretaria Regional de Educação de Mineiros O que garantiu que o processo de reorientação cur- ricular fosse participativo, mobilizando maior núme- ro de agentes de educação do Estado, foram os movi- mentos de formação centralizada e descentralizada. Essa estratégia exigiu recursos fi nanceiros considerá- veis e deslocamento dos educadores dos mais distan- tes pontos de Goiás, mas foi ela que permitiu maior capilaridade do projeto, abrangendo praticamente to- das as escolas. O processo de acompanhamento do projeto na rede, pelas duplas pedagógicas, tanto da SUEF quanto das sub- secretarias, permitiu diagnósticos e intervenções proces- suais nas práticas dos educadores, o que foi fundamen- tal para a defi nição dos rumos da reorientação, subsi- diando, desta forma, os conteúdos dos grandes encon- tros de formação. As parcerias envolvidas no assessoramento à direção político-pedagógica do projeto também contribuíram muito com o processo, porque trouxeram, para o debate, múltiplos olhares e saberes específi cos e complementa- res; a própria constituição da parceria foi, por si só, uma aprendizagem para todos. Um ponto a se destacar foi a parceria, no fi nanciamen- to do Projeto, constituída pelo Estado de Goiás e a Fun- dação Itaú Social numa proposta que teve, na defi nição de interesses e necessidades a serem atendidos, o pro- tagonismo do poder público. Outro ponto muito valori- zado foi a entrega da coleção Currículo em debate para todos os educadores da rede. Perseguindo a mesma metodologia participativa, foi realizado um balanço coletivo, ao fi nal de 2006, envol- vendo os mesmos 400 educadores da formação centra- lizada, que avaliou as três metas propostas pela reorien- tação curricular e fez indicações para a continuidade do processo: manter as conquistas obtidas, investir na apro- priação sólida da reorientação pelas subsecretarias e es- colas, repensar as atuais condições administrativas, fun- cionais e salariais da rede para que dêem sustentação às mudanças de práticas pedagógicas e avançar na cons- trução de propostas curriculares inclusivas. Continuar o processo: este é o grande desafi o de Goiás! Não é simples enfrentar a questão do ensino deste ní- vel de escolaridade porque isso exige a implementação de medidas de grande complexidade, complementares entre si e que vão desde a política de educação nacional mais ampla que pressupõe um sólido programa de formação de professores, tanto inicial quanto continuada, o investi- mento as condições de trabalho dos educadores até a im- plementação de uma nova cultura, no interior das escolas, que rompa com o elitismo e o isolacionismo que desconsi- dera as vozes dos jovens, dos professores, dos pais. Mas ousar é necessário. É preciso. cc04_parteC_16.indd 103 cc04_parteC_16.indd 103 21/9/2007 11:43:42 21/9/2007 11:43:42 104 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cc04_parteC_16.indd 104 cc04_parteC_16.indd 104 21/9/2007 11:43:43 21/9/2007 11:43:43 105 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Seriam eles indomáveis protagonistas? s alunos de quinta a oitava séries do ensino fundamen- tal já há muito tempo vêm sendo considerados “indo- máveis” pela escola, por estarem numa idade apontada como difícil e ingrata para o trabalho do professor. E por quê? - Trata-se de um problema que tem a ver apenas com os alunos ou também com o trabalho coletivo e edu- cativo da escola? - Quais são as grandes questões que os educadores dessas séries têm se colocado? Podemos mapear algumas diferenças, ocorridas nos últimos anos, que contribuem para que essas séries es- tejam sendo objeto de estudo e preocupação mais in- tensas. Nosso ponto de partida é, de um lado, a escuta, o acompanhamento e a refl exão junto a grupos de educado- res e de psicólogos que tematizam suas práticas em insti- tuições escolares da rede pública; de outro, atuações pon- tuais em algumas escolas de ensino fundamental. Uma questão que tem chamado a atenção dos educa- dores na escola, bem mais do que antes, é a função da fa- mília, ou melhor, segundo alguns professores, as falhas das famílias em sua tarefa de educar e, por conseqüên- cia, a sobrecarga que signifi ca a delegação dessa função para a escola. Seria então a educação escolar a continuidade da edu- cação doméstica? Ou será que esta observação ou “quei- xa” estaria revelando a difi culdade da escola em encon- trar suas próprias respostas aos inúmeros desafi os que se têm apresentado? Podemos afi rmar que ambas as instituições — família e escola — encontram-se fragilizadas e assustadas com as questões que as crianças e adolescentes têm coloca- do para a sociedade, o que faz com que proliferem as co- branças e acusações recíprocas. Vejamos: família e escola têm responsabilidades na educação das crianças e adolescentes, mas são respon- artigo YARA SAYÃO* * Yara Sayão é psicóloga do Serviço de Psicologia Escolar da USP. O cc04_parteC_16.indd 105 cc04_parteC_16.indd 105 21/9/2007 11:43:49 21/9/2007 11:43:49 106 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 sabilidades bem diferentes. Na família, o convívio é inten- samente atravessado pela questão afetiva: carinho, lem- branças, amor, raiva, inveja, afi nidades, disputas, ranco- res, preferências etc. É muito difícil imaginar (talvez im- possível mesmo) a convivência entre familiares que não seja marcada por vários desses sentimentos. Dada a natureza da instituição familiar, por melhor que ela seja, há uma clara limitação para a experiência do convívio com os diferentes, ou seja, com os “outros”, com quem não há uma ligação afetiva imediata. E a escola? Para além de sua função principal, que é a de dar acesso ao conhecimento de forma sistematizada, é neste privilegiado espaço que a criança, ao conhecer e vivenciar o papel de aluno, pode também experimentar o contato social com os diferentes, essencial para o exercí- cio da cidadania. Isso confere, à escola, uma grande responsabilidade no ensino das questões relativas aos valores indispensá- veis à vida democrática, entendendo-se aqui que a de- mocracia é importante não apenas como regime político, mas também como forma de sociabilidade. E o respeito às diferenças é um desses valores essenciais. Conhece- mos vários exemplos históricos de intolerância e discrimi- nação das diferenças e seus efeitos nefastos em todos os níveis da vida pública e privada. Então, é na escola — espaço público — que a criança, agora aluno ou aluna, poderá aprender a respeitar o outro, mesmo que esse outro nada represente para ela afetiva- mente. Também outros valores, como justiça e solidarieda- de, serão aprendidos pelas crianças de forma diversa da- queles ensinados pela família em relação a estas mesmas questões, uma vez que, na família, esse aprendizado sem- pre ocorre permeado pelos afetos, podendo até gerar, como efeito, em situações peculiares, aprendizados equivocados. Por exemplo: numa situação de confl ito na escola, a defesa de um aluno aos irmãos/parentes/amigos quase sempre se sobrepõe ao julgamento moral de suas atitudes. Tratamentos diferenciados e circunstanciais Ao experimentar cotidianamente situações em que a igualdade de direitos é proposta e os adultos a respeitam, as crianças e adolescentes poderão descobrir as importan- tes dimensões do relacionamento social que possibilitam o estabelecimento da noção de alteridade, assim como o aprendizado dos valores que viabilizam a construção e a convivência numa sociedade democrática. Isso poderá acontecer, por exemplo, nos simples e an- tigos rituais existentes em quase todas as salas de aula: o professor irá atender, pela ordem, quem primeiro levan- tar a mão, independente de quem seja. Na condição de alunos, todos têm os mesmos direitos, e a escola precisa ter regras para que cada um aprenda a compartilhar o es- paço coletivo com seus semelhantes. Isso chama a atenção para o conceito da eqüidade, pois o fato de todos os alunos terem os mesmos direi- tos não signifi ca que sejam iguais ou que devam ser tra- tados da mesma forma. As diferenças entre os alunos (de gênero, condição social, conhecimentos prévios, grau/ modalidade de aprendizagem, comportamento etc.) po- dem justamente indicar a necessidade de tratamentos diferenciados e circunstanciais para se ter, como meta, a verdadeira igualdade no acesso a todos os direitos — e esta é uma questão fundamental para se analisar a ques- tão da inclusão. Temos então revelada a responsabilidade diferenciada da escola em relação à família: não se trata, portanto, de dar conta, na escola, do que a família não quer ou não consegue fazer, e sim de trabalhar em situações e expe- riências fundamentalmente distintas das que a criança pode conhecer e aprender nas situações domésticas, no convívio familiar. Esse reconhecimento indica que a escola deve dar ên- fase a si mesma e a seus processos. É na organização do cotidiano escolar, nas decisões tomadas pelos educado- res e nas diretrizes que a escola escolhe para seguir que reside a responsabilidade de educar para o exercício ple- no da cidadania. E isso ocorre independentemente do tipo e qualidade de educação e de valores que cada família dá a seus fi lhos e que, muitas vezes, são objeto de um severo julgamento/crítica da parte dos educadores na escola. Atualmente, muitas escolas têm se esforçado bastante para trabalhar com as famílias, baseadas na crença de que uma atuação mais rigorosa delas com seus fi lhos poderia diminuir os problemas de comportamento dos alunos na Escola: é neste privilegiado espaço que a criança, ao conhecer e vivenciar o papel de aluno, pode também experimentar o contato social com os diferentes, essencial para o exercício da cidadania. cc04_parteC_16.indd 106 cc04_parteC_16.indd 106 21/9/2007 11:43:51 21/9/2007 11:43:51 107 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 escola. Isso, por vezes, ocorre em detrimento de discus- são coletiva mais aprofundada sobre as próprias práticas educativas adotadas na escola. A expressão “parceria es- cola-família” tem sido largamente utilizada de forma pou- co criteriosa, principalmente pelo fato de não se ter clare- za do papel diferenciado de cada uma delas, e isso deve ser questionado, discutido e analisado por todos na equi- pe escolar. Um grande risco que os educadores escolares correm ao dar prioridade à autoridade da família é o de enfraquecimento da sua autoridade e dos demais educa- dores no interior da própria escola. Pré-adolescentes Outro aspecto, referente ao que acontece na escola, que tem chamado muito a atenção dos educadores é o com- portamento dos agora denominados “pré-adolescentes”. Se, tempos atrás, a preocupação maior dos professores era apenas com os adolescentes, hoje eles fi cam comple- tamente espantados com a capacidade de enfrentamen- to demonstrada por crianças de dez ou 11 anos e também com as manifestações ousadas de sexualidade, principal- mente das meninas. O que está acontecendo? Ocorre que as transformações físicas/emocionais/so- ciais da puberdade agora se dão num contexto muito di- verso dos cenários anteriores: vemos, atualmente, um ver- dadeiro culto à juventude, o que possivelmente faz com que essa faixa etária seja alvo de muita atenção, curiosi- dade, idolatria, apreensão, medo. Não deve ser fácil entrar numa fase da qual, aparente- mente, até muitos adultos não querem sair. Há certa inver- são nos vetores que anteriormente apontavam para o mun- do adulto como sede das maiores potencialidades: intelec- tuais, sociais, de sucesso profi ssional e pessoal etc. Assistimos a uma hipervalorização da juventude em to- dos os seus âmbitos, paradoxalmente ao tipo de aborda- gem que se faz aos jovens: ainda estão presentes, no cam- po educacional, as antigas concepções de adolescência como etapa de transição entre duas fases mais defi nidas da vida — a infância e a idade adulta. Isso, possivelmente, tem relação com parte das tensões que os alunos e alunas de quinta a oitavas séries vivem, e que eles próprios têm difi culdade em nomear e/ou expressar diretamente. Podemos entender a adolescência, nomeada de “ida- de difícil”, também como o ingresso num espaço etário “incongruente”: é muito boa e desejável, mas, ao mesmo tempo, desvalorizada. Isso porque os jovens são mais co- mumente tomados como objeto — da ação educativa, da propaganda, da valorização estética, do discurso adulto etc. —, do que como sujeitos. Será que as inúmeras atitudes radicais desses alunos — crianças e adolescentes — signifi cam um pedido de aju- da aos educadores, para que eles os percebam como su- jeitos que estão convivendo com grandes transformações tanto internas quanto externas e que, na experimentação típica desses momentos, não estão podendo contar com eixos norteadores seguros, em termos de valores? Será que, em meio a tantas incertezas, os adultos estão conseguindo exercer a autoridade necessária para que es- ses alunos possam aprender/descobrir/inventar novas for- mas de viver e de conviver numa sociedade tão contradi- tória? Muitos adultos enfrentam grandes difi culdades para discriminar questões que são da esfera pública das que di- zem respeito à vida privada, fato esse que se torna parti- cularmente difícil para os alunos, que ainda pouco sabem das diferenças e semelhanças entre essas esferas. É certo que o grupo de iguais, a turma dos jovens, pas- sa a desempenhar intenso papel na adolescência, mas é inegável a importância da interlocução das crianças e dos adolescentes com os adultos que lhes são signifi cativos para o enfrentamento dos difíceis momentos de transição. E não podemos esquecer que a família, palco de muitas tensões no momento da adolescência, nem sempre pode oferecer a interlocução adequada aos jovens. Os educadores da escola, nesse momento, têm mais isenção para ajudar os alunos a pensar seus próprios va- lores, opiniões, atitudes e ações. E tudo isso pode ocorrer nos momentos/espaços em que se processam as apren- dizagens dos conteúdos, uma vez que essas questões se relacionam com a postura do professor/educador no tra- to de qualquer questão dentro da escola. É fundamental que os professores articulem o conteúdo de sua área es- pecífi ca (defi nido no projeto coletivo da escola) com as questões ligadas ao comportamento e às preocupações dos alunos. Para esse tipo de atividade didática, há que se cuidar também da competência técnica do professor em sua área específi ca de conhecimento, pois a postura de autorida- de relaciona-se com o conhecimento teórico/técnico ne- cessário para o exercício de sua função. A fundamentação apresentada pelos Parâmetros Curri- culares Nacionais – PCN – para os chamados Temas Trans- versais indica tanto a importância quanto as possibilida- des de trabalho pedagógico com as relevantes questões cc04_parteC_16.indd 107 cc04_parteC_16.indd 107 21/9/2007 11:43:51 21/9/2007 11:43:51 108 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 sociais destacadamente ligadas aos valores e à aborda- gem, em especial, do tema Ética, que traz importantes ele- mentos para o trabalho da equipe escolar no que diz res- peito às questões que estamos apresentando. Descobertas de amor, amizade, medo e solidão. Tendo imensas transformações sociais como pano de fundo, para cada adolescente, há o momento da desco- berta pessoal da sexualidade em suas formas mais rela- cionais. Muitas vezes, a sala de aula, e mesmo a escola, parece se espelhar no belo poema de Drummond: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém... As primeiras experimentações amorosas e também de escolhas de amizade vão se dar de forma um tanto espe- tacular numa sociedade que também privilegia a imagem externa e o espetáculo (vide o enorme aumento de revis- tas/livros que abordam as “celebridades”). Antes ainda de saber o que exatamente buscam, os adolescentes já são levados a se preocupar com o que “parecem ser” aos olhos dos outros, e isso pode atrapa- lhar bastante suas escolhas e experimentações, assim como o aprendizado resultante disso. Fazer parte de uma turma “da pesada”, porém conhecida, falada e comen- tada por todos, pode ser bem atraente para um adoles- cente que se sente invisível para os outros. Tomar a iniciativa, por vezes de forma agressiva, inti- midadora e desrespeitosa, de convidar os garotos para um relacionamento mais íntimo, mesmo que breve, tem sido uma prática muito usual de meninas por volta dos 11 anos. Esse tipo de atitude surpreende muitos os edu- cadores, já acostumados a lidar com manifestações de sexualidade na escola, pois inverte o que antes sempre acontecia: agora são os meninos dessa idade a deman- darem o cuidado e até a proteção dos educadores. A ousadia das meninas, por outro lado, pode também ser uma estratégia para destacar uma identidade femi- nina forte, em contraponto à posição de maior submis- são atribuída historicamente às mulheres. Nos últimos anos, há um notável aumento da gra- videz na adolescência, justamente na faixa que vai de dez a 14 anos. O que isso pode representar em termos sociais? Pela legislação brasileira em vigor, o relaciona- mento sexual com garotas de menos de 12 anos é uma violência, já que, pelo Estatuto da Criança e do Adoles- cente, elas são consideradas crianças. E na faixa de 12 a 14 anos? Sem dúvida, é uma ques- tão bastante complexa, mas supomos que, devido à fal- ta de perspectivas de inserção social e ao desejo de ge- rar algo novo no meio em que vivem, a capacidade pro- dutiva de muitas meninas se volta para o próprio corpo, tomado como possibilidade plausível de criação de um fato realmente inédito, que mude a sua relação com a família e com todo o meio em que vive, proporcionando- lhes uma posição social distinta da que ocupam hoje. Além disso, a vivência de sua sexualidade também é as- sociada a uma experiência vista como prazerosa. Enfi m, é a possibilidade de deixar sua marca no mundo, e este é o grande desejo dos jovens. A novidade é que muitos meninos, antes muito teme- rosos e arredios diante da paternidade, atualmente, de- monstram interesse e até orgulho em “assumir”. Perce- be-se que a idéia e os sentimentos associados à gravidez são um tanto desconectados de todas as responsabilida- des inerentes aos cuidados de um bebê e que a atitude dos adolescentes em relação à paternidade precisa ser confrontada com a capacidade de decisão e experiência possíveis para quem hoje tem 14 ou 15 anos. Isso pode nos fazer pensar sobre o parco campo de experimentações, aprendizados e produções concretas que a sociedade, em geral, e a escola, em especial, têm oferecido aos jovens, talvez ele seja insufi ciente para aco- lher e dar vazão à energia criativa dos adolescentes. Um fenômeno preocupante tem sido relatado por mui- tos educadores: nota-se o aumento de transtornos de- pressivos e/ou ligados às atitudes destrutivas nos alu- nos dessas séries. Em muitos acontecimentos dessa na- tureza, as conversas posteriores com os alunos que pro- tagonizam essas cenas revelam sua estranheza dian- te de atos que praticaram e/ou revelam verdadeiro des- conhecimento de possíveis desencadeadores pessoais para tais episódios. Há relatos de sentimentos como o de solidão e de di- fi culdade de ter/manter as amizades. Para muitos ado- lescentes, não há diferença entre amizade e cumplicida- de, o que revela a necessidade de se conhecer/discutir mais as relações sociais na escola (nos âmbitos públicos e privados) para melhor conhecer e discriminar questões tão importantes como essas. cc04_parteC_16.indd 108 cc04_parteC_16.indd 108 21/9/2007 11:43:52 21/9/2007 11:43:52 109 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Autoridade, rebeldia e limites Em alguns levantamentos informais realizados por pro- fessores junto a seus alunos, o principal problema é a ba- gunça na sala de aula. Esse problema é apontado tanto pelos professores quanto pelos principais atores das “ba- dernas”. Há um reconhecimento dos alunos da importân- cia de o professor ocupar o lugar de autoridade no desem- penho de sua tarefa, o que não quer dizer que eles não sintam, ao mesmo tempo, desejo de desafi ar o professor, provocá-lo e desviá-lo de sua função. É típico da adolescência o aumento da capacidade crí- tica sem que se tenha ainda desenvolvido e canalizado, de forma expressiva, a capacidade de construir e produ- zir. O desenvolvimento dessas capacidades se faz com o auxílio do adulto, orientando e coordenando as ativida- des, por exemplo, nos trabalhos por projetos, nos quais os alunos encontram maiores possibilidades de eleição/ experimentação de novas formas de conviver, de apren- der e de realizar tarefas em grupo, a partir de temáticas que povoem seus cotidianos. Há ainda muita preocupação com o crescimento da infl uência dos meios de comunicação nos alunos, espe- cialmente nas séries da segunda etapa do ensino funda- mental. Sem debate e sem a presença do educador, são poucas as possibilidades de os alunos formarem opinião sobre o que vêem. Eles sentem difi culdade em se situar e se posicionar diante de tanta diversidade e mesmo dis- paridade, tanto em relação aos fatos divulgados quanto às suas versões e interpretações. Também é função da escola auxiliar o aluno a “ler” as imagens às quais está diariamente exposto. É interessante não esquecer que boa parte das informações que os alu- nos têm, inclusive sobre Ciências, vem de fontes como a televisão e a Internet e entender que há intenções nem sempre explícitas depositadas na linguagem da propa- ganda, lembrando, por exemplo, que boa parte delas se destina aos jovens. A escola pode mudar esse quadro Se a escola e os educadores puderem fazer apostas no sentido de possibilitar aos alunos maior capacidade crí- tica e, portanto, atitudes menos passivas diante dos per- turbadores processos sociais, talvez possamos ver mu- danças signifi cativas no quadro atual. Trabalhos escola- res que ajudem o aluno a decodifi car/analisar/compreen- der essa linguagem são fundamentais para diminuir o pro- cesso de alienação a que os jovens são submetidos pelos meios de comunicação atuais. Todos esses aspectos do comportamento são impor- tantes para demonstrar que é impossível tomarmos os alu- nos como preocupação sem considerarmos a sociedade em que estão imersos e que condiciona boa parte de to- dos os acontecimentos nos quais eles são os protagonis- tas, por vezes sem serem sujeitos de sua ação. É possível que parte da violência que ocorre hoje nas escolas possa ser compreendida como contestação e res- posta à exclusão. Ao mesmo tempo, atos violentos não se- riam também um tipo de resposta “enviesada” que denun- cia o fato de que os alunos não se sentem levados a sério, por seus educadores, como sujeitos da ação educativa? Será que a escola não tende a tratá-los como pessoas que precisam estudar para ser alguém no futuro e não no presente? Será que podemos compreender os atos violen- tos como desesperados pedidos da presença de adultos signifi cativos — seus educadores — junto a eles, alunos, em momentos em que ainda não sabem discriminar va- lores, organizar-se como grupo autônomo e responder pelo que fazem? É importante lembrarmos que os alunos de quinta a oitava séries processam o conhecimento ao mesmo tem- po em que processam, subjetivamente, novas e múltiplas possibilidades de ser e de enfrentar o mundo, o que im- plica demandas diferenciadas. Referências CUNHA, Marcus V.A desqualifi cação da família para educar. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, n. 102, p. 46-64, nov. 1997. GUARÁ, Isa Maria F. Rosa. Modernidade, adolescência e cidadania. In: VV.AA. Cidadania e subjetividade. Ed. Imaginário, 1997. MASAGÃO, Vera. Palestra proferida no Cenpec (texto publicado nesta edição). CAMPOS, Maria Malta. A importância das relações humanas na escola (nesta edição). Relatório de pesquisa: A educação no Ciclo II do Ensino Fundamental (2006), elaborado pelo Cenpec (nesta edição). Trabalhos escolares que ajudem o aluno a decodifi car/ analisar/compreender a linguagem da mídia e da Internet são fundamentais para diminuir o processo de alienação a que os jovens são submetidos pelos meios de comunicação atuais. cc04_parteC_16.indd 109 cc04_parteC_16.indd 109 21/9/2007 11:43:53 21/9/2007 11:43:53 110 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O contexto O Projeto Roda, Rede teve início em 2001, no município de Lucena, litoral da Paraíba, com Índice de Desenvolvi- mento Humano de 0,604 2 (2000) e Índice de Desenvolvi- mento Infantil de 0,508 3 (2004), que estão entre os pio- res do Estado da Paraíba. A cidade, com 11 mil habitan- tes, apresenta muitos contrastes sociais – praias e be- las paisagens naturais ao lado de comunidades em que a população vive em situação de extrema miséria. A primeira ação da ONG Apoitchá em Lucena foi a rea- lização de um diagnóstico com a participação da comuni- dade para identifi car os maiores problemas daquela po- pulação. Este estudo apontou que a difi culdade de leitu- ra e escrita e a falta de interesse pelos estudos das crian- ças era um grave problema. A questão ambiental tam- bém foi uma preocupação apresentada, especialmente em razão das doenças originadas pelo lixo. Além disso, a comunidade reclamou da ausência de espaços de lazer e cultura. Outros dados constatados no diagnóstico e também importantes para se entender o contexto foram: • o alto índice de HIV e DST em crianças de nove e dez anos de idade; • abuso e exploração sexual; • violência doméstica grave. A missão da Apoitchá era trabalhar pela melhoria da qualidade de vida e promover o desenvolvimento inte- gral das crianças e adolescentes de Lucena. Em outras palavras, proteger essas crianças e dar condições para que elas pudessem se proteger de toda forma de negli- gência, discriminação, exploração e opressão. Para realizar esta missão, a instituição começou o tra- balho com as escolas tendo como pressuposto o forta- RELATO DE PRÁTICA Roda, Rede: prevenção, letramento e inclusão social. CRISTINA FERNANDES DE SOUZA*1 lecimento da escola pública e das famílias. O atual pro- jeto Roda, Rede começou em 2001 com o nome de Rede Participativa – leitura-escrita e meio ambiente – envol- vendo duas escolas da cidade, em parceria com a Secre- taria da Educação, e ganhou, em 2005, o primeiro lugar do Prêmio Itaú-Unicef. Em 2006, essa rede se ampliou e passou a se cha- mar Roda, Rede – prevenção, letramento e inclusão so- cial. Nesse momento, somaram-se à rede mais quatro es- colas públicas, Ministério Público, Juizado da Infância e da Juventude, Conselho Municipal do Direito da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar, Conselhos de Esco- la, Conselho de Educação, Secretarias Municipais de Edu- cação e Cultura, Saúde e Defesa Social, CREAS, Secreta- rias de Administração, Educação e Planejamento do Es- tado da Paraíba, além das famílias e dos adolescentes que estiveram desde o início do projeto. Em 2007, a Apoitchá estendeu a parceria com as es- colas, trabalhando atualmente com nove escolas da rede pública. Assim, das duas comunidades iniciais agora são oito comunidades atendidas. Eram 200 crianças em 2001 e agora são 2.084 crianças e adolescentes, 190 educa- dores e 500 famílias. O começo Andréa Carrer Carvalho, uma educadora paulista que há seis anos mora em Lucena (PB), coordena as ativida- des da ONG Apoitchá. Desafi os profi ssionais e motivos pessoais animaram sua decisão, que se baseia no pres- suposto teórico preconizado por Kenneth Zeichner, no qual Andréa sempre acreditou: (...) quando se trabalha com formação de professores e educadores, o ideal é que o formador conviva na mesma comunidade que eles, para que esta formação seja mais contextualizada e possa fornecer elementos e oferecer condições para estimular estes professores- * Cristina Fernandes de Souza é comunicadora da Equipe Educação e Comunidade do Cenpec. cc04_parteC_16.indd 110 cc04_parteC_16.indd 110 21/9/2007 11:43:53 21/9/2007 11:43:53 111 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 educadores a refl etirem sobre sua prática, que não é qualquer prática, é uma prática de ensino-aprendizagem naquela comuni- dade específi ca. Para o professor e educador é muito enriquecedor, embora, às vezes, difícil, viver os problemas que as famílias e as crianças estão vivendo no território. Quando você vive as mesmas difi culdades daquela comunidade, você amplia o contato com os meninos e meninas; você freqüenta o mesmo mercado, conhece a mãe do seu aluno e aluna e tem mais condições de interagir com esta realidade. Desde o início, a Apoitchá apostou no trabalho con- junto com os professores. Isso foi muito importante para construção de um vínculo de confi ança entre os educa- dores da ONG e os professores das escolas públicas. Ambos, educador e professor, faziam parte de um gru- po que estudava junto. Por outro lado, uma grande preocupação da institui- ção era a articulação das atividades desenvolvidas pela ONG com as atividades escolares das crianças. Nes- sa perspectiva, sempre foi fundamental o planejamen- to conjunto entre o professor e o educador. Por exem- plo, a ONG fez um estudo de meio, em que as crianças coletavam o lixo pelo bairro e eram estimuladas a refl e- tir sobre as questões ambientais. A professora utilizou todo o material da coleta para trabalhar texto e alfabe- tizar os alunos. A princípio, a formação era somente com professo- res da 1a a 4a série, uma vez que, no diagnóstico elabo- rado com a comunidade, uma das maiores difi culdades das crianças e adolescentes era a alfabetização, leitura e escrita. Com o desenvolvimento dos trabalhos focados na melhoria da leitura e escrita, as crianças foram cres- cendo e sendo promovidas na escola. Nesse momento, tanto a escola quanto a ONG avalia- ram que não cabia, simplesmente, interromper o proces- so e “abandonar” estas crianças quando passavam para a 5a série, tirando-lhes a opção de atividades socioedu- cativas no horário alternado ao escolar. A equipe da ONG começou a refl etir sobre a possibi- lidade de ofertar ações para promover o protagonismo juvenil e oportunidades na comunidade para a popula- ção adolescente. Alguns adolescentes que participam da ofi cina de música, alunos da 8a série, estão na ONG desde a 1a série. Hoje, os adolescentes atuam em rádios dentro das es- colas, produzem jornais, participam de ofi cinas de jor- nalismo, produzem vídeos com temas da cidade, organi- zam eventos municipais e participam dos encontros es- taduais de protagonismo juvenil. Quando a Apoitchá decidiu oferecer atendimento aos adolescentes, constatou a ampliação do desafi o na for- mação dos professores. Não bastava mais formar os pro- fessores do Ciclo I, também se fazia necessário dialogar com os professores de 5a a 8a série, com toda a ques- tão das especialidades, do número maior de professo- res e da carga horária. A experiência Formação de professores de 5a a 8a série Três ações do Projeto Roda, Rede integram a formação de professores de 5a a 8a – Planejamento Participativo, Encontros Pró-Rede e Programa de Educação Preventiva e Sexualidade (PEPS). Planejamento Participativo É uma ação de formação mensal, na qual os professores são convidados a avaliar as ações desenvolvidas pela ONG com as crianças e adolescentes no horário oposto ao escolar. Nesse momento, os professores falam sobre os impactos dos projetos da ONG e naturalmente emer- gem as situações e difi culdades que eles vivem em sala de aula, o que pode começar, por exemplo, com uma discussão sobre o comportamento do menino ou meni- na na ONG e na escola. As angústias do professor são transformadas em objetos de estudo dos outros momen- tos de formação. Nesse espaço de diálogo fecundo, surgem temas como (in)disciplina, violência, sexualidade e drogas, que são trabalhados nos encontros seguintes e também nas outras ações de formação – Encontros Pró-Rede e Pro- grama de Educação Preventiva e Sexualidade. No Planejamento Participativo são trabalhados tex- tos para aprofundamento e refl exão de determinados te- mas e também são desenvolvidos projetos em conjun- to, ou seja, articulados entre a ONG e escola, buscando uma sinergia entre as propostas educativas. Além disso, é uma oportunidade de desenvolvimento de trabalho coletivo entre os próprios professores, que, no dia-a-dia, são consumidos pela falta de tempo para dialogar com seus pares. Nestes momentos, os profes- cc04_parteC_16.indd 111 cc04_parteC_16.indd 111 21/9/2007 11:43:54 21/9/2007 11:43:54 112 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 sores, diretores e supervisores pensam juntos o projeto da escola, para enfrentar coletivamente os desafi os que as situações impõem. Encontros Pró-Rede São grandes momentos e espaços de escuta, onde pais, educadores da ONG, professores das escolas e adoles- centes (estudantes de 5a a 8a) se reúnem. “Não é possí- vel trabalhar formação de professores e desconsiderar que esta formação precisa prever alguns momentos em que o professor tem que estar junto com os pais. E não é só fazer reunião de pais, isso também é importante, mas não é sufi ciente” – justifi ca Andréa Carrer Carvalho. Nos Encontros Pró-Rede, as famílias, professores e adolescentes se reúnem para dialogar sobre questões importantes para a comunidade e refl etir e estudar te- mas que dizem respeito a todos. O encontro se estende por todo o dia. A metodologia foi pensada cuidadosamente para estimular a partici- pação de todos, inclusive dos pais que são, na maioria, analfabetos e não têm o exercício da fala pública. É im- portante destacar que, para facilitar a participação dos pais, um grupo de educadores da ONG cuida das crianças pequenas que os pais não têm com quem deixar. Além disso, em comunidades pobres como muitas de Lucena, a oferta de almoço é um diferencial motivador que a instituição busca garantir em todos os encontros. A presença dos pais nos encontros é maciça; em algu- mas ocasiões, faltam cadeiras e os pais participam pela janela, tais são o interesse e a vontade. Os encontros são permeados por dinâmicas de to- que embaladas por música. Pais, adolescentes e profes- sores em roda, de mãos dadas, olhos nos olhos, para fa- zer uma dança circular. É preciso trazer à tona a afetivi- dade e a emoção de prestar atenção no outro para faci- litar o diálogo. Na parte da manhã, os participantes são organizados em grupos mistos – pais, professores e adolescentes – e têm a tarefa de discutir sobre um tema, situações-proble- ma, estudos de casos baseados em fatos reais da comu- nidade. Para o professor, é muito importante estar jun- to com o pai, pois isso facilita o estreitamento dessa re- lação. O trabalho em grupo procura derrubar eventuais barreiras de classe, categoria e timidez, pois professo- res, pais e alunos estão juntos e têm que apresentar um produto do trabalho coletivo na plenária à tarde. A discussão é enriquecida com slides, textos de al- guns autores sobre o tema, resultados de pesquisa e ou- tros recursos. À tarde, os grupos são de iguais – pais com pais, adolescentes com adolescentes e professores com professores. Os resultados são apresentados por meio de diversas estratégias, uma das mais enriquecedoras é a dramatização. Nessa situação, vem à tona a visão daquele grupo sobre o tema, valores que fazem parte do imaginário do grupo são percebidos pelos outros de maneira muito mais clara que uma conversa é capaz de expressar. “É muito importante esse encontro para mim. Eu deixo de criticar o pai porque tomo conhecimento da sua situação, do que ele está vivendo”, diz dona Ziza, professora veterana de Língua Portuguesa, em idade para se aposentar, mas que vai continuar no ofício. Também para o aprendizado dos alunos a partici- pação no Encontro Pró-Rede enriqueceu o trabalho de dona Ziza em sala de aula: “uma coisa é eu dar todas estas informações numa aula como professora, outra coisa é eles [os alunos] estarem em um encontro com alunos de outras salas, debatendo o tema. A informa- cc04_parteC_16.indd 112 cc04_parteC_16.indd 112 21/9/2007 11:43:54 21/9/2007 11:43:54 113 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 ção vem da ONG, mas também vem dos pais e de ou- tros professores. Então eles [os alunos] podem ver que outras pessoas estão discutindo o mesmo tema e eles se sentem parte de uma comunidade que está discu- tindo este tema.” Juntos, pais, alunos e professores. O que a comunidade está ganhando com esses encon- tros? “Todos debatem sobre como está a comunidade e o que a gente gostaria que tivesse nessa comunidade. Esses encontros aproximam a família da escola e fortale- cem a família nesta relação”, explica Valéria Valentim, di- retora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Amé- rico Falcão, nos últimos três anos. A organização do tempo e a carga horária do pro- fessor de 5a a 8a série difi cultam a aproximação com os alunos e seus pais. Nesses encontros, os professo- res estão criando e fortalecendo laços de amizade com as famílias, ganhando a confi ança dos pais e estreitan- do a relação com os alunos, e a escola está tendo uma oportunidade de ouvir a família. Andréa ressalta: “Os encontros proporcionam uma descentração, não é somente a voz do professor, o con- selho tutelar também está lá e se posiciona frente a uma questão de violência, por exemplo. As competên- cias da família são valorizadas, os adolescentes se sen- tem mais fortalecidos, pois foi dada a oportunidade de eles serem ouvidos, a ONG e a escola também se forta- lecem em suas competências.” Programa de Educação Preventiva e Sexualidade (PEPS) O PEPS, iniciado em 2004, é uma formação para pro- fessores de 5a a 8a série que trabalha com as temáti- cas da sexualidade e drogas. Estes temas surgiram de demandas dos professores, diante das dificuldades que eles enfrentavam em sala de aula: “Não temos con- dições de trabalhar com isto! Eles [os alunos] trazem questões que a gente não sabe como lidar, é uma sexu- alidade muito precoce, eles só têm interesse por isso...” Andréa se lembra dos comentários dos professores no Planejamento Participativo. A Educação Preventiva parte da discussão do “eu, educador”, aborda “as adolescências”, partindo do pressuposto que não há somente um conceito de ado- lescência, e entra nos temas da sexualidade e das drogas. A idéia principal da Educação Preventiva é pro- porcionar aos adolescentes uma vida orientada por prin- cípios de prevenção em relação à violência, às drogas, à gravidez não-planejada. É oferecer informação para que os adolescentes pos- sam fazer escolhas conscientes. Para se ter uma idéia do nível de desinformação e preconceito que assolava a comunidade em torno das DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e AIDS, em 2004, quando começou o Programa, “as pessoas acreditavam que AIDS se trans- mitia pela picada da muriçoca (espécie de mosquito)”, lembra Lílian Galvão, coordenadora do Programa. A formação é composta por três módulos. O primeiro módulo traz aspectos gerais da prevenção do HIV/AIDS, trabalha a noção do eu (educador) para o outro, senti- mentos, autopercepção e noção do próprio corpo. No segundo módulo, o tema é aprofundado com referên- cias de como trabalhar a questão da sexualidade dos adolescentes. Conclui-se a formação com os fundamen- tos da Educação Preventiva e estratégias de redução de danos quanto ao consumo de drogas. cc04_parteC_16.indd 113 cc04_parteC_16.indd 113 21/9/2007 11:43:55 21/9/2007 11:43:55 114 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 De acordo com a coordenadora, os professores res- pondem de forma muito positiva; preconceitos são que- brados por meio de vivências, resultado facilitado por uma metodologia participativa. Os professores ganham repertório, aprimoram competências e têm condições de dialogar com os alunos com mais objetividade e me- nos juízo de valor. “O objetivo é que os professores se fortaleçam dian- te destas questões e se emancipem para poder favore- cer o empoderamento de seus alunos”, explica Lílian Galvão. E o mais importante é que o debate destes te- mas – drogas e sexualidade – não é exclusivo do âm- bito dos professores de Biologia e Ciências. Todos os professores trabalham esses temas cole- tivamente e de modo transversal, pois a questão afe- ta toda a escola – alunos namorando na sala de aula e no pátio, experimentando drogas, descobrindo-se se- xualmente... É impossível para o professor fi car alheio a estas situações de vida pelas quais os alunos adoles- centes estão passando. Na formação, o professor tem condições de olhar seu aluno como um sujeito de direitos sexuais e reproduti- vos, que precisa ter informações para fazer escolhas. Conclusão Trata-se de uma experiência localizada, restrita às comunidades de uma pequena cidade no litoral da Pa- raíba; acredita-se, porém, que pode ser tomada como uma referência de boas práticas para iluminar algumas alternativas que ajudem os professores e alunos a li- dar com os desafi os da 5a a 8a séries e para que a es- cola concretize sua função social. As ações socioeducativas promovidas pela ONG Apoitchá no horário alternado ao escolar oferecem aos adolescentes, além da ampliação de repertórios e ha- bilidades, a oportunidade de se sociabilizar e conviver com outros adolescentes. Esta estratégia é altamente valorizada por esse público, que sente uma necessidade quase orgânica de circular por outros espaços, de estar em outros lugares, em ambientes diferentes da escola, para o desenvolvimento de suas capacidades. Cabe destacar que a escolha da ONG em realizar ações voltadas para as crianças e adolescentes de bai- xa renda reforça a crença da instituição nas possibili- dades de aprendizagem e desenvolvimento desta par- cela da população infanto-juvenil e na potência das co- munidades pobres. Esta prática resulta em experiência e competência, a serem compartilhadas com a escola e seus professores que, em geral, têm difi culdades em lidar com este universo e tendem a enxergar somente as difi culdades e carências. A estratégia de levar a questão da educação e pro- teção para a arena pública, onde todos os atores envol- vidos assumem o compromisso com o desenvolvimen- to destas crianças, substitui o tratamento distanciado muito comum em ambientes escolares, em que a crian- ça é um “caso” problemático. Perpassam as três ações a valorização e a promo- ção da educação integral. A iniciativa da Apoitchá, ao resgatar a integralidade dos sujeitos de aprendizagem – professores, educadores sociais, pais e alunos – vai ao encontro do que especialistas apontam como boas soluções para a melhoria da escola pública: formação continuada dos professores, integração com a comuni- dade, valorização dos saberes e cultura locais, aproxi- mação com a família e educação integral para todas as crianças e adolescentes. Referência ZEICHNER, KENNETH M. A Formação Refl exiva de Professores: idéias e práticas. Lisboa: Educa, 1993. Notas 1 Relato produzido a partir de entrevista com Andréa Carrér Carvalho, coorde- nadora da ONG Apoitchá de Lucena (PB). Mais informações pelo site: www. apoitcha.org.br . 2 www.pnud.org.br 3 www.unicef.org.br As ações socioeducativas promovidas pela ONG Apoitchá no horário alternado ao escolar oferecem aos adolescentes, além da ampliação de repertórios e habilidades, a oportunidade de se sociabilizar e conviver com outros adolescentes. cc04_parteC_16.indd 114 cc04_parteC_16.indd 114 21/9/2007 11:43:56 21/9/2007 11:43:56 115 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 RELATO DE PRÁTICA Nas escolas rurais de Acrelândia, garantia de acesso à segunda etapa. Elisabete da Assunção José Vanda Noventa Fonseca* * Elisabete da Assunção José é pedagoga, responsável pela visita técnica ao município de Acrelândia, dentro da avaliação de impacto do Programa Melhoria da Educação no Município/Cenpec. Vanda Noventa Fonseca é pedagoga, coordenadora do Programa Melhoria da Educação no Município, pelo Cenpec, e formadora do Pólo Acre, no âmbito do Melhoria. Viver em uma reserva extrativista do látex, em Acre- lândia, no estado do Acre, signifi ca ter a fl oresta ama- zônica como abrigo e poder se deliciar com frutas como o bacuri e o cupuaçu. É a chance de se unir com a co- munidade, para proteger os meios de vida e a cultu- ra, assegurando, assim, o uso sustentável dos seus re- cursos naturais com a fi nalidade de cuidar e proteger a natureza. Quase todas as famílias dedicam-se à agricultura de sobrevivência e necessitam da contribuição de seus fi - lhos no manejo dos animais e da roça. Também mantêm o costume de se reunirem para uma boa conversa no fi - nal do dia e de dormir em redes penduradas nas casas de madeira, aquecidas pelo fogão à lenha. A identifi cação com esse contexto fortalece a comu- nidade, pois seus moradores aí querem estar, viver e conviver, apesar de toda a adversidade que ainda per- siste, como a de andar quatro horas para desfrutar de uma partida de futebol ou navegar várias horas de bar- co para fazer uma simples consulta médica. No entanto, contrariados, mas sem perspectivas de uma vida melhor, muitos jovens moradores da fl oresta começaram a migrar para a sede do município, em bus- ca de “melhoras”, provocando aumento populacional nas regiões periféricas da cidade, sem que tivessem as necessárias condições de trabalho, pois lhes faltava o conhecimento teórico e técnico. Nesse cenário e sem a perspectiva de os adolescen- tes, jovens e adultos continuarem seus estudos após a 4a série, e, assim, iluminarem seu futuro, nasce o pro- jeto Escolas Rurais Centralizadas. Acrelândia: agricultura e extrativismo. Com uma área de 1.575 km2 , o equivalente a 1,4% do território do Acre, e 12 mil habitantes, aproximada- mente, Acrelândia é um município que está situado na Regional do Baixo Acre e faz fronteira com a Re- pública da Bolívia. A maioria da população é constituída por famí- lias de agricultores e, portanto, a base econômica do município é a agricultura, tanto de subsistência quanto de lavouras permanentes, com destaque para o cultivo do algodão, do café e da banana. A extração da madeira e da castanha do Brasil, atividades geralmente geridas por cooperativas e associações de produtores locais, também participa signifi cativamente da economia municipal. Um primeiro desafi o: Concretizar o projeto das Escolas Rurais Cen- tralizadas. “Aqui nesta comunidade não existem crianças fora da escola, até porque se tiver algum fora da escola, damos um jeitinho de buscá-lo. A evasão é quase nula.” Afi rmação de um diretor de escola centralizada O município de Acrelândia participou do Programa Melhoria da Educação no Município,2 em 2001. À épo- ca, a equipe local, por meio da Avaliação Diagnóstica, identifi cou, como questão prioritária, a distorção ida- de-série. Para tanto, no âmbito do Plano de Ação Edu- cativa (PA), proposto pelo Melhoria, formulou ações para o seu enfrentamento, dentre elas, a centralização das escolas rurais. cc04_parteC_16.indd 115 cc04_parteC_16.indd 115 21/9/2007 11:43:56 21/9/2007 11:43:56 116 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Quando da visita técnica — novembro de 2006 — para a Avaliação de Impacto do Programa Melhoria, constatou-se que as ações, propostas pelos gestores no seu Plano de Ação Educativa inicial, ganharam for- ma e foram viabilizadas. A equipe da secretaria, embo- ra pequena, mostrou-se muito bem articulada. As ações de planejamento, diagnóstico e acompa- nhamento são perceptíveis na articulação dos gestores da Secretaria, e um de seus desdobramentos é a esco- la para fi lhos de seringueiros, experiência que passa- mos a relatar. Os gestores da Secretaria Municipal de Educação de Acrelândia, a partir da análise dos indicadores educa- cionais e da prática pedagógica nas escolas rurais mul- tisseriadas, indicaram que: • dos alunos que conseguiam iniciar a 5a série, após concluírem a 4a série do ensino fundamental, mais de 50% desistiam, 40% eram reprovados e apenas 10%, aprovados; • havia professores leigos, com multiplicidade de fun- ções — mestre, diretor, zelador, merendeiro etc. — e sem capacitação para atender a todas as séries ao mesmo tempo. Diante dessa realidade e no intuito de melhorar a aprendizagem e diminuir o grande índice de evasão es- colar nas escolas rurais, surge a proposta de centrali- zar as escolas, organizando-as por série e faixa etária, cada turma com seu professor. Inicialmente, foram con- templados os alunos de 1a a 4a série e, gradativamen- te, as turmas de 5a a 8a série. O transporte escolar Acrelândia apresenta uma grande área rural, com a pe- culiaridade de ter 700 quilômetros de ramais (estradas vicinais). Conseqüentemente, os alunos moram em pon- tos isolados. No entanto, isso não imobilizou a gestão que, tendo a garantia do acesso à escola como princi- pal meta de sua política, buscou a integração por meio dos recursos do próprio município e usou o Programa Nacional de Transporte Escolar, do governo federal, para atender a essa prioridade. O resultado desta arti- culação foi a efetivação das escolas rurais centraliza- das, possibilitando o atendimento dos alunos de 70% dos ramais por 14 veículos escolares. As ações de planejamento, diagnóstico e acompanhamento são perceptíveis na articulação dos gestores da Secretaria. cc04_parteC_16.indd 116 cc04_parteC_16.indd 116 21/9/2007 11:43:57 21/9/2007 11:43:57 117 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O calendário escolar Embora cerca de 90% das escolas utilizem o transporte escolar, por ocasião das chuvas (período invernoso), as estradas não permitem a circulação dos veículos. Para cumprir os 200 dias letivos determinados pela lei, o período letivo foi ajustado: inicia-se em abril e termina em dezembro, com aulas, inclusive, aos sábados, sem intervalo para férias. O planejamento pedagógico O currículo é construído a partir da avaliação do traba- lho pedagógico do período anterior, quando é propos- to um plano de estudo e organização de ações para as mudanças necessárias. Essas atividades são realiza- das em janeiro, fevereiro e março, após os professores cumprirem 45 dias de férias. A comunidade reconhece o valor social da escola “Foi luta dos seringueiros, foi uma luta nossa porque os alunos que concluíam a 4a série na reserva não tinham a oportunidade de estudar. A gente batalhou de um lado e de outro, com o governo, com prefeitura... para conseguir a escola para os meninos...” Pai e aluno da escola centralizada. A Escola Centralizada para Filhos de Seringueiros, do Projeto de Assentamento Porto Dias, permitiu a educa- ção continuada de 5a e 8a série do ensino fundamen- tal e tem a marca da co-autoria. De um lado, os serin- gueiros, organizados na associação de classe (CTA – Centro dos Trabalhadores da Amazônia), reivindica- ram, para seus fi lhos, o direito de acesso à escola; de outro, a Secretaria Municipal de educação, sensível a este anseio e comprometida com a educação de todas as crianças, adolescentes, jovens e adultos de seu mu- nicípio, respondeu com a formulação e implementação do referido projeto. Atendendo à solicitação dos pais, a Secretaria Mu- nicipal de Educação propôs um curso de ensino fun- damental, com currículo por módulos disciplinares se- mestrais nas áreas do núcleo comum e específi co. Não obstante as condições especiais criadas para o funcio- namento desta proposta, houve a preocupação de pre- servar o mesmo referencial curricular para toda a rede municipal de ensino regular e a escola da reserva ex- Notas 1 Agradecimentos à equipe da Secretaria Municipal de Acrelândia, em especial a José Ribamar Gomes Amaral, secretário de Educação até 2006; à Edna Bernardino Silva, coordenadora pedagógica da creche municipal e vereadora recém-eleita; e à Maria do Socorro Gomes Amaral, coordenadora pedagógica da SEME. 2 O Programa Melhoria da Educação no Município teve início em 1999, em parceria com a Fundação Itaú Social, Unicef, Undime e Cenpec, com foco na formação de gestores da educação pública municipal. trativista. A escola funciona aos fi nais de semana, em regime de semi-internato. A situação de isolamento e a precariedade de infra- estrutura colocam a população da área do Projeto de Assentamento Porto Dias em uma situação de ausência quase total dos bens e serviços públicos. O atendimen- to médico é precário e os serviços de educação de 5a à 8a série do ensino fundamental eram inexistentes. A instalação da escola contribui para a diminuição do êxodo rural e também oferece a oportunidade de acesso ao conhecimento sistematizado universalmen- te. Valorizando os saberes locais, o projeto propõe o desenvolvimento do currículo vivo, voltado para as pe- culiaridades locais, dentre elas, a proteção à fl oresta, respeitando os parâmetros curriculares nacionais. Reforçando a política de permanência das pes soas no seu local de origem, com melhores condições de vida e para o desenvolvimento do seu trabalho, o pro- jeto atingiu também os pais, que passaram a freqüen- tar a escola, onde usufruem as mesmas condições de seus fi lhos. Os dados educacionais brasileiros nos mostram que os alunos moradores no campo, nos quilombos, nas reservas indígenas e nas fl orestas ainda não foram plenamente contemplados com a garantia da igualda- de de acesso e permanência no segundo ciclo do ensi- no fundamental. No entanto, o município de Acrelândia, no Acre, com o Projeto Escola Centralizada para Filhos de Seringuei- ros, do Projeto de Assentamento Porto Dias, contrarian- do todas as adversidades, enfrentou o desafi o de ofe- recer a continuidade dos estudos aos alunos morado- res de regiões diferenciadas, cumprindo a função so- cial da educação: escola para todos. cc04_parteC_16.indd 117 cc04_parteC_16.indd 117 21/9/2007 11:43:58 21/9/2007 11:43:58 118 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Mosaico * Fernando Rios é jornalista, publicitário, cientista social e consultor em Comunicação Organizacional Integrada. Isa Maria F. Rosa Guará é pedagoga, psicopedagoga, doutora e mestre em Serviço Social (PUC-SP), consultora de projetos sociais e de educação e coordenadora editorial dos Cadernos Cenpec. Cem anos que podem nos ensinar muito Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará* Filmes Cidade de Deus DIREÇÃO: FERNANDO MEIRELLES ATORES: Matheus Nachtergale (Sandro Ce- noura), Seu Jorge (Mané Galinha), Alexandre Rodrigues (Buscapé), Leandro Firmino da Hora (Zé Pequeno), Roberta Rodrigues (Berenice), Phellipe Haagensen (Bené), Jonathan Haa- gensen (Cabeleira), Douglas Silva (Dadinho), Jefechander Suplino (Alicate), Alice Braga (Angélica), Emerson Gomes (Barbantinho), Édson Oliveira (Barbantinho - adulto), Luis Otávio (Buscapé - criança), Maurício Marques (Cabeção), Gero Camilo (Paraíba), Graziella Moretto (Jornalista). BRASIL, DRAMA, 2002, 135 MINUTOS, CORES. Baseado no livro homônimo de Paulo Lins; Companhia das Letras, São Paulo, SP. Em um dos locais mais violentos do Rio de Janeiro, um jovem pobre e negro consegue escapar do mundo do crime tornan- do-se fotógrafo profi ssional. Buscapé (Alexandre Rodrigues) é um jovem pobre, negro e muito sensível, que cresce em um universo de muita violência. Buscapé vive na Cidade de Deus, favela carioca conhecida por ser um dos locais mais violentos da cidade. Amedrontado com a possibilidade de se tornar um bandido, Buscapé acaba sendo salvo de seu destino por causa de seu talento como fotógrafo, o qual permite que siga a carreira. É através de seu olhar atrás da câmera que Buscapé analisa o dia-a-dia da favela onde vive, em que a violência aparenta ser infi nita. Indicado a quatro Oscar em 2004: Roteiro Adaptado, Foto- grafi a, Montagem e Diretor; ao Globo de Ouro de melhor fi lme estrangeiro 2003; Prêmio de Melhor Edição no BAFTA, o “Oscar britânico”, em 2003; Ganhou nove prêmios no Festival de Havana, nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Ator (dividido entre Matheus Nachtergale, Seu Jorge, Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Philippe Haagensen, Johnathan Haagensen e Douglas Silva), Prêmio da Universidade de Havana, Melhor Fotografi a, Melhor Edi- ção, Prêmio FIPRESCI, Prêmio OCIC, Prêmio da Associação de Imprensa Cubana e Prêmio Grand Coral; ganhou uma menção especial no Festival Internacional de Toronto. Com muita freqüência, damos as costas ao passado. E, neste mundo globalizado, quase toda a comunicação de massa nos remete ao futuro, como se apenas lá estivessem as razões de nossa felicidade, baseada quase que exclusivamente em aquisição de bens materiais: “Compre e será feliz.” Nesse turbilhão de dados e informações, esquecemo-nos de que, hoje e sempre, vivemos em processo. Nada existe em si. Tudo o que podemos observar está em movimento. E, nisso, incluímos nossas vidas, nossas escolas, nossas crianças. Como viviam nossas crianças no começo do século passado? Como éramos nós, em nossa infância? Será que nos lembramos dos nossos primeiros tempos e somos capazes de refl etir sobre as muitas causas das diversas mudanças em nossas cidades? Para complementar os artigos que Cadernos Cenpec oferece aos seus leitores sobre A segunda etapa do ensino fundamen- tal, selecionamos textos, ] e, principalmente, fi lmes e livros que nos remetem ao século XX. Estamos aproximando e mostrando as crianças de Paris, México, Salvador, São Paulo, Rio de Janei- ro, Paraíba que viveram em diferentes tempos e espaços. Em textos e em imagens. Há algo em comum entre elas. Vamos ver e ouvir jovens viverem e contarem suas histórias de amor, violência, descobertas, frustrações, alegrias. Assim como fazíamos. E fazemos. E continuaremos a fazer. Mas, e sobretudo, temos um compromisso: se quisermos mu- dar aquilo que condenamos, precisamos refl etir seriamente sobre o que fomos e o que somos, para que possamos propor caminhos seguros. A literatura e o cinema podem nos ensinar muito. cc04_parteC_16.indd 118 cc04_parteC_16.indd 118 21/9/2007 11:43:58 21/9/2007 11:43:58 119 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Billy Elliot DIREÇÃO: STEPHEN DALDRY ATORES: Julie Walters (Mrs. Wilkinson), Jamie Bell (Billy Elliot), Jamie Draven (Tony), Gary Lewis (Pai), Jean Heywood (Avó), Stuart Wells (Michael), Nicola Blackwell (Debbie). DRAMA, INGLATERRA, 2000, 111 MINUTOS, CORES. Billy Elliot é a história de Jamie Bell, de 11 anos, que vive numa pequena cidade inglesa, onde o principal meio de sustento são as minas da cidade. É obrigado a treinar boxe por imposição do pai; mas sua grande paixão é o balé, que passa a dançar escondido de sua família, mantendo sempre o sonho de se tornar um grande bailarino. Recebeu três indica- ções ao Oscar. Ambientado nos anos em que Margaret Thatcher esteve no poder, o fi lme tem como pano de fundo as lutas gre- vistas dos mineiros. O fi lme aborda o preconceito em relação aos homens que se tornam dançarinos e toca na questão da homossexualidade, já que o melhor amigo de Billy é gay, enquanto ele, que adorava a dança não tinha a mesma orientação sexual. Incentivado pela professora de balé, ele resolve abandonar o boxe e se dedicar à dança, mesmo tendo que en- frentar a contrariedade de seu irmão e seu pai à sua nova atividade. Menino de Engenho DIREÇÃO: WALTER LIMA JR. ATORES: Geraldo Del Rey (Juca), Sávio Rolim (Carlinhos), Rodolfo Arena (José Paulino), Anecy Rocha (Tia Maria), Mar- garida Cardoso (Sinhazinha), Maria Lúcia Dahl (Maria Lúcia), Antônio Pitanga (Zé Guedes), Maria de Fátima (Clara). DRAMA, BRASIL, 1965, 110 MINUTOS, BRANCO E PRETO. Baseado no livro homônimo de José Lins do Rego; Editora Jose Olympio, Rio de Janeiro, RJ. Em 1920, na Paraíba, após a morte da mãe, o menino Carlinhos (Sávio Rolim) é enviado para o engenho Santa Rosa para ser criado pelo avô e pelos tios. Lá ele testemunha a chegada de um novo tempo, com o advento das modernas usinas de açúcar e as transformações econômicas e sociais pelas quais passa a produção canavieira, mudanças que irão afetar a vida de todos. Aos 15 anos, é enviado para o colégio. Ganhou uma Menção Especial, no Festival de Brasília, o prêmio de Melhor Filme no Festival de Santarém (Portugal); o Prêmio IV Centenário do Rio de Janeiro de Melhor Filme. O garoto (The kid) DIREÇÃO: CHARLES CHAPLIN ATORES: Charles Chaplin (Vagabundo), Edna Purviance (Mãe), Jackie Coogan (Garoto), Baby Hathaway (Garoto - bebê), Carl Miller (Artista), Granville Redmond (Amigo), Tom Wilson (Policial), May White (Esposa do policial). COMÉDIA, EUA, 1921, 68 MINUTOS, BRANCO E PRETO. Sem condições de criar seu fi lho, uma mãe solteira deixa o bebê no banco traseiro de um carro de luxo. Porém, ele é roubado e a criança acaba sob a guarda de um vagabundo, Car- litos, que faz o papel de um vidraceiro ambulante. Uma tragicomédia que nos remete ao o início do século passado, nos Estados Unidos, para a questão de crianças abandonadas e dos sem-teto. cc04_parteC_16.indd 119 cc04_parteC_16.indd 119 21/9/2007 11:43:59 21/9/2007 11:43:59 120 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Os esquecidos (Los Olvidados) DIREÇÃO: LUIS BUÑUEL ATORES: Alfonso Mejía (Pedro), Estela Inda (Mãe de Pedro), Miguel Inclán (Don Carmelo), Javier Amézcua (Julian), Mário Ramirez (Ojitos), Francisco Jambrina (Diretor), Jesús Navarro (Pai de Julian), Efraín Arauz (Cacarizo), Jorge Pérez (Pelon), Alma Delia Fuentes (Meche), Roberto Cobo (Jaibo). DRAMA, MÉXICO, 1950, 85 MINUTOS, BRANCO E PRETO. Cidade do México, anos 50. 0 adolescente El Jaibo foge do reformatório e volta para uma vida marcada pela miséria e falta de perspectivas. Ao lado de outros garotos, vive de pequenos assal- tos. O líder deles espanca um rapaz até a morte. Considerando-se culpado por ser cúmplice do assassinato, um dos delinqüentes entra em confronto com ele. Há uma cena memorável em que o menino Pedro mistura a culpa pelo assassinato e por seus sentimentos dúbios pela mãe num mesmo sonho. Os esquecidos é uma impressionante obra-prima do mestre espanhol Luis Buñuel (1900-1983), diretor dos indes- quecíveis: A Bela da Tarde, O Discreto Charme da Burguesia, O Anjo Exterminador, entre tantos outros. O retrato realista do cotidiano dos menores abandonados serviu de inspiração para Hector Babenco realizar Pixote, a Lei do Mais Fraco. Filho de latifundiários e educado por jesuítas, o espanhol Luis Buñuel (1900-1983) fez, do ataque à religião, ao sistema e à moral burguesa, sua missão na vida. Paulo Ricardo de Almeida traça um perturbador retrato do fi lme: Pedro, El Jaibo, Ojitos, Metche e as demais crianças e adolescentes que vagam pelos subúrbios miseráveis da Cidade do México represen- tam os esquecidos e os abandonados pelo mundo dos adultos que, preocupados em impor a lei e a disciplina, negam-lhes amor, carinho, afeto e compaixão (o assustador discurso de Dom Carmelo, que prefere tratá-los como simples criminosos ou como meros animais). Em Os Esquecidos, todos os adultos são personagens ausentes, frios ou abjetos [...] Para Buñuel, a sociedade em que seus jovens personagens estão imersos se encontra tão viciada e tão corrupta que até a inocência infantil já se perdeu por completo. Os incompreendidos (Les 400 coups) DIREÇÃO: FRANÇOIS TRUFAUT ATORES: Jean-Pierre Léaud (Antoine Doinel), Claire Maurier (Gilberte Doinel), Albert Rémy (Julien Doinel), Guy Decomble (Petite Feuille), Georges Flamant (Sr. Bigey), Patrick Auffay (Rene), Richard Kanayan (Abbou), Yvonne Claudie (Madame Bigey), Robert Beauvais (Diretor da escola), Jacques Monod (Comissário), Pierre Repp (Professor de inglês), Henri Vir- lojeux (Vigilante noturno). DRAMA, FRANÇA, 1959, 100 MINUTOS, PRETO E BRANCO. Uma obra-prima. Talvez, a melhor de Trufaut e uma das melhores da história do cinema. Uma his- tória simples – um garoto que não recebe atenção de sua mãe enfrenta problemas com a escola –, maravilhosamente bem contada. O fi lme constitui-se num dos mais importantes títulos da nouvelle vague francesa e uma das melhores produções do cinema francês de todos os tempos. Eduardo Veras resume e comenta: Fotografado em preto-e-branco, Os Incompreendidos acompanha o percurso de um garoto de 12 ou 13 anos pela Paris do fi nal dos anos 50. [...] A criança está sempre se metendo em encrencas, e vem daí o título original, Les 400 Coups – uma expressão idiomá- tica francesa que pode ser traduzida por “pintar o sete”. [...] Antoine Doinel mata aula e mente que a mãe morreu, ergue um altar em honra de Honoré de Balzac e quase mete fogo na casa, rouba e se arrepende, é preso e foge. [...] Passados quase 40 anos, o fi nal deve se manter surpreendente. É um dos fi lmes mais simples e mais belos em cento e poucos anos de cinema. [...] François Truffaut (1932-1984) não gostava de admitir, mas teve uma infância bem parecida com a do protagonista de Os Incompreendidos. Amargou problemas com os pais, aplicou pequenos golpes e acabou confi nado num reformatório juvenil. Truffaut também nos deixou excelentes trabalhos, como: Jules e Jim - Uma Mulher para Dois (Jules et Jim), de 1962; Fahre- nheit 451 (Fahrenheit 451), de 1966; A História de Adèle H. (L’histoire d’Adèle H.), de 1975; e A Mulher do Lado (Le femme d’a coté), de 1981. cc04_parteC_16.indd 120 cc04_parteC_16.indd 120 21/9/2007 11:44:00 21/9/2007 11:44:00 121 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Pixote – A lei do mais fraco DIREÇÃO: HECTOR BABENCO ATORES: Fernando Ramos da Silva (Pixote), Marília Pera (Sueli), Jorge Julião (Lilica), Gilberto Moura (Dito), Edílson Lino (Fumaça), Zenildo Oliveira Santos (Chico), Cláudio Bernardo (Garatão), Israel Feres David (Roberto Pie de Plata), José Nílson Martins dos Santos (Diego), Jardel Filho (Sapatos Brancos), Rubens de Falco (Juiz), Elke Maravilha (Débora), Tony Tornado (Cristal), Beatriz Segall (Viúva), Ariclê Perez (Professora). DRAMA, BRASIL, 127 MINUTOS, CORES. Pixote foi abandonado por seus pais e rouba para viver nas ruas. Após ser recolhido a um refor- matório em São Paulo – que só ajudou na sua “educação”, pois ali ele conviveu com todo tipo de criminoso e jovens delinqüentes – foge em meio a uma rebelião. Sobrevive se tornando um pequeno trafi cante de drogas, cafetão e assassino, mesmo tendo apenas 11 anos. Nas ruas, na luta pela sobrevi- vência, Pixote, Dito, Lilica e Chico formam uma espécie de família, mantendo-se de pequenos assaltos. São quase irmãos, sob a liderança de Dito e Lilica, os mais velhos. Numa de suas incursões pelo crime, vão ao Rio de Janeiro levar uma partida de cocaína. Daí para frente, a situação se complica. Baseado em livro de José Louzeiro. Quem matou Pixote? DIREÇÃO: JOSÉ SOFFILY ATORES: Cassiano Carneiro (Fernando); Luciana Rigueira (Cida), Joana Fomm (Iracema), Tuca Andrada (Cafu), Roberto Bomtempo (Lobato), Carol Machado (Ana Lúcia), Maria Luísa Mendonça (Malu), Antônio Abujamra (Advogado), Paulo Betti (Diretor de TV), Maria Lúcia Dahl (Atriz de TV), Antônio Petrin (Comissário), Anselmo Vasconcelos (Diretor de cinema), Thiago Vidal (Fernando - jovem), Orlando Vieira (Louzeiro). DRAMA, BRASIL, 1996, 116 MINUTOS, CORES. Em 25 de agosto de 1987, Fernando Ramos da Silva, 19 anos, o garoto pobre que ganhou fama ao estrelar o fi lme Pixote - a Lei do Mais Fraco, foi morto a tiros por PMs em uma favela da cidade de Diadema, em São Paulo. Já tinha sido preso após um assalto. Depois de solto, voltou à periferia, onde chegou a se casar e teve uma fi lha. Este fi lme conta sua história, depois do fi lme de Hector Babenco. Com o sucesso do fi lme, ele sai da periferia e tenta continuar na carreira artística, mas as coisas dão errado e ele volta à deliqüência, não escapando de um destino trágico. Vencedor de seis Kikitos no festival de Gramado, inclusive o de melhor fi lme. Ser e ter (Être et avoir) DIREÇÃO: NICOLAS PHILIBERT ATORES: Georges Lopez (professor), Alizé (estudante), Axel (estudante), Guillaume (estudante), Jessie (Própria), Johan (estudante), Johann (estudante), Julien (estudante), Laura (Própria), Létitia (Própria), Nathalie (Própria), Marie-Elizabeth (Própria), Olivier (estudante), Franck (Próprio), Kevin (Próprio). DOCUMENTÁRIO, FRANÇA, 2002, 104 MINUTOS, CORES. Auvergne, França. Inverno, primavera, verão, quando termina o ano escolar de 2001, em junho. Ali, vamos conviver com o professor Georges Lopez, 55 anos e 30 de ensino, e seus alunos, um grupo de jovens entre quatro e 12 anos. Este poético documentário retrata a relação entre professor e alunos, a sua tentativa de chegar até eles, muitas vezes impenetráveis na sua timidez, na sua desconcentração. Com a sua ilimitada paciência, Lopez responde às perguntas dos alunos com outras questões, conduzindo-os às respostas através do caminho da compreensão. Ele é amigo, família, educador, mentor. Apesar de ser evidente a distância que mantém dos seus alunos, a relação que observamos é de amor, de compro- misso. Lopez lida com as várias vertentes dos seus alunos com extrema sensibilidade e atenção. Respeitando a sua inocência e ingenuidade, mas lhes abrindo as portas de um mundo complexo. Neste premiado documentário, um professor mostra como é possível levar o mundo para dentro de uma pequena sala de aula multisseriada, no interior da França. Não apenas o mundo do conhecimento puro e frio, mas aquele em que as relações interpessoais estão acima de tudo: amizade, justiça, lealdade, companheirismo e honestidade permeiam as lições, as conversas entre os colegas de classe e o marcante relacionamento deles com o mestre. Fazendo do respeito e da igualdade a chave da comunicação entre crianças de diferentes idades, o professor mostra a elas que, mais importante do que ter, é ser. cc04_parteC_16.indd 121 cc04_parteC_16.indd 121 21/9/2007 11:44:01 21/9/2007 11:44:01 122 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Livros Capitães da Areia / Jorge Amado EDITORA RECORD, RIO DE JANEIRO, RJ, 256 PÁGINAS, 2002. A história dos meninos de rua que povoam e dominam a capital da Bahia inspirou Jorge Amado no seu sexto romance. Publicado em 1937, pouco depois de implantado o Estado Novo, este livro teve a primeira edição apreendida e exemplares queimados em praça pública de Salvador por autoridades da ditadura. Em 1940, marcou época na vida literária brasileira, com nova edição e, a partir daí, sucederam-se as edições nacionais e estrangeiras. A obra teve adaptações para o rádio, teatro e cinema. Em Capitães da Areia a “cidade alta” de Salvador, na Bahia, serve de cenário. Pedro Bala é o chefe de um grupo de jovens arruaceiros que rouba para sobreviver. Nunca ninguém havia mencionado em literatura este bando de jovens que engenhosamente desafi a as autoridades, roubando a classe privilegiada e dividindo o produto do roubo entre os seus camaradas subnutridos. O romance narra a vida de menores, nas ruas de Salvador, que vivem num barraco abandonado: o líder é Pedro Bala, bom e corajoso; João Grande, o negro bondoso e forte; o Professor, “artista”; Pirulito, místico e introvertido; Dora, amante de Pedro Bala; Gato, elegante e conquistador; Sem-Pernas, revoltado por não ter um “lar”; Volta Seca, afi lhado de Lampião. A narrativa busca ser fi el à realidade, ao abordar o cotidiano destes jovens que tentam driblar seu destino miserável, sua angústia por não haver quem os proteja, falta de comida, de dinheiro, de amor, numa sociedade extremamente injusta que os persegue e quer matá-los. Jorge Amado nasceu em Itabuna, em 10 de agosto de 1912 e morreu em agosto de 2001. Dentre os seus livros, estão: Os Subterrâneos da Liberdade; Gabriela Cravo e Canela; Dona Flor e seus Dois Maridos; Tenda dos Milagres; Teresa Batista Cansada de Guerra e Tieta do Agreste. Capitães da Areia faz parte do conjunto de obras líricas, junto com Jubiabá e Mar Morto. Em 1989, Walter Lima Júnior dirigiu uma série de dez episódios para a TV Bandeirantes baseada neste livro, com Geraldo D’El Rey, Tamara Taxman e atores infantis escolhidos entre menores de rua. Casa 12 / Letícia Constant COMPANHIA DAS LETRAS, SÃO PAULO, SP, 112 PÁGINAS, 2007. “Eu levei muitos anos fazendo experiências com o texto, até chegar a um momento harmônico em que tirei quase todos os artigos, escrevi algumas frases em língua estrangeira como se fala. Mas sempre quis deixar alguma leveza. Fiz várias experiências, foram muitos anos de escrita”. Assim Letícia Constant, jornalista da redação brasileira da Radio França Internacional, refere-se ao seu livro de estréia, Casa 12, lançado pela editora Companhia das Letras. Em Casa 12, a autora relata as lembranças de sua infância do ponto de vista da menina que ela era na São Paulo do fi nal dos anos 1950. Numa vila na rua Pamplona, próxima da Avenida Paulista, apresenta a casa, centro do seu mundo: a família, galeria de amigos, brincadeiras, vizinhos, momentos difíceis, dias muito, muito felizes, férias na praia, choro no telhado. Ao lado da autora-menina, acompanhamos os primeiros contatos com a perda e a morte. A jornalista Adriana Brandão resume: Casa 12 é um livro de memórias, contado com palavras de uma menina de dez anos. Leticia lembra fatos marcantes de sua infância. [...] Misturado com lembranças familiares e pessoais da época, como o som dos bondes ou as divertidas propagandas cc04_parteC_16.indd 122 cc04_parteC_16.indd 122 21/9/2007 11:44:02 21/9/2007 11:44:02 123 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 de remédios em forma de poesia, Leticia Constant escreve também sobre o mundo dos adultos, que ela observa e interpreta com um olhar bem pessoal. O texto é leve, divertido, solto, sem artigos, marcado pela oralidade da menina. Com uma concepção gráfi ca que acolhe primorosamente o universo da narrativa, Casa 12 encanta os leitores de todas as idades com seu despojamento e espontaneidade. Clarissa / Érico Veríssimo EDIÇÃO DE BOLSO, COMPANHIA DAS LETRAS, SÃO PAULO, SP, 216 PÁGINAS, 2005. Através do olhar de uma adolescente alegre e otimista, Érico Verissimo revela não só a realidade de uma pensão pequeno-burguesa, como também a situação do Brasil e do mundo na década de 1930. Pertencente à temática urbana da obra de Verissimo, o romance Clarissa é a história de uma jovem de 13 anos que vem de uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul e mora na pensão da tia Eufrasina, enquanto estuda em Porto Alegre. Sua rotina não é muito diferente da rotina das meninas da sua idade: aborrece-se com algumas matérias da escola, sente saudade da fazenda em sua cidade natal, Jacarecanga, e observa as pessoas que moram na pensão da tia e na vizinhança. É dessa observação que nasce o rico valor psicológico da obra, já que é a partir dela que Érico Verissimo compõe seu personagem central. Clarissa é o contraponto de Amaro, outro morador da pensão, músico mal-sucedido preso a sonhos passados que o presente recusa-se a concretizar. Uma das personagens mais conhecidas de Érico Veríssimo, Clarissa percorre sua trajetória com inocência, timidez e cheia de descobertas em três livros do autor – Clarissa, Música ao Longe e Saga. Tendo, como cenário histórico, a década de 30, uma época de transição, na qual uma guerra mundial tinha terminado e outra estava começando a se confi gurar. Contos da Infância e da Adolescencia / Luiz Vilela COLEÇÃO BOA PROSA, EDITORA áTICA, SÃO PAULO, SP, 3a ED., 80 PÁGINAS, 2006. Luiz Vilela é um mestre nos contos curtos, nos diálogos precisos. Por meio de sua técnica, a cada dia mais aperfeiçoada, ele nos apresenta personagens que fazem travessuras, brigam e namoram; delicia-nos com sonhos de crianças e os desejos de juventude, um universo feito de sonhos e encantos, decepções e magia. Mineiro de Ituiutaba, Minas Gerais, Luiz Vilela nasceu em 1942 e lançou, aos 24 anos, seu primeiro livro, Tremor de Terra, com o qual ganhou o Prêmio Nacional de Ficção e o reconhecimento como exímio contista. Ganhou um Prêmio Jabuti em 1974 pelo livro de contos O Fim de Tudo. Com livros traduzidos nos Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra e Itália, Vilela vive hoje na sua cidade natal. A professora Celia Mitie Tamura resume o pensamento de importantes críticos brasileiros sobre ele: Luiz Vilela [...] é considerado um dos mais importantes contistas brasileiros da atualidade, fi gurando nas principais antologias, entre as quais, O Conto Brasileiro Contemporâneo, organizado por Alfredo Bosi, e Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, sob organização de Ítalo Moriconi. Possui seis livros de contos, quatro romances e duas novelas. Seus contos, que representam o melhor de sua obra, são retratos poéticos do cotidiano urbano, classifi cando-se em contos quase-crônicas, conforme a denominação de Alfredo Bosi para um dos diversos tipos de contos praticados atualmente no Brasil. Na opinião de Antonio Candido, Vilela segue uma linha de escrita mais tradicional, mesmo sem ser convencional, se comparado aos escritores surgidos a partir da década de 1970, que buscam a inovação a todo custo, pecando pelo excesso de experimentalismo. Vilela, ao contrário, mantém uma prosa discreta, tendo no diálogo o seu ponto de maior destaque. cc04_parteC_16.indd 123 cc04_parteC_16.indd 123 21/9/2007 11:44:03 21/9/2007 11:44:03 124 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Minha Vida de Menina / Helena Morley COMPANHIA DAS LETRAS, SÃO PAULO, SP, 336 PÁGINAS, 2007. Em pequena meu pai me fez tomar o hábito de escrever o que sucedia comigo. Na Escola Normal o Professor de Portu- guês exigia das alunas uma composição quase diária [...] Eu achava mais fácil escrever o que se passava em torno de mim e entre a nossa família, muito numerosa. [...] Não sei se poderá interessar ao leitor de hoje a vida corrente de uma cidade do interior, no fi m do século passado atra- vés das impressões de uma menina, de uma cidade sem luz elétrica, água canalizada, telefone, nem mesmo padaria, quando se vivia contente com pouco, sem as preocupações de hoje. E como a vida era boa naquele tempo. Em 1942, aos 62 anos, Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, revê suas anotações de juventude e resolve publicá-las. Elas contam o pensamento e a visão de uma jovem, dos 13 aos 15 anos, que viveu na cidade de Diamantina, nas Minas Gerais do fi nal do século XIX, quando já não havia diamantes nem riqueza. A dúvida de Helena Morley foi desfeita. Aclamada por Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa e Gilberto Freyre, esta obra, cujas notas vão de uma quinta-feira, 5 de janeiro de 1893, à terça-feira, 31 de dezembro de 1895, tem um lugar especial na literatura brasileira e na história de nossa juventude. Revista Veja / Jovens http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/jovens/ Uma edição especial da revista Veja na Internet, de setembro de 2001. Edição Especial Veja Jovens. Um retrato da geração mais bem informada de todos os tempos. Observatório da Infância http://www.observatoriodainfancia.com.br/ A história do Observatório da Infância se confunde, entrelaça-se e se relaciona intimamente com a história da Associação Brasileira Multiprofi ssional de Proteção à Infância e à Adolescência - ABRAPIA, organização não-gover- namental, idealizada pelo pediatra Lauro Monteiro e fundada no Rio de Janeiro em 1988. http://www.observatoriodainfancia.com.br/article.php3?id_article=227 Endereços das Promotorias da Infância e Juventude nas capitais brasileiras. Educação Pública http://www.educacaopublica.rj.gov.br/ O Portal da Educação Pública é um espaço virtual que oferece atividades de extensão para educadores. Por extensão, entenda-se minicursos e ofi cinas a distância, cursos semipresenciais, fóruns de discussão, divulgação e produção de textos educativos, científi cos ou literários, biblioteca e pesquisa, entre várias outras possibilidades que queremos criar para produzir e intercambiar conhecimentos com educadores. O Portal é fruto do consórcio Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro - Cederj, que reúne as universidades públicas sediadas no estado do Rio. http://www.escrevendoofuturo.org.br/ Site do Prêmio Escrevendo o Futuro, da Fundação Itaú Social, coordenado pelo Cenpec traz notícias do Prêmio, textos fi nalistas, artigos sobre leitura e escrita e depoimentos dos participantes. Sites e Portais cc04_parteC_16.indd 124 cc04_parteC_16.indd 124 21/9/2007 11:44:04 21/9/2007 11:44:04 125 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Textos na Internet Por uma nova escola http://www.desafi os.org.br/Edicoes/14/artigo12975-3.asp “Por uma nova escola” é um artigo de Eliana Simonneti para a revista Desafi os do Desenvolvimento, uma publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD; edição 14, 1 de setembro de 2005. Aborda uma questão que deveria estar atraindo a atenção de todos, pois diz respeito principalmente às crianças, aos jovens e ao futuro do país: o atendimento mais abrangente e de melhor qualidade na rede pública de ensino. Disciplina/Indisciplina http://www.planetaeducacao.com.br/novo/artigo.asp?artigo=733 A indisciplina na sala de aula, artigo de Sheila Cristina de Almeida e Silva Machado. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000011.pdf Educação e conhecimento: a experiência dos que avançaram. Relatório de dois seminários organizados pela Organi- zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura- UNESCO, em setembro de 2003, Brasília. Apresenta experiências de sucesso da Coréia do Sul, Malásia, Espanha, Finlândia, Reino Unido e Irlanda. François Dubet http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222003000100007 Artigo de Anne Marie Wautier, professora na UNIJUÍ (RS), doutoranda em Sociologia na UFRGS: Para uma sociologia da experiência. Uma leitura contemporânea: François Dubet. http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE17/RBDE17_03_FRANCOIS_DUBET.pdf As desigualdades multiplicadas, artigo do sociólogo francês François Dubet. http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE05_6/RBDE05_6_19_ANGELINA_E_MARILIA.pdf Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor, entrevista com François Dubet. Julio Groppa Aquino http://www.crmariocovas.sp.gov.br/ent_a.php?t=001 Neste endereço, podem ser acessados uma entrevista e dois artigos do professor Julio Groppa Aquino: A violência escolar e a crise da autoridade docente e A indisciplina e a escola atual. http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000082005000100002&script=sci_arttext Jovens “indisciplinados” na escola: quem são? Como agem? Artigo do professor Julio Groppa Aquino para o Simpósio Internacional do Adolescente, de 2005, em São Paulo. cc04_parteC_16.indd 125 cc04_parteC_16.indd 125 21/9/2007 11:44:05 21/9/2007 11:44:05 126 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Cadernos Cenpec Ano 2 Número 4 Segundo semestre de 2007 Cadernos Cenpec é uma publicação do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Dante Carraro, 68 05422-060 – São Paulo – SP Brasil Telefax: (55) (11) 2132 9000 cenpec@cenpec.org.br www.cenpec.org.br Os artigos assinados não representam necessariamente os pontos de vista do Cenpec. As opiniões e idéias expressas neles são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Presidência Maria Alice Setubal Diretora Presidente Ricardo Campus Caiuby Ariani Diretor Vice-Presidente Diretores Administrativos Lydia maria queiroz ferreira de magalhães Tereza maria macedo soares de araújo Conselho de Administração Antonio Carlos Caruso Ronca Bernadete Angelina Gatti Hélio Mattar Maria Alice Setubal Michel Paul Zeitlin Ricardo Campos Caiuby Ariani Conselho Fiscal Reginaldo José Camilo Rebecca de Castro Filgueiras Raposo Coordenação Coordenadora Geral Maria do Carmo Brant de Carvalho Assessoria da Coordenação Maria Ângela Leal Rudge Maria Cristina S. Zelmanovits Maria Amabile Mansutti Coordenadora Administrativo-Financeira Maria Aparecida Acunzo Forli cc04_parteC_16.indd 126 cc04_parteC_16.indd 126 21/9/2007 11:44:05 21/9/2007 11:44:05 127 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Créditos desta edição Organização e Coordenação Isa Maria F. Rosa Guará Comitê Editorial Ana Regina Carrara Eloísa de Blasis Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará Maria do Carmo Brant de Carvalho Conselho Editorial Âmbar de Barros Antonio Jacinto Mathias Bernadete Gatti Fernando Almeida Fernando Rossetti Gilda Portugal Gouveia Isa Maria F. Rosa Guará Marco Aurélio Nogueira Maria Alice Setubal Maria do Carmo Brant de Carvalho Vera Masagão Colaboram nesta edição: Ana Paula de Oliveira Cristina Fernandes de Sousa Elizabete D’ Assunção José Julio Groppa Aquino Maria Amabile Mansutti Maria Aparecida Perez Maria Cristina Zelmanovits Maria do Carmo Brant de Carvalho Maria Estela Bergamin Maria José Reginato Ribeiro Maria Malta Campos Meyri Venci Chieffi Norman Gall Sheila Roberti Pereira da Silva Vanda Noventa Fonseca Verónica Guridi Yara Sayão Zoraide Faustinone Redator Fernando Rios Preparação e revisão de textos Dora Helena Feres Sylmara Beletti Projeto gráfi co original Homem de Melo & Troia Design Diagramação e editoração eletrônica Fonte Design Fotos Anna Fuccia - capa Antonio Augusto Ferraz Arquivo Prêmio itaú-unicef Fernando Rios Tiragem 2.000 exemplares Cadernos Cenpec / Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. – N. 4 (2007) – São Paulo: CENPEC, 2006 ISSN 1808-963002 Semestral 1. Educação 4. CENPEC

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Documentário: olhar em movimento, cenas de tantos lugares

Se você quer trabalhar o gênero documentário na escola, esta edição dos Cadernos Docentes do programa Escrevendo o Futuro traz oficinas que ajudam a turma a conhecer o gênero e desenvolver um olhar mais crítico sobre a representação do mundo em imagens.

O que são os Cadernos Docentes? 5 Os Cadernos Docentes são materiais de orientação para a prática destinados a professoras e professores de Língua Portuguesa que, estruturados de forma sistemática a partir da noção de sequência didática, propõem um trabalho com os gêneros textuais, com o objetivo de desenvolver a aprendizagem da leitura e da escrita por estudantes. Esses materiais foram organizados em oficinas para que professoras e professores desenvolvam com suas turmas atividades com os gêneros Poema, Memórias literárias, Biografia, Crônica, Documentário e Artigo de opinião. São, portanto, seis Cadernos Docentes elaborados, originalmente, para o trabalho com estudantes desde o 5º ano do Ensino Fundamental até a 3ª série do Ensino Médio, da seguinte forma: • Caderno Poetas da Escola: atividades do gênero poema desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental I. • Caderno Se bem me lembro: atividades do gênero memórias literárias desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental II. • Caderno Biografia: a tessitura da vida: atividades do gênero biografia desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental II. • Caderno A ocasião faz o escritor: atividades do gênero crônica desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental II. • Caderno Pontos de vista: atividades do gênero artigo de opinião desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental II. • Caderno Olhar em movimento: cenas de tantos lugares: atividades do gênero documentário desenvolvidas preferencialmente para estudantes da 1ª e 2ª séries do Ensino Médio. Apesar de serem indicados para determinadas oficinas, anos e séries, as sequências didáticas podem ser adaptadas para outros anos e séries, conforme a turma de estudantes, a necessidade e a criatividade de professoras e professores Diálogos com a BNCC Na página inicial de cada oficina, são apresentados seus objetivos e dicas de preparação para os temas e atividades que serão trabalhados com as turmas de estudantes. Também encontramos ali uma seleção de habilidades para o componente de Língua Portuguesa, mapeadas na Base Nacional Comum Curricular e acionadas no desenvolvimento de cada oficina, indicando como cada proposta se aproxima das expectativas anunciadas pela BNCC. Estrutura do Caderno O objetivo desse caderno é auxiliar no trabalho com o gênero Documentário na escola. Aqui, você encontrará o conteúdo principal dividido em quatro grandes blocos, um de caráter mais teórico-conceitual (Bloco 1) e três outros de caráter prático (Blocos 2, 3 e 4). Cada um desses Blocos contempla um número específico de Oficinas, que, por sua vez, se subdividem em diferentes Etapas e Atividades, visando esclarecer a temática principal do Bloco em questão. Vale frisar desde já que as atividades sugeridas não seguem a lógica da sequência didática. Ou seja, não são atividades sequenciais que visam, ao final, a construção de um gênero textual-discursivo. São atividades independentes umas das outras que, no geral, buscam exercitar uma forma de olhar e/ou de fazer ligadas ao gênero Documentário. Claro que tudo isso tem relação com o objetivo final do Caderno que é produzir um documentário, uma vez que só exercitando o olhar e conhecendo a prática será possível conceber e realizar o filme desejado com clareza das intenções e resultados correspondentes. No Sumário, você consegue visualizar quais são as Oficinas e Etapas contempladas em cada Bloco. É muito importante se familiarizar com a estrutura e propostas do Caderno para utilizá-lo da melhor forma. Para tanto, leia-o por completo antes de iniciar as atividades com os alunos. Você pode adaptar as atividades sugeridas às necessidades de sua turma e aos seus objetivos didáticos. Agora, é hora de se aventurar nesse mundo de imagens e sons em movimento! Bom trabalho! Oito razões para adotar o documentário na escola A partir da edição de 2019, a Olimpíada de Língua Portuguesa trouxe com uma supernovidade: a inclusão do Documentário como um dos gêneros contemplados pelo concurso. Agora, seu aluno(a) poderá criar textos multimodais, com imagens e sons. Legal, não é mesmo? Para que você se engaje com afinco nessa proposta, apresentamos a seguir oito razões para o trabalho com o documentário em sala de aula. Nº 1 – Vivemos em uma civilização audiovisual Desde o surgimento do cinema, primeiramente, e depois, da televisão, o mundo da vida é o mundo das imagens em movimento. Essa realidade torna-se ainda mais acentuada na contemporaneidade com a produção e o compartilhamento de materiais audiovisuais na internet. A geração dos nativos digitais vive com uma câmera de celular na mão registrando tudo o que vê a sua frente e postando esses registros nas redes sociais. Apesar do destaque que a linguagem audiovisual usufrui no mundo da vida, ela não desfruta da mesma atenção no ambiente escolar. Raras são as instituições que desenvolvem atividades sistemáticas voltadas para a educação do olhar e para a produção audiovisual. O trabalho com o documentário na escola permite ao aluno se familiarizar não apenas com o gênero, mas com o funcionamento da linguagem do audiovisual em geral, adquirindo condições de ter uma postura mais crítica a respeito da representação do mundo em imagens em movimento. Nº 2 – Ampliação do letramento escolar Cabe à escola, mais especificamente ao componente de língua portuguesa, capacitar o aluno a ler e produzir textos dos mais variados tipos (verbais, não verbais e multimodais). Trazer o documentário para sala de aula cumpre esse papel de ampliar o letramento dos estudantes. Por sua abrangência social e cultural, o gênero Documentário propicia o ensino de saberes diversos na aula de língua portuguesa, por exemplo: integração de múltiplas semioses, argumentação, progressão temática, coesão e coerência textual etc. Além disso, como já enfatizado, o documentário pode ser utilizado pedagogicamente em proveito da formação de um posicionamento ético e político diante das imagens. Nº 3 – Domínio da linguagem audiovisual Como representante da arte cinematográfica, a produção de um documentário segue os preceitos da gramática audiovisual, o que inclui uma série de cuidados com a elaboração de planos, enquadramentos, movimentos de câmera, montagem etc. Um aluno familiarizado com a gramática do cinema estará mais habilitado a conectar os recursos de linguagem utilizados aos seus efeitos de sentido. Nº 4 – Fácil manejo da tecnologia e baixo custo de equipamentos e softwares Hoje, câmeras digitais de fotografia ou até mesmo câmeras de celulares são capazes de produzir registros audiovisuais de relativa qualidade. Por sua vez, a internet dispõe de programas de edição gratuitos e de fácil manuseio. Para completar esse cenário, muitos dos jovens já dominam a tecnologia de captação e edição de imagens. Tudo isso permite um trabalho satisfatório com o audiovisual na escola. E mesmo se as condições técnicas não são ideais, é preciso enfrentar esse desafio para benefício dos estudantes. Nº 5 – Possibilidade de realizar filmes documentários para além dos muros da escola O aprendizado da linguagem audiovisual, e mais especificamente da prática documentária, capacita o aluno a atuar no circuito amador ou profissional de cinema, abrindo-lhe novas perspectivas de futuro. Nº 6 – Cumprimento de preceitos legais estabelecidos para a Educação Básica Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio incluem o cinema como uma das formas artísticas que podem ser lecionadas nas aulas obrigatórias de arte. A Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014, por seu turno, obriga a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de Educação Básica de no mínimo 2 horas mensais. Além disso, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reforça a importância do trabalho com as práticas de linguagem contemporâneas. Assim, trazer o documentário para a escola vai ao encontro desses preceitos legais. Nº 7 – Estar em sintonia com uma prática social que só cresce Nas últimas décadas, é notável o aumento da produção nacional de filmes de não ficção. Muitos são os cineastas, consagrados ou iniciantes, que estão se dedicando à realização de documentários dos mais variados tipos. Há editais de financiamento exclusivos para a realização de filmes desse gênero, como o DOCTV América Latina e o DOCTV Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Há também plataformas on-line e canais de TV dedicados ao gênero, como o CurtaDoc. A existência de um festival como o “É tudo verdade”, destinado exclusivamente à exibição de documentários, que em 2018 completou a sua 23ª edição, também comprova o crescimento desse campo. Nos festivais de cinema, seja de nível profissional, seja universitário ou aqueles destinados às produções de estudantes do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, o documentário ocupa também um espaço relevante. Deve-se ressaltar ainda uma ampliação da bibliografia assinada por pesquisadores brasileiros referente ao tema do documentário. Nº 8 – Instrumento de transformação social capaz de inventar novos sujeitos e novas cenas políticas As novas tecnologias de informação e comunicação permitiram uma mudança significativa no eixo da produção e disseminação de produtos culturais/midiáticos. Diferentemente da época do reinado da mídia massiva, em que o cidadão comum apenas recebia conteúdos prontos, hoje, ele próprio produz e faz circular as peças audiovisuais que cria. Isso é capaz de provocar uma revolução nos modos de perceber o mundo e, consequentemente, nos modos de ser. Por exemplo, se antes eram tão somente as celebridades que apareciam nas telas, atualmente, todos e qualquer um podem ocupá-las. Não é à toa que cresceu a circulação de imagens de negros, índios, quilombolas e outras minorias relegadas por muito tempo a um papel secundário ou mesmo à invisibilidade. Nesse contexto, o documentário ocupa posição privilegiada. Muitas vezes, o desejo de mudar uma realidade social e política está na raiz da produção de um documentário. Na Olimpíada de Língua Portuguesa, cujo mote é “O lugar onde vivo”, a realização de um documentário pode fomentar novos pontos de vista sobre a comunidade ou o território onde se mora, engendrando novas experiências e processos subjetivos. Filmar o lugar onde se vive provoca um deslocamento do olhar, isso porque, a realidade filmada nunca é a realidade em si mesma, mas algo transformado pelo olhar da câmera. Cabe a você, professor, pensar junto com os alunos formas de ver e falar sobre o outro, sobre a cidade, sobre o país de maneira a respeitar os princípios éticos e almejar as transformações político-sociais necessárias. Mãos à obra!

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Educação Integral

Cadernos Cenpec (nº 3, 2007): Avaliação em Educação

Nesta edição, você verá diferentes recortes teórico-metodológicos e experiências concretas de uso das estratégias de avaliação em contextos reais da educação brasileira. Confira!

3 Avaliação em Educação 2 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 3 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 tema da avaliação em edu- cação, que tratamos neste terceiro Cadernos Cenpec, é de enorme relevância. Adentrou a agenda política e seu debate ganhou cobertura nacional. Temos a expectativa de que as avaliações assim pu- blicizadas alavanquem o aprimoramento da política de educação e iluminem caminhos para a promoção de ga- nhos de aprendizagem dos alunos, da ampliação de sua participação na sociedade do conhecimento e da busca de maior eqüidade social. Sem dúvida, a produção de conhecimento a partir das pesquisas nacionais deve se concretizar em deci- sões políticas efetivas que alterem positivamente os re- sultados escolares e deve ser acessível a todos – comu- nidade escolar e sociedade. Este é um dos aspectos en- fatizados pelos pesquisadores nesta edição: a necessi- dade de uma divulgação mais esclarecedora e de aná- lises e debates sobre os resultados, suas causas e con- seqüências para administradores, diretores, professo- res, pais e alunos. Sabemos que o Brasil realizou avanços na educação básica, mas ainda tem desafios enormes para superar a herança histórica de exclusão escolar que se reflete numa alta porcentagem de indivíduos analfabetos funcionais que apresentam habilidades muito incipientes de leitu- ra, escrita e matemática. Há boas notícias que nos chegam nos estudos de caso das escolas que alcançaram os resultados mais positivos na Prova Brasil, mostrando estratégias, condutas e ações possíveis para a melhoria da aprendizagem das crianças, do Norte ao Sul do país. São as boas práticas das esco- las inspirando-nos a acreditar no futuro da educação no Brasil. Neste momento, além das definições políticas nos níveis centrais de governo, há um protagonismo funda- mental dos sistemas municipais de ensino, em que mui- tas experiências inovadoras já estão acontecendo. Sabemos que impactos positivos nos sistemas edu- cacionais resultam de muitas variáveis intervenientes e dependem de ações diferenciadas e articuladas de vá- rias ordens e dimensões. Infelizmente, há uma tendên- cia danosa, e mesmo ingênua, de se valorizar uma ou outra variável como responsável pelo mau ou bom de- sempenho da educação. A situação da educação exige hoje mais reflexão e compreensão e, sobretudo, a rea- firmação da necessidade cívica de se valorizar a educa- ção pública e de se apoiar a escola para que ela promo- va a aprendizagem dos alunos. Esperamos, com este número dos Cadernos Cenpec, apresentar algumas questões que podem desvelar alter- nativas para a educação no país, pois precisamos aju- dar a responder à urgência educacional que os resulta- dos atuais das avaliações apontam e garantir o direito a uma educação de qualidade a todas as crianças e ado- lescentes brasileiros. Procuramos oferecer, ao leitor, as perspectivas da avaliação em educação com diferentes recortes teórico- metodológicos e muitas experiências concretas de uso das estratégias de avaliação em contextos reais para que possamos, todos, ampliar o olhar sobre essa realidade e ajudar a transformá-la. Maria Alice Setubal Diretora Presidente do Cenpec !VALIAR A AVALIA¿»O / 3UM1RIO editorial Maria Alice Setubal Avaliar a avaliação 3 @ artigo Maria Helena Guimarães de Castro A árdua tarefa de estabelecer padrões de desempenho escolar 7 debate Maria do Carmo Brant de Carvalho, José Francisco Soares, Naércio Menezes, Bernardete Gatti Avaliação em Educação: o que a escola pode fazer para melhorar seus resultados? 17 @ comentário: sistema nacional de avaliação da educação básica – saeb Jorge Kayano 3 Avaliar para que(m)? 42 @ artigo Terezinha Azerêdo Rios O que será da avaliação sem a ética? 45 @ relato de prática: projeto estudar pra valer! língua portuguesa Claudia Petri, Heloísa Trenche De olhos... e ouvidos no aluno 53 @ artigo Vera Masagão Ribeiro, Vanda Mendes Ribeiro, Joana Buarque de Gusmão Indicadores de qualidade mobilizam a escola 59 @ relato de prática: indicadores de qualidade na educação Waldenir (Nino) Bernini Lictenthaler Uma ferramenta para a construção da democracia 74 @ artigo Erika Himmel König A defesa de uma cultura avaliativa 81 @ relato de prática: pae – programa de aumento da escolaridade Maria Amábile Mansutti, Liliane Petris Ensino para jovens em áreas vulneráveis 90 artigo Maria de Salete Silva Conhecer as mil faces da escola para ampliar o direito de aprender 97 @ relato de prática: prêmio victor civita educador nota 10 Gabriel Grossi, Regina Scarpa Não é fácil premiar com justiça 107 @ artigo Vera Masagão Ribeiro Estatísticas para melhorar o conhecimento de letras e números 111 @ relato de prática: projeto criança Ana Luíza Mendes Borges, José Hamilton Maruxo Júnior, Sônia Maria de Oliveira Nudelman Uma experiência formativa 120 @ artigo Ana Maria Falsarella, Vanda Noventa Fonseca O impacto positivo do Programa Melhoria da Educação no Município 127 @ estudo de caso: programa educarede Denise Blanes, Márcia Padilha Lotito, Mílada Tonarelli Gonçalves, Priscila Gonsales Internet na escola, escola na Internet 138 @ artigo Tânia Regina de Souza Romero Avaliando na perspectiva sociocultural 147 @ relato de prática: prêmio cultura viva Maria do Carmo Brant de Carvalho Critérios para premiar tradições brasileiras 153 @ mosaico Sites, livros & filmes 156 6 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 7 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 avaliação educacional, em geral, e a avaliação escolar, em particular, vêm se revelando instrumentos fundamen- tais para se elevar a qualidade do ensino. A experiência internacional, assim como a brasileira, mostra que, para isso, as ações efetivas são as centradas na aprendizagem e na escola. Pesquisas recentes, realizadas por diferentes organismos internacionais — como Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultu- ra; OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvol- vimento Econômico; e Preal - Programa de Promoção da Reforma Educativa na América Latina e Caribe, entre ou- tros — destacam a importância e as diferentes finalidades das avaliações educacionais para melhorar a qualidade do desempenho dos alunos e das escolas. A realização de avaliações em larga escala, nacio- nais e internacionais, como forma de conhecer melhor a dinâmica dos processos e resultados dos sistemas edu- cacionais, é, sem dúvida, uma tendência cada vez mais presente em países de diferentes culturas e orientações ideológicas de governo. Prova disso é a existência de sistemas nacionais de avaliação em 19 países da América Latina e a sua cres- cente participação nas avaliações internacionais, como o PISA - Programa Internacional de Avaliação de Alunos e o TIMSS - Third International Mathematics and Scien- ce Study, conduzido pelo IEA - International Associa- tion for the Evaluation of Educational Achievement, ao ! 1RDUA TAREFA DE ESTABELECER PADRÍES DE DESEMPENHO Maria Helena Guimarães de Castro* ESCOLAR ! * Maria Helena Guimarães de Castro é professora de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas/Unicamp e pesquisadora associada do Núcleo de Políticas Públicas da Unicamp. Foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais/INEP, de 1995 a 2001, e secretária-executiva do MEC em 2002. Entre janeiro de 2003 e março de 2006, foi secretária estadual de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. Foi secretária estadual de Ciência e Tecnologia de São Paulo em 2006. Atualmente é secretária de estado de Educação do Distrito Federal. 8 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 lado de países da União Européia, Ásia, África e Améri- ca do Norte. Além disso, observa-se uma tendência mais acentu- ada para o desenvolvimento de sistemas subnacionais em todo o mundo, assim como no Brasil. Esta convergência em torno das avaliações “estandar- dizadas” origina-se de visões, interesses e perspectivas distintas quanto ao papel dos sistemas educativos, como destaca Pedro Ravela (2006), em recente documento do Preal. Em alguns casos, predominam a preocupação com a formação cidadã e a consolidação de uma socieda- de democrática; em outros, a produtividade da força de trabalho e a competitividade da economia nacional. Al- guns valorizam as avaliações para promover mais opor- tunidades para o desenvolvimento integral das pessoas e mais possibilidades de participação na sociedade do conhecimento; outros consideram a educação de quali- dade uma política estratégica para melhorar a eqüidade e um dos caminhos para superar a pobreza. Independente das razões que levam à criação de sis- temas de avaliação, parece haver consenso quanto ao seu papel como instrumento para se conquistar mais qualidade no ensino. Como os resultados da educação não são diretamente observáveis, nem imediatos, dada a heterogeneidade do corpo docente e da situação socio- econômica familiar dos alunos, só é possível obter uma visão geral do desempenho dos sistemas educacionais mediante uma avaliação externa em larga escala. Democratização e massificação No passado recente, media-se a qualidade de um sis- tema educativo com base nos indicadores de acesso e permanência na escola, como: matrícula, cobertura, re- petência, evasão, anos de estudo etc. O ingresso na edu- cação formal era limitado e a maioria dos pobres estava praticamente excluída do sistema ou permanecia pou- cos anos na escola. A entrada e a permanência no sis- tema eram consideradas sinônimos de aquisição de co- nhecimento e das competências básicas. A progressiva universalização do acesso à escola e a ampliação do número de anos de estudo modificaram essa situação. Os novos alunos, em geral oriundos de famílias pobres e mais vulneráveis, chegam ao sistema educativo em desvantagem em termos de aquisição de bens cultu- rais e de manejo da linguagem oral e escrita. Nesse con- texto, a equivalência entre anos de estudo e acesso ao co- nhecimento, ao domínio das competências básicas e ca- pacidades simbólicas nem sempre se concretiza. É ver- dade que a maior permanência nos sistemas educativos traz alguns benefícios, mas não significa necessariamen- te que os cidadãos estão aprendendo e incorporando os conhecimentos, as atitudes e as habilidades necessárias para o seu desenvolvimento pessoal e social. Além disso, a democratização da educação provo- cou também significativo aumento do número de pro- fessores, os quais, infelizmente, não contaram com me- canismos que lhes garantissem sua adequação à nova realidade e a uma boa qualidade de formação. Em ge- ral, o Estado foi omisso na formulação de políticas e no desenvolvimento de mecanismos de controle da quali- dade da formação inicial e de programas de aperfeiço- amento docente. Nesse quadro, o desenvolvimento de sistemas de in- formação e avaliação transformou-se em peça-chave dos processos de reformas educacionais, que tiveram lugar em diferentes países, especialmente a partir de meados da década de 1980. Com o objetivo de subsidiar ações para melhorar a qualidade do ensino, as avaliações passaram a dar maior ênfase e divulgação a aspectos centrais do processo de aprendizagem, procurando responder questões, como: 1. O que os alunos estão aprendendo? Em que medida os resultados obtidos correspondem ao que se es- pera deles ao final dos diferentes ciclos ou níveis de aprendizagem? 2. Qual é o grau de eqüidade observado nos resultados da aprendizagem? Como estão evoluindo os índices de aprendizagem entre os diversos grupos sociais? Como as desigualdades sociais, econômicas e cultu- rais de uma sociedade incidem sobre as oportunida- des de aprendizagem? 3. Quais e como os fatores associados afetam, positiva- mente ou não, os resultados da aprendizagem? Quais os efeitos da repetência ou do processo de alfabeti- zação nas séries iniciais? Ou do tamanho das turmas, tipo de formação dos professores, acesso à educação infantil? Ou da participação dos pais? Como e em que graus tais fatores afetam a aprendizagem? 4. É possível identificar escolas e professores que con- seguem fazer com que todos os alunos aprendam, mesmo em contextos sociais desfavorecidos? Quais as características das “boas práticas” que resultam em bom desempenho? 9 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 5. Quais os efeitos das políticas de educação sobre os resultados da aprendizagem? Em que medida aspectos como salários, carreira e formação dos professores incidem sobre os resultados? Qual o impacto das mudanças curriculares ou mesmo da aquisição de novos materiais didático-pedagógicos sobre a aprendizagem? Em suma, um sistema nacional de avaliação em lar- ga escala pode prover informações indispensáveis para aprofundar o debate sobre a situação educacional de um país e mostrar o que os alunos estão aprendendo, ou o que deveriam ter aprendido, em relação aos conteúdos e habilidades básicas estabelecidos no currículo. Como os currículos geralmente são muito extensos, a elaboração de provas nacionais obriga a se definirem quais apren- dizagens devem ser consideradas fundamentais e asse- guradas a todos os alunos, o que se aplica também às avaliações internacionais, que permitem comparações entre países ou regiões. No Brasil, o desenvolvimento de um sistema de ava- liação da educação básica é bastante recente. Até o início dos anos 1990, com exceção do sistema de avaliação da pós-graduação sob a responsabilidade da Capes, as po- líticas educacionais eram formuladas e implementadas sem qualquer avaliação sistemática. Não era possível sa- ber se elas produziam os resultados desejados. Em pouco mais de uma década, foi construído um complexo e abrangente sistema de avaliação educacio- nal no país, que cobre todos os níveis da educação. Esse sistema produz informações que orientam as políticas educacionais em todos os níveis de ensino: 1. Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB Avalia os sistemas públicos e privados de ensino fundamental e médio, com base em amostra de alu- nos e escolas. 2. Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM De caráter voluntário, avalia as competências e habilidades adquiridas por estudantes que concluí- ram ou estão concluindo o ensino médio. 3. Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior – Sinaes Engloba a avaliação de desempenho de cursos e instituições. 4. Prova Brasil Avalia o universo dos alunos das séries finais dos ciclos I e II do ensino fundamental obrigatório. Além das avaliações nacionais, o Brasil passou a participar de avaliações internacionais, como o Progra- ma Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA, coordenado pela OECD, e o Laboratório de Avaliação da Qualidade da Educação – LECE, coordenado pela Unesco/OREALC – Escritório Regional da Unesco para a América Latina e Caribe, do Chile. Neste artigo, examino apenas o SAEB e algumas ex- periências estaduais de avaliação escolar. O contexto dos anos 1990 No plano educacional, assim como no plano socioeco- nômico, as diferenças entre estados e regiões brasileiras são bastante pronunciadas. Em 2004, no estado de São Paulo, 94% da população com mais de dez anos era alfa- betizada, enquanto no estado de Alagoas, apenas 68% o era. Metade dos trabalhadores da região Nordeste tinha, no máximo, quatro anos de estudo e apenas 27% com- pletavam oito anos de estudo ou mais, situação oposta à da região Sudeste, onde mais de 55% dos trabalhado- res estudavam durante oito anos ou mais. Segundo a Constituição brasileira, Governo Federal, estados e municípios têm responsabilidades distintas e complementares em todos os setores de políticas públi- cas, inclusive no educacional. A Lei Magna garante, ain- da, ampla autonomia aos estados e municípios para es- truturarem os seus próprios sistemas de ensino e estimu- la a descentralização. Assim, a oferta de educação pú- blica, que já era descentralizada e bastante estadualiza- da, ganhou novo impulso descentralizador com a Consti- tuição de 1988 e com a Lei de Diretrizes e Bases da Edu- cação Nacional, de 1996, que fomenta a criação de sis- temas municipais de ensino. Hoje, existe, no Brasil, um número quase tão grande de sistemas de ensino quan- to de estados e de municípios! Nesse sistema altamente descentralizado, em um país marcado por extrema heterogeneidade e desigual- dade, foram atribuídas, ao Governo Federal, funções de regulação e de assistência técnica e financeira a estados 5M SISTEMA NACIONAL DE AVALIA¿»O EM LARGA ESCALA PODE PROVER INFORMA¿ÍES INDISPENS1VEIS PARA APROFUNDAR O DEBATE SOBRE A SITUA¿»O EDUCACIONAL DE UM PAÅS 10 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 e municípios. A legislação em vigor determina também que cabe ao Governo Federal avaliar a qualidade do en- sino em todo o país e em todos os níveis, com o objeti- vo de definir prioridades e de elevar a qualidade do ensi- no. É nesse contexto que foi montado o sistema de ava- liação do Brasil. Sistema Nacional de Avaliação O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - SAEB foi criado e aplicado em caráter experimental no início da década de 1990, contando com o apoio financeiro do Banco Mundial. O objetivo do SAEB é avaliar a qualidade da educação oferecida pelos sis- temas de ensino existentes, identificando o que os alunos sabem e são capazes de fazer nas diferentes etapas do seu percurso escolar. A partir de 1995, o SAEB foi reformulado do ponto de vista metodológi- co e passou a ser regularmente realizado a cada dois anos em todo país. O SAEB consiste de questionários aplicados a uma amostra de professores e diretores de escolas e de pro- vas ministradas a uma amostra de alunos de escolas públicas e privadas que cursam a última série de cada ciclo de estudos do sistema de educação básica. Assim, participam da amostra: alunos da 4a série do ensino fundamental; alunos da 8a série do ensino fundamental, último ano de educação obrigatória; alunos da 3a série do ensino médio, último ano da Educação Básica. A amostra do SAEB é aleatória, baseada nos resulta- dos do Censo Escolar realizado anualmente e na melhor técnica estatística. Representa os alunos das escolas es- taduais, municipais e particulares, urbanas e rurais, de cada um dos 26 estados da Federação e do Distrito Fede- ral. No SAEB, são testados, a cada dois anos, os conhe- cimentos dos alunos em Matemática e Língua Portugue- sa. Eventualmente, são também testados seus conheci- mentos de História, Geografia e Ciências. Para representar este enorme universo de cerca de 44 milhões de alunos em mais de 200 mil escolas, distribu- ídas entre uma miríade de sistemas de ensino, a amos- tra do SAEB 2001 envolveu cerca de 280 mil alunos de sete mil escolas, localizadas em mais de dois mil muni- cípios em todo o país. Em 2003, foram 300 mil alunos, 6.300 escolas e 17 mil professores. • • • 11 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A partir dos resultados dessas provas, os alunos dos diferentes estados e, dentro de cada estado, das diferen- tes redes de ensino, são classificados em uma escala de desempenho que permite identificar aquilo que eles sa- bem e são capazes de fazer e aquilo que eles não sabem, mas deveriam saber naquela etapa de seus estudos. Essas informações são de extrema importância para que os professores e as autoridades educacionais pos- sam tomar medidas para melhorar o desempenho dos alunos em suas escolas. Além de avaliar o nível alcançado pelos alunos, o SAEB coleta uma série de informações sobre os fatores asso- ciados ao desempenho escolar por meio da aplicação de questionários a alunos, professores e diretores de escola. Dessa forma, são obtidas informações socioeconômicas, sobre hábitos de estudo dos alunos, formação e prática dos professores e sobre a gestão das escolas. O cruzamento dessas informações com os dados de desempenho dos alunos permite detectar quais fatores escolares e extra-escolares exercem uma influência mais forte, positiva ou negativa, sobre o preparo dos alunos. Por intermédio do SAEB, já foi possível identificar uma série de tendências presentes no diagnóstico da educa- ção no Brasil, as quais passaram a orientar a formulação e reformulação das políticas educacionais. Por exemplo, o SAEB diagnosticou que, quanto maior é a defasagem série-idade, pior é o desempenho do alu- no. No Brasil, o número de alunos em atraso escolar é bastante alto devido às altas taxas de repetência. A re- petência, que idealmente serviria como uma nova opor- tunidade para os alunos de fraco desempenho fortalece- rem os seus conhecimentos para, posteriormente, pros- seguirem seus estudos, tem-se mostrado mais perversa do que benéfica. Alunos repetentes acabam ficando de- sestimulados, apresentando desempenho cada vez mais baixo, até abandonarem a escola. Os resultados do SAEB indicaram que, para melhorar o desempenho geral dos alunos, seria necessário reduzir a defasagem série-idade. Foram criados, então, os pro- gramas de aceleração de aprendizagem, voltados para os alunos com mais de dois anos de atraso. Estes pro- gramas, aplicados em diversas partes do Brasil, vêm ten- do efeitos positivos na correção do fluxo escolar e na re- dução das taxas de abandono. Espera-se que, nos pró- ximos anos, esses efeitos positivos também se façam sentir no desempenho escolar dos alunos. 12 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O SAEB também constatou que alunos cujos profes- sores receberam formação de nível superior têm melhor desempenho na avaliação. Por isso, o Ministério da Edu- cação criou incentivos para os professores obterem uma formação adequada. Quanto à influência da escola sobre o desempenho dos alunos, o SAEB percebeu que certos estilos de ges- tão do diretor e a participação dos pais na vida da esco- la têm efeito positivo. Para elevar o desempenho esco- lar nas regiões menos favorecidas, foi criado um proje- to, com financiamento do Banco Mundial (Fundescola), voltado para o desenvolvimento das escolas. Na avaliação desse projeto, utilizaram-se os resul- tados do SAEB e, mais uma vez, emergiu uma correla- ção significativa entre o desempenho escolar e a for- ma de gestão da escola, confirmando a tendência an- teriormente identificada. Alunos de escolas que partici- param do projeto Fundescola tiveram um desempenho superior nos testes do SAEB em relação aos alunos de outras escolas, com características similares, que dele não participaram. Avaliações estaduais Embora o SAEB não apresente resultados por escola, e sim por sistemas de ensino em cada estado, as infor- mações que ele reúne permitem identificar claramen- te que tipo de escola favorece um bom desempenho de seus alunos nos testes. Esse fato, por si só, já indica o caminho a ser seguido pelos sistemas de ensino, a fim de elevar a sua qualidade. No entanto, o SAEB não substitui a avaliação centrada na escola, nem pretende fazê-lo. Ao contrário, no perío- do de 1995 a 2002, o INEP - Instituto Nacional de Estu- dos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, instituição responsável pelo SAEB, estabeleceu uma linha de apoio e assistência técnica aos estados e municípios para que desenvolvessem os seus próprios sistemas de avaliação. O SAEB oferece um diagnóstico consistente da situação educacional em todo país, permitindo comparações en- tre os diferentes sistemas de ensino. No entanto, cabe a cada um deles desenvolver os seus próprios sistemas de avaliação para retratar a realidade de cada escola, sob sua direta responsabilidade, e definir ações de melho- ria e monitoramento sistemáticos. Nesse sentido, o Governo Federal passou a oferecer, aos estados e municípios interessados em desenvolver os seus próprios sistemas de avaliação, treinamento para as equipes elaborarem os seus próprios testes. Além disso, disponibiliza alguns itens-âncora para integrar as provas, assegurando assim a comparabilidade dos resultados regionais com os nacionais. O desenvolvimento de sistemas regionais ou locais de avaliação, em articulação com o sistema nacional, apresenta uma série de vantagens. Primeiro, eles pro- porcionam uma investigação mais aprofundada sobre as especificidades regionais ou locais, o que não é pos- sível no SAEB. Segundo, eles permitem a obtenção dos resultados por escola, o que não é viável em um siste- ma nacional de avaliação como o brasileiro, devido à complexidade envolvida na sua operacionalização e os seus elevados custos. Terceiro, eles possibilitam a cole- ta de informações de interesse do gestor da rede, o que tampouco é possível em uma avaliação nacional. Atualmente, cerca de 13 estados brasileiros e duas capitais já possuem sistemas próprios para avaliar as suas redes de ensino, produzindo resultados por esco- la. Há algumas iniciativas recentes, como a implantação de uma avaliação escolar reunindo um conjunto de mu- nicípios gaúchos, situados na região de Caxias do Sul, os quais criaram um consórcio e pactuaram os critérios de avaliação de todas as suas escolas. No final de 2005, o MEC aplicou, pela primeira vez, a Prova Brasil em 44 mil escolas. Foram testados 5,4 mi- lhões de alunos de 4a e 8a séries das escolas públicas em Língua Portuguesa e Matemática. Os resultados per- mitiram comparar os resultados das escolas com a escala de proficiência do SAEB. O principal aspecto positivo da Prova Brasil é possi- bilitar a comparação entre as escolas da mesma rede de ensino e, com isso, prover informações para apoiar direto- res e professores nos projetos pedagógicos. Infelizmente, #ABE A CADA SISTEMA EDUCACIONAL DESENVOLVER SEUS MÁTODOS DE AVALIA¿»O PARA RETRATAR A REALIDADE DE CADA ESCOLA SOB SUA DIRETA RESPONSABILIDADE E DEÙNIR A¿ÍES DE MELHORIA E MONITORAMENTO SISTEM1TICOS 13 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 as escolas e sistemas de ensino têm tido dificuldade em usar os resultados e compreender a metodologia adota- da. Falta uma política séria e consistente de divulgação e uso dos resultados das avaliações. O Brasil avançou muito na montagem e desenvolvimento de sistemas na- cionais e estaduais, mas o grande problema é a dificul- dade das escolas e dos professores em usar os resulta- dos para melhorar suas aulas. A título de exemplo, apresentarei um breve panorama de dois sistemas estaduais de avaliação dos dois maio- res estados do Brasil: São Paulo e Minas Gerais. São Paulo e Minas Gerais Em 2005, havia, no estado de São Paulo, aproximada- mente, oito milhões de alunos matriculados no ensino fundamental e médio, 87% dos quais em cerca de 12.500 escolas públicas estaduais e municipais. No mesmo ano, no estado de Minas Gerais, havia cerca de quatro mi- lhões e 400 mil alunos matriculados nos mesmos níveis de ensino, 93% deles em mais de 14.500 escolas públi- cas. Para monitorar a qualidade do ensino ofertado por suas escolas, que concentram quase um terço dos alu- nos do país, os governos desses dois estados decidiram estabelecer seus próprios sistemas de avaliação. O estado de São Paulo criou, em 1996, o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo - Saresp, e Minas Gerais, o Programa de Avaliação da Rede Pública de Educação Básica - Proeb. Esses sistemas estaduais de avaliação são abertos à participação dos municípios daqueles estados que ti- verem rede de escolas municipais e que a eles deseja- rem aderir. Como o SAEB, esses dois sistemas avaliam periodica- mente os conhecimentos de seus alunos em Português, Matemática, Ciências, História e Geografia e, por meio de questionários, recolhem outras informações associadas ao desempenho. O Proeb de Minas Gerais O Proeb aplica testes a todos os alunos de 4a, 8a e 11a série da rede estadual. O ciclo de avaliação do Proeb se completa a cada dois anos. Por exemplo, em 2000, foram aplicados testes de Português e de Matemática, e, em 2001, de História, Geografia e Ciências. Integram a avalia- ção, questionários destinados aos alunos, professores e diretores de escola, com o objetivo de se levantar dados sobre o processo de gestão das escolas, o perfil dos pro- fissionais da Educação e dos estudantes atendidos, e os recursos e serviços disponíveis nas escolas. Os resultados dos testes e dos questionários forne- cem um conjunto de dados que possibilita um diagnós- tico detalhado da situação educacional no estado. Dife- rentemente do SAEB — que analisa comparativamente o desempenho dos alunos entre os diferentes estados e sistemas de ensino sem atentar para as políticas educa- cionais específicas —, o Proeb avalia o desempenho dos alunos à luz das políticas educacionais implementadas no Estado. Ainda que orientado para subsidiar a formu- lação e a redefinição das políticas educacionais do go- verno do estado, o sistema de avaliação de Minas Gerais utiliza a mesma escala de proficiência do SAEB, a fim de garantir a comparabilidade dos seus resultados com os resultados nacionais. O Proeb faz parte do Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública - Simave, rede que abrange 27 institui- ções de ensino superior, públicas e privadas, 41 superin- tendências regionais de ensino, representantes dos mu- nicípios, dos alunos e dos professores. Ao integrar os di- ferentes segmentos da sociedade envolvidos com a edu- cação no sistema de avaliação, o Simave procura desen- volver uma nova cultura de avaliação que leve à ruptura das práticas tradicionais e ineficientes ainda em vigor no cotidiano de muitas escolas. A participação direta das instituições de ensino supe- rior no processo de avaliação é crucial, uma vez que são elas as responsáveis pela formação dos professores para as escolas da região. Por meio do trabalho conjunto, pro- cura-se aproximar as instituições de ensino superior do tra- balho pedagógico da escola em todas as suas dimensões. Esta associação favorece e estimula a discussão de pos- síveis mudanças nos cursos de formação de professores, para torná-los mais sensíveis às necessidades do ensino público. A distância entre a universidade e seus cursos de formação de professores e as reais necessidades da esco- la pública tem-se revelado um dos grandes entraves para a elevação da qualidade da educação no país. A avaliação das escolas pelo Proeb está pautada pelos princípios da eqüidade e publicidade. Ao identificar os problemas de uma escola e apontar os caminhos para saná-los, age-se no sentido de proporcionar uma edu- cação de qualidade para todas as crianças, e, ao se divulgarem os resultados da avaliação, informa-se, 14 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 aos cidadãos, sobre a qualidade do serviço público que lhes está sendo oferecido. São Paulo e o Saresp O Saresp foi criado em 1996, com o apoio do Banco Mun- dial. Tal como o Proeb, a aplicação do sistema de ava- liação do estado de São Paulo é descentralizada, en- globando as escolas da rede pública estadual, as au- toridades regionais de ensino, os professores e pais de alunos. O Saresp procura analisar a evolução dos mesmos alunos em anos seguidos, de forma a possibilitar a re- alização de estudos longitudinais. As provas são ela- boradas com base nos conteúdos curriculares de deter- minada série e aplicadas aos alunos da série imediata- mente superior. Por exemplo, a prova de matemática, sobre o conteúdo da 4a série, é aplicada aos alunos da 5a; a elaborada com os conteúdos da 5a série, apli- cada aos alunos da 6a, e assim por diante. Em 1996, foram aplicadas provas aos alunos da 3a e 6a séries; em 1997, aos da 4a e 7a; e, em 1998, aos da 5a e 8a, processo que sofreu descontinuidade em 2006. Entre 1996 e 2005, foram construídas séries his- tóricas com o intuito de acompanhar a evolução de um mesmo aluno, dos alunos de uma mesma escola, das escolas de uma região, subordinadas à mesma auto- ridade regional de ensino. As avaliações do Saresp são realizadas no início do ano letivo, para identificar imediatamente as defi- ciências existentes e permitir a orientação dos alunos durante o ano. As provas do Saresp são ministradas e corrigidas pelos próprios professores, ficando, os re- sultados da avaliação, disponíveis na escola. Isso per- mite rapidez na análise dos dados e na utilização dos resultados pela equipe da escola no planejamento pe- dagógico e na definição das ações e metas. Os professores participam de todas as etapas da ava- liação: da elaboração das provas à análise dos resulta- dos. Com isso, procura-se viabilizar uma aproximação entre a teoria e a prática, estimular o trabalho em equipe e reforçar sua responsabilidade individual e coletiva. Para assegurar a qualidade do instrumento de ava- liação, as provas são pré-testadas em uma amostra de alunos. Estes primeiros resultados são submetidos à análise estatística e de conteúdo, de modo a verificar se as provas conseguem, de fato, medir aquilo que pre- tendem. Com base nessa análise, elas são reformula- das e, então, aplicadas a todos os alunos. Medir os eventuais ganhos de aprendizagem dos alunos ao longo do tempo é fundamental para o Saresp. No entanto, não é possível conhecer os progressos de um aluno, ou do conjunto dos alunos, na passagem de uma série para outra, simplesmente comparando os resultados gerais das provas, uma vez que elas abor- dam conteúdos diferentes. Por isso, o Saresp, assim como o SAEB, utiliza proce- dimentos estatísticos reconhecidos internacionalmente, derivados da Teoria de Resposta ao Item (TRI), sobretu- do a equalização (equating), para comparar resultados de provas diferentes. Para realizar a equalização, é dada uma prova-âncora a uma amostra de alunos, que reúne itens de provas aplicadas em diferentes anos e séries. Com isso, é possível construir escalas, cujos pontos re- presentem diferentes níveis de desenvolvimento cogni- tivo e de aprendizagem. A análise final dos resultados é feita considerando- se sempre o contexto de ensino. Além das provas que medem o desempenho dos alunos, a avaliação incor- pora diversas informações coletadas por intermédio de outros instrumentos: questionário da escola, que reco- lhe informações sobre o projeto pedagógico da esco- la, sua infra-estrutura e formas de capacitação de pro- fessores; relatório de observação dos pais, em que os responsáveis pelos alunos expressam suas opiniões sobre o processo de avaliação utilizado pela escola; relatório do aplicador da prova e relatórios da escola e da Delegacia de Ensino. 15 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Considerações finais O desenvolvimento e o aperfeiçoamento dos instru- mentos de avaliação são um trabalho contínuo e dele depende os futuros progressos na educação. Se os ins- trumentos para a avaliação de conteúdos já são razo- avelmente desenvolvidos, ainda há muitas dificuldades para se elaborarem instrumentos capazes de medir a aquisição e o desenvolvimento de competências e habi- lidades cognitivas. Além do domínio propriamente cog- nitivo, seria importante investigar o desenvolvimento de outras habilidades e competências necessárias ao indivíduo na sociedade contemporânea, mas, disso, estamos ainda mais longe. No plano nacional, segue sendo um grande desafio estabelecer padrões (standards) de desempenho escolar passíveis de comparação num quadro de grande diversi- dade regional, como o brasileiro. Também nas avaliações estaduais ou municipais, mui- to ainda resta a ser aperfeiçoado para se medir o valor agregado pela escola ao aluno, tendo em vista a variada bagagem cultural que cada um traz ao entrar na escola, variação acentuada pelas enormes desigualdades socio- econômicas que marcam o país. Enfim, ainda nos falta maior precisão na identificação e ponderação dos fatores internos e externos à escola que incidem no desempenho dos alunos. No entanto, o grande desafio continua sendo a utiliza- ção, em sala de aula, dos resultados obtidos por meio dos instrumentos já existentes para o aperfeiçoamento da prá- tica docente e para a elevação da qualidade do ensino. Para além dos fatores socioculturais que incidem di- retamente no desempenho dos alunos, sobre os quais a influência do sistema educacional é muito pequena, existe uma grande margem de ação que é propriamen- te educativa e que se desenvolve em sala de aula. A participação do professor em todas as etapas da ava- liação, proporcionada por algumas experiências esta- duais, como o Saresp, parece ser uma boa estratégia de levar, para a sala de aula e para a prática docente, os conhecimentos trazidos pela avaliação. O trabalho conjunto entre as instituições de ensino superior e as autoridades regionais de educação de Mi- nas Gerais, propiciado pelo Proeb, também é aparente- mente um caminho bastante sugestivo para encurtar a distância que separa a formação dos professores das necessidades reais das escolas, as teorias de ensino e aprendizagem das práticas docentes. Para que os resultados tenham impacto sobre as políticas educativas, é preciso investir pesadamente na análise, compreensão e discussão dos resultados, envolvendo, no processo, todos os atores relevantes, autoridades educativas, professores, pais de alunos e dirigentes. É imprescindível devolver os resultados das avaliações censitárias ou universais para as esco- las, professores e pais de alunos. É fundamental que todos estabeleçam um acordo para enfrentar as defici- ências identificadas e definir ações e estratégias para superá-las. Além da disposição em dar transparência aos re- sultados, os gestores devem investir muito na comuni- cação apropriada e permanente dos resultados para a opinião pública. Apesar de todas as dificuldades e dos obstáculos a serem superados, é certo que a avaliação é um bom caminho para a melhoria da qualidade do ensino. No caso brasileiro, o sistema de avaliação deve compati- bilizar o imperativo da eqüidade, sem a qual não exis- te uma nação propriamente dita, com a diversidade constitutiva de suas dimensões continentais e forma- ção histórica. A integração flexível entre um sistema nacional de avaliação – como o SAEB e a Prova Brasil – e os siste- mas locais ou regionais de avaliação – como o Saresp e o Proeb – parece ser o modelo mais condizente com a estrutura político-administrativa de nossa Federação e com as necessidades da educação brasileira. 16 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Maria do Carmo Brant de Carvalho Mediadora Coordenadora geral do Cenpec, doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Bernardete Gatti Coordenadora do Departamento de Pesquisas Educacio- nais da Fundação Carlos Chagas, consultora da Coorde- nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, membro do Conselho de Administração do Cenpec. Naércio Menezes Economista, professor associado da Universidade de São Paulo, professor titular da IBMEC Educacional S.A., con- sultor da Fundação Itaú Social. José Francisco Soares Estatístico, professor da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, presidente da Associação Brasileira de Avaliação Educacional. 17 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 !VALIA¿»O EM %DUCA¿»O O que a escola pode fazer para melhorar seus resultados? 1uanto a escola contribui para a educação? Os resultados do SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica revelaram que 59% das crianças nas 4as séries não sabem ler. Os resultados do PISA – Programa de Avaliação Inter- nacional de Alunos, realizado em 2003, mostram que 50% dos avaliados estão abaixo do nível 1 de proficiência. O INAF 2001 – Indicador Nacional de Alfabetismo Fun- cional apurou que: 9% da população, entre 15 e 64 anos, está em situação de analfabetismo absoluto; 31% consegue apenas localizar informações em tex- tos curtos; 34% localiza informações em textos de extensão média; 26% é capaz de ir além da localização de informa- ções, comparando partes do mesmo texto ou tex- tos diferentes entre si, realizando inferências e sín- teses. Esses diagnósticos se tornam mais drásticos quan- do se comparam os resultados obtidos por crianças e jo- vens brasileiros com os de outros países. Diante desse quadro, muitas indagações emergem: As iniciativas de intervenção em processos e currí- culos escolares, formação de professores, melhoria salarial, investimentos em infra-estrutura básica e material escolar, ampliação do horário escolar, en- tre outras ações em curso, podem melhorar o ensi- no escolar e proporcionar novos patamares em ter- mos de qualidade da educação brasileira? Os dados divulgados estão gerando recomenda- ções de políticas que alavanquem a melhoria nos resultados? Que estruturas, práticas e recursos escolares podem potencializar o aprendizado de alunos que vivem em contextos de pobreza? Como as escolas, diretores, alunos, pais e professo- res podem participar e aproveitar o conhecimento produzido nas avaliações para, de fato, atuar objeti- • • • • • • • • 18 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 vamente em processos que ajudem a melhorar seus resultados? Com que concepção de avaliação de aprendizagem estão se organizando os Planos e Programas das Se- cretarias de Educação? Que papel têm os diferentes níveis de governo na política de avaliação educacional? A partir desses questionamentos, nossos convidados apresentaram suas considerações, em um tom realista, mas não desesperançoso. Desejamos que este debate contribua para aumentar a nossa esperança de que o poder público crie e implemente políticas que conduzam a um sistema educacional melhor e a uma sociedade com mais justiça socioeconômica. -ARIA DO #ARMO "RANT DE #ARVALHO %SCOLA COMUNIDADE E EDUCA¿»O Para início de conversa, vamos propor alguns ques- tionamentos. O que fazer com as informações Primeira questão: produzimos inúmeras pesquisas avaliativas; realizamos diversos debates em torno delas. Entretanto, esse conhecimento não chega às equipes escolares. Uma enquete, realizada pela Fundação Vitor Civita e pela revista Nova Escola, mostrou que apenas 26% dos professores do país conhecem os resultados de avaliações como o SAEB – Sistema Nacional de Ava- liação da Educação Básica ou o Programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA. Ainda não criamos um meio de devolver os resulta- dos avaliativos para a ponta do sistema e para as comu- • • nidades. Entende-se, por comunidade, não só os pais, as famílias, como também todos os sujeitos do territó- rio em que a escola se insere. Pela ausência deste pro- cesso devolutivo, é possível inferir que os dados avalia- tivos não são apropriados pelos professores, pela esco- la, pelos alunos e pela comunidade, comprometendo-os a alterar o status quo do baixo rendimento escolar das crianças e adolescentes brasileiros. Faltam recomendações Uma segunda questão: os resultados avaliativos sobre o desempenho dos alunos, em geral, constatam o baixo rendimento escolar, mas não fazem recomendações, ou melhor, não mobilizam estratégias para operar mudan- ças nesse quadro desalentador. Também não mapeiam alterações significativas que já ocorrem na gestão em al- guns municípios e escolas. O Cenpec trabalha com cerca de 3.300 municípios brasileiros por meio de diversos programas, entre eles, o Programa Melhoria da Educação no Município (que atinge particularmente os municípios pequenos, situa- dos no chamado “polígono da pobreza”) e o Prêmio Es- crevendo o Futuro, que alcançou, em 2006, 24.533 esco- las. Por meio dessa atuação, temos acesso a inúmeras e excelentes experiências de gestão municipal da edu- cação e a projetos escolares que asseguram a aprendi- zagem. Esse registro avaliativo é muito importante, não apenas para gerar esperança e se sair do imobilismo, como também para explicar e disseminar os fatores do bom desempenho escolar. Família e comunidade Uma terceira questão importante: alguns estudos têm destacado a influência do background sociofamiliar e cultural como fator importante na proficiência dos alu- nos, registrando que o chamado efeito-escola, ou seja, a influência da ação da escola nos resultados escolares é menor do que se imagina. De fato, o efeito-escola, hoje bastante estudado e de- batido entre nós, sinaliza para o efeito relativo que a es- cola tem nos ganhos de aprendizagem de crianças e ado- lescentes. Tais estudos demonstram que o efeito-famí- lia e o efeito-comunidade têm muito peso e influência na aprendizagem dos alunos, considerando tanto os maio- res quanto os menores resultados de aprendizagem. 19 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Comunidades e famílias pouco letradas, com baixa renda e acesso precário a bens e serviços, acabam por interferir nos resultados de aprendizagem de crianças e adolescentes. No entanto, é possível potencializar o efei- to-escola quando a instituição é capaz de se unir à família e à comunidade. O estudo recém-divulgado, Aprova Bra- sil, realizado pelo Ministério da Educação e Unicef, atesta que as 33 escolas pesquisadas (as com melhor desem- penho de seus alunos na Prova Brasil) se tratavam de es- colas, em geral, inseridas em comunidades castigadas pela pobreza, onde o efeito-escola é expressivo porque elas têm equipes docentes estáveis, projetos pedagó- gicos duradouros (contínuos), apostam no aluno e, por fim, mantêm estreita relação com as comunidades, rea- lizando aquilo que mais se almeja: uma comunidade de aprendizagem. Preocupação latino-americana Uma quarta e última questão: ações promissoras. Participei de uma reunião latino-americana sobre edu- cação, realizada em Santiago do Chile, em 29 e 30 de novembro de 2006. Ficou claro que todas as nações la- tino-americanas estão preocupadas com o mau desem- penho escolar em seus países: com o abandono, as de- fasagens de idade-série, a reprovação e a baixa efetivi- dade da escola. Nessa reunião, os ministérios do Chile e da Argenti- na apresentaram novas diretrizes para a melhoria dos resultados educacionais. A Argentina alterou sua LDB, a fim de conceber ações flexibilizadas e compostas com outros espaços de aprendizagem, capazes de assegu- rar, a crianças e adolescentes, a permanência no siste- ma, com elevação de rendimentos educacionais. No Chi- le, propõe-se a criação de um fundo para financiamen- to de ONGs, para que se viabilizem ações complemen- tares à escola. Foram mostrados diversas experiências dos países latino-americanos, cujo resumo pode ser assim expres- so: temos alunos que não respondem ao sistema esco- lar normal e que, às vezes, precisam de ações comple- mentares, para as quais as ONGs estão mais prepara- das, porque conseguem oferecer um atendimento indi- vidualizado a esse adolescente e, com isso, fazê-lo, aos poucos, retornar ou se manter no sistema, aprendendo. Eles reconhecem que retornar ao sistema não é uma coi- sa tranqüila. Querem também trabalhar com a parceria escola- ONG, criando outros espaços de aprendizagem para compor um tipo de articulação e complementaridade que contemple a diversidade, a heterogeneidade de seus alunos. Nós, do Cenpec, no programa Educação e Comuni- dade, estamos procurando uma articulação maior en- tre ONGs e escolas para garantir uma jornada integral de educação. Lá, estão pensando além disso. Eles re- conhecem que algumas crianças e adolescentes encon- tram muitas dificuldades para se manter na escola e al- cançar o rendimento esperado. Foi muito bom ouvir isso porque, quando realizamos o Programa de Aceleração de Aprendizagem para alunos da rede de ensino fundamental no estado de São Paulo e Paraná — e foi para apresentá-lo que fomos convida- dos a participar dessa reunião latino-americana —, uma de nossas avaliações foi a de que a criança ia muita bem no Programa e conseguia dar os saltos necessários. Po- rém, quando regressava à escola regular, recomeçavam as defasagens. Segundo a nossa análise, isso aconte- cia porque a escola não estava capacitada para receber esse tipo de aluno e mantinha seu formato padronizado para ensinar e avaliar. Conhecemos também o sistema nacional de avalia- ção do Chile, chamado SIMCE – Sistema de Medición de la Calidad Educativa. É uma proposta avaliativa se- melhante ao SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e ao ENEM – Exame Nacional do En- sino Médio. O diferencial marcante é que o Chile já inaugurou um processo rico de preparação das escolas para a avalia- ção nacional, assim como introduziu um dia específico do ano (feriado nacional) para dar um retorno desta ava- liação. Nesse dia, cada escola compartilha — com seus professores, alunos, pais e comunidade — o desempe- nho educacional obtido. Os dados nacionais são apre- sentados depois de se categorizarem as escolas confor- me o meio socioeconômico e cultural em que estão in- seridas, portanto, após se considerar a variável “back- ground sociofamiliar” no desempenho escolar. Vale registrar que, para eles, esse retorno, talvez por ser recente, não acontece de maneira tranqüila; não tem funcionado ainda como gostariam. Observou-se que é muito difícil conquistar a adesão das escolas para esse evento. Uma das razões está no fato de que as escolas chilenas recebem recursos financeiros de acordo com o 20 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 número de matrículas. Se elas apresentam o desempe- nho dos alunos para a comunidade e para as famílias, eles podem ser comparados com os de outras institui- ções e, se os resultados não forem bons, as famílias po- dem mudar seus filhos de escola. Assim, há resistência à prestação de contas que, tanto lá quanto aqui, não é tão fácil na rede escolar. Educação integral e ações extra-escolares Por fim, vale comentar outro fato promissor, agora em relação ao Brasil. A Undime – União Nacional dos Di- rigentes Municipais de Educação, em reunião nacional realizada em Brasília, no início de dezembro de 2006, debateu a questão da articulação de redes sociais e as alternativas que viabilizem jornadas maiores de aten- ção diária às crianças, porque tal medida não depende apenas da escola. No debate, todos reconhecem que a expansão do horário escolar, desejada e indicada pelo Plano Nacio- nal de Educação, não é tão fácil de se implantar. Para isso, seria recomendável se fazer uma composição com as demais políticas sociais públicas e superar este mar de setorização. Sugeriu-se a realização de uma reunião no começo de 2007, juntando não só a Undime, como também as outras organizações de dirigentes da assis- tência social, como o Congemas – Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social, e o Co- nasems – Conselho Nacional de Secretários e Dirigen- tes Municipais de Saúde, da área de saúde, e outros or- ganismos que possam representar os gestores munici- pais de Cultura e Esportes. Há programas de grande im- portância educativa em todas essas políticas que pro- movem ações extra-escolares. Esta recomendação é altamente promissora. Todos sabemos que a pouca efetividade das políticas ditas so- ciais tem direta relação com o fato de a sua gestão ser muito setorizada: elas são dominadas pelo corporativis- mo, conduzidas de forma fragmentada e paralela. Essa situação mantém a maioria da população brasileira na condição de pobreza e dificulta seu acesso aos serviços públicos, preserva e reforça a desigualdade. A educação vai melhorar se for compreendida em sua dimensão mul- tidimensional e, portanto, se for articulada e integrada a um projeto de política social mais ampla, com metas cla- ras para o desenvolvimento do cidadão brasileiro. *OSÁ &RANCISCO 3OARES ! ESCOLA COMO TEMPO E ESPA¿O DE EDUCA¿»O O tema proposto para este seminário nos convida a refletir sobre o sentido de algumas palavras — avaliação, resultados e melhoria — todas muito incômodas quan- do relacionadas à educação. Vou concentrar minha aten- ção na educação escolar, aquela parte da educação que ocorre na escola. Recentemente, li um livro, L’obligation de résultats em education, 1 com os artigos apresentados em um simpósio na Universidade de Laval, em Quebec, Canadá. Os diversos autores mostram como são de diferentes origens as dificuldades com o uso da categoria resultados para a análise da instituição escolar e como todos nós que trabalhamos em escolas não fomos preparados para analisar os resultados dos processos escolares. Acostumamo-nos a pensar como cada um desses processos deveria funcionar e quais recursos são necessários, mas não se seus resultados atendem aos alunos e à sociedade. Diferentemente daqueles autores, entretanto, em re- lação ao Brasil de hoje, entendo que é útil e necessário analisar os processos escolares pelos seus resultados. Isso é uma das conseqüências da redemocratização do nosso país. Depois da constituição “cidadã”, é legíti- mo que todos questionem o tipo de serviço que as di- versas instituições prestam: hospitais, órgãos do Esta- do, polícias, comércio e, também, as escolas. Em oposi- ção à opinião de muitos outros comentaristas educacio- nais, creio que a idéia de resultado não está associada a uma visão meramente instrumental da instituição es- colar, que não pode ser reduzida a uma “empresa pres- tadora de serviços”. 21 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Depois, a palavra avaliação. A avaliação começa com a caracterização dos resul- tados escolares. O sistema brasileiro de educação básica conta com milhões de alunos. Nesse caso, só se pode caracterizar o resultado medindo-o. Entretanto, numa sala de aula, onde o aluno pode ser tratado individual- mente, há outras formas mais apropriadas de avaliação do resultado escolar. Costumo dizer que todo estudante tem o direito de ser avaliado, imitando Mário Quintana que, na quadra “Da indulgência”, no livro Espelho Má- gico, diz que tratar a todos igualmente bem é a melhor maneira de desprezar alguém. Ou seja, negar a avalia- ção da aprendizagem a um aluno é uma forma sofisticada de excluí-lo. Isso nos leva, naturalmente, à terceira palavra do nos- so tema: melhoria. Conhecido o resultado da avaliação de um aluno, o que a escola pode fazer para melhorá- lo? Novamente, minha proposta é buscar a justiça. To- dos e cada um dos alunos de uma escola têm o direito de aprender e, constatado que isso não aconteceu, é pre- ciso encontrar o motivo e implementar a intervenção ne- cessária para que a aprendizagem ocorra. Procurarei, nesta minha exposição, explicitar o sen- tido e a relevância educacional dessas palavras para a análise da situação da educação no Brasil de hoje. Educação escolar Todas as sociedades oferecem oportunidades edu- cacionais a suas crianças e jovens com o objetivo de lhes possibilitar a aquisição de competências cognitivas ou não, conhecimentos e atitudes, de forma que possam vi- ver uma vida produtiva e feliz, além de ter uma inserção crítica na sociedade. Nesse sentido amplo, a educação ocorre dentro e fora da escola. A escola não pode excluir qualquer um dos objetivos da educação, mas deve enfatizar a aquisi- ção de competências cognitivas, que não podem ser ad- quiridas em outros ambientes. Trata-se de um equilíbrio necessário, porém difícil. Não é legitimo que um projeto pedagógico, elaborado para um sistema de ensino pú- blico, não explicite que um de seus objetivos é a aqui- sição de competências, como a leitura e a matemática, embora isso seja realidade no Brasil. Pessoalmente, estou tranqüilo, em paz, quando de- fendo que a educação acontece também fora da escola e, portanto, ela é ainda função de outras estruturas so- ciais, contudo, o aprendizado é a ênfase natural da esco- la. Falo de ênfase, não de redução de propósitos a uma única meta. Escolho a escola para meu filho e minha fi- lha pensando nesse compromisso. Entretanto, considerando a história recente das inter- venções pedagógicas implementadas em nosso país, ser progressista atualmente é dizer que todos os alunos de- vem aprender e que o ensino e a aprendizagem devem ser os objetivos da escola. Entre tantas aprendizagens necessárias, pessoalmente, gosto de priorizar a leitu- ra, aceitando a provocativa frase de Ziraldo, em uma de suas crônicas, que afirma: “ler é mais importante do que estudar”, pois, só lendo e entendendo, é que podemos aprender. Diante disso, considero um escândalo o fato de um número enorme de crianças e jovens passar pela escola e pouco aprender. Resultados escolares Quando falo de resultado escolar, refiro-me ao apren- dizado dos alunos. Todavia, não temos acesso direto ao aprendizado, apenas o conhecemos por meio do desem- penho dos alunos em um teste. Portanto, temos apenas uma forma indireta, e muitas vezes precária, de saber se houve aprendizado. Há testes que permitem uma boa vi- são do aprendizado, como o PISA2 e o SAEB,3 embora suas propostas sejam diferentes. Estamos interessados em analisar o desempenho dos estudantes como expressão do trabalho da escola. Aqui, a situação é mais complexa. O desempenho do aluno é fruto não só dos seus esforços individuais, como tam- bém das opções históricas de sua família e da pressão dos grupos sociais de referência. Atribuir pesos a estas diferentes origens não é tarefa fácil. Diante da lista dos aprovados no vestibular das famo- sas universidades, as escolas vão dizer: “Fomos nós’’; os cursinhos também dirão: “Fomos nós’’. Mas talvez os pais devessem dizer: “Fomos nós’’, e, certamente, cada aluno pode dizer: “Foi o meu esforço”. Na realidade, sabemos hoje que o desempenho aca- dêmico é devido à ação concomitante de todas essas es- truturas. É quase impossível separar a contribuição es- pecífica de cada uma. No entanto, quando isso é feito, por meio do uso de modelos estatísticos, verifica-se que a maior parte da variação nas notas dos alunos em um teste está associada aos fatores extra-escolares. Isso é equivocadamente resumido na frase: “a escola não faz 22 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 diferença”, como se fosse possível aprender sem fre- qüentar uma escola. Idealmente, uma escola deveria ser avaliada pelo que acrescentou a cada um de seus alunos, conside- rando-se seu conhecimento individual ao ser admitido. Isso implica um acompanhamento dos alunos ao longo do tempo. Ou seja, para se verificar, de fato, o efeito da escola, é preciso olhar a trajetória de seus alunos para valorizar a diferença entre o que sabiam antes e o que sabem agora. Há crianças com histórias de vida com tanta exclu- são que, necessariamente, sua trajetória até o apren- dizado será mais longa, muito mais difícil. Há muitos exemplos de projetos pedagógicos bem-sucedidos, que conseguiram levar os seus alunos mais longe. São as boas escolas. No entanto, se não posso deixar de considerar a tra- jetória, também não posso deixar de observar até onde a criança chegou. Se não houve aprendizado, houve uma falha da escola. Aprender é direito da criança. Adiante, tratarei um pouco mais da questão do desem- penho, sua medida e uso. Mas este é um tema mais am- plo, impossível de se esgotar em uma conversa como esta. Quero apenas assinalar: medir o desempenho por meio de um teste — SAEB, ENEM, vestibular etc. — sem se fazer a necessária contextualização pedagógica é má prática acadêmica. Avaliar ensino e aprendizagem Como já disse, a primeira etapa da avaliação é a medida dos resultados. Se vocês aceitaram a forma como eu ana- liso os resultados, o fato de eu defender a necessidade de medir resultados escolares não deve criar tanta resis- tência, como é usual em uma platéia de educadores. Mas medir não é avaliar, para isto, é necessário as- sociar os resultados observados aos processos — e, na escola, o processo central é o de ensino-aprendizagem. São muitos os processos em uma escola e, por isso, di- ferentes devem ser os olhares sobre essa estrutura. Alguns analistas, não educadores, com freqüência di- zem que a escola é apenas mais um exemplo de uma “in- dústria de serviços”. Com isso, querem se apropriar dos mesmos esquemas utilizados para bancos, restaurantes, clubes esportivos para pensarem sobre a escola. Não gos- to disso. Para mim, a escola é uma interação entre pesso- as, cuja finalidade é o aprendizado — algo especial. Por outro lado, a instituição escolar tem seus proces- sos de limpeza, secretaria, manutenção, atendimento às famílias; além de contabilidade e estrutura administrati- va, como qualquer outra organização. Não há motivo al- gum para negligenciar esses processos, tanto dentro da escola quanto fora dela. Mas, quando falamos de ava- liação escolar, tenho que privilegiar o processo de ensi- no e aprendizagem e reconhecer que alguns deles regis- tram ótimos resultados. Essa forma de pensar precisa ser aceita com mais tranqüilidade dentro da escola. Mesmo quem não defen- de o aprendizado como o resultado maior de uma esco- la ganharia se pensasse em como obter os outros resul- tados que privilegia. Medir para monitorar e entender Em ambiente de educadores, há usualmente rejeição às medições. Por isso, sempre tenho de justificar sua ne- cessidade e importância. Novamente, busco a justificati- va na organização democrática de nossa sociedade. To- dos os alunos devem ser considerados. Mas como fazer isso se somos muitos, milhões mesmo? A única maneira é medir, de forma padronizada, os resultados e compará- los com os pretendidos pelo sistema de ensino. Interessante que outras áreas sociais, como a saúde, já superaram a aversão ao indicador. Percebam que não há crítica ao uso de medidas para avaliar a mortalidade infantil e a esperança de vida na análise da situação de saúde de um grupo populacional. Como disse na introdução, se estou em uma sala de aula, onde posso, por meio da observação, conhecer o aprendizado de todos os alunos, não preciso e não devo medi-lo; contudo, para determinar se um sistema educa- cional, que reúne milhares de alunos, está funcionando, é preciso criar uma medida. Há medidas de resultados para o monitoramento do sistema e para o entendimento ou explicação desses re- sultados. O SAEB, por exemplo, é voltado para o monito- ramento do sistema de educação básica brasileira. His- toricamente, foi muito ruim a utilização da palavra “ava- liação” no seu nome, sugerindo assim que pode fornecer mais do que foi planejado. Com ele, situamo-nos em ter- mos de aprendizado. Mas também deveríamos saber quais objetivos deve- ríamos ter alcançado e por que estamos nessa situação. Responder a essas perguntas exige outras medidas im- 23 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 possíveis de serem obtidas em um levantamento base- ado na idéia de que o monitoramento vai conseguir re- solver o problema. Para entender a situação, não podemos depender apenas do dado coletado para outras finalidades — os dados obtidos nos vestibulares, por exemplo, são po- bres, pois sua única finalidade é a seleção. Precisamos de pesquisa educacional empírica, que é longa, coope- rativa e cara. Infelizmente, o Brasil tem pouca tradição em pesquisas desse tipo. Nosso grupo de pesquisa, que conta com colegas de quatro outras universidades, participa do projeto Geres – Es- tudo Longitudinal da Geração Escolar 2005. Estamos acom- panhando mais de 20 mil alunos das séries iniciais do en- sino fundamental, para entender as atuais dificuldades da alfabetização. Precisamos, na pesquisa educacional, perder o medo da medida, colocando-a no seu devido lugar: quan- do o foco é o monitoramento, ela serve para conhecer os re- sultados; quando procuramos a explicação, auxilia para a indicação não-viciada de boas práticas e políticas. O bom uso das medidas A comparação dos resultados entre escolas semelhan- tes é um exercício sempre útil. Comparações bem-feitas são fonte de conhecimento. Por exemplo, ao analisar os resultados das escolas de Belo Horizonte que aten- dem a alunos de mesmo nível socioeconômico, encon- trei diferença equivalente a dois anos de escolarização. Este é um dado que poderia ser usado para a melho- ria de muitas escolas. Se algumas delas podem pro- duzir um bom resultado, o que impede as outras de também o fazerem? Um importante exemplo internacional vem do Chile. Lá, são três os tipos de escolas: as públicas, administradas por sistemas públicos, como aqui; as escolas privadas, mantidas pelo Estado; as escolas privadas pagas pelos próprios alunos. Mesmo com a possibilidade de seleção dessas escolas, a comparação dos resultados não lhes foi favorável. A importância da escola Pode parecer estranho, mas é necessário enfatizar a importância da instituição escolar. Muitos educadores • • • falam da escola como se ela fosse dispensável para os objetivos maiores da educação. No entanto, em uma sociedade desigual, como a brasileira, com milhões de crianças e jovens que precisam que as suas necessida- des cognitivas sejam atendidas, penso que é irresponsa- bilidade cívica sugerir que a escola não é necessária. Na sua ausência, apenas alguns poucos, os filhos dos privi- legiados, serão contemplados. Em contraposição, creio que precisamos de uma escola aberta a todos e em que todos aprendam. Sua construção é nosso desafio. Para isso, vamos ter que jogar fora algumas concep- ções, começando com certos determinismos, de esquer- da e de direita. Bourdieu é um sociólogo francês que, embora com uma produção acadêmica rica e complexa, é citado ape- nas quando se quer dizer que a escola é somente repro- dutora das diferenças sociais. Levada ao pé da letra, esta idéia é, desculpe-me a força da expressão, “castrante”. De que maneira ter, como opção de vida, a participação em um projeto escolar, se essa instituição reproduzirá as diferenças sociais existentes? No outro extremo político, há os resultados da pes- quisa de base econométrica americana, afirmando que a escola faz pouca diferença e que mais recursos nela aplicados também não produzirão os resultados dese- jados. Esses estudos foram realizados em um país onde as escolas têm todos os recursos pedagógicos necessá- rios. Não se podem aplicar esses resultados cegamen- te ao Brasil, onde as carências escolares são tão gran- des ainda. Contrapondo-se a essas posições pessimistas e, no fundo, simplistas, surgiu a pesquisa sobre o efeito da es- cola e da escola eficaz. É uma linha de pesquisa ainda pouco difundida no Brasil e ampla demais para ser sin- tetizada em uma fala como esta. Minha inserção nesta temática, entretanto, influencia minhas posições. Há, no Brasil, uma forte corrente que advoga que a mudança da escola será obtida pela ação sobre um úni- co aspecto. O mais freqüentemente escolhido é o “treina- mento” dos professores. Enormes recursos já foram gas- tos com essa opção, politicamente atraente. No entanto, para o aluno aprender não basta que o professor saiba; a escola precisa funcionar. Escolas diferentes funcionam de forma diferente. Alguns exemplos mostram que elas podem melhorar, como percebi na minha pesquisa so- bre as escolas públicas de Belo Horizonte. 24 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Matrizes para uma nova escola Preliminarmente, é preciso enfatizar que não há um único caminho. A padronização, idéia muito cara para os consultores que trabalham com a melhoria da quali- dade de produtos industriais, não se aplica bem às es- colas. Entretanto, há pesquisas e sólidas evidências em- píricas que devem ser consideradas para se buscar o ca- minho apropriado a cada escola. Mas, antes de elaborar essa idéia, é preciso rebater o conceito da especificidade radical da escola, tese tão cara a muitos colegas. Ao se basear nessa visão, assume- se que nada do que foi feito fora das fronteiras de minha escola é relevante. Na realidade, a literatura mostra exa- tamente o contrário, e traz muitos exemplos de sucesso a partir do uso da experiência alheia. Identifico três matrizes de pesquisas que podem ser utilizadas, com sucesso, para a escolha do nosso plano de ação para a intervenção escolar. Novamente, descre- ver detalhadamente cada uma delas ultrapassa os limites impostos a esta apresentação. Naturalmente, todas têm suas potencialidades e limitações. A primeira matriz está relacionada à influência geren- cial, e a sua linha básica de ação é o empoderamento da direção da escola. Ela teria o poder de contratar profes- sores, escolher as formas de ensino, controlar o seu orça- mento. Essa linha de pensamento também absorve muito da teoria das organizações; seus diferentes modelos de gestão são adequados para uma organização tão especí- fica como a escolar. Uma segunda linha são as escolas eficazes. Essa li- nha de pesquisa iniciou-se logo após a publicação do Relatório Coleman,4 em um esforço de mostrar que as suas conclusões eram equivocadas. Escolas considera- das capazes de obter bons resultados foram seleciona- das e, por meio de estudo de caso, identificadas suas ca- racterísticas. Há hoje muita literatura sobre o tema. Entre- tanto, ela tem sido difundida muito lentamente no Bra- sil. No entanto, durante a vigência do Fundescola – Fun- do de Fortalecimento da Escola, uma atividade denomi- nada PDE – Plano de Desenvolvimento da Escola procu- rava disseminar, por meio de uma metodologia participa- tiva, essas idéias nas escolas públicas, na área de atua- ção daquele programa. Atualmente, no Brasil, há uma terceira matriz difu- sa que é chamada de construção do projeto político-pe- dagógico da escola. A idéia básica é que a escola deve construir seu plano de ação, ouvindo seus alunos, pais e professores. Essas atividades são organizadas em “constituintes” escolares. Com freqüência, essa abor- dagem fez com que a discussão pedagógica desapare- cesse diante da dimensão política. Como quem lidera o processo é a corporação dos professores, o resulta- do é uma enorme complacência com a ausência de re- sultados escolares. Essas três matrizes de pensamento sobre como orga- nizar uma transformação escolar ainda não receberam, no Brasil, a atenção devida. Assim, não podem ser ava- liadas pelos seus fracassos. Entendo que é preciso es- tar aberto a todo o conhecimento acumulado na área e fazer as opções mais adequadas e viáveis para a esco- la real. Não se podem excluir idéias, mas as escolhas para uma escola específica exigem coerência. Tenho dúvidas, entretanto, se é viável que uma es- cola crie e implemente uma nova proposta de ação ao mesmo tempo que executa o projeto atual. Entendo que é função dos órgãos centrais dos sistemas e das ONGs oferecerem opções, esqueletos de propostas que seriam concretizadas pela comunidade escolar. As três matri- zes de pensamento são muito adequadas para planejar uma nova escola, mas não necessariamente para mu- dar uma já existente. Construir uma comunidade educativa Entretanto, alguma atitude concreta deve ser adotada em relação às escolas. Prescrever a construção de um projeto completamente novo, articulado, é fugir da re- alidade. Assim, listo algumas idéias que, entendo, de- vem circular mais e influenciar a quem está na organi- zação dos sistemas e na direção das escolas. Entre as idéias que fico “martelando”, a primeira é a necessidade de aumentar a autonomia da escola. Hoje, nos sistemas públicos, o usual é esperar que as iniciativas venham das secretarias, para serem critica- das. Um amigo meu estava no governo e, orgulhosa- mente, mostrou-me um folheto que enviava para todas as escolas, solicitando que elas limpassem as calhas dos prédios escolares porque ia chover e, no ano ante- rior, tinha havido muita reclamação sobre as goteiras. Se a escola não tem iniciativa ou recursos para cuidar de algo tão previsível, como preparar o prédio para as 25 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Série Níveis de desempenho Abaixo do Básico Básico Satisfatório 4a E.F. 51,6 19,4 29,0 8a E.F. 57,1 28,2 14,7 3a E.M. 79,1 14,0 6,9 chuvas, é difícil imaginar que cuidará de obter melhores resultados para seus alunos. Meu segundo conceito é também muito simples: rotina, infelizmente, uma palavra politicamente incor- reta. Mas precisamos ter as escolas funcionando com seus ritos e ritmos identificados. Nesse sentido, é im- portante tratar, de forma mais evidente, o enorme ab- senteísmo de alunos e professores. Uma aluna men- cionou que, em um dia de dezembro de 2006, falta- ram sete professores, dos 15 de sua escola. Como fun- cionar dessa forma? Além da rotina, é preciso preser- var um grupo estável de trabalho em cada escola. Nas grandes cidades, a mudança é de tal ordem que, a cada ano, parece uma escola nova. Há um outro conceito que tenho defendido: a esco- la tem de estar conectada com a comunidade à qual ela serve e lhe dar as devidas explicações. A escola preci- sa dizer: “Eu faço isso, mas não dá pra fazer aquilo’’. Ela deve estabelecer uma linha de comunicação direta e mais tranqüila com a comunidade, e vice-versa. Sua atenção deve estar voltada para o aluno real. É má idéia imagi- nar que, por exemplo, 180 escolas usarão a mesma pe- dagogia. Elas são diferentes. Vejam esta questão com a qual nos deparamos em Belo Horizonte: o aluno da grande periferia da cidade. Esse tipo de aluno nunca esteve na escola. Não sabe- mos o que fazer exatamente com ele. A solução parece caminhar na direção de juntar os conteúdos a ativida- des como o esporte, o que implica a ação conjunta da educação e da assistência social. Para isso, precisamos de uma pedagogia específica. Ela necessita existir, es- tar sacramentada e ser reconhecida. A escola particu- lar está trabalhando nesse sentido. Apoio: as secretarias de educação existem para aju- dar as escolas e não para fazer exigências pouco razoá- veis. Isto não ocorre, entretanto, na prática. As pessoas que trabalham nas secretarias mantêm processos que be- neficiam a elas mesmas. Estudos comparativos mostram que isso não é privilégio da escola brasileira. O sistema católico de Los Angeles, constatou-se, tinha um décimo do número de pessoal alocado à supervisão do sistema público. Provavelmente, isso está acontecendo no Brasil: temos muito mais gente trabalhando na supervisão. Para melhorar, a escola precisa se transformar numa comunidade educativa. Não é simples, mas acredito que é exatamente por aí que chegaremos aos melho- res resultados. As formulações participativas instituí- das, como os colegiados de pais, mostram que esta é uma direção que deve ser seguida. A comunidade não conhece a escola Embora nossa escola pública possa ser melhor e o conhecimento necessário para isso já esteja desenvol- vido, há sérias dificuldades que impedem sua transfor- mação. Talvez a maior seja a tradição de o professor, o funcionário público e o gestor do sistema não percebe- rem que a escola existe em função do aluno. Aos pou- cos, foram sendo criadas vantagens, consagradas em leis e rotinas, sem a consideração deste fato simples: o aluno é a justificativa da existência da escola. Mudar isso é muito difícil — por exemplo, deixar de conside- rar normal que um professor possa faltar sem qualquer explicação. A escola tem muitos problemas que não são dela. De- senvolvemos cidades que são muito pouco razoáveis. Como é que você vai fazer uma escola funcionar num lu- gar que, no fundo, no fundo, é inabitável? Perdemos a noção de como poderia ser uma cidade plausível. Nós nos lembramos disso quando vemos, na televisão, a se- leção brasileira naquela cidade da Alemanha, e pensa- mos: “Gozado, as pessoas andam na rua... naquela área, o carro não entra...”. Eu não sei como enfrentar estas dificuldades, em- bora novamente insista que os dados apontam que é possível melhorar os resultados da escola real. Mas, no fundo, a população está satisfeita com a péssima es- cola que a atende. Desconsidera a urgência educacio- nal que temos. Termino com os dados de desempenho do SAEB, que falam por si. Nossos alunos vão à esco- la, mas não aprendem. Urgência educacional PORTUGUÊS – SAEB 2003 26 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 MATEMÁTICA – SAEB 2003 Há uma urgência educacional. Precisamos atingir um nível básico satisfatório na educação. Vamos consi- derar o caso da leitura. Uma prova, qualquer que seja ela, parte de um tex- to, começa com uma leitura. O SAEB não é uma prova de Língua Portuguesa, é uma prova de leitura. Dá-se um texto e a criança lê. Um tex- to básico, extremamente simples. E qual é o resultado? Em Língua Portuguesa, a maioria dos alunos — 55,4% — está abaixo do básico. Eu não consideraria essas pessoas analfabetas... En- tretanto, utilizando uma metáfora da área de saúde, eu diria que esse problema com a leitura é uma epidemia que precisa ser erradicada. Uma das razões para isso é que não é possível se pensar em cidadania se esses alunos não entendem o que lêem. Precisamos avaliar para mudar esse quadro. Preocu- pamo-nos com o resultado, porque, se não corrigirmos essa deficiência, não vamos conseguir ensinar direito. A atual situação faz com que tenhamos que cami- nhar. Não podemos ficar parados, achando que tudo vai se resolver por si. Notas 1 LESSARD, Claude; MEIRIEU, Philippe. L’obligation de résultats en éduca- tion – Évolutions, perspectives et enjeux internationaux. Première edition. Editions de Boeck, 2005. p. 342 (Collection Perspectives en éducation et formation). 2 PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos. O PISA é um programa internacional de avaliação comparada, cuja principal finalidade é produzir indicadores sobre a efetividade dos sistemas educa- cionais, avaliando o desempenho de alunos na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. Esse programa é desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, havendo em cada país participante uma coordenação nacional. No Brasil, o PISA é coordenado pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira”. As avaliações do PISA incluem cadernos de prova e questionários e acon- tecem a cada três anos, com ênfases distintas em três áreas: Leitura, Mate- mática e Ciências. Em cada edição, o foco recai principalmente sobre uma dessas áreas. Em 2000, o foco estava na Leitura; em 2003, a área principal foi a Matemática; em 2006,a ênfase da avaliação foi em Ciências. Alguns elementos avaliados pelo PISA, como o domínio de conhecimentos científicos básicos, fazem parte do currículo das escolas, porém, o PISA pretende ir além desse conhecimento escolar, examinando a capacidade dos alunos de analisar, raciocinar e refletir ativamente sobre seus conheci- mentos e experiências, enfocando competências que serão relevantes para suas vidas futuras. Em 2003, participaram do PISA 250 mil adolescentes, com 15 anos de idade, em 41 países, 30 deles são membros da OCDE e os demais, convidados. Da América Latina, participaram Brasil, Uruguai e México. Em 2006, o Brasil participou pela terceira vez do programa, com mais cinco países latino-americanos: Argentina, Chile e Colômbia, além de Uruguai e México. Ver em: . 3 A partir de 2005, o SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica passou a ser composto por duas avaliações: a Avaliação Nacional da Educação Básica – ANEB e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar – Anresc. A ANEB é realizada por amostragem das Redes de Ensino, em cada unidade da Federação, e tem foco nas gestões dos sistemas educacionais. Por manter as mesmas características, a ANEB recebe o nome do SAEB em suas divulgações; A Anresc é mais extensa e detalhada que a ANEB e focaliza cada unidade escolar. Por seu caráter universal, recebe o nome de Prova Brasil em suas divulgações. Ver em: . 4 O Relatório Coleman apresenta os resultados de uma pesquisa, realizada nos anos 1960 com alunos norte-americanos, que gerou reações de desânimo entre os educadores, pois parecia concluir que a escola teria pouco impacto no desempenho dos alunos ou que “as escolas não fazem diferença”, como se costumava comentar na época. .AÁRCIO -ENEZES 0ARA ALÁM DAS SALAS DE AULA Círculo Virtuoso A educação passará a ser mais valorizada pelos pais, que passarão a demandar educação de mais qualidade e contro- lar a presença do professor, que passará a ensinar melhor e ganhar melhores salários, o que vai melhorar ainda mais a qualidade da escola. Ester Duflo, 2006. Na raiz da desigualdade social Sempre me incomodou o problema da desigualdade social no Brasil. Desde minha graduação em economia, eu tinha vontade de entender melhor porque o Brasil é Série Níveis de desempenho Abaixo do Básico Básico Satisfatório 4a E.F. 55,4 19,0 25,6 8a E.F. 45,6 34,3 20,1 3a E.M. 38,6 34,5 26,9 27 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 superior. Algumas pessoas até ingressam no ensino su- perior, uma pequena porcentagem. Porém, elas desistem rapidamente, muitas vezes porque não têm os recursos necessários para pagar a faculdade. A renda média no Brasil é de R$ 500,00 por mês. E então, pensei: “Em grande parte, o problema de freqüência, matrícula e permanência, até o ensino mé- dio, já está sendo resolvido’’. Agora, falta resolver o problema básico: a qualidade da educação. Surgiram estudos, nos Estados Unidos, mostrando que, para es- timular o crescimento econômico dos países, mais im- portante do que a média dos anos de escolaridade da população é a qualidade da educação. E qualidade é o que se avalia nos exames de proficiência. Perguntei-me: “Como é a qualidade do ensino no Bra- sil? Há algum indicador?”, porque os economistas preci- sam de números, de indicadores, senão eles não conse- guem trabalhar. É uma limitação da área. Descobri os dados do SAEB, do ENEM... Ao mesmo tempo, começaram a ser divulgados, cada vez mais, os índices de exames de proficiência. “Pronto, agora tenho meus indicadores”. “Eles ainda são limitados, mas, ao menos, podemos fazer alguma coisa com eles”. Come- cei a analisar os dados... É assim: a gente começa com o problema da desi- gualdade social, vai caminhando, caminhando, e chega à qualidade da educação... Mau desempenho internacional Vamos agora aos dados. A proficiência, de acordo com o SAEB, vem caindo. Conforme o SAEB de 2003, na 4a série: 12% dos alunos têm desempenho muito crítico; 40%, crítico; outros 40%, intermediário; apenas 8%, adequado. Ou seja, mais de 50% dos alunos da 4a série tiveram desempenho crítico ou muito crítico. Isso significa que, basicamente, eles não sabem fazer contas de multiplica- ção, ver as horas no relógio, coisas desse tipo. Aqueles com desempenho intermediário já avançam um pouco mais, ainda assim não conseguem fazer mul- tiplicação com três algarismos. Quer dizer, é menos do que se espera no sistema. Se você analisar também a 8a série, há cerca de 60% dos alunos situados no nível muito crítico e crítico. E, no • • • • um dos países mais desiguais do mundo; porque tão poucas pessoas se apropriam de uma parcela tão gran- de da renda, ao passo que a maioria vive numa situa- ção de pobreza. Para responder a estas perguntas, fui estudar. Fiz meu doutorado no exterior, voltei, aprendi técnicas estatísti- cas, de econometria. E pensei: “Agora que tenho um ins- trumental, vou tentar entender o problema’’. Comecei analisando a distribuição de renda no Brasil. Em todos os lugares em que eu pesquisava, a educação aparecia como principal fator para explicar a desigualda- de. As diferenças educacionais entre as pessoas justifi- cam cerca de 50% da distribuição de renda do Brasil. Então, em tese, se dermos a mesma educação para todo mundo, uma coisa impossível, a desigualdade de renda se reduziria em 50%. Esta é a primeira conclusão a que cheguei. Por quê? Porque aqueles que se educam mais têm um salário muito maior, e porque pouca gente atingiu, por exemplo, o ensino superior no Brasil. Historicamente, o país avançou muito pouco em ter- mos educacionais. Países como a Coréia, Chile e Argen- tina colocavam as crianças na escola muito mais cedo, e elas permaneciam lá por muito mais tempo. O Brasil, apesar de ter uma população bem maior, nunca se pre- ocupou em criar um sistema adequado ao desenvolvi- mento educacional. Por isso, pouca gente se educou for- malmente. Um dos resultados é esta grande desigual- dade de renda. É fascinante tentar entender a qualidade da edu- cação. Nós temos indicadores que permitem uma boa análise da situação. Então, fiz a pergunta crucial: “Como podemos melhorar este quadro?’’. Quantidade e qualidade Nos anos 1990, tivemos uma melhora educacional muito rápida no Brasil, em termos quantitativos, no que diz respeito à matrícula e à freqüência. O porcentual das pessoas que atingiram o ensino mé- dio era cerca de 20% na geração nascida em 1970. Entre os nascidos em 1972, que têm 34 anos agora, 55% pas- saram pelo ensino médio. Quer dizer, houve um aumen- to extraordinário na matrícula no ensino médio. Refleti: “Estamos avançando bem”. Mas notei um pro- blema grave: a transição do ensino médio para o ensi- no superior continua estagnada, porque há muita gente chegando ao ensino médio e pouca entrando no ensino 28 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 3o ano do ensino médio, ainda mais: cerca de 70%. Quer dizer, os alunos estão indo muito mal nesses exames. O PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alu- nos é um caso preocupante. Neste teste internacional, rea- lizado em vários países em 2003, os alunos brasileiros tive- ram o pior desempenho. O Brasil foi o último colocado. A maioria desses países é da OCDR – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. São países mais desenvolvidos. Talvez não esperássemos que o Brasil tivesse um nível como o deles, mas lá estão também o México, o Uruguai, alguns países menos de- senvolvidos que, ainda assim, obtiveram melhor resul- tado do que o Brasil nos testes de matemática. Se con- siderarmos só os alunos de elite, os 5% de melhor de- sempenho em cada país, o Brasil também está entre os últimos nesse teste internacional. Quer dizer, nem mesmo os melhores alunos brasileiros estão indo bem. Há alguma coisa muito errada com o ensino do Brasil. Por que os alunos brasileiros são os piores?... maria do carmo brant de carvalho — Achei inte- ressante a análise que o INEP - Instituto Nacional de Es- tudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira fez sobre o PISA: como os exames são todos para adolescentes de 15 anos, há uma séria distorção na relação idade-série escolar. Dependendo do país, os alunos de 15 anos po- dem estar na 6a, 7a ou 8a série. Os alunos de 15 anos, nos Estados Unidos, estão no ensino médio... naércio menezes — É verdade. Vou até mostrar um dado que corrigi exatamente por causa disso. Esta é uma distorção do PISA. Eu ia justamente tocar nes- se assunto. Em outros países, a criança chega aos 15 anos sabendo muito mais do que as nossas. As crian- ças brasileiras, muitas vezes, entram mais velhas nas escolas ou repetem muito e não chegam à série com a idade adequada. Isso é uma das explicações possíveis para o mau resultado do Brasil. Mas há uma deficiên- cia real: as nossas crianças alcançam os 15 anos saben- do muito menos do que as crianças com a mesma ida- de em outros países. Mesmo comparando nossa elite econômica com a de outros países, o Brasil fica em último lugar, próximo de Tunísia, Indonésia e México. Isso é intrigante. Ao estudar a nossa distribuição de renda, aprendi que a elite conse- gue preservar muito bem seus interesses: ela matricula seus filhos nas melhores escolas e consegue os melho- res empregos. E isso também é reflexo da nossa péssi- ma distribuição de renda. Contudo, no geral, o desempenho dos alunos da elite também é muito ruim. Precisamos analisar com cuidado essas informações. Se isso for verdade, então temos um problema geral com o método de ensino brasileiro que se reflete na baixa qualidade, na medida em que até os filhos da elite vão mal. O efeito-escola Vamos então ao efeito-escola, o centro da minha apre- sentação. Temos um banco de dados com as notas de todos os alunos, uma amostra de escola por estado. Portanto, po- demos verificar de quanto é essa variação de notas dentro de escolas e de quanto ela é se for feita uma comparação entre as escolas. Não precisamos de qual- quer teoria, de qualquer modelo econômico. Basta olhar os números e fazer um exercício simples de ma- temática, estatística. Cerca de 20% a 30% da diferença entre as notas dos alunos ocorre entre as escolas, o restante, 70% a 80%, dentro delas. Há todos os outros fatores sociais envol- vidos nessa equação, a escola não é a única responsá- vel pelo desempenho do aluno. Você pode ter uma vi- são otimista e pessimista sobre isso. Pessimista: isso é pouco, se você aprimorar muito a escola, só vai me- lhorar o desempenho dos alunos em 20% ou 30%. Na visão otimista, podemos pensar que esse efeito é gran- de. Além disso, os alunos de hoje serão os pais de ama- nhã. Então, o efeito na escola atual vai operar na famí- lia de amanhã. Em longo prazo, esse efeito é bem maior do que 20%. Por isso, é óbvio que vale a pena investir na escola. Essa análise é só para a gente ter noção de que, mesmo melhorando bastante a escola, o alcance dessa ação, em curto prazo, no desempenho dos alunos, é limitado. Além disso, é importante comparar escolas públicas e privadas. A gente sabe que as escolas privadas no Bra- sil são melhores do que as públicas. Em média, os alu- nos da escola privada no Brasil têm um desempenho 20% superior aos alunos da escola pública. Mesmo des- contando todos os efeitos familiares, de livros em casa, computador, automóveis, educação dos pais, tudo. E isso eu atribuo à gestão mais eficiente na escola privada do que na pública. Esse aspecto varia muito de estado para estado. Em alguns estados, como Pará e Tocantins, a melhor escola 29 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 pública — quando você elimina os fatores familiares — é melhor do que a melhor escola privada. Mas a pior es- cola pública é muito pior do que a pior escola privada. É interessante perceber que, na mesma rede, no mesmo estado, você tem escolas públicas muito boas, melho- res do que as privadas, e escolas muito ruins. Seria in- teressante saber o que determina que algumas escolas da mesma rede tenham um desempenho tão bom e ou- tras, um desempenho tão ruim. Há uma diferença muito grande entre as escolas, e isso significa pontos no SAEB. Vamos ver São Paulo: a pior escola pública tem desempenho de 40 pontos abaixo da média e a melhor, 40 pontos acima da média. São 80 pontos e isso representa uma enormidade na 4a quar- ta série, corresponde a mais do que quatro anos de es- colaridade. Por que a desigualdade é muito grande? Se se conse- guisse tirar o aluno da pior escola e colocá-lo na melhor, ele daria um enorme salto na proficiência. Então, o fato de a escola ter peso de só 30% não sig- nifica que ela não faz diferença. Significa que a heteroge- neidade, antes da escola, é enorme no Brasil, e é aí que esses 30% causam um impacto muito grande. Assim, se melhorarmos a escola hoje, teremos um im- pacto muito forte no futuro. Quanto antes interviermos, principalmente na pré-escola, melhor. Isso é o que eu estou mostrando. Quanto mais tarde, mais difícil será consertar uma escolaridade que já começou atrasada. Há vários estudos mostrando que, quanto mais a crian- ça é exposta a problemas que ela não consegue resol- ver, mais difícil sua aprendizagem, e ela tende a desis- tir do estudo. Um outro aspecto: é importante ressaltar que não há correlação entre gastos e proficiência. Os estados que gastam mais em educação têm os alunos com pro- ficiência maior. Entretanto, para se atingir uma profici- ência de 240, pode-se gastar R$ 400,00 por aluno/ano ou R$ 1.000,00 por aluno/ano. O que significa também que é muito importante a maneira como se usam os re- cursos, assim como a maneira como se motivam os pro- fessores, os diretores. Tudo isso é fundamental para ex- plicar o desempenho escolar. Vamos pensar em uma possível avaliação da proposta de educação integral. Os dados do SAEB não informam se o aluno freqüenta outras atividades em ONGs, mas mostram quantas horas os alunos permanecem na es- cola. E podemos usar esta informação para tentar ima- ginar como seria a avaliação quantitativa de um projeto de educação integral. Segundo o SAEB, nas escolas municipais: 48% delas, no Brasil, têm quatro horas ou menos de aula; 47% têm entre quatro e cinco horas; 5% têm mais do que cinco horas. Essa informação foi dada pelo diretor da escola, por- tanto, deve corresponder à realidade. Nas escolas esta- duais, é muito parecido: nas particulares, a maioria tem até quatro horas de aula; e, nas federais, que têm um desempenho muito bom, a maioria recebe entre quatro e cinco horas de aula. Então, será que aqueles alunos que têm mais horas/aula apresentam um desempenho melhor nos exames de proficiência? Analisando o SAEB, percebemos que aquelas escolas que oferecem entre quatro e cinco horas — ou até mais do que cinco horas — têm um desempenho positivo e significativo. Mesmo controlando todos os outros fato- res, pode-se afirmar que o aluno que passa mais horas na sala de aula aprende mais. A participação da família Outra variável de grande impacto é a família. Os alu- nos cuja mãe tem escolaridade elevada apresentam um desempenho muito superior, o que é esperado. José Francisco Soares disse que essas crianças já che- gam com background familiar: algumas freqüentaram a creche e outras não; algumas, a pré-escola; outras ti- nham pais que incentivavam os estudos, a leitura, e ou- tras, não. Tudo isso vai se acumulando. Então, chega-se à 4a série. Os dados estão mostrando que há uma dife- rença muito grande dentro de uma mesma escola, pro- veniente da criação, da formação familiar, das diferen- ças de aptidão. Essas diferenças podem estar influindo nas desigualdades. • • • /S ALUNOS CUJA M»E TEM ESCOLARIDADE ELEVADA APRESENTAM UM DESEMPENHO MUITO SUPERIOR O QUE Á ESPERADO 30 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Uma variável importante é a quantidade de livros que o aluno tem em casa. Se há mais de 20 livros em casa, seu de- sempenho é superior. Se ele trabalha, o desempenho cai. Outro fator relevante são as suas expectativas com relação à vida. Se o aluno quer continuar estudando no futuro, terá um desempenho muito melhor. O que concluímos? Como disse, há escolas boas e ruins dentro da mesma rede. Então, só pode ser um pro- blema de gestão. Por isso, é preciso aumentar a partici- pação dos pais, a divulgação dos resultados do tipo Pro- va Brasil. Hoje, todo pai que tem um filho na escola pú- blica pode acessar a Internet, ver a nota média da escola do seu filho e comparar com a nota dos alunos das es- colas próximas da mesma região. Para os pais pobres, sem acesso à Internet, acho que eles deveriam receber uma carta do INEP, informando o desempenho da escola de seu filho e o das escolas da mesma cidade, para eles poderem comparar. Permanência na escola Como é que podemos melhorar? Quando selecionamos algumas notas dos alunos e tentamos explicá-las a partir de uma série de caracte- rísticas: dos alunos, das escolas, dos professores, dos pais, dos diretores, o que vemos não é uma casualidade. Onde estão os melhores alunos? Em que escolas? Quais as características dessas escolas? Esta é a melhor ma- neira de interpretar esses dados. Concluímos, por exemplo, que o principal impacto no desempenho escolar é o número de horas que o aluno permanece na escola. O tempo faz a diferença. Outra variável que eu investiguei foi “o tamanho da classe”. Ele não parece muito importante quando você controla uma série de outras características, como a do background familiar. Então, o que temos de fazer? Se acreditarmos nes- se resultado, precisaremos aumentar o número de ho- ras que os alunos passam nas escolas, mesmo que te- nhamos que aumentar o número de alunos por classe. Em vez de três turnos, com classes pequenas, devería- mos ter dois turnos, com classes maiores. Porque mais horas na escola proporcionam melhor proficiência e o número de alunos por turma parece não causar um impacto tão forte. Outras constatações: a existência de computado- res na escola parece não influenciar os resultados, e sim o fato de o diretor ser indicado; se o projeto peda- gógico é desenvolvido pelo diretor, ele tem peso rela- tivo e a seleção de turmas parece ser importante, isto é, se você forma uma turma heterogênea — por exem- plo, melhores alunos numa turma e piores na outra — ou se mistura os melhores com os piores. Parece que isso faz alguma diferença. Contudo, as variáveis que mais importam são as ca- racterísticas familiares. Por exemplo, a escolaridade da mãe é muito importante. Outra coisa: o aluno que está com defasagem de três anos ou mais em relação à sé- rie tem um desempenho muito pior do que o aluno que está na idade certa. Uma variável interessante é a média de escolarida- de das mães, que também tem um impacto muito gran- de, principalmente, no 3° ano do ensino médio. Sobre esse fator, precisamos investigar mais. Suponhamos que seja verdade que a escolaridade das mães afeta o desempenho escolar. Talvez se conclua que é impor- tante estar numa escola em que a educação da mãe dos amigos seja melhor. Será que é porque elas pressionam mais, cobram mais do professor, se um professor falta, elas reclamam? Ou será que, quando todos os alunos apresentam bom rendimento, o professor tem mais facilidade para transmitir o conhecimento, mesmo com interrupções na aula? Mas também acredito na pressão dos pais por me- lhor qualidade de ensino. Porque, nesse caso, conta- mos com a sua capacidade política. Se conseguirmos fazer com que as pessoas acompanhem mais o desen- volvimento de seus filhos na escola, briguem por me- lhor qualidade, isso poderá ter um efeito muito grande na proficiência dos alunos. Entretanto, seria temeroso decidir com base apenas nessas suposições. Precisamos entender melhor o que está por trás dos resultados. Gosto de citar Esther Duflo, uma economista brilhante, que estuda muito a educação no Quênia, África. Ela fala que algum dia — esse dia vai chegar — a educação será mais valorizada pelos pais, que passarão a demandar edu- cação de mais qualidade e controlar a presença do profes- sor, que ensinará melhor e ganhará melhores salários, o que vai aumentar ainda mais a qualidade da escola. Contudo, é preciso dar este pontapé inicial para gerar um processo desse tipo, para melhorar a qualidade da escola pública, que é o que todos nós queremos. 31 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 "ERNARDETE 'ATTI 0RECISAMOS DE POLÅTICA EDUCACIONAL EFETIVA ANTES DE AVALIAR A quem servem as avaliações gerais com as quais nos deparamos? Parece-me que servem muito mais a um con- trole, por meio de comparações indevidas, de rankings, para dar assunto “escandaloso” ao gosto dos jornais, do que para se estimular soluções educacionais que atinjam as populações necessitadas. Investe-se muito dinheiro nessas avaliações. Dado seu não-emprego na melhoria da educação escolar — o tempo vem mostrando isso— per- gunta-se se não seria melhor que se investisse esse di- nheiro em outros aspectos do dia-a-dia das escolas. Quem acompanha os estudos de avaliação de desempenho es- colar aqui no Brasil, percebe que estamos patinando. Os resultados não nos levaram, até agora, a lugar algum. Alavanca social O que vem sendo apresentado por Naércio Menezes é pertinente e importante, mas a literatura sobre a ava- liação educacional já vem mostrando essas relações e questões há muito tempo: no exterior, em análises des- de o princípio do século passado; entre nós, em análi- ses do final da década de 1970 até a de 1990. Seria in- teressante estabelecer relações com a literatura nos va- riados tempos. Aspectos fundamentais da estrutura so- cial — trabalho, renda, condição socioeconômica e edu- cacional da família — são apontados há tempos como determinantes do desempenho escolar. A questão principal da educação brasileira continua sendo a desigualdade socioeconômica que gera certas condições de vida e determina a qual escola as crianças poderão ter acesso. E onde entra a avaliação? Avaliação educacional só tem sentido se for conse- qüente e tiver origem em uma visão pedagógica. Para que serve essa visão pedagógica? Ela é feita para desenvolver as pessoas, não para es- tigmatizar, não para provocar mais seleção ou debates jornalísticos inconseqüentes. A avaliação educacional, se feita realmente como política educacional, com serie- dade, deve ter a função de alavanca social. Mas não sou ingênua de acreditar que apenas mu- dando a escola, transforma-se a sociedade. Mudanças efetivas na escola só podem ocorrer também com cer- tas condições de contexto. Professores e alunos perten- cem a uma comunidade histórica, com suas crenças e ri- tos. A sociedade tem o ritmo do possível em sua histó- ria. Temos que ter paciência histórica. Isso não quer di- zer “nada fazer”, e sim que é preciso saber como fazer para provocar mudanças. Não vou fazer uma análise técnica das avaliações exis- tentes, porque elas são complexas. Vou só abordar um ponto que acho interessante para nós, da educação, pen- sarmos: as avaliações não influenciaram políticas locais, nem regionais e, muito menos, federais. Causam certa comoção no dia em que são divulgadas; no dia seguin- te, são esquecidas. As propostas educacionais esparsas que temos pas- sam ao largo das informações avaliativas. A apresenta- ção dos resultados não realiza o que poderia ajudar os professores nas escolas: as análises de cunho pedagó- gico. Acho até que, na maioria dos casos, os dados não são visitados, nem estudados, nem refletidos: o que eles nos revelam sobre as necessidades pedagógicas, o cur- rículo escolar, a formação dos professores e diretores e como ajudam os gestores a pensar seus planejamentos educacionais? A pergunta: “A quem servem essas avaliações?”, para mim, fica absolutamente sem resposta porque, até ago- ra, parece que elas para nada serviram. Não há políticas consistentes para a educação básica, quer em nível federal, quer estadual. Sabemos que somos uma federação e que os estados e os municípios têm seu grau de autonomia e devem responder pela educação básica, mas é prevista uma articulação efetiva entre os três poderes, que pouco tem ocorrido. Então, cabe a per- gunta: sem políticas claras e efetivas, implementadas, o que estamos avaliando, mesmo quando avaliamos de- sempenho escolar? Uma avaliação consistente de polí- ticas seria bem-vinda: como foram implementadas? An- tes, foram mesmo implementadas? Foi executado o or- çamento previsto? Como? Não tenho visto muito futuro naquilo que estamos chamando de avaliação... 32 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 É preciso ser conseqüente. Não temos percebido resul- tados, e sim muito palavrório: “Precisamos melhorar a qua- lidade do ensino, porque o rendimento está baixo”; “Para resolver, vamos dar educação continuada para os professo- res etc.” Qual a dimensão demográfica disso, qual a dimen- são qualitativa? Com exceção de alguns poucos programas, acho que esse tipo de proposta é muito questionável. Então, que resultado tem todo o dinheiro investido nessa área? Por que não se investe devidamente na formação pré-serviço dos professores? Por que não se melhoram as condições da carreira docente? A média de salário inicial dos pro- fessores, no Brasil, está em torno de R$ 300,00 e o va- lor médio final — após 25 anos de trabalho — em torno de R$ 1.000,00. Isso não é importante considerar-se nas avaliações e na análise de seus conseqüentes? Faltam bons cursos de licenciatura A escola tem um impacto na vida do aluno e em seu desenvolvimento, que não pode ser desprezado, e isso é visível nos estudos apresentados. Responder por mais ou menos 30% da variabilidade do desempenho é bastante. É muito mesmo, quando consideramos que a criança nas- ce numa família, aí tem sua socialização iniciada em tem- po integral, convive em uma comunidade; ali ela aprende a falar, a se comportar, adquire seus hábitos... Se essa famí- lia e esse meio social não tivessem importância, seria um absurdo. Ainda assim, a escola tem um efeito forte, que é considerável, e lembramos que ela passa aí umas poucas horas de seu dia. Este efeito é que chama muito a atenção para a qualidade necessária ao sistema escolar. Outra coisa: temos mais de um milhão de professores atuando na pré-escola e no ensino fundamental, dois mi- lhões e 500 em todos os níveis. Se observarmos o número de professores atingidos por projetos de educação conti- nuada, veremos que ele é pequeno. E, dentre esses profes- sores, há uma grande porcentagem que leciona no ensino médio, tendo, como formação, apenas o ensino médio ou somente o ensino fundamental; e outros que lecionam de 1a a 4a série tendo cursado apenas o ensino fundamental, até a 5a série, alguns até a 8a série. De qualquer modo, as avaliações, bem ou mal, nos le- vam a pensar sobre a questão da qualidade. Mas perce- bo que há pouca discussão sobre os cursos de licencia- tura e os cursos de formação de professores de 1a a 4a sé- rie e educação infantil: como instrumentam os professores para seu trabalho? Currículo nacional básico Há uma outra questão que causa impacto na avaliação de desempenho: não temos um currículo nacional básico claramente definido, norteando não só as questões filo- sófico-éticas, como também os conteúdos. O que temos é vago. Os parâmetros foram a política de um período. Os livros didáticos são a referência concreta. Bons ou maus, são a referência. Mas não há, dentro das escolas, uma re- ferência clara, orientadora, dos professores, diretores, co- ordenadores, um consenso nacional norteador, ao menos, por um período maior. Os países desenvolvidos têm um currículo estipulan- do o que as crianças devem aprender em cada fase do seu desenvolvimento. Nós tivemos currículos de 1930 a 1980. E tínhamos aqui, no estado de São Paulo, o livro “Verdão”, apelido de um guia curricular pelo qual os professores po- diam se orientar, dentro da sala de aula, para saber o que ensinar em determinada etapa do desenvolvimento do alu- no, fazendo, inclusive, a sua escolha didática. Não temos mais isso... E as pesquisas de que dis- pomos mostram que a sala de aula é um problema, e esse problema aparece bem claro quando os alunos se transferem de escola, o que é bastante comum nas periferias urbanas. Não sabemos o que é, de fato, ensinado para essas crianças, especialmente nas escolas públicas, porque muitas escolas particulares têm seu sistema, materiais e tudo mais. A escola pública não tem uma orientação mais precisa. Então, a matriz que fundamenta um SAEB ou um ENEM contempla quais conteúdos curriculares? O que nós esta- mos avaliando? Talvez uma coisa idealizada, um padrão um tanto abstrato que pouco tem a ver com o trabalho escolar desenvolvido. Essas matrizes poderiam orientar as escolas. Talvez. Mas quem as conhece, quem as entende? O que está sendo ensinado? Estou trazendo essas reflexões para que pensemos com mais objetividade. Precisamos olhar esta questão cuidadosamente. Qual é a aderência da matriz que subsi- dia estas avaliações? Não foi feito qualquer estudo de vali- dade para amparar certas discussões que teriam uma fun- ção pedagógica. Como realizar uma avaliação consistente se não existe um consenso nacional mínimo sobre o que deve ser ensinado? 33 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Temos os livros didáticos como referência, mas, se os examinarmos, conforme a área, cada texto toma uma direção e contempla ou não certos conteúdos. De acor- do com o livro didático adotado, a criança aprenderá determinadas coisas ou não aprenderá... Há também o fator tempo e oportunidade de desenvolvimento, ou não, de certos aspectos curriculares pelo professor em seu trabalho em sala de aula. Como não temos pontos de referência mais concretos... Esta situação do currículo no Brasil é diferente em relação a outros países que definem um pouco melhor suas propostas curriculares, aonde querem que as es- colas e os alunos cheguem. Vários países da América Latina têm esses referenciais; na Europa, eles são co- muns, assim como na China, no Japão, na Rússia. Nós não sabemos o que está sendo ensinado nas nossas escolas. Há um vazio de informações. E, nas con- dições atuais, é difícil saber. Isso nos deixa muitas la- cunas que dificultam a compreensão dos desempenhos escolares. Lida-se, em geral, nos trabalhos existentes, com algumas suposições, na maioria das vezes, advin- das da experiência limitada e localizada dos autores. Está na hora de começarmos a pensar conseqüente- mente nessas questões. O primeiro passo seria sugerir uma discussão consensual sobre o currículo para ser proposto, ao menos, um currículo orientador, que cada estado aprimoraria. Isso sim seria norteador. Proponho, primeiro, orientar o ensino, depois, avaliar o aluno. As discussões sobre educação em geral acabaram deixando de lado a questão do ensino em particular, nas suas especificidades. Vale discutir com os gestores e os professores: “Para que serve o ensino fundamental no Brasil? E o médio?”; “Que papel se espera que cada um assuma na sociedade brasileira?”; “Os alunos precisam sair da escola com quais conhecimentos?”. São temas insuficientemente discutidos. O mal das mudanças políticas Defrontamo-nos com outro problema nos sistemas es- colares: não há continuidade nas administrações pú- blicas. A educação não é tratada como algo suprapar- tidário. Temos partidos adversários governando. Um não quer seguir os caminhos abertos pelo outro, mes- mo que ele esteja se revelando um bom caminho. En- tão, não existe continuidade nas propostas educativas escolares. Cada um que chega quer inventar a roda de novo e desfaz o já feito. Nós não temos, também, o de- senvolvimento dos processos de avaliação que come- çaram a ser implementados, porque cada um que che- ga quer introduzir uma novidade, e aí invalida uma base que permitiria fazer estudos talvez mais amplos, com- parativos, longitudinais. Poder-se-ia lembrar que as escolas têm seus pro- jetos pedagógicos. Eles são absolutamente necessá- rios, sem dúvida, porém, nas condições concretas de funcionamento, do horário escolar e do contrato dos professores, da disponibilidade de tempo (que prati- camente não há...) etc., é idealismo pensar que eles realmente sejam elaborados coletivamente e coletiva- mente levados às práticas de sala de aula. O que exis- te, e os estudos mostram isso, são cópias de ano para ano. Durante o ano, durante os trabalhos escolares, e para cada professor, esse projeto, na verdade, não existe. A idéia do projeto pedagógico virou um slogan, mais um instrumento burocrático. Inversão de valores E fica aí a grande pergunta: com tudo o que já foi feito em termos de sistemas de avaliação, de propostas de educação continuada, de subsidiar alunos com bolsa e tudo o mais, por que não acontece a melhoria do desempenho escolar no país? Não acredito que essas avaliações possam contri- buir para qualquer melhora se elas não trouxerem conse- qüências diretas na esfera da gestão federal, estadual e municipal, com impactos nas escolas. Vou terminar com uma observação de Luís Carlos Frei- tas: o Brasil inverteu a posição da avaliação educacional; colocou-se, em primeiro lugar, a avaliação, como se ela, por si, determinasse políticas educacionais consistentes. A avaliação acompanha as políticas. Aqui se pôs a ava- liação como “a’’ política e se esqueceu de se fazer a polí- tica educacional propriamente dita, o que é um absurdo do ponto de vista de qualquer avaliador mais sério. A partir do momento em que existam políticas e pla- nejamentos educacionais e escolares claros e dissemi- nados, conhecidos, apropriados, então poderemos ter avaliações mais adequadas e conseqüentes, que acom- panhem os processos e desempenhos escolares em um certo período. 34 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 @ Qual a influência da quantidade de alunos em sala de aula na aprendizagem? @ Qual o verdadeiro peso da questão social, da origem socio- econômica e cultural dos alunos na aprendizagem? @ Por que há uma diferença tão grande, em termos de avalia- ção, entre Tocantins e os outros estados? @ Apesar de existirem muitos dados e informações sobre de- sempenho dos alunos em escolas públicas, eles não são utilizados. As escolas nem os consultam. Como torná-los mais úteis para o planejamento, ao menos, das escolas? @ Para criarmos uma boa equipe escolar, precisaríamos ofe- recer algum tipo de incentivo ao professor? Seria financei- ro? Ao dar esse incentivo para o professor ficar na escola, não criaremos um outro problema: começaria a existir uma diferenciação salarial e isso poderia ser problemático? @ Como se analisa a questão da qualidade de ensino, se ele for considerado apenas um produto da atividade de docentes e alunos? Atualmente, a avaliação fica restrita aos alunos. @ Tem tanto mérito esse sistema de avaliação? Até que pon- to se comprova que ele mede aquilo que diz medir? Como é elaborado? Ele parece utilizar concepções complicadas, um pouco confusas. Como validar esses testes com relação a competências e habilidades? @ Uma outra questão é a qualidade do ensino privado. Mui- tos colégios de ótima qualidade fazem uma cuidadosa se- leção: os alunos considerados ruins sequer vão para as sé- ries piores, porque elas não existem. Essas crianças são ex- cluídas. Quando um aluno é reprovado, ele é convidado a sair da escola. @ Discutimos qualidade na escola pública e esquecemos um pouco da questão da finalidade da educação. O que se pode melhorar em educação fundamental? Ela tem sido pobre e fica por isso mesmo? Não se discute? @ Constatamos que há muita avaliação e pouca política. Isso não significa que essas discussões ficam centralizadas e restritas quase sempre em um mesmo grupo que digere e problematiza esses dados? Não seria interessante que es- sas informações entrassem mais na escola, para que ou- tras pessoas pudessem compartilhar dessa discussão? @ Será que a democratização dessa discussão avaliativa, já que nós temos uma quantidade tão grande de dados e a medi- ção é importante, não estaria ocupando o lugar de uma dis- cussão sobre a falta de currículo, a falta de parâmetro de avaliação dentro da escola, a ausência dos professores? @ É comum haver pesquisa a respeito da participação da famí- lia e da comunidade na escola? Sabemos que ela é impor- tante, mas quanto? Os pais e os alunos têm se apropriado dos resultados das pesquisas para, quem sabe, fazer uma pressão para que haja uma mudança no currículo, na políti- ca municipal? Quem sabe as ações de mudança não tenham que vir “de baixo para cima”, já que “de cima para baixo” está difícil de acontecer. @ É importante se discutir assuntos como: a formação inicial do professor e seu impacto, a formação continuada, o horário de trabalho pedagógico, a questão da equipe permanente. Preocupamo-nos em avaliar se o professor realmente é as- síduo e há quanto tempo está na instituição. Percebemos que esses fatores são muito importantes, fazem diferença. Gostaríamos de ter exemplos mais concretos de pesquisa nesse sentido... e também no que diz respeito à escolari- dade de pais e mães, constituição da família etc. @ Temos aqui vários dados importantes, mas eles são ape- nas descritivos. Precisamos ultrapassar essa discussão e pensar mais em qual é a explicação para eles, estabelecer relações, ir mais a fundo. Assim, talvez, possamos adqui- rir um conhecimento que nos ajude de maneira mais signi- ficativa. Por exemplo, a formação pré-serviço. Esta é uma discussão que temos de ter a coragem de enfrentar. Qual é a perspectiva de implementação desse tema? @ Houve uma proposta de avaliação comparativa entre as escolas. Mas, certamente, há diferença entre os sistemas estaduais e municipais, tendo em vista a presente munici- palização. O que temos e o que se poderia avançar nesse sentido? @ Em termos de avaliação, que lugar tem ocupado a nossa universidade na formação inicial dos professores? !pós o debate, algumas questões foram encaminhadas aos pa- lestrantes. Nem todos os questionamentos foram contempla- dos. Contudo, reproduzimos aqui algumas perguntas e as con- siderações da platéia porque, mesmo não totalmente respon- didas, elas instigam nossa reflexão e estimulam nossa busca por soluções. 0ERGUNTAS E RESPOSTAS QUE NOS FAZEM PENSAR 35 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 .AÁRCIO -ENEZES Economia e Educação Todo mundo quer melhorar a qualidade da educação para que as crianças aprendam mais. Então, a união de diferen- tes áreas é muito importante. Se pudéssemos unir o co- nhecimento estatístico dos economistas ao conhecimento dos educadores, com mais freqüência, certamente tería- mos melhores interpretações dos números e poderíamos indicar melhores políticas públicas para a educação. Esta conversa aqui no Cenpec segue nessa direção. O conhecimento estatístico, por exemplo, nos ajuda- ria a compreender melhor a variável “tamanho da classe”, compará-la com o background familiar e até entender o quanto ela influencia no aprendizado. Heterogeneidade Quando falamos que a escola tem um peso de 30% na for- mação do aluno, não devemos entender, com isso, que os 70% restantes estão relacionados à família. Devemos considerar também a heterogeneidade. Este é um concei- to amplo porque envolve alunos de níveis culturais bem diferentes, professores com múltiplos interesses, gesto- res polivalentes com boa formação. Nesses 70%, estão incluídos alguns fatores que in- fluenciam o ambiente escolar, mas vêm de fora. Eu supo- nho que o mais importante deles seja a família. Por exem- plo, se tivermos ótimos alunos convivendo com outros, com mais dificuldade, isso denota heterogeneidade, cuja origem pode ser familiar. E esta heterogeneidade pode be- neficiar a aprendizagem dos alunos mais defasados. Background familiar As boas escolas privadas tendem a selecionar estudantes com muito background familiar. Certamente, elas terão me- lhor desempenho e melhores resultados — uma das con- seqüências é a entrada desses alunos nas melhores uni- versidades. Isso já sabemos. O que não sabemos é como ampliar a capacidade de aprendizagem das crianças que são mais desfavorecidas em termos de background fami- liar. Esse é um dos principais desafios da escola pública. E não é a progressão continuada que vai resolver. Também não adianta ameaçar o aluno com repetição. O desafio é ensinar e as crianças aprenderem. O desafio é enfrentar crianças muito indisciplinadas, com pouco background fa- miliar, que assistem à aula em salas cheias, com professo- res mal-preparados. Gilberto Dimenstein, no seu programa de rádio, deu um exemplo muito interessante: a classe de um famo- so colégio de São Paulo, o Porto Seguro, recebeu alunos da favela Paraisópolis. Os alunos tiveram oportunidades equivalentes em termos de instalações, equipamentos e professores. Da turma da favela, apenas 12 conseguiram entrar numa faculdade privada, enquanto os demais alu- nos do Porto Seguro ingressaram nas melhores universi- dades públicas. Os estudantes da favela Paraisópolis que foram para o Porto Seguro tiveram um aprendizado muito melhor do que os que não tiveram essa oportunidade. Contudo, ele não foi suficiente para colocá-los nas universidades pú- blicas. Certamente, uma das explicações é a deficiência de background familiar. Apesar disso, eles tiveram um de- sempenho melhor do que os outros alunos, do mesmo ní- vel, das escolas públicas. Participação dos pais A participação dos pais é indispensável. Como aumentar a participação deles na escola pública? Eles precisam ser informados sobre os resultados das avaliações, pois têm pouco conhecimento a esse respeito. Devemos divulgar as notas da Prova Brasil para as famílias e dizer para os pais diretamente: “Não sabemos o que está acontecendo com a sua escola, mas ela está ruim ‘à beça’. Vamos juntos sa- ber o porquê”. Esta seria uma tentativa de agir tanto “de baixo para cima” quanto “de cima para baixo”. O professor Uma coisa, porém, precisa ficar muito clara: o professor continua sendo o principal promotor da aprendizagem. Alguns estudos norte-americanos também mostram isso. O professor faz uma diferença enorme, mas não o profes- sor que ganha mais, nem o mais fragilizado, e sim aquele que tem melhor didática, que sabe dar aula melhor. 36 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 "ERNARDETE ! 'ATTI Amplas avaliações No Brasil, não temos o hábito de lidar com a avaliação, muito menos com os dados quantitativos. O pessoal que trabalha com educação não gosta de lidar com quantifi- cação, nem procura entender o seu sentido. Essa é uma dificuldade. Além disso, as escalas interpretativas comumente não têm um referencial pedagógico que nos ajude a dar sen- tido aos números. Qual o sentido concreto dos itens em relação aos conteúdos? Tivemos a experiência do Saresp – Sistema de Ava- liação de Rendimento Escolar do Estado de São Pau- lo. Quando foi implantado, esperava-se que o profes- sor participasse da aplicação e da correção dos testes. Havia um manual para ele aprender a calcular uma mé- dia, uma variância; interpretar e entender a sua escola; incluía até uma orientação psicopedagógica para inter- pretar as respostas. E esses dados não iam para a Secre- taria da Educação: o objetivo era que a escola se apro- priasse deles, para que a direção, a coordenação peda- gógica e os professores discutissem o sentido pscicope- dagógico das respostas dos seus alunos. Mesmo assim, não se tem idéia de qual foi o seu impacto nas ações dos gestores e dos professores. Agora, imaginem uma avaliação de fora, um instrumen- to externo, que não tem significado para aquelas escolas. É uma rotina burocrática que elas cumprem porque alguém, algum órgão, mandou. Falta um trabalho sério de esclare- cimento. Uma discussão sobre o nível do ensino nos esta- dos, nos municípios. O envolvimento das escolas, nessa avaliação, deveria ser proativo, e não só reativo. Para que houvesse esse envolvimento proativo, seria preciso haver um período para se trabalhar com os edu- cadores dos diferentes níveis de ensino. Não sei se essas grandes avaliações contribuem realmente para se conhe- cer e melhorar a situação localizada, específica, dos mu- nicípios. Por isso, acontecem essas comparações espú- rias, concluindo, por exemplo, que o rendimento dos alu- nos do Vale do Jequitinhonha é péssimo, quando compa- rado com o dos alunos de Florianópolis. A questão do de- sempenho não pode ser tratada em abstrato; ela deve ser compreendida no contexto que a produziu. Ao não reconhecerem as diferenças entre as escolas, essas comparações (que, aliás, de um ponto de vista ge- ral, revelam o que seria mesmo esperado, dadas as dife- renças geo-socioeconômicas e culturais) servem apenas para a imprensa ampliar a humilhação pública das esco- las e a de seus professores e alunos. Creio que isso é uma grande irresponsabilidade, para não falar na desconside- ração aos aspectos éticos. Não estou dizendo que, do ponto de vista dos crité- rios adotados para a avaliação, essas diferenças não se- jam observadas, apenas que elas precisam ser analisadas sob a luz do contexto e das questões pedagógicas, com o objetivo de ajudar a melhoria do ensino na direção dese- jada. Isso exigiria apoio financeiro, pedagógico, de infra- estrutura etc. para essas escolas, ou seja, elas não pode- riam ser humilhadas publicamente, e sim, ajudadas com ações efetivas e diretas. Esta seria uma ação social e educacional condizente com os princípios de eqüidade social. Nada disso é rea- lizado. O que se faz equivale à situação de alguém que caiu num poço profundo e escuta uma pessoa à beira do poço, lá em cima, constatar: “Você caiu no poço!”, e, de- pois, ir embora. Será que quem está lá, no fundo do poço, vai conseguir sair sozinho? Equipe escolar Na verdade, ter uma equipe na escola — equipe mesmo, integrada, com período de contrato para permanecer mais tempo na instituição — já é um problema em si. Com o número grande de professores contratados temporaria- mente, não-efetivos, com as remoções, licenças, coloca- ção fora de função etc., as escolas enfrentam uma rotati- vidade de pessoal muito grande. Isso dificulta a fixação de equipes integradas. Seria necessário alterar a política de atribuição de au- las, alicerçando-a numa perspectiva pedagógica mais in- tegradora, que pensasse mais nos alunos, nas crianças e jovens. Talvez fosse importante, para minimizar certos problemas e equilibrar interesses, que muitos estados e municípios alterassem os estatutos dos professores. Para tanto, precisaria haver uma negociação mais ampla entre os executivos públicos com os pais, os sindicatos e os partidos políticos, procurando formas de definir melhor os módulos de equipes escolares e os modos de fixação dessas equipes por certo tempo. A questão da carreira do professor e do seu estatuto precisa ser repensada, se quisermos ter verdadeiras equi- pes escolares, assim como criar condições, como incenti- 37 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 vos de carreira ou salário, para que os professores se inte- ressem em permanecer em regiões mais afastadas. Há bons caminhos, mas, em negociações, muitos fo- cos de interesse entram em choque. Educação acima dos partidos Uma coisa que não existe na educação é a capacida- de negociadora dos gestores. Eles não se exercitam nes- te aspecto. Improvisam. Até a escolha de secretários de educação ou ministro é feita muito ao sabor do desejo dos partidos, dos acordos de diferentes naturezas, sem se considerar a função especializada que o cargo exige. A questão do conhecimento do sistema, dos problemas da escolarização etc. é relegada a décimo plano. Entida- des representativas das categorias profissionais, asso- ciações de peso, não são consultadas e não se envolvem nestas escolhas. Nunca se procurou, de fato, fazer com que a educação esteja acima dos interesses particulares dos partidos po- líticos, tratando-a como uma política de Estado de longo prazo, acima de interesses partidários que pouco têm a ver com o bem público. Se conseguirmos isso, quem sabe, daí derive algo significativo e permanente. Talvez possamos começar com a negociação da fixa- ção das equipes escolares nos municípios, que é mais fácil. Se conquistássemos isso nos municípios de por- te médio, começaríamos a mexer com a educação fun- damental. Talvez assim a situação melhorasse um pou- co. A fixação de equipes escolares, dentro de certos li- mites, é muito importante, porque, a partir daí, se po- deria pensar na formação da equipe escolar como um todo. É um sonho! Articulação dos sistemas A articulação dos sistemas escolares — federal, estadual, municipal — prevista na LDB, não acontece, ficou no pa- pel, e muitas das razões para isso têm a ver com o con- texto político-partidário. Como já foi dito, esse cenário particulariza a educação, fragmenta-a, impede acordos e planejamento conjunto, parcerias e conjugação de finan- ciamentos. Modificar esta situação seria um exercício de democracia: demandaria um esforço muito grande, políti- cas claras, superação de interesses particulares e de bir- ras partidárias. Estamos muito longe disso. Avaliação do ENEM O ENEM é problemático desde a sua associação com um rol de competências abstratas e habilidades pouco obje- tivas até o tipo de análise que processa e, principalmen- te, a sua divulgação pela mídia. A prova não atende às condições dos referenciais propostos, sua validade é dis- cutível. Isso não quer dizer que o ENEM não meça algu- ma coisa, só não sabemos o que ele realmente está me- dindo. Mas foi feita muita propaganda do ENEM e nego- ciações em torno dele, deixando-se de lado a questão da adequação desse tipo de prova à realidade da maioria das escolas brasileiras e seu currículo. Acreditou-se que o ENEM forçaria as escolas a repensarem seus currículos, o que é mais uma falácia (que, aliás, também foi, ou ain- da é o pressuposto de alguns organizadores de vestibu- lar, como o da USP, Unicamp e outros). Esses instrumentos não têm a penetração que se ima- gina. Uma pesquisa interessante seria a de verificar quan- tos docentes de escolas públicas estudaram a prova do ENEM, verificaram seus conteúdos e, baseados neles, mu- daram suas aulas. Penso que a maioria esmagadora, e es- tamos falando de mais de milhão, do pessoal das redes de ensino, não fez isso. Professores de cursinhos devem ter feito, mas não os do ensino regular. A mesma observa- ção vale para os itens dos vestibulares. Além disso, pare- ce um recurso desesperado querer que provas balizem o currículo escolar, e não o contrário. Aliás, esse desejo si- naliza a ausência de política de currículo. Participação dos pais A participação dos pais é um problema quando temos pais e mães trabalhadores. A escola, pelo menos no ensino fundamental e na educação infantil, não funciona à noi- te, só a partir da 5a série. Há pais que trabalham à noite e aos sábados. Exigir que venham à escola em seu horá- rio de trabalho é prejudicá-los financeiramente e, em mui- tos casos, até profissionalmente. A participação dos pais precisa ser pensada em função das características da co- munidade à qual pertencem. Querer que pais de crianças de escola pública ensinem seus filhos, auxiliem em tra- balhos etc. também é uma questão espinhosa, porque a maioria tem poucos anos de escolaridade e não se sente em condições de ajudar seus filhos. Além disso, em grandes centros urbanos, seu dia de trabalho é muito estendido, devido ao cansaço, à dificul- 38 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 dade que enfrentam com o transporte. No campo, isso tam- bém acontece. Esses fatores não prejudicam a classe mé- dia, ou prejudicam menos. Portanto, querer que esses pais interfiram no currículo escolar também é problemático. Essa geração de pais estudou muito pouco e não se sente em condições de questionar o professor de Portu- guês, de Matemática, de Ciências no que se refere a con- teúdos e métodos de ensino. Eles são mais retraídos por- que são mais oprimidos socialmente, inclusive, sentem- se pouco à vontade diante dos diretores, dos professores. Ao falarmos em participação dos pais, temos que nos per- guntar de quais pais estamos falando. A escola deve levar esse fator em consideração e criar formas diferenciadas de os pais participarem, em alguns momentos, de acor- do com suas possibilidades concretas. Há que se desenvolver um trabalho social ampliado para que eles possam realmente começar a ter voz. Formação de professores As grandes universidades não se interessam pela formação do professor, sua preocupação é se destacar pela pesquisa, e não pelo ensino. As licenciaturas são cursos fragmentados demais e as discussões sobre a renovação dessa modalida- de de graduação esbarram em conceitos e interesses tão ar- raigados que tanto elas, quando acontecem, quanto os pro- jetos “morrem na praia”. Os cursos de licenciatura não são “a menina dos olhos” das administrações universitárias, nem das políticas educacionais, federais ou estaduais. Não estou falando dos programas de educação con- tinuada, e sim da formação pré-serviço, que deveria ser mais bem cuidada. Não são as universidades que formam a maioria dos professores: 80% deles saem de faculda- des isoladas, privadas, noturnas. Vamos parar de nos ilu- dir com o que fazem a USP, a UFRJ etc.: não é daí que es- tão saindo os professores da rede de ensino público. O que não significa que elas também não precisem repen- sar suas licenciaturas. Chamo a atenção para as licenciaturas porque os dados de 2005 são assustadores: há dois ou três anos, entram qua- se 400 mil alunos para fazer o curso de formação de profes- sores, e não se formam nem 50 mil. A evasão é enorme — mais que o dobro de qualquer curso — e eu não acho que é por causa de dinheiro e, sim, porque o curso é ruim e as pers- pectivas profissionais também não são tão atraentes. Ainda não estudamos devidamente a questão da evasão dos estudantes de licenciatura, por ela ser inusitada. *OSÁ &RANCISCO 3OARES Malhando o ferro frio? Em um debate como este, temos a oportunidade de levan- tar muitas questões, mas o tempo disponível não permite analisar cada uma delas completamente. Quero aprovei- tar esta fala final para citar algumas idéias que apresen- tei e, creio, não ficaram totalmente claras. Tenho artigos publicados em que elaboro vários desses pontos. Porém aqui, no debate, opto por usar uma linguagem com tons mais fortes, quase emocionais. A essência da minha contribuição para este debate é a defesa de que a discussão sobre a educação atual no Brasil precisa incorporar os dados que descrevem os nos- sos sistemas educacionais. Seu uso não pode ficar restri- to à análise econômica ou sociológica, deve ser parte tam- bém da área pedagógica. Assim, é urgente superar, no de- bate universitário educacional, o desprezo pelo dado ou a omissão de seu uso nas análises. Vejamos se forneço evidências convincentes dessa necessidade. Necessidade da coleta de dados educacionais Em uma sociedade democrática de massas, na qual todos devem ser tratados igualmente, o funcionamento das ins- tituições deve ser verificado. O grande número de benefi- ciados pelas diferentes instituições exige a coleta de da- dos padronizados. A educação não pode fugir a esta rea- lidade. Precisamos saber o que ocorre no sistema educa- cional, por meio da coleta de dados sobre o acesso dos alunos, seu fluxo escolar e o que estão aprendendo. Isso custa dinheiro, mas é um erro pensar que esses recursos seriam mais bem usados para atender a alguns alunos, como, ainda que subliminarmente, foi defendido. Produzir bons dados para descrever a realidade edu- cacional é tão necessário quanto produzir os dados, que já acostumamos a coletar, para acompanhar as várias di- mensões da economia de nosso país. Para isso, utiliza- se a PNAD, uma pesquisa muito consultada pelos econo- mistas. Ela é realizada todo ano, em setembro e outubro, e custa cerca de R$ 10 milhões. Não há qualquer crítica a ela, pois a nossa sociedade já se acostumou a receber essas informações, importantes para o monitoramento e a mudança de políticas públicas. Na realidade, a PNAD coleta alguns dados educacionais que precisam ser mais bem utilizados pelos educadores. 39 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Por exemplo, ela nos dá a boa notícia de que as mulheres de 20 a 24 anos têm, hoje, em média, nove anos de escola- ridade. Esse dado traz esperança, pois mostra que as mães dos futuros brasileiros têm mais educação do que tiveram suas mães. Portanto, elas poderão ajudar mais os filhos e exigir melhores escolas. Faço uma comparação com o IDH – Índice de Desen- volvimento Humano. Ele surgiu há uns 15 anos e mede o nível de desenvolvimento humano dos países, utilizando, como critérios, os indicadores de educação (alfabetização e taxa de matrícula), a longevidade (esperança de vida ao nascer) e a renda (PIB) per capita. A questão inicial era en- contrar uma forma de reduzir toda a complexidade social a três indicadores. Com o passar do tempo, percebeu-se que, apesar da limitação da síntese escolhida, o resulta- do era muito útil para o monitoramento de políticas públi- cas. E hoje ele é utilizado no mundo inteiro. O Brasil calcula o IDH para todos os seus municípios. Eu me lembro de ler a entrevista com um prefeito que, ao rece- ber o IDH de seu município, inicialmente, criticou os dados, sugerindo que não descreviam corretamente a realidade de sua cidade. Disse mesmo que os pesquisadores tinham uma visão deturpada da realidade, pois reduziam toda a comple- xidade do local a um único número. No entanto, depois, hu- mildemente, reconheceu que a mortalidade infantil era alta e que poderia ser reduzida. Era uma cidade pequena. O pro- jeto de redução da mortalidade infantil que idealizou, usan- do sua experiência de médico, foi concretizado e produziu os resultados captados na posterior rodada de cálculo. Pre- cisamos imitar este tipo de postura na educação: reconhe- cer que os dados contam uma história verdadeira, ainda que de forma esquemática, e agir para mudá-la. A educação precisa de dados de várias categorias. Dou alguns exemplos: Acesso e desempenho Atualmente, temos, no Brasil, praticamente todas as crian- ças na escola. Em alguns lugares, o índice é de 99%. Na década de 1990, colocamos os 25% mais pobres na esco- la. São sucessos importantes que devemos comemorar, embora nossa escola básica não esteja conseguindo en- sinar a essas crianças. Eu lhes mostrei um item do teste do SAEB que verifi- ca se os alunos compreendem o seguinte poema de Ma- noel Bandeira: “Irene preta/ Irene boa/ Irene sempre/ de bom-humor. //Imagino Irene/ entrando no céu:/ — ‘Licença, meu bran- co?’ —/ E São Pedro, brincalhão:/ — ‘Entre, Irene./ Você não precisa/pedir licença’”. Infelizmente, apenas 55% dos alunos de 8a série que fizeram o teste entenderam o poema. Ou seja, os alunos de nossas escolas não estão entendendo textos simples. Por isso, terminei minha fala afirmando: “Temos hoje uma urgência educacional”. Coletar este tipo de informação, na forma do SAEB, custa entre R$ 8,00 e R$ 10,00 por aluno. Assim, o SAEB custa cerca de R$ 4 milhões. Embora seja um valor consi- derável, gera informações preciosas para o monitoramen- to do sistema educacional. Desprezar esta informação em nada ajuda; é como matar o mensageiro da má noticia. Custo-aluno e desempenho Outro dado com grande potencial de descrição da reali- dade educacional é o do custo-aluno. Há uma grande va- riação no Brasil. O INEP tem uma pesquisa recente sobre o assunto. O custo-aluno, na rede municipal de Belo Hori- zonte, estava, em 2005, em torno de R$ 2.500,00 por ano. Ainda é um valor baixo, mas não tão baixo em termos de investimento. O salário-padrão do professor da rede mu- nicipal de Belo Horizonte é o dobro do salário do profes- sor da rede estadual. No entanto, o resultado da Prova Brasil da rede muni- cipal de Belo Horizonte foi um pouquinho pior que o da rede estadual. A diferença não é significativa em termos estatísticos, mas favorece os alunos dos professores que ganham menos. Precisamos incorporar estes dados na nossa reflexão educacional, pois, caso contrário, outros o farão, com interpretações preconceituosas e prejudi- ciais para o sistema educacional. A mera omissão, a des- qualificação de dados tão informativos, precisa dar lugar a uma busca sistemática das explicações para a realida- de que eles nos apresentam. Relação professor-aluno Na mesma direção, precisamos conhecer o que os dados nos informam sobre o tamanho ideal de uma escola e de turmas. Há um experimento muito citado, feito nos Esta- dos Unidos, que mostra que faz muita diferença diminuir o número de alunos até 25 por turma. Depois de 25, os re- sultados só aparecem quando o valor chega a 15. Poucos 40 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 sabem que a relação professor/aluno no Brasil, nas es- colas públicas, é de um professor para menos de 25 alu- nos. Em Belo Horizonte, esse número cai para menos de 20. No entanto, o tamanho das turmas é bem maior. Ou seja, não faltam professores, e sim a alocação mais crite- riosa dos profissionais. Dados e eqüidade O Brasil é um país injusto e desigual, e são os dados edu- cacionais que estão nos permitindo caracterizar esta dura realidade, primeiro passo para a sua superação. O SAEB foi o primeiro levantamento a coletar os dados conside- rando a etnia. Sabemos hoje das diferenças de desempe- nho dos diversos grupos de alunos, por exemplo, que, de- pois de considerado o nível socioeconômico, há uma dife- rença substancial entre os alunos que se declaram bran- cos e aqueles que se declaram negros. Esse dado eviden- cia a necessidade de políticas públicas e escolares para a superação destas diferenças. Ainda é pouco apreciado o fato de o estudo da eqüidade exigir a coleta de dados sobre o coletivo. Quando dizemos que o efeito da escola brasileira na educação é de 30%, fazemos analogias com outras rea- lidades e concluímos que esse efeito é pequeno. No en- tanto, na Finlândia, o efeito-escola é de 8%. Será que a escola na Finlândia tem pouco efeito? Claro que não! É que lá as escolas são muito parecidas e a decisão por uma outra escola não tem grandes con- seqüências. É isso que é captado pela medida. No Brasil, apesar de termos valores mais altos, também as escolas são muito parecidas entre si. Mas concordo que o nome de “efeito da escola” é, neste caso, ruim. Trata-se mais de um indicador de heterogeneidade das escolas. As bai- xas porcentagens do “efeito da escola” estão nos levan- do, desnecessariamente, a um pessimismo pedagógico, pois o ideal é ser como a Finlândia, onde todas as esco- las se parecem e o efeito é pequeno. Ensino O sistema educacional precisa aprender a usar melhor os dados coletados. Noto isso na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, onde sou profes- sor desde maio deste ano. Incluí na minha disciplina al- gumas aulas a respeito das grandes bases de dados so- bre o nosso sistema educacional; em particular, sobre o censo escolar. Para minha surpresa, dei-me conta de que os alunos dos anos anteriores não haviam sido expos- tos a esse conteúdo, embora a coleta dos dados do cen- so escolar seja uma rotina em todas as escolas brasilei- ras. Os questionários são preenchidos no fim de março. Este é apenas um pequeno exemplo da dificuldade que os educadores têm com um instrumento gerencial básico do sistema educacional. Além da questão dos dados, gostaria de introduzir, embora de forma esquemática, alguns outros temas que precisamos, à luz dos dados existentes, discutir. Assumo o risco de apresentá-los, mesmo sem ter feito ainda uma reflexão mais madura sobre eles. O salário do professor e a avaliação Sobre o salário dos professores — um dado que também precisamos conhecer em toda a sua variação — lembra- mos a afirmação muito corajosa da professora Bernade- te: “Temos que fazer um novo acordo com a categoria dos professores para pagá-los melhor”. Com as carreiras como estão e a quantidade de vanta- gens existentes, é impossível aumentar os salários de to- dos os professores. Mas precisamos pagar muito mais a muitos deles. Para isso, necessitamos examinar e, eventu- almente, mudar, as decisões tomadas em outras épocas. Por exemplo, a isonomia entre os salários de professores de escolas que atendem a alunos de condições comple- tamente diferentes deve ser revista. O salário que é ridí- culo na grande cidade garante vida digna e respeito em uma pequena cidade do interior. As escolas que atendem aos muito excluídos devem ter mais recursos, principal- mente, para pagar os seus professores. Rotinas pedagógicas Gostaria de explicitar um pouco mais o que chamei de rotina pedagógica. Minha reflexão começa com a cons- tatação de que o sistema de educação básica tem de atender a um número enorme de pessoas. Todos têm direitos iguais. Para isso, o sistema precisa implemen- tar algumas rotinas. O exemplo da saúde também ajuda aqui. Os médicos de família canadenses usam, no aten- dimento rotineiro, os mesmos protocolos para todos os pacientes, e, assim, oferecem o melhor para todos. Na educação, não podemos ter apenas uma opção, preci- samos de métodos claros. 41 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A reflexão pedagógica brasileira, adotada na escola pú- blica, tem sugerido a criação, em cada unidade escolar, de um projeto pedagógico diferenciado. No entanto, a es- cola privada não pensa assim. Elas estão se organizando em grandes redes que usam o mesmo material didático e fornecem treinamento, focado nesse material, para os professores. É muito fácil criticar essas opções, mas será que elas são tão ruins? Eu fiz uma pesquisa com os da- dos do SAEB, comparando as escolas privadas e as públi- cas. Depois de considerar as diferenças de nível socioeco- nômico entre o alunado, encontrei diferenças de 20 pon- tos entre a escola pública e a privada. Isso corresponde a, aproximadamente, um ano de escolarização. Uma das possíveis explicações está no que chamo de rotina: as au- las acontecem regularmente, com uma proposta entendi- da por todos. Se este sistema fosse tão ruim, será que a classe média o procuraria tanto quanto o faz? Entendam minha opinião: defendo que as escolas pú- blicas implantem rotinas adequadas, que recebam apoio fundado nas suas opções, e não que as atuais rotinas do sistema privado sejam acriticamente levadas para o sis- tema público. Os nossos filhos, dos que estão aqui presentes, apren- dem independente de a escola ter ou não rotina. Mas a ro- tina, criteriosamente escolhida, é necessária para o aten- dimento correto dos milhões de alunos que freqüentam o sistema público e são filhos de famílias com menor ca- pital cultural. A questão da seleção As boas e prestigiadas escolas privadas devem o seu su- cesso a suas políticas de seleção de alunos; e o mesmo acontece com a escola pública. Veja-se o resultado do ENEM. As boas escolas públicas são as técnicas, onde se entra por meio de um vestibular mais difícil do que o da USP. Existe algum espaço, em algum projeto público de edu- cação, para a idéia de seleção? Pessoalmente, tenho um grande desconforto com a atual solução. Nós obrigamos o aluno pobre e brilhante a se matricular na escola do bairro. Entretanto, é legítimo a classe média atravessar a cidade para colocar o filho na escola de sua escolha. Com alguma freqüência, o aluno pobre e brilhante não recebe incentivo, pois, na sua escola, os valores dominan- tes não são os acadêmicos. Claro que o ideal é que todas as escolas funcionassem bem. Mas, com tanta desigual- dade, não seria razoável concordar com a importância so- cial do trabalho de algumas ONGs? Elas estão oferecen- do bolsas e colocando 40, 50, 100 destes alunos em boas escolas privadas. Entendo que é preciso pensar sobre o uso restrito da idéia de seleção para o sistema público. Garantido o aces- so a todos, poderíamos, a exemplo das escolas técnicas, ter escolas de educação básica, com acesso apenas por transferência, compostas por alunos que assumissem um compromisso especial de dedicação e desempenho. Aprender com a economia e a administração Agradeço a oportunidade de estar aqui esta tarde com vocês. Permitam-me registrar a grande satisfação de ser convidado para uma mesa com a professora Bernardete Gatti, uma das pensadoras educacionais mais influentes no Brasil. Como devem ter observado na minha fala, sou um oti- mista em relação ao efeito da escola. A escola brasileira pode fazer muito mais para os seus alunos. Para isso, en- tretanto, a sua transformação deve vir por meio de uma reflexão pedagógica que incorpore o conhecimento acu- mulado em outras áreas. Precisamos de mudanças na gestão; para isso, temos de aprender com a reflexão econômica e administrativa. Não faz sentido rejeitar os avanços obtidos e nem trans- ladar, de maneira acrítica, o que se faz em outras áreas para a educação. No entanto, necessitamos nos dar con- ta de que os resultados atuais são tão ruins que algo pre- cisa ser feito urgentemente. Relembro a minha idéia da urgência educacional. O preço da manutenção do status quo está sendo pago pelos alunos que aprendem pouco e, conseqüentemente, só têm acesso a uma vida menos digna. Temos de sonhar que a escola pode ajudar a construir um Brasil onde to- dos tenham acesso não só aos frutos econômicos do co- nhecimento, como também à leitura e a seu entendimen- to. Assim, quem sabe, todos possamos apreciar os belos poemas de Manoel Bandeira. 42 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 COMENTÁRIO: SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA – SAEB Avaliar para que(m)? Jorge Kayano* A repercussão, pela imprensa, dos resultados do SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica foi intensa, destacando a piora no desempenho dos alunos nos dez anos compreendidos entre 1995 e 2005. Esta piora teria sido contínua e acentuada no 3o ano do ensi- no médio, mas apenas na rede pública, tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática. Os alunos da rede particular do ensino médio mantiveram seu desempenho em Português e melhoraram em Matemática, aumentan- do assim a distância entre as duas redes. Esse triste resultado ocorreu também em relação aos alunos da 8a série do ensino fundamental, só que de forma menos acentuada, já que os da rede particular mantiveram o desempenho em Matemática, mas revelaram piora no exame de Língua Portuguesa — apesar de obterem sempre notas médias mais altas do que os da rede pública. Os alunos da 4a série da rede pública demonstraram melhora no desempenho nas três últimas edições do SAEB — 2001, 2003 e 2005 — entretanto, continuaram com rendimento abaixo do de 1995. A interpretação predominante desses resultados é a de que o Brasil conseguiu aumentar e quase universali- zar o acesso das crianças, de sete a 14 anos, ao ensino fundamental: atualmente, mais de 80% dos jovens, de 15 a 17 anos, estão nas escolas. Continuamos, ainda, com uma baixa cobertura na educação infantil, especialmente em creches, atenden- do a menos de 15% das crianças até três anos. O Censo Escolar de 2006 mostra um aumento de menos de 1% de matrículas em creches, comparado com o ano anterior. E temos ainda altas taxas de distorção idade-série, com quase 40% dos alunos na 8a série do ensino fun- damental com, no mínimo, dois anos de atraso escolar. Esta distorção é ainda maior no ensino médio, de modo que apenas pouco mais de 10% dos jovens, de 18 a 24 anos, encontram-se hoje no ensino superior. Entendido e apropriado pela sociedade Retornemos à questão do aprendizado: o que significam os dados do SAEB? Podemos afirmar que a simples menção ao resultado médio de 169 em Língua Portuguesa, obtido em 2003, por 92 mil alunos daquela série, em cerca de cin- co mil escolas do país, pouco esclarece. Esse valor está si- tuado numa escala que varia de 100 a 350, válida também para os alunos da 8a série e do terceiro ano do ensino mé- dio. Em Matemática, a nota média dos alunos da 4a série, em 2003, foi 172, numa escala que vai de 100 a 375. Estes números ganham mais sentido quando técnicos do Ministério da Educação1 informam que, em 2003, 60% dos alunos da 4a série do ensino fundamental tinham bai- xa proficiência em Língua Portuguesa, e 56%, em Matemáti- ca. Isso denota que mais da metade dos alunos dessa série apresentavam um nível de aprendizagem abaixo do espera- do. E os resultados do SAEB de 2005 permitem estimar que esses números continuam praticamente inalterados. A partir desses dados, podemos estimar que os alu- nos da rede municipal de ensino do Rio Grande do Nor- te, que apresentaram nota média de 141 em Língua Por- tuguesa — a menor média entre os estados — tiveram bem mais do que 60% de baixa proficiência; e que os alunos da rede municipal de Minas Gerais, com uma mé- dia de 183 — a maior entre os estados — devem ter tido melhor aproveitamento do que os de São Paulo, que fi- caram com a média de 174, próxima da nacional. Em relação à rede estadual de ensino fundamental, te- mos mais uma vez o Rio Grande do Norte com a menor mé- dia, de 144; sendo 191, no Distrito Federal (e 177 no estado de São Paulo). A menor média da rede particular de ensino fundamental ocorreu em Sergipe, com 197 — portanto, maior do que na rede pública do DF; e a maior média da rede parti- * é pesquisador do Instituto Pólis: . cular foi em Minas Gerais, com 232 (em São Paulo, 225). 43 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Verificamos que os valores médios variam bastante, de acordo com as redes, e também entre os estados e as cidades, por exemplo, quando se comparam as redes de ensino das capitais com os demais municípios, ou entre as escolas rurais e urbanas. Por outro lado, o SAEB de 2005 revela melhora nas redes em alguns estados e piora em outros, refletindo, em alguma medida, os investimentos dos diferentes gestores, tanto na rede física, nos equipa- mentos, quanto na qualificação do corpo docente, na re- visão da grade curricular, no estímulo à permanência dos alunos, na gestão participativa das escolas etc. É neste ponto que pretendemos nos deter: um sistema de avaliação como o SAEB, e mesmo o ENEM — Exame Na- cional do Ensino Médio —, permite um diagnóstico ade- quado da situação e evolução da educação básica, mas só vale se for utilizado como uma ferramenta para trans- formar, para melhor, a situação encontrada. A condição essencial para que isto ocorra é que ele seja entendido e apropriado pela sociedade — concreta- mente, pelos pais dos alunos, os próprios alunos, princi- palmente os do nível médio, pelos empresários, sindica- tos, entidades de defesa de direitos, e, especialmente, os gestores, mas não só os públicos das diferentes esferas, como também os diretores das escolas, os professores, os parlamentares etc. Alocação de recursos Na medida em que o INEP já produziu um SAEB censitá- rio,2 envolvendo boa parte da rede pública de ensino fun- damental e, inclusive, produziu cartazes com os resulta- dos de 2005 de cada escola, a quem caberia iniciar este processo de apropriação dos dados, para desencadear o debate público e a definição das ações necessárias? Neste ponto, lembramos da importância do envolvi- mento da mídia. Entretanto, o que nos parece fundamen- tal é que, preferencialmente, a iniciativa deve ser, de for- ma simultânea e convergente, do secretário municipal, da Câmara de Vereadores, das entidades associativas dos professores, dos diretores, das associações de pais e mestres e de bairros — e, por que não, da iniciativa de pessoas físicas, pais, professores, imprensa local... Os gestores podem começar com uma medida muito concreta — que a implementação do Fundeb - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a partir deste ano, pode facilitar — que é a proposta de alocação de re- cursos, priorizando as escolas que apresentam os piores indicadores: por exemplo, destinando os recursos neces- sários para melhorar sua infra-estrutura e criando meca- nismos de remuneração que atraiam os melhores profes- sores, os mais experientes e dedicados. Porque, só assim, será possível reverter os indicadores que já mostram que 80% dos alunos mais pobres, da classe E, brancos ou ne- gros, têm notas consideradas críticas ou muito críticas. E poderiam propor, em negociação coletiva, que uma parte variável da remuneração fosse vinculada à melhora no desempenho dos alunos, medido por meio de metas também negociadas — nesse processo, estariam envol- vidos, além dos professores, os próprios alunos e pais. Essa abordagem requer uma gestão participativa, que não apenas envolva a comunidade local em tarefas como a limpeza e manutenção da escola, como também abra o debate sobre a adequação da grade curricular à reali- dade do entorno da instituição, estimulando, dessa for- ma, a participação dos pais e a curiosidade e a sede de conhecimento dos alunos. Uma pesquisa recente, desenvolvida pela Unesco e o INEP,3 levanta outra questão, bastante polêmica, mas que precisa ser enfrentada em cada escola: naquelas freqüen- tadas pela classe socioeconômica A, 10,3% dos estudantes brancos e 23,4% dos negros têm notas consideradas “crí- ticas” ou “muito críticas” — um diferencial bem maior do que nas escolas freqüentadas pela classe E. Para Mary Garcia Castro, uma das coordenadoras do estudo, nas escolas das classes mais altas, os negros são minoria, causando o aumento do preconceito racial, o que acaba se refletindo nas notas. Segundo ela, a maioria dos entrevistados — não-negros — disse que o desempenho escolar era “questão de mérito” ou “problema da família”. Ela cita o exemplo da Escola Comunitária Luíza Mahim, em Salvador, onde a maioria das crianças é negra e o desem- penho delas é melhor em comparação com os brancos: “Lá se trabalha a questão da raça negra, mas não de maneira in- feriorizada. Fala-se dos heróis negros da escravidão, o que ajuda a levantar a auto-estima dos alunos”. Notas 1 SIMÕES, Armando A.; GOULART, O. M. T. Brazil’s national award for innovation in education management: an incentive for local education authorities to improve municipal education systems toward the goals of the National Education Plan. The Innovation Journal: The Public Sector Innovation Journal, v. 11(3), art. 6. 2 Dados por escola disponíveis em: . 3 Relações raciais na escola: reprodução de desigualdades em nome da igualdade. Disponível na página da Unesco. 44 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 45 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 . A obsessão do uso do termômetro nunca fez baixar a temperatura. Philippe Meirieu Haverá algo mais educativo e libertador do que exercitarmos nossa capacidade de avaliar a avaliação, reconhecendo que sua complexidade não se encontra na seleção de dados a coletar, mas na decisão do olhar interpretativo que será utilizado? Mara Regina de Sordi ão se pode deixar de concordar com os que afirmam que a avaliação é, muitas vezes, “uma pedra no caminho” do trabalho das instituições, das escolas, dos educado- res. Dizemos sempre que avaliar não é fácil. A pergun- ta que imediatamente se propõe é: por quê? Que carac- terísticas tem a avaliação que a tornam “difícil”? O que se exige num processo avaliativo que o faz converter-se freqüentemente num problema para os que com ele es- tão envolvidos? Minha área de trabalho é a Filosofia da Educação. A Ética tem sido um espaço privilegiado de minha reflexão. É no âmbito da Filosofia da Educação e da Ética, portan- to, que tenho me voltado para as diversas questões que nos desafiam no nosso cotidiano de educadores. Neste texto, pretendo centrar a reflexão na necessi- dade da presença da ética no terreno da avaliação. Em um trabalho anterior (Rios, 2000), procurei apontar al- guns aspectos desse tema. Aqui, quero levar adiante a discussão, explorando alguns elementos provocativos, encontrados na prática de professores e indicados por / QUE SER1 DA AVALIA¿»O Terezinha Azerêdo Rios* SEM A ÁTICA * Terezinha Azerêdo Rios é doutora em Educação, professora do Mes- trado em Educação do Centro Universitário Nove de Julho – Uninove e do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC/SP: . 46 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 eles em algumas situações. Vou destacar uma experiên- cia que, embora tendo um caráter bastante particular, re- presenta, de certa forma, algo que é vivenciado por mui- tos educadores. Uma vivência em Moçambique De 2004 a 2006, trabalhei como professora num convê- nio da PUC-SP com a Universidade Pedagógica, em Mo- çambique. Tratava-se de um mestrado desenvolvido pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação/Cur- rículo e cujos alunos eram professores dos diversos cur- sos da universidade moçambicana. Ali, ministrei a dis- ciplina Avaliação: Teorias e Práticas. O objetivo central da disciplina, apresentado na pro- posta de programa, era discutir sobre o significado da avaliação no contexto escolar, identificando suas funções e percebendo suas conseqüências e implicações político- pedagógicas. Buscou-se analisar o processo avaliativo no interior das tendências da educação contemporânea e refletir sobre as políticas de avaliação na educação em Moçambique, seus fundamentos e sua significação na organização curricular da escola daquele país. No relatório apresentado ao final do trabalho, afirmo que foi uma experiência muito gratificante, pois pude con- tar, no decorrer dos trabalhos, com a disponibilidade e a atenção de todo o grupo. Todas as propostas apre- sentadas foram acolhidas com interesse e foi grande o envolvimento de todos nas discussões. Revelaram-se a curiosidade e o empenho de ampliar o conhecimento para aprimorar a atuação profissional, especificamen- te no que diz respeito à avaliação educacional. Pôde- se perceber que a exploração sistemática dos conceitos trouxe, a alguns dos participantes, uma nova forma de se apropriar deles. Num dos momentos do trabalho, depois de discu- tirmos a natureza da avaliação, suas funções, os tipos de avaliação, solicitei, aos alunos-professores, que in- dicassem quais eram as certezas e dúvidas que tinham sobre a questão. No plano das certezas, apontavam-se: • a importância do processo avaliativo no contexto da educação; • as vantagens de um olhar crítico sobre a prática pe- dagógica; • a necessidade da atenção dos professores para to- dos os elementos envolvidos nessa prática. Algumas afirmações já indicavam uma preocupação com o eixo da reflexão que aqui pretendo desenvolver: • “Tenho certeza de que uma avaliação justa motiva os alunos para a aprendizagem”; • “É preciso ser um bom educador para garantir uma avaliação justa”; • “A avaliação é um gesto crítico que visa trazer a jus- tiça na relação professor-aluno”. No plano das dúvidas, concretizaram-se as preocupa- ções que já se anunciavam nas “certezas”: • “Será que existe um professor que faz uma avalia- ção justa?”; • “É possível fazer justiça no processo da avaliação?”; • “A subjetividade do processo de avaliação deixa- me com uma série de dúvidas quanto à justiça nes- se processo”. Esses questionamentos apontavam para um foco co- mum: será que há realmente possibilidade de haver jus- tiça quando se realiza uma avaliação? A referência à justiça nos remete imediatamente à ne- cessidade da presença da ética no campo da avaliação. Para além de perguntar por métodos e técnicas de elabo- ração de instrumentos de avaliação, ou pela objetividade de critérios para organização de exames e provas, os pro- fessores faziam emergir o núcleo da ação avaliativa, que se encontra em sua própria definição, se recorrermos à eti- mologia: avaliar é conferir valor. E qual é o valor da avalia- ção? Embutida na pergunta pela justiça, havia uma inda- gação: de que vale a avaliação, se ela não é justa? Conferir valor Conferir valor é algo que marca a intervenção dos seres humanos no mundo, como criadores de cultura. A trans- formação que se opera na realidade, por meio do traba- lho, não se dá apenas num aspecto material, como tam- bém, e principalmente, num plano simbólico, de atribui- ção de significados, de valores. Valores de diferentes naturezas, que se encontram presentes em todas as dimensões das ações e relações dos seres humanos, na sociedade e na história: • lógicos — quando nos referimos à verdade ou falsi- dade dos enunciados, das proposições teóricas; • estéticos — quando se qualificam como belas ou não as criações artísticas; • econômicos — quando se quantificam as realizações que produzem a vida material; 47 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 • morais — aqueles para os quais quero chamar aten- ção, que dizem respeito à significação conferida ao comportamento dos indivíduos em sociedade, na sua relação com os outros. Se a presença dos valores é algo constituinte da ação e da relação entre os seres humanos e se dize- mos que avaliar é conferir valor, podemos afirmar que a avaliação faz parte do cotidiano da vida humana. Ouvimos dizer, sempre, que, em todo momento, es- tamos avaliando: acordamos, chegamos à janela e dizemos que “o dia está bonito”; vemos passar um conhecido na rua e pensamos que sua gravata é “de mau gosto”; assistimos na televisão à descrição de um homicídio e opinamos que é “um crime imperdo- ável”; lemos o trabalho de um aluno e concluímos que “está regular”. Será que são “avaliações” de natureza idêntica? Sabemos que não, tanto em virtude da “classifica- ção” antes apresentada, quanto dos contextos nos quais se dá o gesto avaliativo. Entretanto, é importan- te assinalar que, em qualquer espaço em que se re- aliza esse gesto, sempre se tem uma referência para se afirmar que algo é “bom”, “de mau gosto”, “im- perdoável” ou “regular”. Não avaliamos sem consi- derar alguns critérios, que constituem uma base para nossos juízos. É da natureza da avaliação voltar-se para um ob- jeto com a intenção de emitir sobre ele um parecer. Há sempre, no gesto avaliativo, um juízo de valor. Os juízos são atos do pensamento nos quais afirmamos ou negamos algo. Nos juízos de fato, enunciamos algo que diz respei- to a aspectos verdadeiros ou falsos da realidade. Nos juízos de valor, fazemos uma apreciação dos fatos. Não se diz que se avalia quando apenas se verifica que um corredor percorreu uma distância de 100 metros em 30 segundos. Na verdade, avalia-se quando se julga se isso significou ou não algo importante — o registro de um recorde, por exemplo. Na escola, não haveria sentido em atribuir notas aos trabalhos dos alunos, se não hou- vesse um referencial segundo o qual se pudesse dizer se aquelas notas indicam algo bom ou mau. Apontar o positivo e o negativo Falamos aqui em presença da ética na avaliação que se realiza no contexto educacional, mais propriamente no contexto escolar. Assim, num processo de educação or- ganizado e sistemático, a avaliação deve caracterizar-se como um olhar crítico, que procura voltar-se para a rea- lidade com a intenção de vê-la com clareza, profundida- de e abrangência, buscando superar uma visão ideoló- gica ou preconceituosa, indo às raízes das questões que pretende investigar e enfrentando o desafio de levar em consideração a diversidade e a multiplicidade de pon- tos de vista com que se defronta. Avaliar deve ser, então, no sentido que aqui se con- sidera, fazer uma crítica. É preciso cuidado, entretanto, para não ficarmos presos ao sentido que se dá à crítica, no nível do senso comum. Aí, a crítica é considerada uma apreciação que aponta apenas o aspecto negativo do ob- jeto enfocado. Diz-se, então, que criticar é “falar mal”: “o aluno criticou a professora”, “os pais criticaram a es- cola”, “os professores criticaram o governo”. Isso leva a pensar que talvez a resistência que se te- nha à avaliação se justifique em virtude de uma compre- ensão restrita, que reduz e empobrece a significação do olhar crítico. Sem ter consciência clara disso, muitos pro- fessores buscam no desempenho dos alunos somente os aspectos que é preciso corrigir. É claro que, quando avaliamos, encontramos muitas vezes elementos que precisam ser corrigidos, modifica- dos, superados. Entretanto, se já partimos do pressupos- to de que há algo a ser corrigido, nosso olhar pode dei- xar de enxergar o que está bom, o que merece ser des- tacado e aprimorado. O que afirmamos sobre a atitude crítica nos ajuda a entender, assim, que fazer a crítica a algo não signifi- ca apontar só o que é negativo. Ao olhar com clareza, com profundidade e com abrangência, temos a possibilidade de ver o que é bom e o que é mau, o que anda bem e SE RECORRERMOS ̧ ETIMOLOGIA AVALIAR Á CONFERIR VALOR % QUAL Á O VALOR DA AVALIA¿»O %MBUTIDA NA PERGUNTA PELA JUSTI¿A HAVIA UMA INDAGA¿»O DE QUE VALE A AVALIA¿»O SE ELA N»O Á JUSTA 48 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 o que está inadequado. Assim, podemos nos esforçar para mudar o que não está satisfatório e aperfeiçoar o que julgamos que está indo bem. Por isso é que não faz sentido falar em crítica construtiva ou destrutiva: a crí- tica alarga e aprofunda nossa visão — o que fazemos a partir daí é o que efetivamente qualifica o processo, do ponto de vista ético. Dimensões da avaliação Talvez a qualificação da avaliação como algo difícil se deva ao fato de ela constituir uma atitude crítica, que nem sempre se assume facilmente. Na verdade, menos que difícil, a avaliação é complexa: o campo da avaliação — especialmente da avaliação educacional — compõe- se de vários segmentos específicos e o processo avalia- tivo se constitui de inúmeras dimensões, estreitamente conectadas entre si. Para falar da presença da ética, como uma dimensão que deve ser constituinte da avaliação, devemos, então, voltar nosso olhar para as dimensões da avaliação. Há em toda ação avaliativa uma dimensão técnica, que diz respeito ao conhecimento tanto dos objetos ou dos su- jeitos a serem avaliados, quanto dos objetivos e dos procedimentos necessários e adequados. Aí também se encontram os referenciais para as verificações. Ava- liar pressupõe apontar determinados objetos, estabele- cer objetivos que se pretendem alcançar, construir ou selecionar instrumentos para a ação e definir caminhos para atingir o fim. Por ser fundamental na configuração da avaliação, a dimensão técnica constitui, sem dúvida, o seu suporte. Entretanto, ela só ganha sentido se estiver articulada às outras dimensões. Uma delas é a dimensão política, que guarda referência ao contexto no qual se dá a avaliação, às determinações aí presentes, às pressões para a defi- nição de caminhos. A outra é a dimensão moral, que diz respeito especi- ficamente à atitude, ao comprometimento dos sujeitos que realizam as ações de avaliação. Fica, evidente, então, que a avaliação não tem ape- nas um caráter técnico, não se reduz aos atos de verifi- car ou conferir ações e resultados. É impossível falar de um processo de avaliação sem fazer referência às deter- minações a que está constantemente submetido e aos valores que o fundamentam. Avaliar pressupõe definir princípios, em função dos objetivos que se pretende al- cançar e implica um compromisso dos sujeitos envolvi- dos na direção desses objetivos. Muitas vezes, considera-se apenas a dimensão téc- nica da avaliação, deixando-se de lado os aspectos po- líticos e, principalmente, os éticos. Assim, a preocupa- ção maior se concentra nos instrumentos, nas medi- das, nas representações quantificadas. Não é ruim es- tar atento a esses elementos. Na verdade, é uma atitu- de ingênua aquela que despreza os aspectos quantita- tivos da avaliação. Romão (1998, p. 48) qualifica como um mito, indicador do caráter ideológico que se encontra muitas vezes no campo da avaliação, a afirmação de que “é preciso elimi- nar os aspectos quantitativos da avaliação”. Recorrendo a Gramsci, o autor afirma que: “já que não pode existir quantidade sem qualidade e qualidade sem quantidade (economia sem cultura, atividade prática sem inteligên- cia e vice-versa), qualquer contraposição dos dois termos é, racionalmente, um contra-senso” (idem). O que vale assinalar é que, ao se perder de vista o que significam, do ponto de vista ético-político, os as- pectos qualitativos, empobrece-se o sentido da avalia- ção, que faz parte de uma dinâmica mais ampla: a da prática educativa e a da convivência social. Dias Sobri- nho (2003, p. 177) confirma a presença da dimensão po- lítico-moral quando afirma que 49 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 mas ações reprováveis tornam-se costumeiras em al- gumas instâncias sociais, as pessoas são levadas a afirmar que “já que é costumeiro, não é mau”. Muitas vezes, verifica-se isso no campo da avaliação — recorremos a determinadas formas de avaliação ha- bituais, já “consagradas”, sem perguntar por sua con- sistência ou coerência. São “costumeiros” os exames vestibulares, logo... serão bons? É para evitar equívocos dessa natureza que recorremos à ética. Diferente da moral, que tem um caráter norma- tivo, a ética tem um caráter reflexivo. É com base em seus princípios — o respeito, a justiça, a solidariedade — que as ações morais podem ser julgadas. Essa é uma distinção que pretende ser esclarecedo- ra, no sentido de levar ao reconhecimento da presen- ça da moral, em todas as ações e relações, e de uma costumeira ausência da ética, em boa parte delas, em nosso contexto social, nas instituições escolares, nas salas de aula. É porque temos necessidade dessa presença da éti- ca que precisamos nos mobilizar para identificá-la e pro- movê-la com firmeza. No terreno da avaliação educa- cional, que aqui nos interessa especificamente, a éti- ca tem o papel de indagar se as ações avaliativas estão fundadas em princípios que levam à promoção do bem comum, da dignidade humana, da vida feliz. Igualdade na diferença Os professores moçambicanos preocupavam-se com a justiça na avaliação. Alguns apontavam a dificuldade de realizar uma avaliação justa, em virtude da presença da subjetividade no processo. A partir de suas indagações, tivemos oportunidade de refletir sobre a falsa dicotomia objetividade/subjetividade nas ações e relações humanas. Objetividade e subjetividade são perspectivas do conhe- cimento, o qual se define exatamente como uma relação que envolve sujeito e objeto. Esta relação tem um caráter dialético — impossível separar os seus pólos. Assim, pelo fato de haver sempre um sujeito “co- nhecedor”, é impossível deixar de haver subjetividade no conhecimento e na ação. Isso se evidencia se reto- marmos o que dissemos sobre os valores presentes no contexto humano. Valores são atribuídos levando-se em conta características que os objetos, quaisquer que se- jam eles, têm, independentemente da relação com o su- jeito, mas se configuram exatamente a partir da signifi- ...a avaliação (...) é uma prática social orientada sobretudo para produzir questionamentos e compreender os efeitos pedagógicos, políticos, éticos, sociais, econômicos do fenômeno educativo, e não simplesmente uma operação de medida e muito menos um exercício autocrático de discriminação e comparação. Ética e moral O fato de existir uma dimensão moral na avaliação não implica, entretanto, a presença da ética. Embora haja uma referência constante à ética no trabalho dos educadores, penso que ainda se faz confusão, o que é muito comum, entre ética e moral. É preciso distin- gui-las, não para separá-las — o que é impossível — e sim para que possamos nos referir a elas com mais propriedade. Enquanto a moral consiste no conjunto de pres- crições que orienta a conduta de indivíduos e grupos nas sociedades, a ética se apresenta como um olhar crítico sobre a moral, perguntando pelos fundamen- tos dos valores que a sustentam. As ações morais têm sua origem nos costumes de cada sociedade. Esses costumes estão fundados em valores — o que é costumeiro é confundido, muito fre- qüentemente, com o que é bom. E, então, porque algu- 50 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cação que os sujeitos dão a essas características. Assim, não é a presença da subjetividade que pre- judica o trabalho educativo ou a avaliação. O que pode causar prejuízo é a forma como se atribuem os valores, quando se desconsideram os princípios que devem fun- damentar a convivência humana, o processo educati- vo, os mecanismos de avaliação. Levando em conta a subjetividade, somos remeti- dos também à necessidade de considerar a diversidade e a diferença. É exatamente aí que ganha relevo a ques- tão da justiça. Pelo princípio da justiça, afirma-se a igualdade na diferença. Somos diferentes: homens e mulheres; bran- cos, negros, de diversas etnias; idosos, adultos, jo- vens e crianças. Mas somos iguais em direitos, iguais no direito de ter direitos, de criar direitos. Somos, por- tanto, diferentes e iguais. O contrário de igual não é di- ferente. É desigual, e tem uma conotação social e polí- tica. A afirmação da identidade se dá na possibilidade da existência da diferença e na luta pela superação da desigualdade. Perguntar pela presença da justiça nas ações de ava- liação é indagar se elas, como elementos de um pro- cesso mais amplo que é a educação, contribuem para que se cumpra a finalidade desse processo: a criação e a partilha da cultura, a construção da humanidade, a afirmação da cidadania. Pode parecer enfático fazer essa afirmação. Entre- tanto, é preciso que nós a reiteremos, sempre: quan- do avaliamos, no campo da educação, educamos. E te- mos que nos indagar se estamos efetivamente educando de acordo com os princípios éticos, para além do que se costuma determinar moralmente. Quantas vezes o processo avaliativo não tem contribuído para a ins- talação de desigualdades, quantas vezes a avaliação não se apresenta como um instrumento de dominação e controle, apesar dos discursos que mencionam igual- dade e diálogo? Parece-nos que é exatamente na avaliação que (os pro- fessores) mais negam seus discursos progressistas, que retomam, com mais determinação, a prática do monólogo com o aluno, que usam o espaço para o exercício do poder, um poder que se harmoniza com a ordem social vigente. (...) Não conseguem analisar a avaliação do estudante como apenas uma limitada faceta de um processo mais amplo (Sordi, 1995, p. 23). Vale retomar a idéia de que, ao trazer a justiça para o processo educativo/avaliativo, cria-se espaço para a igualdade e a diferença. Comte-Sponville (1996, p. 75) afirma que “a igualdade não é tudo”. E indaga: “Seria justo o juiz que infligisse a todos os acusados a mes- ma pena? O professor que atribuísse a todos os alunos a mesma nota?”. É preciso reconhecer a diferença — de natureza, de condições — dos que são submetidos à avaliação, uma vez que é a partir desse reconhecimento que se pode criticamente estabelecer critérios e enca- minhar ações. Avaliação, “ensinação” e aprendizagem Tenho chamado atenção para uma pergunta que é feita por um amigo e colega, o professor Douglas Santos: o que ensinamos quando ensinamos uma determinada disciplina? – “O que realmente ensinamos quando procuramos explicar cada um dos temas que dão identidade às nossas disciplinas e às nossas aulas?” (Santos, 2004, p. 35). A resposta é: não ensinamos apenas aquelas disciplinas. Segundo Santos, “ensinar conteúdos ultrapassa os limites aparentes de nosso discurso e das afirmações que nele estão contidas”. Isso quer dizer que, ao ensinar qualquer disciplina, criamos possibilidades de o educando desenvolver a capacidade de dominar as estruturas que são usadas para construir o pensar e, além disso, possibilidades de desenvolver a capacidade de agir e sistematizar sua ação. Mais ainda: não é apenas um amplo conjunto de habilidades que se desenvolve, também se configuram atitudes em relação à realidade e à convivência social. A atitude do professor ensina. A AVALIA¿»O N»O Á ALGO ISOLADO DA ORGANIZA¿»O CURRICULAR Á ELEMENTO CONSTITUINTE DESSA ORGANIZA¿»O 0OR ISSO MESMO Á QUE SE INSISTE NO CAR1TER PROCESSUAL E CONTÅNUO DA AVALIA¿»O NO SEU CAR1TER FORMATIVO 51 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Ora, a avaliação não é algo isolado da organização curricular, é elemento constituinte dessa organização. Por isso mesmo é que se insiste no caráter processual e con- tínuo da avaliação, no seu caráter formativo. Assim, com relação à avaliação, há uma pergunta decorrente daque- la que nos apresenta Douglas Santos: “O que se ensina quando se avalia algo no contexto educativo?”. Retomo a pergunta levando em consideração a for- ma como a avaliação tem sido, muitas vezes, realizada na escola: de forma fragmentada, em momentos espe- cíficos. Há, então, “a semana de provas”, “o dia da ava- liação”. Nesses momentos, supostamente, “não há au- las”. Há uma interrupção no processo de ensinar, que ocorre nas aulas. A “ensinação” e a aprendizagem dão lugar à avaliação. É propositalmente que pinto com cores mais fortes o que costuma acontecer — reconheço que essa forma de considerar o trabalho na escola não é própria da maio- ria dos professores. Entretanto, ela faz parte de um ima- ginário que se expressa na fala dos alunos: “Não esta- mos tendo aula (aprendendo?) nesta semana, pois é a ‘semana dos exames’”. Efetivamente, numa “parada para avaliar” acontece algo diferente da relação coti- diana de professores e alunos. Mas não se deixa de ensinar e aprender. E o que se ensina e se aprende naquele momento? A organização das questões propostas aos alunos, a forma como se esclarecem os objetivos e critérios, a atitude do professor ao apresentá-los, tudo isso ensi- na, para além da sistematização de determinadas es- truturas de conhecimento. Sem dúvida, há que se estar atento para a dimensão técnica do processo (será mes- mo considerado um processo?), mas não se podem es- quecer suas implicações políticas e éticas. No filme Pro dia nascer feliz, de João Jardim,1 entre di- versas cenas inquietantes e constrangedoras, o cineasta nos faz participar daquela em que se mostra uma sessão do Conselho de Classe de uma das escolas enfocadas no filme. As professoras estão discutindo o desempenho de um aluno que tem um comportamento extremamente pro- blemático nas aulas de todas as disciplinas, e cujo rendi- mento se encontra longe do desejável. Os conceitos que cada professora traz são muito baixos e levariam imedia- tamente a uma reprovação. Entretanto, elas se pergun- tam se vale a pena reter o aluno, uma vez que as condi- ções para a recuperação são quase inexistentes e a re- provação levaria o aluno a abandonar a escola. Em nenhum momento as professoras fazem referên- cia explícita à questão da justiça na avaliação que estão realizando. Mas é isso o que está implícito. E é eviden- te o mal-estar que causa a ausência de recurso a qual- quer fundamento para os encaminhamentos que são propostos. Problematiza-se, ali, não apenas a situação do aluno, como também a das próprias professoras e da escola. E, sem dúvida, a da sociedade, carente de justiça. No Brasil, lugar do documentário; em Moçam- bique, onde os alunos-professores revelam suas preo- cupações. Em tantas partes do mundo. Esteban (2003, p. 32) nos diz que ...muitas vezes, o que dá sentido às palavras, atos, produ- ções, processos, possibilidades, carências, está silenciado, nem por isso, ausente. Apenas invisibilizado no discurso e nas práticas. Para avaliar, é preciso produzir instrumentos e procedimentos que nos ajudem a dar voz e visibilidade ao que é silenciado e apagado. Com muito cuidado, porque a intenção não é melhor controlar e classificar, mas sim melhor compreender e interagir. Crítica e utopia “Não mexa na minha avaliação!” é o título que Perre- noud (1993, p. 173) dá a um de seus trabalhos. Esta exclamação é, segundo Perrenoud, aquela com a qual se reage a qualquer mudança no sistema de avaliação, uma vez que ela implicaria uma mudança mais ampla, do sistema educacional: “significa pôr em questão um conjunto de equilíbrios frágeis e parece representar uma vontade de desestabilizar a prática pedagógica e o fun- cionamento da escola”, afirma ele. Há, sem dúvida, uma verdade na afirmação de Per- renoud. Se considerarmos que a avaliação não pode estar desarticulada de outros elementos do processo educativo, sendo considerada até um dos elementos- chave desse processo, mexer nela poderia colocar em risco o edifício supostamente seguro do trabalho rea- lizado na escola. É importante, portanto, pensar a avaliação no con- texto da proposta curricular e, esta, no interior de um projeto pedagógico, elaborado com a participação de toda a equipe escolar e levando em conta as necessi- dades concretas da sociedade e os limites e possibi- lidades para a construção coletiva de uma educação democrática e justa (Rios, 2000). 52 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Se atualmente a discussão em torno da organização curricular amplia a noção de conteúdos, que não abrange apenas os conceitos, como também os comportamentos e atitudes, é preciso ampliar ainda a noção de avaliação. Se se pretende realizar uma formação integral, é neces- sário que a avaliação também o seja. Trata-se de olhar criticamente para todo o trabalho que se realiza na es- cola e não somente o do aluno. E quando se voltar para o trabalho do aluno, é preciso que, numa relação de res- peito e justiça, professores e professoras procurem es- tabelecer princípios e definir instrumentos e ações que encaminhem para os objetivos desejados. O terreno da avaliação é um espaço privilegiado para que se encontre a possibilidade de concretização da proposta de incluir a ética no currículo das escolas como algo que, não constituindo uma área ou discipli- na, articula-se com elas de maneira que os professores e as professoras possam trabalhar, de maneira integra- da, o conhecimento específico de suas áreas e as ques- tões relacionadas aos valores e ao convívio social (Bra- sil, 1998). O respeito, a justiça, a solidariedade, o diá- logo, que devem estar presentes nas relações no inte- rior da escola e, desta, com a sociedade, devem ser os referenciais para o estabelecimento de critérios e de- vem fundamentar o trabalho na sala de aula e o proces- so continuado de avaliação desse trabalho. Retomo a certeza do professor que afirma que “a ava- liação é um gesto crítico que visa trazer justiça na relação professor-aluno”. Ela se converte numa dúvida quando percebemos seu caráter categórico: “a avaliação é...”. Na verdade, a avaliação deve ser... Este “dever ser”, reves- tido não de um caráter impositivo e controlador, e sim entendido como expressão do desejo e da necessidade, leva-nos ao caráter utópico que se abriga na ética. Como tentativa de compreensão, o exercício crítico da ética volta-se para um ideal — algo desejado e ne- cessário, que se anuncia no futuro e cuja possibilida- de já se encontra inscrita no real e no presente. Ainda não encontramos no contexto educativo a avaliação justa do jeito que pensamos ser desejável. Mas é nes- se próprio contexto que se revelam ações que nos dão esperança, que indicam a possibilidade de contribuir, na escola, para a construção da sociedade democráti- ca e solidária. As certezas — sempre provisórias — con- tinuam a conviver com as dúvidas que nos provocam a seguir em frente, enfrentando os desafios. Referências AFONSO, Almerindo Janela. Avaliação educacional: regulação e emancipação. São Paulo: Cortez, 2000. ________. Avaliar a escola e a gestão escolar: elementos para uma reflexão crítica. In: ESTEBAN, Maria Teresa (Org.). Escola, currículo e avaliação. São Paulo: Cortez, 2003. p. 38-56. BARBIER, Jean-Marie. A avaliação em formação. Porto: Edições Afrontamento, s/d. BARLOW, Michel. Avaliação escolar: mitos e realidades. Porto Alegre: Artmed, 2006. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Fundamental, 1998. COMTE-SPOVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1996. DIAS SOBRINHO, José. Avaliação – Políticas educacionais e reformas da educação superior. São Paulo: Cortez, 2003. _______. Educação e avaliação: técnica e ética. In: DIAS SOBRINHO, José; RIS- TOFF, Dilvo (Org.). Avaliação democrática: para uma universidade cidadã. Florianópolis: Insular, 2002. ESTEBAN, Maria Teresa. Ser professora: avaliar e ser avaliada. In: ESTEBAN, Maria Teresa (Org.). Escola, currículo e avaliação. São Paulo: Cortez, 2003. p. 13-37. ______ (Org.). Escola, currículo e avaliação. São Paulo: Cortez, 2003. HADJI, Charles. Avaliação desmistificada. Porto Alegre: Artmed, 2001. PERRENOUD, Philippe. Não mexam na minha avaliação! Por uma abordagem sistêmica da mudança pedagógica. In: ESTRELA, Albano; NÓVOA, António (Org). Avaliações em educação: novas perspectivas. Porto: Porto Editora, 1993. p. 171-191. RIOS, Terezinha A. A dimensão ética da avaliação. Pró-Posições, Campinas, Facul- dade de Educação da Unicamp, v. 10, n. 2, p. 94-101, maio 2000. ________ Ética e competência (1993). 16. ed. São Paulo: Cortez, 2006. ________ Compreender e ensinar: por uma docência da melhor qualidade (2001). 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006. ROMÃO, José Eustáquio. Avaliação dialógica – desafios e perspectivas. São Paulo: Cortez, 1998. SANTOS, Douglas. Uma consultoria para a educação escolar no Amapá – Relatório de discussões. São Paulo: PUC-SP/Instituto de Estudos Especiais, 2004. SORDI, Mara Regina Lemes de. Entendendo as lógicas da avaliação institucional para dar sentido ao contexto interpretativo. In: VILLAS BOAS, Benigna M. de F. (Org.). Avaliação: políticas e práticas. Campinas: Papirus, s/d. p. 65-81. VILLAS BOAS, Benigna M. de F. (Org.). Avaliação: políticas e práticas. Campinas: Papirus, s/d. Notas 1 Pro dia nascer feliz. Documentário. João Jardim (diretor). Ravina Filmes/Fogo Azul Filmes. Brasil, 2006. 53 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 “Meados de outubro, gravador em mãos, roteiro de pergun- tas... Eu realizava uma entrevista com seis alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental - EMEF Pastor Ismael Pereira Lago, no município de Limeira. Com as crianças colocadas em círculo, fazia a entrevista num tom informal, procurando descobrir mais sobre o desenvolvimento do projeto Estudar pra valer! Língua Portuguesa na sala de aula. Estávamos em uma biblioteca. Os alunos, ávidos para contar tudo o que aprenderam com o Projeto, os diferentes gêneros que conheceram, como desenvolveram as atividades, as leituras de que mais gostaram etc. Estava entusiasmada para ir a campo e coletar dados importantes, por intermédio de alunos, para a avaliação de um projeto. Consegui facilmente obter diversas informações com as crianças de 3o e 4o ano, cumprindo os objetivos da pesquisa naquele local. Ao final da entrevista, um aluno apontou para uma estan- te da biblioteca e me pediu para pegar um dos módulos do material do Projeto, a fim de que pudesse contar melhor o que ele e seus colegas tinham aprendido. Mais que isso, ele queria que eu escolhesse uma história, lesse para eles e, em seguida, conversássemos sobre o texto. Achei interessante a sua atitude. Ele parecia seguro e entusiasmado em participar de um processo avaliativo. Mas, como eu já havia obtido informações que julgava suficientes sobre o Projeto, resolvi mudar a estratégia: propus que o alu- no escolhesse um livro para que realizássemos uma roda de leitura. O escolhido foi um livro de adivinhas. Comecei a lê-lo para o grupo, mostrando suas imagens e fazendo suspense. A participação dos alunos era tanta que acabei comparti- lhando, com eles, o papel de leitor — cada um se incumbiu de ler uma parte do livro. Nesse momento, os alunos, que desde * Cláudia Petri é pedagoga, com especialização em alfabetização, coordena o projeto Estudar pra Valer! que integra o programa Terri- tório Escola no Cenpec. Heloísa Trenche é pedagoga, mestranda em Educação pela Uni- camp e pesquisadora da equipe de monitoramento e avaliação, do programa Território Escola. RELATO DE PRÁTICA: PROJETO ESTUDAR PRA VALER! LÍNGUA PORTUGUESA De olhos... e ouvidos no aluno Claudia Petri Heloísa Trenche* o início da entrevista se mostraram bastante comunicativos, demonstraram que liam com fluência, levantavam hipóteses e faziam inferências, ou seja, tornaram evidentes suas habili- dades de leitura. Descobri, com esta atividade, aspectos ainda não observados durante a entrevista. Quando a adivinha foi desvendada, no final do livro, as crianças pediram muito para que eu continuasse a ler outras histórias. Tive que parar por ali, o tempo havia se esgotado e os alunos precisavam voltar para a sala de aula...” Trecho de relato de uma pesquisadora que participou da coleta de dados. Como tudo começou... Esse pequeno relato ilustra uma fase da coleta de da- dos do Estudo Exploratório, realizado em 2006, com escolas que participam do Projeto Estudar pra valer! Língua Portuguesa, nos municípios de Bebedouro, Li- meira, Resende e São Bernardo. Mais que isso: ele ex- plicita o principal aspecto que se procura avaliar com esse Estudo: como o Projeto contribui para a aprendi- zagem dos alunos. O Estudar pra valer! Língua Portuguesa iniciou-se em 2002, no município de Itanhaém. Desde então, fo- ram realizadas algumas mudanças e ajustes, de acor- do com as demandas e as avaliações processuais. O monitoramento e a avaliação do Projeto tinham como objetivo a observação das práticas dos professores, da gestão dos tempos e espaços das escolas e dos re- sultados referentes à alfabetização durante o ano. Tais informações serviram como subsídios para reorientar as ações do Projeto e planejar estratégias de trabalho no processo de formação dos educadores. A idéia de realizarmos um estudo mais aprofunda- do, em que pudéssemos verificar os resultados do Pro- 54 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 jeto em relação à aprendizagem dos alunos, já vinha sendo alimentada pela equipe há muito tempo. Nosso interesse era saber mais sobre como eles aprendiam com o Projeto e se realmente se apropriavam dos di- ferentes gêneros trabalhados, ou seja, se liam mais e melhor, se produziam textos adequados à situação de produção etc. Um projeto em que o foco é o trabalho voltado à aprendizagem da leitura e da produção de texto por todos os alunos merece ser avaliado por meio de um estudo qualitativo em profundidade. Ora, realizar uma avaliação dessa natureza não é trivial. Exige diferentes tipos de esforço, principal- mente no que se refere à construção de uma propos- ta de avaliação e monitoramento que contemple dife- rentes estratégias de coleta de dados para se compre- ender as variáveis que podem influenciar no processo de aprendizagem dos alunos. Além disso, ansiávamos acompanhar o processo de aprendizagem dos alunos longitudinalmente, uma vez que o Projeto se propõe a trabalhar com as séries iniciais do ensino fundamental. Após três anos de implementação do Estudar pra valer!, percebemos a possibilidade de essa idéia se concretizar: pela primeira vez estaríamos em parceria com os municípios durante uma gestão completa de quatro anos e a equipe estava estruturada para aten- der melhor essa demanda. O primeiro passo para desenhar o plano de monito- ramento e avaliação foi a reconstrução dos indicadores do Projeto, por meio de uma matriz avaliativa. A matriz contemplou três etapas: • uma avaliação ex-ante, na qual analisamos os da- dos de contexto dos municípios; • uma avaliação de processo, por meio da análise das ações realizadas pelo Projeto; • uma avaliação de resultado com o foco nas ações dos participantes — professores e gestores — nas escolas. Embora esse processo de monitoramento e ava- liação já tivesse ocorrido em 2006, ele pôde ser mais bem estruturado. Mas, como queríamos investigar com mais profundidade a relação entre a aprendizagem dos alunos e o desenvolvimento do trabalho dos educado- res, esboçamos um plano, ao qual chamamos de Es- tudo Exploratório. O Estudo Exploratório Seleção dos participantes Foi necessário fazer algumas escolhas no processo de elaboração do planejamento do Estudo. O Projeto prevê um número muito grande de alunos (em 2006, eram cerca de 56.500). Não coletamos dados de todos os envolvidos, nem mesmo obtivemos uma amostra estatística. Nossa op- ção foi a de realizar um estudo em profundidade, coletan- do dados mais detalhados sobre os resultados da apren- dizagem de 461 estudantes. Decidimos realizar um estudo que guardasse as carac- terísticas de um Estudo de Caso, pois nos possibilitaria co- nhecer de perto detalhes sobre a implementação do Pro- jeto na escola e também viabilizaria a realização da coleta de dados diretamente nessas instituições. Esse tipo de pesquisa já está legitimada no âmbito aca- dêmico, principalmente no que se refere aos estudos qua- litativos. Segundo Marli André (2005), no Estudo de Caso, busca-se conhecer em profundidade o particular. Há o inte- resse em selecionar uma determinada unidade para com- preendê-la. A situação a ser investigada é escolhida por re- presentar um caso digno de ser estudado, seja por ser repre- sentativo de muitos outros, seja por ser distinto deles. Como faríamos então a seleção dos participantes do Estudo? Definimos alguns critérios: • os quatro municípios participantes do Projeto deve- riam ser contemplados; • deveria haver a adesão dos alunos, professores, ges- tores e técnicos da secretaria ao processo avaliativo; • as quatro escolas escolhidas deveriam ter sido acom- panhadas, desde 2005, pela equipe do Cenpec e tido uma relação de proximidade com a gestão escolar. A Secretaria, considerando esses fatores, também in- terferiu na escolha da escola: optou por unidades lo- calizadas na periferia, que apresentavam algumas di- ficuldades, por exemplo, em aspectos pedagógicos ou no desempenho dos alunos; • seleção de quatro professores de uma mesma escola, contemplando cada uma das diferentes séries, sendo eles professores que haviam participado das ações de formação desde 2005 (ano em que o Estudar pra valer! foi implementado nos municípios) e que esta- vam desenvolvendo o Projeto em sala de aula. 55 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 MUNICÍPIO DE LIMEIRA Escola EMEB Pastor Ismael Pereira Lago @ 4 gestores da escola @ 4 professores (do 1o ao 4o ano) @ 126 alunos (do 1o ao 4o ano) MUNICÍPIO DE SÃO BERNARDO Escola EMEB Professor André Ferreira @ 3 gestores da escola @ 4 professores (do 1o ao 4o ano) @ 119 alunos (do 1o ao 4o ano) O Projeto Estudar pra Valer! Língua Portuguesa O Projeto Estudar pra valer! Língua Portuguesa foi ela- borado tendo em vista os resultados visíveis do fracasso escolar no que se refere à leitura e à produção de texto, ferramentas básicas para a aprendizagem em todas as áreas do currículo. Seu objetivo é formar e assessorar gestores das se- cretarias e das escolas e professores de 1o ao 4o ano do ensino fundamental e acompanhar as unidades escolares durante o desenvolvimento do Projeto. Além disso, oferece um material de apoio específico, estruturado em projetos de leitura e produção de texto, para ser utilizado por professores e alunos. As atividades pretendem propiciar situações concretas, em sala de aula, de uso da língua em sua função social. Espera-se, com o desenvolvimento do Projeto, que os professores se apropriem da metodologia de projetos de leitura e produção de texto, proposta por ele, e dos fundamentos teóricos subjacentes, e passem a desen- volvê-la com os alunos. Almeja-se também uma melhora no desempenho do aluno no que se refere ao domínio da leitura e à produção de textos orais e escritos em diferentes gêneros. O Projeto é desenvolvido em parceria com a Fundação Volkswagen e, atualmente, com os municípios de Bebe- douro, Limeira, Resende e São Bernardo. O Projeto foi inicialmente desenvolvido em Itanhaém, em 2002 e 2003 e, desde 2004, também em Cajamar, por iniciativa do município. Em 2003 e 2004, foi implemen- tado no município de São Carlos, com financiamento da Fundação Volkswagen. Definidos os critérios e esboçado o planejamento, entramos em contato com os municípios participantes para uma conversa inicial, quando apresentamos a pro- posta, que foi muito bem recebida por todos. Então, ini- ciamos a coleta de dados. Os sujeitos do Estudo Para cada um dos quatro municípios envolvidos no Estudo, participaram quatro professores do 1o ao 4o ano do ensino fundamental e seus respectivos alunos, além da equipe gestora das escolas, que variou de uma ins- tituição para outra. A seguir, apresentamos os sujeitos envolvidos na pesquisa: MUNICÍPIO DE BEBEDOURO Escola EMEF João Pereira Pinho @ 3 gestores da escola @ 4 professores (do 1o ao 4o ano) @ 105 alunos (do 1o ao 4o ano) MUNICÍPIO DE RESENDE Escola E.M. Dona Mariucha @ 5 gestores da escola @ 4 professores (do 1o ao 4o ano) @ 108 alunos (do 1o ao 4o ano) Cadastro Primeiro, realizamos o cadastro de alunos e professo- res comprometidos com o Estudo Exploratório, fator im- prescindível para que pudéssemos acompanhar longitu- dinalmente esse grupo. Perfil dos professores e dos gestores Coletamos informações sobre formação e experiência profissional por meio de questionário estruturado. Com esses dados, teríamos conhecimento sobre a trajetória profissional desses educadores. Perfil das escolas Também coletamos dados, por meio de questionário es- truturado, para a caracterização das escolas envolvidas. O objetivo era investigar dados de abrangência (número de alunos, profissionais, níveis de ensino da escola etc), de infra-estrutura (espaços e equipamentos disponíveis) e dados relativos aos aspectos pedagógicos (informações sobre eventos culturais, organização do horário de traba- lho coletivo dos educadores, ações para a recuperação da aprendizagem dos alunos etc). 56 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Coleta de dados sobre freqüência e rendimento dos alunos Outra proposta foi a de levantar dados sobre a freqüên- cia e o rendimento dos alunos em Língua Portuguesa, em 2005. Essa coleta acontecerá durante os três anos subseqüentes da implementação do Projeto nos muni- cípios. A intenção é, ao final dos três anos, verificar se houve mudanças em relação a esses indicadores. Questionário de hábitos de leitura e práticas culturais das famílias e dos alunos Como o nível de desempenho dos alunos depende de diversos fatores, pareceu-nos interessante considerar tam- bém o contexto familiar e suas práticas culturais. Nesse sentido, as informações dos grupos de 3os e 4os anos foram obtidas por meio de um questionário estruturado. As entrevistas Realizamos entrevistas com a equipe gestora das qua- tro escolas e com 15 professores envolvidos no Estudo. Um roteiro semi-estruturado foi elaborado, contendo per- guntas sobre o material, o desenvolvimento do Projeto na escola e na sala de aula, e os possíveis avanços dos alu- nos em relação à leitura e produção de texto. Também realizamos entrevistas coletivas com 47 alu- nos. Em cada uma das escolas, esses alunos foram divi- didos em dois grupos, com uma média de seis participan- tes. Procuramos contemplar, em um grupo, alunos de 1o e 2os ano e, em outro, de 3o e 4o ano, e assim descobrir o que eles conheciam sobre o material, com quais proje- tos mais gostaram de trabalhar, como vivenciaram a lei- tura e a produção de textos dos diferentes gêneros pro- postos pelo Projeto etc. As atividades Esta foi uma das principais estratégias adotadas para a realização do Estudo Exploratório. Desenvolvemos ativi- dades de leitura e produção de texto com todos os alu- nos das quatro séries, totalizando 461 participantes. As atividades foram realizadas em outubro de 2006, pe- los próprios professores, com acompanhamento de pro- fissionais da equipe de monitoramento e avaliação do Cenpec. Eles receberam tanto as fichas contendo as ati- vidades dos alunos quanto um instrumento com orienta- ções para a sua aplicação. Para a montagem dessas atividades, elaboramos ini- cialmente, para cada ano das quatro séries iniciais do en- sino fundamental, uma matriz de indicadores, relaciona- dos às habilidades trabalhadas no projeto: alfabetização, ortografia, leitura e produção de texto. Os descritores do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo - Saresp (2005) e Prova Brasil (2006) serviram como referências neste processo de elaboração. Em seguida, para cada indicador, montamos questões interligadas, por meio de uma situação contextualizada: uma professora e sua turma de alunos em situações coti- dianas de uma escola. Isso possibilitou, aos alunos, a in- teração com as atividades e, ao mesmo tempo, o estabele- cimento de relações entre as situações de leitura e de pro- dução e seu uso social. Todas as atividades e indicadores foram elaborados e analisados por especialistas da área de Língua Portuguesa e de avaliação de projetos. Um aspecto importante deste Estudo foi o fato de os professores entrarem em contato com um instrumento de avaliação que consideramos formativo, já que cada ques- tão continha as habilidades a serem avaliadas. Os próprios professores, no dia da realização das atividades nas salas de aula, entusiasmaram-se com a estruturação do instru- Que tipo de materiais de leitura tem em sua casa? ( ) a. livros de escola/ didáticos ( ) b. dicionário e/ou enciclopédia ( ) c. Bíblia ou livros religiosos ( ) d. livros infanto-juvenis ( ) e. literatura em geral (poesia, ficção, policial, romance, livros técnicos, biografia etc. ) ( ) f. revistas ( ) g. gibis ( ) h. jornais ( ) i. guia de ruas, catálogos telefônicos ( ) j. livros e revistas de culinária ou cadernos de receitas ( ) k. outro. Qual?_______ Seus pais ou outra pessoa da sua família lêem ou já leram histórias para você? ( ) a. Sim, com freqüência ( ) b. Sim, de vez em quando ( ) c. Sim, liam quando mais novo ( ) d. Não ( ) e. Não sei/não me lembro EXEMPLOS DE PERGUNTAS DO QUESTIONÁRIO DE HÁBITOS DE LEITURA E PRÁTICAS CULTURAIS DAS FAMÍLIAS E DOS ALUNOS Em sua casa alguém costuma ler jornal? ( ) a. Sim, todos os dias ( ) b. Sim, quase todos os dias ( ) c. Sim, às vezes ( ) d. Não ( ) e. Não sei/nunca vi Com que freqüência você vai a shows? ( ) a. sempre ( ) b. às vezes ( ) c. raramente ( ) d. nunca Com que freqüência você vai ao cinema? ( ) a. sempre ( ) b. às vezes ( ) c. raramente ( ) d. nunca Com que freqüência você vai a museus? ( ) a. sempre ( ) b. às vezes ( ) c. raramente ( ) d. nunca 57 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 mento e a relação das questões com as habilidades; en- fim, reconheceram que era uma maneira interessante de avaliar o aluno. A seguir, apresentamos, como exemplo, as atividades de produção de texto dos alunos de 4o ano e os indicadores referentes a essas questões. III. Contribuições do estudo exploratório Neste estudo, optamos por coletar dados de uma parte dos alunos participantes. Para tanto, utilizamos uma di- versidade de estratégias. Com elas, conseguimos obter um conjunto de informações quantitativas e qualitativas de di- ferentes naturezas, que nos possibilitou um olhar abran- gente sobre o contexto das escolas, alguns dados do letra- mento na família, a aprendizagem dos alunos envolvidos no Estudo e a implementação do Projeto na escola. Além disso, por meio da avaliação do Projeto, obtivemos infor- mações sobre o contexto dos municípios, que serão leva- das em consideração na análise dos resultados. O outro aspecto que merece destaque é a realização de uma avaliação longitudinal. Ela nos ajudará a analizar os resultados do Projeto ao longo de três anos. Este é o primeiro ano do Estudo. Pretendemos realizá-lo durante os próximos dois anos. Segundo Soares (2005), para fazermos uma avaliação de aprendizagem dos alunos, seria necessário acompanhá-los, por meio de estu- dos longitudinais, durante parte de sua vida escolar, e não somente por intermédio da aplicação de uma ava- liação pontual. Portanto, neste caso, ela seria considera- da, pelo autor, uma avaliação de desempenho. Na área de avaliação e monitoramento, é comum a re- alização de avaliações no início e no final do processo, para que se possa fazer comparações e visualizar as mu- danças com a implementação do projeto. O valor deste Es- tudo longitudinal está em compreender quais ganhos os alunos terão em relação às habilidades de leitura e pro- dução de textos ao entrarem em contato com os diferen- tes gêneros discursivos que o material apresentará du- rante os quatro anos. Embora este Estudo não tenha trabalhado com uma amostra representativa do todo, julgamos que realizar uma avaliação profunda dos resultados do Projeto na aprendi- zagem dos alunos tem sua validade se ela contempla uma diversidade de estratégias de coleta de dados, coerentes com aquilo que se pretende investigar. Além disso, ficou evidente, neste processo, que a adesão e o envolvimento dos participantes no Estudo fo- ram fundamentais para que ele ocorresse. Todos os edu- cadores e alunos mostraram-se disponíveis e muito re- ceptivos à proposta de realização e participação no Es- tudo Exploratório. No final do ano, como já tínhamos em mãos os resul- tados referentes às atividades de leitura e produção de texto dos alunos, nós os disponibilizamos para as esco- las, em tempo de serem utilizados como subsídio para o planejamento de 2007. Ao terminar apenas uma etapa da realização do Es- tudo Exploratório, percebemos que esta forma de coleta de dados já nos deu subsídios para realizar uma avalia- ção significativa dos resultados do Projeto. A metodolo- gia adotada não é a única possível, mas pode contribuir para que se legitimem, cada vez mais, análises dessa na- tureza no campo da Avaliação. Referências ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Líber Livro Editora, 2005. DRAIBE, Sônia Miriam. Avaliação de implementação: esboço de uma metodologia de trabalho em políticas públicas. In: CARVALHO, Maria do Carmo Brant de; BAR- REIRA, Maria Cecília Roxo Nobre (Orgs.). Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP, 2001. p. 13-42. SANT ́ANNA, Ilza Martins. Por que avaliar? Como avaliar? Critérios e instrumentos. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. SOARES, J. F. O efeito da escola no desempenho cognitivo de seus alunos. In: MELLO E SOUZA, Alberto de (Org.). Dimensões da avaliação educacional. Petropólis: Vozes, 2005. p. 174-204. SOARES, José Francisco. Melhoria do desempenho cognitivo dos alunos do ensino fundamental. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, Ministério da Educação/Inep (no prelo). Prova Brasil: escala de Língua Portuguesa. Dis- ponível em: . Acesso em: 17 jul. 2006. GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Saresp: habilidades avaliadas e gabaritos das provas. 2005. Disponível em: Acesso em: 14 jul. 2006. Notas 1 A produção de uma matriz avaliativa foi a forma encontrada por nossa equipe para organizar os indicadores e, conseqüentemente, os dados que ela pretende coletar sobre o Projeto. 2 Para um melhor entendimento do significado dessa etapa avaliativa, citamos a definição adotada por Sônia Miriam Draibe (2001, p. 19): “Avaliações ex-ante precedem o início do programa, ocorrendo em geral durante as fases de sua preparação e formulação; também referidas como avaliação diagnóstico, são realizadas para apoiar decisões finais da formulação (...)”. 3 Uma das professoras de 1o ano que estava participando do Projeto desde o início mudou de escola. A sua substituta não estava envolvida nas ações de formação do Projeto, por isso, consideramos desnecessário entrevistá-la. Ainda assim, como essa turma participou de todo o processo com a professora antiga, optamos por incluí-la no Estudo Exploratório. 4 Falamos aqui de uma avaliação mais abrangente, realizada por meio da coleta de dados já comentada neste documento: avaliação ex-ante de processo e de resultado. 58 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 59 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 )NDICADORES DE QUALIDADE MOBILIZAM A ESCOLA Vera Masagão Ribeiro Vanda Mendes Ribeiro Joana Buarque de Gusmão* ste texto1 descreve e analisa um sistema de indicadores sobre a qualidade da escola que vem sendo desenvolvido no Brasil por iniciativa de uma organização não-governa- mental — a Ação Educativa — e dois organismos interna- cionais — Unicef - Fundo das Nações Unidas para a Infân- cia e PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desen- volvimento, contando com a participação de outras insti- tuições governamentais e não-governamentais de todo o país. O principal objetivo deste sistema, e que lhe confere características peculiares, é o engajamento da comunida- de na luta pela melhoria da qualidade da escola. Em primeiro lugar, descrevemos o contexto político que gerou a iniciativa; em seguida, o processo de elabo- ração do sistema e, depois, seus fundamentos e carac- terísticas. Concluímos com comentários sobre as princi- pais questões levantadas a partir da primeira utilização experimental do sistema em 14 escolas de educação bá- sica e as perspectivas do projeto. * Vera Masagão Ribeiro é doutora em Educação e coordenadora de programas da ONG Ação Educativa. Vanda Mendes Ribeiro e Joana Buarque de Gusmão são consul- toras, especialistas no desenvolvimento e avaliação de projetos sociai s. % 60 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Indicadores de avaliação do sistema educacional brasileiro e seus usos sociais Durante a década de 1990, instituiu-se no Brasil um conjunto de instâncias de avaliação do sistema educa- cional em âmbito nacional. Em 1990, o Sistema de Ava- liação da Educação Básica - SAEB realizou seu primeiro exercício de avaliação nacional, aplicando provas de co- nhecimento a amostras de alunos nos vários estados. A partir de 1995, os levantamentos passaram a se con- centrar nos estudantes da 4a e 8a séries do ensino fun- damental e 3a série do ensino médio. Inicialmente focalizando conteúdos curriculares de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências, as pro- vas foram paulatinamente incluindo mais disciplinas. Além de aplicar testes, o SAEB reúne informações so- bre: a origem familiar dos alunos; seus hábitos e con- dições de estudo; as práticas pedagógicas dos pro- fessores; e as formas de gestão da escola, de modo a reunir elementos que possam explicar as variações no desempenho dos alunos e orientar o desenho de políticas voltadas à melhoria do rendimento do siste- ma escolar. Em 1998, o Ministério da Educação passou a aplicar ainda o Exame Nacional de Ensino Médio, em caráter facultativo, dirigido a todos os concluintes do ensino médio, com o objetivo de avaliar o desempenho dos alunos ao término da Educação Básica, oferecer uma referência de auto-avaliação e ainda servir como al- ternativa aos processos de seleção para o ingresso no ensino superior ou no mercado de trabalho. Em 1997, também a avaliação do ensino superior passou a in- cluir, entre seus mecanismos, testes de conhecimen- to para os alunos concluintes. Tal interesse por avaliações de sistemas educacio- nais com base na aplicação de testes em larga escala teve ainda expressão em nível subnacional e internacio- nal. Nesse período, algumas secretarias estaduais de educação organizaram seus próprios sistemas de ava- liação. Em 1997, o Brasil participou da primeira avalia- ção do Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação, sob coordenação da Unesco – OREALC - Escritório Regional de Educação para América Latina e Caribe e, em 2000, do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes - PISA, iniciativa da OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Eco- nômico (Franco; Bonamino, 2001). Ainda que a avaliação do rendimento dos alunos por meio de testes aplicados em larga escala tenha sido a grande novidade no período, outras iniciativas impor- tantes ocorreram simultaneamente, resultando em pro- gressos notáveis na produção e disponibilização de in- formações sobre o sistema escolar brasileiro. O INEP — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira — passou a centralizar todos os serviços de avaliação e informação. Além de promover as avaliações mencionadas, o INEP realiza anualmente o Censo Escolar e, periodicamente, outros levantamentos especiais, por meio dos quais vem reunindo informações sobre o número de matrículas e de docentes, média diária de horas de aula, média de alunos por turma, movimentação escolar (aprovação, reprovação e conclusão), infra-estrutura dos estabelecimentos (pen- dências, equipamentos, transporte, serviços de água, luz e esgoto), participação em programas de desenvol- vimento do ensino, entre outros. Essas informações, somadas às produzidas pelo IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — sobre as taxas de freqüência escolar e o grau de escolaridade dos vários grupos etários, oferecem um quadro amplo da si- tuação do ensino básico brasileiro, que atende aproxi- madamente 44 milhões de alunos, em 250 mil escolas, mas que ainda está longe de poder garantir os direitos educativos prescritos na legislação brasileira, tanto em termos de abrangência quanto de qualidade do ensino oferecido. Todo esse esforço de avaliação e sistematiza- ção de informações tem como objetivo, segundo o pró- prio INEP, dar suporte à pesquisa e à tomada de deci- sões em políticas educacionais e, especialmente, orien- tar a formulação das políticas do Ministério da Educa- ção (INEP, 2003). As informações, normalmente reunidas por estados e regiões, são publicadas pelo INEP na forma de relató- rios e são divulgados pela imprensa. Mais recentemen- te, esse instituto tem procurado disponibilizar as infor- mações desagregadas também por municípios e por es- / 3!%" PRETENDE REUNIR ELEMENTOS QUE POSSAM EXPLICAR AS VARIA¿ÍES NO DESEMPENHO DOS ALUNOS E ORIENTAR O DESENHO DE POLÅTICAS PÒBLICAS 61 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 tabelecimentos de ensino, de modo a torná-las mais sig- nificativas para os gestores locais. As informações desagregadas normalmente estão dis- poníveis em suportes informatizados — bancos de dados que permitem consulta via Internet ou arquivos eletrô- nicos — e também em suportes impressos: no verso do formulário do Censo Escolar, que anualmente é enviado a cada uma das escolas do país para preenchimento, o INEP imprime um relatório com os principais indicado- res relativos àquela escola. Não há dúvida de que tais esforços, no que se refere à informação e à avaliação, são fundamentais para o avanço da pesquisa educacional no país e para o desenho de polí- ticas públicas que respondam aos problemas prioritários, assim como para o monitoramento e o controle social des- sas políticas públicas. Entretanto, como acontece em outros países da América Latina que estruturaram seus sistemas de avaliação nesse mesmo período, o uso efetivo dessas informações como instrumento de tomada de decisões e melhoria do sistema de ensino permanece um enorme de- safio (Wolff, s.d.). Os resultados dos alunos nas provas de desempe- nho realizadas pelo SAEB têm ficado muito abaixo do es- perado. Segundo uma nova leitura que o INEP está fazen- do dos resultados de 2001, por exemplo, 22,2% dos alu- nos da 4a série não estão alfabetizados e 36,8% estão em situação crítica: só lêem frases simples de forma truncada (INEP, 2003a). Publicados na grande imprensa, normalmente enfatiza- dos em manchetes alarmantes, esses dados provocam o de- bate público em torno das deficiências do nosso sistema de ensino. Se tornar pública a problemática educacional é, por um lado, um fator positivo, não se deve deixar de reco- nhecer seus limites e até mesmo seus riscos. Quem tem a oportunidade de formar opinião com base na imprensa es- crita é majoritariamente uma classe média cujos filhos não estão em escolas públicas e que lamentam o baixo nível do ensino público atual, tomando como referência uma ima- gem idealizada da escola pública do passado, uma escola cuja excelência pedagógica era reconhecida, mas que, em contrapartida, era muito mais elitizada. Poucos têm condições de avaliar com precisão o de- safio político e pedagógico colocado para o sistema de en- sino público nos dias de hoje, depois que uma grande par- cela das classes populares — antes totalmente excluídas — conquistou o direito à escolarização, ainda que em con- dições precárias de inclusão.2 E, diga-se de passagem, o tratamento dado à questão pela imprensa e os pronuncia- mentos das autoridades públicas para justificar o fracasso de suas políticas nem sempre ajudam a esclarecer a opi- nião pública sobre o problema. O resultado é o reforço de uma imagem negativa do ensino público, como sendo de baixa qualidade, em que principalmente os professores são responsabilizados, considerados mal formados, des- preparados, etc. Fenômenos amplos e complexos em sínteses estatísticas Como era de se esperar, não é grande a receptividade dos professores e demais agentes escolares a dados de avaliação que geram este tipo de representação da sua identidade profissional. As reações podem variar do alhe- amento à transferência da culpa aos alunos — acusados de serem pobres e oriundos de famílias desestruturadas — ou aos pais — por seu pressuposto desinteresse pela educação dos filhos. As possibilidades de um uso mais produtivo, pelos professores, dos resultados das avaliações — para diag- nosticar problemas e reorientar a prática pedagógica — são limitadas por um conjunto de fatores: os relatórios quase nunca chegam às suas mãos, os métodos utiliza- dos para definir os níveis de competência não são facil- mente compreensíveis e, a partir deles, não é fácil deri- var as ações remediadoras correspondentes. Além dis- so, por se basearem em amostras e produzirem resulta- dos agregados por estado ou macrorregiões administra- tivas, os professores e demais agentes escolares não fi- cam plenamente convencidos de que o diagnóstico se aplica à sua realidade (Vianna, 2003). Mesmo os outros indicadores sobre os sistemas de ensino — baseados em informação censitária e não de- pendentes das complexidades psicométricas dos testes — têm sido apropriados de forma limitada pelas comu- nidades escolares. Fórmulas numéricas que descrevem fenômenos macro — como a relação das matrículas com a demanda potencial ou as distorções idade-série do alunato — podem parecer triviais para especialistas, mas não o são para a maioria dos professores, muito menos para os alunos e seus familiares. Analisar fenômenos amplos e complexos com base em sínteses estatísticas não é operação comum para a maio- ria das pessoas, que usam outras estratégias para analisar problemas e tomar decisões em sua vida cotidiana. Não 62 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 que os obstáculos cognitivos para a popularização desse tipo de indicador sejam intransponíveis, principalmente se existe efetiva motivação dos órgãos que os produzem em apresentá-los de forma compreensível. As razões do pouco uso de tais indicadores pela maio- ria das pessoas envolvidas com a prática educacional de- vem ser buscadas principalmente no domínio motivacio- nal. É provável que esses indicadores não interessem às comunidades escolares porque respondem a perguntas que não foram formuladas por elas. Pesquisadores e tecnocratas não observam e não interrogam a realida- de escolar da mesma perspectiva que as pessoas que a vivem cotidianamente. Finalmente, é preciso ter em vista o cenário mais am- plo em que se deu a implantação dos sistemas centrali- zados de avaliação da educação no país. Ela é parte de um conjunto de reformas educativas hegemônicas em países do Norte e do Sul, nas quais a avaliação centra- lizada se coloca como contrapartida à descentralização administrativa e autonomização das escolas. Acontece que, no Brasil, tais reformas se impuseram num contexto de fortes restrições ao investimento do Es- tado em políticas sociais, devido à estagnação da eco- nomia e às exigências das instituições financeiras in- ternacionais quanto à geração de superávits no or- çamento público para tranqüilizar credores externos. Os recursos investidos na educação não são suficientes para gerar condições essenciais para o aperfeiçoamen- to do trabalho pedagógico das escolas, tais como: es- tabilidade das equipes docentes, disponibilidade para o trabalho em equipe, proporção mais equilibrada entre o número de professores e de alunos, enriquecimento e diversificação dos materiais educativos, complemen- tação de renda para as famílias de alunos em situa- ção de pobreza. Nesse contexto, os resultados das avaliações de desem- penho e outros indicadores de qualidade da escola não poderiam deixar de ser alarmantes. Mas apenas a sua divulgação não é suficiente para gerar ações efe- tivas de correção de rumos. Apesar de haver um cer- to alarde na imprensa, que mobiliza um segmento da opinião pública, as escolas não se apropriam dessas informações, não conseguem assumir o papel de pro- tagonistas e ainda acabam vitimadas pelo estigma da incompetência. Os sentidos da qualidade da educação Analisando as críticas conservadoras à deterioração da qualidade do ensino público, associada à sua rá- pida e desordenada expansão, Celso Beisiegel chama a atenção para o fato de que as avaliações de qualidade sempre variam de acordo com a situação de classe dos observadores. Se, do ponto de vista das classes privile- giadas, a qualidade do ensino pode ter realmente pio- rado, é outra a perspectiva das grandes massas su- balternas. Conclui o autor: Para quem não tinha acesso à educação escolar, mesmo este ensino de má qualidade representa uma indiscutível melhoria, isso não significa, obviamente, que as evidentes deficiências da escola púbica sejam aceitáveis. É preciso melhorar as condições de funcionamento da escola. Mas as avaliações da qualidade da escola pública não podem ignorar as transformações qualitativas introduzidas no ensino como conseqüência do processo de sua extensão às classes populares (Beisiegel, 1999). Estudos que procuram trazer à luz os valores atribu- ídos pelas classes populares à educação escolar mos- tram que, entre os aspectos mais valorizados, há mui- tos que não se referem à excelência acadêmica: a qua- lidade das relações humanas, a formação dos valores, a disciplina e a organização, além da pertinência e utili- dade das aprendizagens (Buratto; Dantas; Souza, 1998; Charlot, 2001; Fezl, 2002). Não que as classes privile- giadas dispensem tais atributos nas instituições esco- lares, é mais provável que os tomem como pressupos- tos fora de questão. Isso não poderia ocorrer com famílias de baixa renda com perspectivas incertas, moradores de regiões com al- tos índices de violência, usuários de escola sem condições mínimas de funcionamento. Além da diversidade determi- nada pelas diferenças de classe, é preciso levar em conta ainda aquelas derivadas das relações de gênero, das re- lações interétnicas e da pertença territorial. É de se espe- rar, também, que não sejam idênticas as prioridades dos alunos das diversas faixas etárias, as de seus familiares, as dos professores, diretores, supervisores etc. À medida que se reconhece a legitimidade dos pon- tos de vista de todos esses atores, além de sua capaci- dade de refletir e seu direito de participar das decisões, 63 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 é preciso buscar métodos de avaliação que fomentem o debate coletivo e a atribuição de valor com base na negociação entre os diferentes. Se se entende ainda que o envolvimento dos agentes escolares e das comunida- des é condição essencial para que se produzam mudan- ças na realidade educacional do país, é necessário for- talecer sua capacidade de refletir sobre seu cotidiano e suas conexões com as problemáticas gerais dos siste- mas educacionais. Como observa Peter Spink, a avaliação democrá- tica implica a utilização de indicadores, meios de co- leta de informação, mensuração e atribuição de valor que sejam compreensíveis e reconhecidos como rele- vantes pelo conjunto de pessoas que se quer envol- ver, métodos e instrumentos que apóiem o diálogo e a participação. O mesmo autor sugere que tal orientação conduz à adoção de procedimentos avaliativos mais variados, possivelmente estranhos àquilo que tradicionalmente se entende cientificamente como “método”. É certo que, quando a definição de indicadores e a atribuição de va- lores baseiam-se na perspectiva dos atores locais, as possibilidades de generalização dos resultados da ava- liação para o conjunto do sistema de ensino ficam com- prometidas. Ainda assim — observa Spink — é possí- vel fazer as várias perspectivas locais comunicarem-se e identificarem as questões reincidentes e tendências de melhoria mais gerais. Com relação ao conflito entre a perspectiva local e geral na construção de indicadores de avaliação de pro- jetos sociais, o autor conclui: Ter um indicador “limpo” para uso internacional é um problema das agências internacionais e não para a esmagadora maioria de pessoas que querem melhorar as condições de vida de seu bairro, localidade, região e país. Portanto, em vez de aceitar automatica- mente o “internacional”, não seria melhor inverter a situação e pedir a estes que assumam a iniciativa de debater e dialogar com os atores locais sobre a importância e a utilidade de certos métodos de mensurar, em vez de exigir ou forçar? (Spink, 2001, p. 22). Esta é a perspectiva do projeto Indicadores Qualitati- vos da Educação na Escola, que se está desenvolvendo no Brasil e cuja descrição será feita a seguir. Sem a pre- tensão de substituir os indicadores existentes, nem de menosprezar o seu valor como instrumentos de moni- toramento das políticas educacionais, a iniciativa pre- tende oferecer um instrumento complementar, mais di- retamente relacionado à perspectiva das comunidades escolares e mais eficaz como incentivo e suporte ao seu engajamento em ações coletivas que visem à melhoria da qualidade da educação. Uma experiência de construção de indicadores de qualidade Sob o incentivo do PNUD — Programa das Nações Uni- das para o Desenvolvimento — e do Unicef — Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência —, e com o apoio financeiro deste último, a organização não-gover- namental Ação Educativa assumiu, no início de 2003, a responsabilidade técnica de desenvolver um sistema de indicadores populares de qualidade da escola. Ela mo- bilizou um grupo de trabalho composto por várias ins- tituições de âmbito nacional, representativas na área, além de especialistas.3 A coordenação do processo fi- cou a cargo da Ação Educativa, do PNUD e do Unicef, e nela se engajou o INEP. Contando com um estudo preliminar e uma primeira sistematização de opções metodológicas, esse grupo de trabalho se reuniu para definir as linhas gerais do pro- jeto. A partir dessa reunião, precisou-se seu objetivo: a construção e a disseminação de um conjunto de indica- dores qualitativos de educação, de fácil compreensão, que facilite o envolvimento dos diversos segmentos da comunidade escolar em torno de um processo participa- tivo de avaliação, visando instigar sua ação pela melho- ria da qualidade da escola. Chegou-se também ao consenso de que o público- alvo do projeto era a comunidade escolar, ainda que ou- tros atores políticos pudessem fazer uso dos seus resul- tados. Considerou-se que a comunidade escolar é cons- tituída por pais, mães, diretores, alunos, professores e demais funcionários da escola, podendo se incluir ain- da conselheiros tutelares, de educação, dos direitos da criança, ONGs, universidades e outras organizações in- 64 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 teressadas e diretamente envolvidas com os problemas da escola e a procura de soluções. Com essas referências, elaborou-se uma versão preli- minar do sistema. Membros do grupo de trabalho se mo- bilizaram para, articulados com escolas interessadas, uti- lizar experimentalmente o instrumental, com vistas a tes- tar sua adequação aos objetivos propostos e reunir ele- mentos para seu aperfeiçoamento. Foram envolvidas, nessa etapa do trabalho, 14 esco- las, distribuídas nas cinco regiões do território nacional: sete escolas com ensino fundamental; seis, com ensino médio e três, com educação infantil; sete escolas muni- cipais (uma delas rural); seis, estaduais; uma, federal e uma, comunitária.4 Finda essa etapa, o grupo de trabalho se reuniu no- vamente — desta vez, contando com a participação de representantes das escolas que experimentaram o sis- tema — para debater as questões suscitadas, sugerir aperfeiçoamentos e, principalmente, definir e estabe- lecer compromissos quanto a sua disseminação. Além das orientações e sugestões dadas pelo grupo de trabalho e pelos representantes das escolas, várias referências serviram de base para o desenvolvimento da proposta, dando pistas sobre os principais aspec- tos da realidade escolar a serem levados em conta e sobre os meios de se chegar à atribuição de valor a cada aspecto, com base no debate democrático, sem perder de vista os parâmetros mais gerais do que se entende por qualidade da educação. O primeiro passo foi considerar a LDB — Lei de Di- retrizes e Bases da Educação Nacional — como um do- cumento que expressa um consenso sobre o que se espera da educação no país. Para a LDB, o objetivo maior do processo educacio- nal brasileiro deve ser a formação básica para a cida- dania, a partir da criação, na escola, de condições de aprendizagem para: • o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo, como meio básico, o pleno domínio da leitura, da escri- ta e do cálculo; • a compreensão do ambiente natural e social, do siste- ma político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; • o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habili- dades e a formação de atitudes e valores; • o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN foram tam- bém uma importante referência bibliográfica para a cons- trução dos indicadores, em especial no que se refere à con- cepção de avaliação como parte do processo educacional, voltada para o ajuste e a orientação da intervenção peda- gógica (MEC, 1997). A dimensão da prática pedagógica teve ainda, como referência fundamental, os PCNs, no que diz respeito à importância de se considerar a diversidade dos alunos e seus diferentes tempos de aprendizagem. Adveio dos PCNs a noção de que a escola deve instru- mentalizar crianças e adolescentes para o processo demo- crático e de que ela deve se constituir em um ambiente so- cializador, no qual, por meio do respeito e da valorização das diferenças socioeconômicas e culturais, contribui-se para o desenvolvimento da identidade pessoal. Escutar o que os diversos segmentos da população entendem por qualidade educacional foi outro passo re- levante na construção do conceito de qualidade que orien- tou o projeto. Nesse sentido, a Campanha Nacional pelo Di- reito à Educação - CNDE, articulação de um conjunto am- plo de organizações da sociedade civil, realizou, em 2001, a Consulta sobre Qualidade da Educação na Escola, para investigar o que a comunidade escolar entende por quali- dade, partindo da premissa de que este é um conceito que deve ser construído pelos que estão diretamente envolvi- dos com a escola e seu entorno (CNDE, 2002). A Consulta ouviu professores, diretores, funcionários, alunos, pais e pessoas da comunidade próxima à escola em dois estados brasileiros. Seus resultados mostram que, apesar de haver diferentes maneiras de se compreender o conceito de qualidade, assim como diversos critérios de 65 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 avaliação, predomina uma visão de qualidade humanista, que preza as relações humanas na escola. Uma grande im- portância foi dada à aprendizagem, ao trabalho e ao exer- cício da cidadania. Os entrevistados também destacaram as condições bá- sicas de funcionamento da escola para a educação de qua- lidade. Os questionários utilizados pela pesquisa apresen- taram perguntas que apoiavam a comunidade escolar na ponderação sobre a sua situação em relação aos indicado- res. Os resultados da avaliação da descentralização de pro- gramas do MEC para o ensino fundamental, realizada pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp, em 1997, trouxeram também importantes informações sobre as expectativas que professores, diretores, alunos e pais têm em relação à escola (NEPP, 1997). Grande inspiração para a parte metodológica do projeto foi o texto Indicadores de Qualidade de Projeto, da organiza- ção mineira Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento - CPCD. A instituição, em seu Projeto Bornal de Jogos, utiliza indicadores qualitativos construídos coletivamente (assim como os critérios) para a avaliação participativa das ações que promove (CPCD, s.d.). Na metodologia, coordenado- res, educadores, crianças, adolescentes e pais se reúnem em roda, debatem e atribuem nota a um conjunto de 12 in- dicadores, como transformação, eficiência, harmonia, ale- gria, beleza e apropriação, entre outros. Esses indicadores são construídos, pelos participantes, de acordo com sua relevância e significação, segundo seus próprios pontos de vista. Finalmente, são calculadas médias das notas por indicador e segmento, assim como a média geral do Projeto. Esta experiência demonstrou a eficácia e a fecundidade do método participativo, que é um dos prin- cípios do nosso trabalho, desde o seu início. A concepção de espaço físico escolar do Fundescola (Moraes, 2002) contribuiu para as formulações referen- tes ao espaço físico escolar, em especial com relação ao conceito de “aproveitamento do espaço físico”. Segundo o Fundescola, várias pesquisas sobre as condições dos prédios escolares brasileiros mostram que a maioria das escolas, sobretudo aquelas situadas nas regiões mais po- bres, é muito pequena ou construída sem um projeto ar- quitetônico próprio, não dispondo de espaços específi- cos para bibliotecas, videotecas, reuniões com a comu- nidade etc., razão pela qual é importante considerar a capacidade da comunidade escolar de utilizar os espa- ços de forma flexível e criativa. A noção subjacente ao projeto — de que “o poten- cial transformador dos indicadores se apresenta quan- do estes fazem parte de uma prática política de abertu- ra para um verdadeiro diálogo, o que é sutilmente dis- tinto do uso de indicadores para legitimar ações realiza- das” (PGPC, 1999) — adveio da sistematização das ofici- nas realizadas entre 1998 e 1999, pelo Programa Gestão Pública e Cidadania, para discutir a elaboração de indi- cadores qualitativos e quantitativos de impacto social e padrões de avaliação de políticas públicas ao se busca- rem estratégias locais de redução da pobreza. Outros materiais de autores e instituições ligadas à educação foram úteis para a construção das dimensões de qualidade da educação. Democracia: uma grande es- cola — alternativas de apoio à democratização da ges- tão e à melhoria da educação pública, de Elie Ghanem (1998), foi fundamental para a concepção da dimensão da gestão escolar democrática. O material do programa “Melhoria da educação no município”, desenvolvido pelo Cenpec (2003), institui- ção que compõe o grupo de trabalho do projeto, foi útil na construção de alguns indicadores e para a discussão sobre a importância do plano de ação. A publicação do Unicef, Todos pela educação no mu- nicípio: um desafio para cidadãos, contribuiu na cons- trução de algumas perguntas de avaliação dos indicado- res, além de servir de parâmetro para a adoção de uma linguagem simples e clara no instrumental. Outra fonte bibliográfica relevante foi o texto do Crer para Ver, programa da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, segundo o qual a educação deve ser considerada um campo de direitos: direito ao acesso; direito ao ensino de qualidade; direito à perma- nência na escola; direito a aprendizagens significativas e à realização dos alunos (Fundação Abrinq, 2001). O conceito de indicador utilizado no Projeto é de Le- andro Lamas Valarelli, que sistematiza os debates so- bre indicadores realizado em um grupo de trabalho pró- prio na Plataforma Novib (Valarelli, 2001). A obra traça um quadro geral sobre o uso de indicadores sociais no Brasil, pano de fundo importante para a construção dos “indicadores qualitativos”. Esta multiplicidade de referências bibliográficas, empíricas e conceituais produziu um quadro multifa- cetado, heterogêneo e complexo do que poderia ser o conceito de qualidade em educação, aplicado ao siste- ma brasileiro de ensino, tendo em vista a sua enorme diversidade social, cultural, econômica e geográfica. 66 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Diante dessa complexidade, ficou claro que não podería- mos adotar um conceito unívoco e totalizador da quali- dade em educação que coubesse em enunciado do tipo “a qualidade em educação é...” e ponto final. Não pode haver um conceito absoluto que resuma a qualidade em educação a um único atributo. Se não havia como estabelecer um conceito absolu- to, também não queríamos resvalar para um relativismo tão amplo que, admitindo válida qualquer significação para esse conceito, acabasse por torná-lo vazio e inócuo. A solução encontrada foi organizar os múltiplos aspectos do que foi levantado, nas diferentes fontes pesquisadas, como sendo constitutivo dessa qualidade em educação, em seis dimensões, cada qual enfatizando determinadas funções atribuídas à escola. Assim, formulamos um sis- tema de mensuração da qualidade que coloca, nos pró- prios sujeitos, a prerrogativa de atribuir valores às dife- rentes dimensões da realidade escolar. O SISTEMA DE INDICADORES, SUAS DIMENSÕES E A METODOLOGIA DE OPERACIONALIZAÇÃO O sistema de indicadores proposto abrange seis diferentes dimensões, entendidas como aspectos da qualidade da es- cola, traduzindo a ampla concepção de qualidade educativa adotada pelo projeto: 1. ambiente educativo; 2. prática pedagógica e avaliação; 3. gestão escolar democrática; 4. formação e condições de trabalho dos profissionais da escola; 5. ambiente físico escolar; 6. acesso e permanência dos alunos na escola. INDICADORES DA QUALIDADE NA EDUCAÇÃO Para obter todo o material referente aos Indicadores, organizado e editado pela Ação Educativa, utilize este endereço: . Cada uma dessas dimensões é constituída por um grupo de indicadores avaliados por perguntas a serem respondidas coletivamente. As respostas permitem à comunidade escolar avaliar a qualidade da escola no que diz respeito àquele indicador, ou seja, se a situa- ção é boa, média ou ruim. O instrumental procura levar a comunidade escolar a obter, de forma simples e aces- sível, um conjunto claro de sinais que possibilita a per- cepção dos problemas e virtudes da escola, de forma que todos os envolvidos possam conhecê-los, discuti- los e decidir quais são as prioridades de ação para me- lhorar esse quadro. Para facilitar o trabalho da comunidade escolar, pro- pusemos, no instrumental, um caminho para a operacio- nalização do sistema de indicadores. Os participantes da comunidade escolar devem se dividir em grupos, por di- mensões. Cada grupo deve ser composto por represen- tantes dos vários segmentos da comunidade e eleger um coordenador e um relator, sendo, este último, o respon- sável pela anotação e exposição, na plenária, do resul- tado da discussão do grupo. As perguntas vinculadas a cada um dos indicado- res se referem a práticas, atitudes ou situações que os qualificam. • Caso o grupo avalie que essas práticas, atitudes ou si- tuações estão consolidadas na escola, deverá atribuir- lhes cor verde, pois podem ser consideradas boas. O instrumental deixa claro que, neste caso, a escola está num bom caminho no constante (e infinito) processo de melhoria da qualidade. • Se, na escola, essas atitudes, práticas ou situações ocor- rem, mas não podem ser consideradas recorrentes ou consolidadas, o grupo lhes atribuirá cor amarela. Elas merecem cuidado e atenção. • Caso o grupo avalie que, na escola, essas atitudes, situ- ações ou práticas são inexistentes ou quase inexisten- tes, irá atribuir-lhes cor vermelha, pois exigem interven- ção imediata. As cores atribuídas às perguntas ajudam o grupo a pon- derar e decidir sobre qual das três cores melhor reflete a situ- ação da escola em relação a cada indicador. Para se chegar a um consenso sobre a cor que deve ser atribuída à dimensão pela qual o grupo é responsável, também é importante visu- alizar as cores atribuídas aos indicadores. No próprio docu- mento, à frente de cada pergunta, indicador e dimensão, há quadrinhos nos quais os participantes podem anotar as co- res atribuídas. Finalizada a discussão, o grupo deve colorir um quadro-resumo que traz somente o nome da dimensão e indicadores, o qual é exposto na plenária geral (momento em que todos os grupos estão reunidos para a exposição dos resultados das discussões realizadas em cada grupo). 67 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A partir da utilização experimental do instrumento, observou-se que, muitas vezes, a síntese da avaliação de um certo indicador com a cor amarela poderia camu- flar a presença de aspectos considerados críticos (verme- lhos), porque compensados por outros, julgados como bons (verdes). Considerou-se que tal avaliação do indi- cador pela média não seria o procedimento mais conve- niente. Assim, o grupo deveria levar a plenário os aspec- tos identificados como críticos, mesmo que, no conjunto, a situação fosse mediana. Observou-se também que seria conveniente que hou- vesse meios de representar graficamente (utilizando duas cores na qualificação de um indicador) os casos em que não se chegasse a um consenso. A existência de pontos não-consensuais, por si, já seria um sinal relevante a ser considerado pela comunidade escolar e, por isso, eles de- veriam ser explicitados. Ao final da discussão de cada grupo, o relator obtém uma lista de problemas e virtudes da escola. Então, o ins- trumental sugere que o grupo escolha os problemas prio- ritários e as principais virtudes, os quais serão levados à plenária geral dos grupos. Com os problemas prioritários selecionados no âmbito de cada dimensão, os grupos de trabalho se reúnem com os demais para ouvir o que cada um tem a dizer, promovendo um grande debate sobre o retrato que a comunidade escolar está obtendo da ativi- dade educacional. Para facilitar o debate na plenária, sugere-se que cada grupo de trabalho fixe, na parede, o quadro-resu- mo, com as cores atribuídas aos indicadores e à dimen- são pela qual ficou responsável. A exposição à platéia gira em torno de dois pontos: • justificar as cores atribuídas a cada um dos indicado- res e à dimensão (resumir as discussões feitas nos grupos) e • relatar os problemas prioritários eleitos. Após a exposição de todos os grupos, recomenda- se que seja promovido um último debate que apóie a eleição final das prioridades. Estas prioridades deverão pautar um plano de ação a ser elaborado pela comuni- dade escolar. O significado das seis dimensões Na dimensão Ambiente Educativo, os indicadores (si- nais de qualidade) se referem ao respeito, à alegria, à amizade e à solidariedade, à disciplina e tratamento ade- quado aos conflitos, ao combate à discriminação e ao exercício dos direitos e deveres: práticas que garantem a socialização e a convivência e desenvolvem e fortalecem a noção de cidadania e de igualdade entre todos. Pres- supõe a idéia de que a escola é simultaneamente um espaço de ensino, aprendizagem e vivência de valores e que, nela, os indivíduos se socializam, brincam e experi- mentam a convivência com a diversidade humana. A dimensão Prática Pedagógica e Avaliação está fo- cada no seu objetivo maior: fazer com que os alunos aprendam e adquiram o desejo de aprender mais e de forma autônoma. O projeto procura pautar a idéia de que, mediante uma ação planejada, intencional e refle- tida do professor no dia-a-dia da sala de aula, a escola facilitará o alcance desse objetivo maior. A prática pe- dagógica precisa também estar voltada para o desenvol- vimento do aluno por meio da observação, da compre- ensão das diferenças, da contextualização, da demons- tração de interesse e cuidado, de atividades que permi- tam a exploração das potencialidades individuais e de apoio à superação de dificuldades. A avaliação é trata- da como parte integrante do processo educacional, que possibilita o ajuste do trabalho realizado para que o alu- no aprenda. Os indicadores dizem respeito à existência de formas variadas e transparentes de avaliação dos alu- nos, à relação intrínseca entre planejamento e avaliação e ao monitoramento da prática pedagógica e da apren- dizagem dos alunos. A utilização de fontes de avaliação variadas é trata- da como indicador de uma avaliação mais completa, que 68 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 possibilita inter-relacionar as diferentes capacidades do aluno, os conteúdos curriculares em jogo e os resultados obtidos. A auto-avaliação é considerada uma ótima estra- tégia de aprendizagem e construção da autonomia, faci- litando a tomada de consciência, pelos alunos, dos seus avanços, dificuldades e potencialidades. O monitoramen- to da prática pedagógica e da aprendizagem deve estar focado na observação do progresso e das dificuldades de cada um; nas reflexões propiciadas pelas reuniões peda- gógicas e reuniões com os pais; e na existência de proce- dimento formalizado para avaliar o resultado do trabalho de todos os profissionais da escola. A existência de pro- fissionais de apoio pedagógico é também considerada aspecto fundamental para o acompanhamento da práti- ca pedagógica e da aprendizagem dos alunos. A Gestão Escolar Democrática focaliza o compartilha- mento das decisões e a preocupação com a qualidade, com a relação custo-benefício e com a transparência. Os indicadores procuram fazer com que a comunidade esco- lar perceba que, quando as escolhas são feitas pelos prin- cipais interessados na qualidade do serviço, a chance de que caminhem na direção correta é maior. O bom funcio- namento dos conselhos escolares, como mecanismos am- plamente disseminados de participação da comunidade escolar, é outro indicador de qualidade da gestão. A participação direta de pais, mães, representantes de serviços públicos, comerciantes e associações locais, ONGs e Universidades e o estabelecimento de parcerias locais são também tidos como sinais de uma gestão de- mocrática, tendo em vista que muitas pesquisas mos- tram seu alto potencial para engendrar mudanças posi- tivas e inovações. O projeto considera ainda que uma gestão democráti- ca requer capacidade de lidar com conflitos e opiniões di- vergentes, num exercício contínuo e cotidiano de diálogo e negociação. O bom aproveitamento das oportunidades de melhoria disponibilizadas por programas governamen- tais destinados à escola pública é também demonstrador de uma gestão cuidadosa e preocupada com as condições físicas e educacionais da escola. Todos os profissionais da escola são considerados agentes estratégicos para a realização das intenções edu- cativas, manifestadas no projeto político-pedagógico. Por isso, selecionou-se a dimensão relativa às Condições de Trabalho e Formação dos Profissionais da Escola como es- sencial quando se discute qualidade. Os professores são responsáveis por aquilo que os especialistas conceituam como transposição didática. Sua atuação imprime marcas nos percursos educativos dos alunos. Cada um dos demais profissionais tem também um papel fundamental no processo educativo, cujo resul- tado não depende apenas da sala de aula. Também in- clui a vivência e a observação de atitudes no cotidia- no escolar. Tamanha responsabilidade exige boas con- dições de trabalho, preparo e equilíbrio, razão pela qual se valorizou a garantia de formação continuada dos pro- fissionais e outras condições, como a estabilidade do cor- po docente, que incide sobre a consolidação dos vínculos e dos processos de aprendizagem, e uma adequada rela- ção entre o número de professores e o de alunos. A escolha da dimensão Ambiente Físico Escolar se ba- seou na constatação de que a prestação de serviços de qualidade e as boas condições de trabalho dependem de espaços educativos organizados, limpos, arejados, cui- dados, em geral e particularmente, com móveis, equi- pamentos e materiais didáticos adequados à realida- de da escola. O bom aproveitamento dos recursos exis- tentes é considerado um indicador importante, uma vez que o país lida com a escassez de recursos. Incentiva-se ainda a percepção da relação entre a or- ganização do espaço, o convívio entre as pessoas e a ne- cessidade de se trabalhar com uma concepção de educa- ção que flexibilize a organização deste espaço, proporcio- nando assim as condições para o desenvolvimento ade- quado das atividades de ensino e aprendizagem. Recur- sos suficientes e de qualidade é outro indicador que de- nota a relação adequada entre o ambiente físico escolar, ! METODOLOGIA ESTIMULA O DEBATE EXPLICITA A DIVERGÂNCIA TRAZ ̧ LUZ QUESTÍES QUE ANTES PASSAVAM DESPERCEBIDAS E PROVOCA A DISPOSI¿»O DE RESOLVER PROBLEMAS DETECTADOS /BSERVOU SE AINDA QUE O USO DAS CORES FACILITA A COMPREENS»O E A OPERACIONALIZA¿»O DO SISTEMA E PERMITE A VISUALIZA¿»O DO RETRATO DA ESCOLA mPRODUZIDOn PELA COMUNIDADE ESCOLAR 69 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 as necessidades do processo educativo e o envolvimen- to da comunidade. Chama-se a atenção também para o vínculo entre o processo educativo de qualidade, a orga- nização, o cuidado e a beleza do espaço físico. A dimensão do Acesso e Permanência dos Alunos na Escola reflete o grande desafio da educação brasileira hoje, que é fazer com que as crianças e os adolescentes permaneçam na escola e consigam concluir os níveis de ensino em idade adequada. As escolas são levadas a refletir sobre o quanto conhecem da sua situação: • Quem são os alunos que apresentam maior dificul- dade no processo de aprendizagem? • Quem são aqueles que mais faltam? • Onde e como eles vivem? • Quais são as suas dificuldades? • Quem são os alunos que a abandonaram ou se eva- diram? • Quais os motivos? • O que estão fazendo? • A escola tem algum mecanismo para trazê-los de volta? Uma proposta metodológica para apoiar as escolas que desejarem promover o retorno destes alunos é apresentada no final do instrumental. Principais questões levantadas a partir da experiência-piloto Avaliação positiva De forma geral, os agentes que participaram da expe- riência-piloto de utilização do sistema de indicadores para conhecer a qualidade da escola avaliaram-na po- sitivamente. Destacaram que as dimensões e os indica- dores selecionados fazem sentido para os diversos seg- mentos envolvidos: geram perguntas, prendem a aten- ção, favorecem a partilha de informações. A metodolo- gia estimula o debate, explicita a divergência, traz à luz questões que antes passavam despercebidas e provo- ca a disposição de resolver problemas detectados. Ob- servou-se ainda que o uso das cores facilita a compre- ensão e a operacionalização do sistema e permite a vi- sualização do retrato da escola “produzido” pela co- munidade escolar. Democratização Além das sugestões pontuais para o aperfeiçoamento do instrumento, foi levantada uma série de questões de fundo, relacionadas à avaliação participativa e seu potencial como fator de democratização da escola e do sistema de ensino. Pela escola e para a escola Uma das recomendações mais enfáticas do grupo de trabalho foi a de que se deixasse claro, no instrumen- tal e nas iniciativas para a sua disseminação, que a pro- posta em pauta é de uma avaliação da escola feita pela escola e para a escola. Processos avaliativos que ser- vem para controles externos ou para definir cotas de re- passe de recursos acabam por comprometer a disposi- ção dos agentes escolares em expor abertamente seus problemas. Comunicar aos governantes Em nenhum momento, este sistema de indicadores deve ser confundido com os mecanismos utilizados ha- bitualmente pelos órgãos administrativos para cole- tar informação sobre as unidades escolares. No entan- to, considerou-se fundamental, para a melhoria do sis- tema educacional, que as secretarias e órgãos governa- mentais possam ter acesso aos principais problemas vi- venciados pelas escolas. Diálogo colaborativo Numa proposta de avaliação como esta, a discussão sobre o papel das secretarias municipais e estaduais ou mesmo do Governo Federal denota uma certa des- confiança que permeia a relação das diversas instâncias que compõem o sistema educacional. O grupo conside- rou que um bom caminho para tentar sair desse para- doxo pode estar na articulação entre sociedade civil e governo, de modo que, ao se disseminar o instrumen- tal ou buscar informações sobre os resultados da ava- liação, mantenha-se o espírito do diálogo colaborativo e não o do controle. Controle democrático de políticas públicas Segundo os participantes da oficina, o instrumental precisa reconhecer o papel dos órgãos administrativos do sistema, incentivando a superação do seu papel con- trolador e impositivo, com o objetivo de transformá-lo em incentivador, apoiador e coordenador de iniciativas gera- das na base do sistema. O instrumental produzido é não só uma ferramenta para a escola se conhecer e propor ações para a melhoria de sua qualidade, como também 70 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 pode ser um dispositivo de controle democrático de po- líticas públicas. A sua apropriação pelas escolas vai ge- rar demandas para as redes e é preciso mobilizá-las para que estejam abertas para ouvir e negociar. Falta de comunicação Outra questão amplamente discutida no grupo de tra- balho foi a dos conflitos e divergências de opinião ge- radas no processo de avaliação. As circunstâncias pro- piciadoras desses conflitos foram principalmente as da Avaliação, Prática Pedagógica e da Gestão Escolar. No caso da Avaliação, as divergências se deveram ao sistema de ciclos, que não tem o apoio dos pais, e também a uma visão de que as metodologias de ava- liação qualitativa da escola foram implementadas, pelo sistema educacional, de “cima para baixo”. A dimensão referente à gestão escolar também de- notou potencial de conflito por lidar com as relações de poder dentro da escola. O não-compartilhamento de informações e a falta de comunicação foram ampla- mente citados como fontes de conflitos durante o processo avaliativo. A importância dos conflitos Quanto à prática pedagógica, as divergências entre alunos e professores sobre a participação dos alunos no planejamento e na avaliação foram comuns. O grupo de trabalho ponderou sobre a importância de se conce- ber o conflito como um fator positivo e construtor de democracia, razão pela qual o instrumento não deve focalizar a busca de consenso a qualquer preço. Ao contrário, a metodologia deve oferecer a possibilidade de que conflitos não solucionados possam ficar expli- citados no documento, uma vez que forçar o consen- so resulta na prevalência das opiniões dos segmen- tos mais fortalecidos da comunidade escolar, normal- mente o grupo de professores ou o diretor. O grupo apontou dois caminhos possíveis para a operacionalização do sistema, tendo como preocupa- ção o conflito entre os segmentos: um deles seria ini- ciar a discussão com todos os segmentos representa- dos nos grupos de trabalho por dimensão (tal como o instrumento foi testado) ou organizar os grupos por segmentos para, em seguida, trabalharem em con- junto. Os defensores da segunda proposta acreditam que essa solução fortaleceria os grupos que conhecem me- nos a dinâmica escolar, como os pais, mães e os alunos. Aqueles que optam pelo primeiro caminho avaliam que separar os grupos por segmentos, ainda que num segun- do momento eles possam estar juntos, pode incidir ne- gativamente sobre a predisposição ao diálogo necessá- rio ao processo de planejamento e mudança. Escola e sistema educacional Outra questão de fundo diz respeito aos problemas que nitidamente se situam fora do âmbito de gover- nança da escola, em especial à questão do financia- mento. Observou-se que é necessário incluir, entre as dimensões avaliadas, a relação da escola com o siste- ma educacional (secretarias municipais ou estaduais e suas instâncias) e, em última instância, os organis- mos que definem e controlam o orçamento público, os poderes executivo e legislativo. A escola de qua- lidade é também um ator político, situado dentro de um sistema amplo com o qual precisa dialogar e ne- gociar. Os indicadores não podem reforçar a idéia de que a escola resolverá todos os problemas somente com base em seus próprios recursos ou nos recursos da comunidade, sem considerar a relevância do inves- timento público. Crítica dos critérios de qualidade Finalmente, foi discutida a questão da relação entre os critérios de qualidade produzidos pela escola e os padrões mais gerais, estabelecidos por sistemas cen- tralizados de avaliação e pela própria legislação edu- cacional. Todas as escolas que apresentaram os resul- tados de sua avaliação ao grupo de trabalho haviam atribuído ao indicador relativo ao conhecimento e uso dos indicadores de desempenho, produzido pelo INEP e secretarias de educação, a cor vermelha, que revela prática inexistente ou quase inexistente, que exige in- tervenção imediata. A coincidência confirma um diag- nóstico já conhecido pelas pessoas que trabalham e estudam a questão, como foi comentado na primeira parte deste artigo. A aposta do projeto Indicadores Qualitativos da Educação na Escola é que o envolvimento da comuni- dade escolar em processos participativos de avaliação 71 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 pode suscitar o seu interesse em conhecer esses indi- cadores e considerá-los também um parâmetro para seu julgamento. Todos os membros da comunidade es- colar são capazes de perceber e refletir sobre as cone- xões entre a sua realidade local e as questões sociais mais amplas, sobre suas expectativas e as expectati- vas dominantes no conjunto da sociedade, sobre os conflitos de interesse produzidos por uma sociedade marcada por tantas desigualdades como a nossa. O fundamental é que os membros da comunidade escolar possam perceber que parâmetros de qualidade mais universais ou gerais não pairam sobre nós como entidades oriundas do Olimpo: eles são produzidos pela sociedade e resultam do jogo de forças entre os diversos agentes técnicos e políticos. Com essa pers- pectiva, os resultados das avaliações em grande esca- la e outras estatísticas educacionais podem vir a ser um importante instrumento de monitoramento e mesmo de reivindicação para as comunidades escolares. Estas mesmas comunidades também podem colaborar para aperfeiçoar tais indicadores, criticando-os, identifican- do suas insuficiências ou fontes de distorções. Disseminação A primeira publicação em larga escala foi produzida no final de 2003 e serviu de apoio ao processo de mobilização, disseminação e apropriação do sistema pela comunidade escolar. Para tanto, foram utilizadas as redes de atuação das instituições participantes do grupo de trabalho. A distribuição da publicação via sistema educacio- nal (Governo Federal e secretarias) foi associada a ou- tras formas de disseminação, tais como falas explica- tivas em eventos promovidos pelo governo e pela so- ciedade civil, para evitar a consolidação da imagem de que se trata de um instrumento para controle. A realização de cursos de capacitação de pessoas da área (professores, diretores e membros dos Conse- lhos Municipais e Estaduais de Educação) para o uso do instrumento surgiu também como alternativa rele- vante, já que reforça a autonomia da escola em seus processos avaliativos. Os cursos oferecidos pelo MEC abriram espaço para a efetivação de momentos for- mativos com base no instrumental. Dentre eles, po- demos citar aqueles oferecidos pelo Programa Fortale- cimento dos Conselhos Escolares5 e também a versão piloto do Programa Escola de Gestores.6 A Ação Edu- cativa disponibilizou o material e informações sobre sua aplicação em escolas no país. Tal mecanismo foi importante para o processo de disseminação e cria- ção de redes, visando à mobilização e ao envolvimen- to do maior número de escolas na avaliação participa- tiva da qualidade da educação. Aperfeiçoamento A primeira publicação trouxe sete dimensões: ava- liação e prática pedagógica foram tratadas em duas dimensões distintas. A utilização da metodologia em várias escolas possibilitou o aperfeiçoamento de al- guns indicadores e também levou à percepção de que seria mais adequado agrupar os indicadores relativos às duas dimensões acima. Uma nova dimensão: Ensino e Aprendizagem da Leitura e da Escrita. Responsáveis pela iniciativa, membros do Grupo Técnico, especialistas da área de várias regiões do país e gestores governamentais avaliaram que o Indicado- res da Qualidade na Educação deveria também propi- ciar, à comunidade escolar, um momento de reflexão sobre a qualidade do ensino e aprendizagem da leitu- ra e da escrita na escola. Em 2006, com apoio finan- ceiro da Cafise/SEB/MEC, a Ação Educativa ampliou o Grupo Técnico do Projeto Indicadores da Qualidade na Educação visando responder a esta nova demanda. Passaram a constituir, então, o GT, as seguintes institui- ções: quatro centros de formação da área de alfabetiza- ção que compõem a Rede Nacional de Formação Conti- nuada do MEC (Ceale/UFMG; Ceel/UFPE; Cefortec/UEPG; / FUNDAMENTAL Á QUE OS MEMBROS DA COMUNIDADE ESCOLAR POSSAM PERCEBER QUE PARoMETROS DE QUALIDADE MAIS UNIVERSAIS OU GERAIS N»O PAIRAM SOBRE NËS COMO ENTIDADES ORIUNDAS DO /LIMPO ELES S»O PRODUZIDOS PELA SOCIEDADE E RESULTAM DO JOGO DE FOR¿AS ENTRE OS DIVERSOS AGENTES TÁCNICOS E POLÅTICOS 72 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Cform/UNB) além de organizações não-governamentais referenciais na área – Instituto Avisa-lá; Cedac; Centro de Cultura Luiz Freire; Instituto Paulo Freire; Projeto Chapada; Instituto Ayrton Senna; e Fundação Victor Civita. Duas novas publicações do Projeto Indicado- res da Qualidade na Educação estão em fase de fina- lização: uma que trará apenas a nova dimensão (Se- parata) e outra que apresentará as seis dimensões da publicação original somadas à nova dimensão volta- da à Leitura e Escrita. Para encerrar, é importante destacar que um dos aspectos mais promissores da experiência até aqui foi a diversidade dos atores envolvidos no desenvolvimento dos indicadores. O grupo de trabalho agregou agên- cias internacionais, organizações da sociedade civil, gestores do sistema de ensino no nível federal, esta- dual e municipal, diretores e professores de escolas, pesquisadores e especialistas em educação e planeja- mento. São profissionais envolvidos na problemática escolar que nem sempre têm a oportunidade de sen- tar à mesma mesa para dialogar. Muitos outros atores podem e devem participar, es- pecialmente membros de conselhos e de associações po- pulares. Sabemos que os problemas dos nossos sistemas de ensino não são apenas técnico-pedagógicos, e sim predominantemente políticos. As condições e os recur- sos necessários para democratizar o acesso a uma edu- cação de qualidade no país não estão dados. É preciso que os agentes escolares se reconheçam tanto como atores pedagógicos, quanto atores políticos, cuja mo- bilização é essencial para a conquista dessas condi- ções, para que sejam feitos os investimentos necessá- rios nos sistemas educacionais e nas escolas. O mais valioso sinal que podemos captar dessa ex- periência é o de que, para alcançar uma educação de qualidade para todos no Brasil, é estratégica a alian- ça entre os profissionais de ensino, a população e as organizações da sociedade civil com os órgãos públi- cos das diversas esferas de governo e as agências in- ternacionais. A partir do enfrentamento das divergências, dos conflitos de interesse e das relações desiguais de po- der, do estabelecimento de alianças, da partilha de in- formações e da integração dos diferentes, vão-se cons- truindo democraticamente novos sentidos para a me- lhoria da qualidade da educação na escola. Referências BEISIEGEL, Celso de Rui. Avaliação e qualidade do ensino. In: BICUDO, Maria Aparecida; SILVA JR., Celestino (Org.). Formação do educador e avaliação educacional: organização da escola e do trabalho pedagógico. São Paulo: Unesp, 1999. BURATTO, Ana Luísa O.; DANTAS, Maria Rita C.; SOUZA, Maria Theresa O. M. A direção do olhar do adolescente: focalizando a escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. CNDE – CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO. Consulta sobre quali- dade da educação na escola. São Paulo: Ação Educativa, 2002. CAMPOS, Maria Malta (Org.). Consulta sobre a qualidade da educação na escola: relatório técnico final. 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Notas 1 Artigo atualizado com base no original publicado no periódico Cadernos de Pesquisa, n. 124, v. 35, p. 227-251, jan./abr. 2005. 2 Termo utilizado por José de Souza Martins (1997) ao discutir o tema da desigualdade social no Brasil e a questão da inclusão e da exclusão. 3 Além das organizações coordenadoras, participaram do processo as seguin- tes organizações: Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas sobre Educação e Cultura; Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em especial o Cedeca – CE; CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação; Con- sed – Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação; Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança; MEC – Secretaria de Educação Infantil e Fundamental (especialmente, o Fundescola – Fundo de Fortalecimento da Escola); IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Instituto Polis; IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (órgão vinculado ao Ministério do Planejamento do Governo Federal); Undime – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação e UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação. Maria Malta Campos, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, também prestou colaboração destacada. 4 As escolas participantes foram: Escola Municipal Izaira Machado de Freitas Camargo (Formosa/GO), Escola Municipal Consulesa Margarida Maksud Trad (Campo Grande/MS), Escola Municipal Professora Mauricila Sant’Ana (Rio Branco/AC), Escola Estadual Márcia Meccia e Escola Estadual Maria Anita (Salvador/BA), Escola Municipal de Ensino Fundamental Antônio Carlos de Andrade e Silva, Escola Estadual Madre Paulina e Escola Estadual Professora Ruth Cabral Troncarelli (São Paulo/SP), Escola Fundamental do Centro Peda- gógico da Universidade Federal de Minas Gerais e Creche da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte/MG), Escola Municipal Professor Moacyr Teixeira (Londrina/PR), Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental Frei Tito de Alencar e Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Marwin (Fortaleza/CE). 5 Este Programa está sendo implementado pela Cafise/SEB/MEC. Os Indi- cadores da Qualidade na Educação compõem um kit de vários cadernos utilizados na formação dos Conselheiros. 6 O INEP – coordenador da versão piloto do Escola de Gestores – fez uma adaptação do Indicadores da Qualidade na Educação para uso exclusivo no processo formativo, o qual tinha como eixo central a aplicação do material pelos gestores escolares em suas respectivas escolas e a problematização dos resultados da discussão gerada em cada comunidade escolar. 74 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Neste ensaio, pretendo discutir a relação entre a qua- lidade na educação e a “gestão escolar democrática”, sob o enfoque da “participação da comunidade esco- lar”, que tem sido apontada como um dos ingredientes necessários para promover melhorias na educação es- colar pública brasileira. Esta discussão tem, como referência, algumas expe- riências de uso dos Indicadores da Qualidade na Edu- cação em todo o Brasil, com destaque para a experiên- cia desenvolvida na Rede Municipal de Ensino de Ituiu- taba, Minas Gerais. O que é educação de qualidade? A Constituição Federal de 1988 e a LDBN de 1996 con- sagram o acesso à educação de qualidade como um di- reito fundamental da cidadania. Homens e mulheres, ne- gros, brancos, índios ou mestiços, de Norte a Sul e de Leste a Oeste desta imensa nação, dos mais jovens aos mais velhos, têm o direito de compartilhar o patrimônio cultural comum da humanidade mediante sua educação, especialmente a educação escolar. O Estado brasileiro é signatário de tratados e conven- ções internacionais que estabelecem metas e prazos para os esforços de universalização do acesso à escola, prio- ritariamente à educação básica, para as crianças. Tal es- forço deveria se traduzir em fortes investimentos finan- ceiros que permitissem o cumprimento destes compro- missos, o que, sabemos, não aconteceu, ainda. Na década de 1990, verificamos alguns avanços em termos de distribuição de recursos financeiros, notada- mente pelo implemento do Fundef. Mais do que aumen- RELATO DE PRÁTICA: INDICADORES DE QUALIDADE NA EDUCAÇÃO Uma ferramenta para a construção da democracia Waldenir (Nino) Bernini Lictenthaler* tar significativamente os orçamentos destinados às es- colas das regiões mais pobres do país, o Fundo trouxe a novidade de repartir recursos entre os entes federados, com base no número de alunos matriculados nas redes estaduais e municipais de ensino, às quais compete ofe- recer as vagas no ensino fundamental. Este princípio fez com que os gestores das redes cui- dassem de assegurar o maior número de matrículas pos- sível, visando ao correspondente repasse de recursos. Não cabe aqui discutir os impactos do Fundef em termos de melhoria na qualidade da educação, mas certamen- te podemos afirmar que seu advento contribuiu para a quase universalização do acesso às matrículas nas es- colas públicas do ensino fundamental. A grande crítica que se fez, então, é que os valores per capita, estabelecidos para repasses de recursos do Fundo, eram irrisórios, inviabilizando que estes alunos incluídos na educação escolar recebessem um atendi- mento de qualidade. O argumento oficial do MEC foi de que não seria verdade que os recursos financeiros eram insuficientes. O problema, afirmava-se, era de gestão: os recursos estariam sendo mal administrados, assim como o processo pedagógico também era mal gerido – e, eventualmente, mal executado. O Governo Federal estaria fazendo a sua parte ao as- segurar o acesso universalizado ao ensino fundamental – primeira etapa. Caberia, agora, aos sistemas e às escolas, gerir com eficiência seus problemas administrativos e pe- dagógicos em busca da qualidade – segunda etapa. Disseminou-se e se estabeleceu fortemente, então, o discurso da parceria entre Estado e sociedade, o que, na educação escolar, traduziu-se em parceria escola-co- munidade. Formou-se um consenso em torno da idéia de que a responsabilidade pela melhoria na qualidade da educação não era apenas do Estado ou da escola, e sim que esta melhoria dependia da participação de toda a sociedade, ou de toda a comunidade escolar. * Waldenir (nino) Bernini Lictenthaler é antropólogo e educador; as- sessor da Ação Educativa/Unicef, responsável pela disseminação dos indicadores da qualidade na educação em nível nacional; analista pe- ricial em Antropologia do Ministério Público Federal em Marabá/PA. 75 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Poderíamos discutir longamente se essa postura po- deria significar uma renúncia, da parte do Estado, de sua responsabilidade, compromisso e dever de assegurar a qualidade da educação pública, mas a gravidade da ma- téria e as múltiplas perspectivas que ela comporta exigi- riam um outro ensaio. Aqui, quero reter somente que esta convocação à participação da comunidade decorre da emergência de um novo marco legal, político e institucional em que se desenvolve a educação pública em nosso país; marco este que estabelece a democratização, a descentraliza- ção e a autonomia como princípios da gestão dos siste- mas de educação e das escolas, e — como horizonte — o aprimoramento da qualidade da educação e a constru- ção de uma sociedade democrática e da cidadania ati- va. Resta saber, então, quais são os atributos necessá- rios para que a educação seja considerada de qualida- de ou, dito de outra forma: em que consiste a qualida- de na educação? É notória a diversidade de concepções que encon- tramos sobre a qualidade da educação e mesmo sobre o que seja a educação, suas finalidades e sua função social. Há quem afirme, sem titubear, que uma escola nada mais é que uma empresa. Seus clientes seriam os alunos e suas famílias, e seu produto, algo como: “alu- nos que aprendem” ou “os conhecimentos que os alu- nos ali receberam”. Assim, da mesma forma que uma empresa que busca a “qualidade total” deve ter seu foco no cliente e na sua satisfação com a qualidade dos produtos fornecidos, a es- cola de qualidade deve ter seu foco nos seus produtos, e a qualidade da escola poderia ser medida simplesmente avaliando estes produtos, ou seja, avaliando seus alunos e o quanto conseguiram aprender na “empresa” escolar. Dessa visão, aqui simplificada por razões de espa- ço e estilo, decorrem as grandes avaliações de sistemas como o Saresp - Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, Provão (Exame Nacio- nal de Cursos – ENC) e outras tantas que surgiram nes- se contexto. Elas têm em comum a pretensão, aparen- temente ingênua, de avaliar a qualidade da escola pelo desempenho dos alunos em provas. Para outros, contudo, há muitas diferenças entre as duas instituições, sendo que a primeira e mais funda- mental é que, enquanto toda e qualquer empresa visa obter lucros, ou seja, ganhar o máximo com o menor custo, uma escola tem por objetivo — mais ou menos aceito por todos — o pleno desenvolvimento humano do educando. Quer dizer, uma escola não tem como objetivo de sua atividade produzir excedentes financeiros ou mate- riais. Assim, a lógica financeira do gerente da empresa é: “Como eu posso produzir mais e melhor gastando me- nos?”. Enquanto a lógica do gestor da escola é: “O que e quanto eu preciso para assegurar que o aluno realiza- rá seu pleno desenvolvimento na escola?”. Por que os indicadores da qualidade na educação? Em 2003, a partir de uma iniciativa da Ação Educativa, Unicef - Fundo das Nações Unidas para a Infância, Pnud - Programa das Nações Unidas para o desenvolvimen- to e MEC/INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesqui- sas Educacionais Anísio Teixeira, um conjunto de insti- tuições representativas da área da educação, dentre as quais o Cenpec - Centro de Estudos e Pesquisas em Edu- cação, Cultura e Ação Comunitária, constituíram um gru- po técnico para construir e disseminar indicadores de qualidade para a educação que fossem mais qualitati- vos e que pudessem abarcar também o processo, reti- rando o foco do “produto”, como nas avaliações de sis- temas já existentes. A idéia era que esses indicadores contribuíssem para promover a mobilização da comunidade escolar em tor- no de ações voltadas ao cumprimento do direito da edu- cação de qualidade para todos. Para isso, deveriam ser criados indicadores de fácil compreensão que permitis- sem à comunidade avaliar a qualidade da escola, sem que fossem necessários conhecimentos técnicos espe- cíficos muito aprofundados sobre a educação escolar, o que inviabilizaria a efetiva participação, especialmente dos mais pobres e menos escolarizados. Depois de meses de trabalho e pesquisa, os parcei- ros envolvidos chegaram aos Indicadores da Qualidade na Educação. Criado para ajudar na avaliação e na me- lhoria da qualidade da escola, o documento é uma es- pécie de manual que permite a identificação de proble- mas e favorece a compreensão das questões relaciona- das com a qualidade escolar, abrindo espaço para uma melhor participação da comunidade escolar na me- lhoria da educação. Para tanto, foram identificados sete elementos cons- titutivos da qualidade, que, na publicação, receberam o nome de dimensões. São elas: 76 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 ambiente educativo; prática pedagógica; avaliação; gestão escolar democrática; formação e condições de trabalho dos profissio- nais; espaço físico; acesso, permanência e sucesso na escola. A base desse instrumental de avaliação participati- va é composta por perguntas focadas em indicadores da qualidade escolar, as quais devem ser respondidas por meio da atribuição de cores: verde para bom; amarelo, quando a situação exige atenção; vermelho, quando a situação requer uma interven- ção que a qualifique. Para se chegar a atribuir uma cor, cada grupo precisa, antes, debater e construir uma avaliação coletiva do ponto em discussão; além de atribuir uma cor, os grupos neces- sitam sistematizar o que foi debatido. O instrumental traz pequenos quadros para que a sistematização dos debates possa ser visualizada pelos demais. A explicitação em con- junto dos debates favorece uma avaliação qualitativa; e a vi- sualização das sistematizações das avaliações dos grupos permite a identificação do que vai bem e do que vai mal na escola. Assim, a comunidade escolar tem um painel no qual se pode visualizar a situação geral da qualidade da escola, em face das diversas dimensões que a constituem, para, com mais clareza, buscar coletivamente as soluções. Ao final, o instrumental fornece orientações para a elaboração de um plano de ação, que estabelece priori- dades e co-responsabiliza os diversos segmentos: as co- munidades escolares, o poder público e as organizações interessadas na promoção da qualidade escolar. • • • • • • • • • • O documento foi distribuído gratuitamente pelo Pro- grama Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Esco- lares, da Secretaria de Educação Básica do MEC, para to- das as escolas públicas de ensino fundamental e médio do país, com mais de 200 alunos, chegando diretamen- te a mais de 70 mil escolas; envolve, ainda, nesse pro- cesso, parcerias com as Secretarias de Educação Muni- cipal e Estadual. Hoje, seu uso está bastante difundido, embora não haja um controle de quantas escolas exata- mente tenham adotado a metodologia. Principais experiências A primeira experiência de uso sistemático dos Indi- cadores da Qualidade na Educação aconteceu em Lon- drina, Paraná, em 2003. Ainda na fase de elaboração do material, foi realizado um pré-teste em uma escola do município. Devido ao bom desenvolvimento do tes- te, foi sugerido o acompanhamento do uso do material nas demais escolas da rede municipal. Em 2004, foram realizadas avaliações em 13 das 28 escolas municipais de Londrina. Entretanto, verificamos que a Secretaria Municipal de Educação não compreendeu o alcance que o traba- lho poderia ter na aproximação entre a gestão munici- pal e as comunidades escolares, como um instrumen- to de diálogo e de conhecimento da realidade e das de- mandas específicas de cada unidade escolar e fortaleci- mento das instâncias de participação. Assim, os resul- tados das avaliações não foram tomados como indicati- vos de direcionamento de políticas e de programas para a educação municipal e acabaram não gerando maiores conseqüências. A primeira secretaria estadual de educação a se in- teressar pelos Indicadores foi a do Piauí, justamente um dos estados mais pobres da Federação. Fizemos di- versas ações de formação para o pessoal da Secretaria e das Delegacias Regionais de Ensino, e o uso dos Indi- cadores passou a ser uma política oficial do Estado. Por falta de recursos, entretanto, a sua implantação nas es- colas vem acontecendo gradativamente e sempre com o acompanhamento da Secretaria Estadual. Outro estado que adotou sistematicamente os In- dicadores foi a Bahia. Lá, a metodologia foi incorpora- da ao programa de formação do Progestão, que ofere- cia formação para os gestores das escolas da rede esta- dual. Realizou-se um trabalho intenso de disseminação 77 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 da metodologia, que a tornou conhecida em praticamen- te todas as escolas estaduais da Bahia. O estado do Amazonas também promoveu a divulga- ção dos indicadores em sua rede de ensino, oferecendo uma formação para seu uso aos representantes das di- versas regiões do estado. Entretanto, o uso efetivo não foi monitorado pela Secretaria de Educação; ficou a cri- tério de cada escola, sem acompanhamento. Outros municípios — como São Luís, Maranhão; Su- zano, São Paulo; São Félix, Bahia, entre tantos — e di- versas organizações não-governamentais e institutos em- presariais também utilizaram a metodologia. O municí- pio de Suzano adotou os indicadores incluindo a ava- liação no calendário das escolas. Estive em diversas lo- calidades na condição de assessor do Projeto Indicado- res, sob a responsabilidade da Ação Educativa, realizan- do ações de formação e atuando como facilitador no uso do instrumental, com recursos do Unicef. Entretanto, não existe um quadro geral dos resultados destas múltiplas iniciativas. Como os indicadores, desde sua concepção, foram destinados às próprias comunidades escolares, seus idealizadores não se preocuparam em manter um monitoramento que agregasse os resultados das inicia- tivas de uso, dispersas pelo país. Uma política municipal de educação pela base Uma experiência merece especial destaque: a de Ituiu- taba, no Pontal do Triângulo Mineiro. Em 2005, a asses- sora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação e Cultura – SMEC, Luciane Ribeiro, entrou em contato com a Ação Educativa solicitando apoio técnico para a reali- zação de avaliações participativas com os indicadores na rede municipal. Os recursos que o Unicef vinha re- passando para estas ações, contudo, já haviam se es- gotado. Mesmo assim, a secretaria quis contratar os ser- viços de assessoria, arcando com o investimento finan- ceiro correspondente. Foi a primeira Secretaria de Educação que pagou para receber este apoio técnico. Penso que esse dado não seja irrelevante, pois é indicativo do nível de interesse dos gestores da educação, nesse município, em implan- tar um processo de gestão democrática. Em 23 de março de 2005, a Secretaria Municipal de Educação de Ituiutaba realizou o Fórum Municipal de Edu- cação. Durante o evento, aconteceu a formação para uso dos Indicadores da Qualidade na Educação. A iniciativa de levar os Indicadores para o Município par- tiu do Centro de Estudos do Magistério e Aperfeiçoamento - Cemap, da Secretaria Municipal de Educação. Quando as- sumiu seu mandato, o atual prefeito, Fued José Dib, pediu aos funcionários da educação que trabalhassem com em- penho para atingir um patamar de excelência. Ao procurar por referências sobre a qualidade em educação, Luciane Ribeiro, do Cemap, chegou aos Indicadores. O evento de formação para o uso do instrumental In- dicadores da Qualidade na Educação foi então caracte- rizado como Fórum Municipal de Educação. Comparece- ram cerca de 200 pessoas, entre as quais, o prefeito, o secretário municipal de educação, Isaías Tadeu, secre- tários de outras pastas, a diretora e técnicos da Regio- nal de Ensino da Secretaria Estadual de Educação, vere- adores, membros do Conselho Municipal de Educação, professores universitários de faculdades locais, profes- sores e alunos das redes municipal e estadual, além de secretários de educação e educadores de municípios vi- zinhos (da região do Pontal do Triângulo Mineiro). No dia da formação, houve uma cerimônia de abertu- ra, durante a qual as crianças das escolas municipais fi- zeram apresentações artísticas e o secretário de Educa- ção e o prefeito discursaram, destacando a vontade po- lítica da administração atual em promover a qualidade da educação no município. Durante a oficina, houve espaço para o debate. Foi re- alizado um exercício de reflexão coletiva: logo no início do trabalho, foi apresentado um conjunto de cinco de- finições diferentes de qualidade na educação aos parti- cipantes e cada um teve que escolher aquela que julga- va a mais adequada. As pessoas manifestaram sua opi- nião e justificaram suas escolhas. A “pegadinha” é que todas as definições são válidas. O que muda é apenas o enfoque ou a ênfase em certos atributos da “qualidade”. O objetivo desta estratégia foi mobilizar a capacidade reflexiva dos participantes para pensar o conceito de qualidade e, simultaneamente, fazê- los perceber a sua complexidade. Ao entenderem a validade das diferentes visões so- bre o que é qualidade, eles vivenciam a mesma dificul- dade que o grupo técnico que elaborou os Indicadores sentiu ao ter de escolher as “dimensões”, pois sempre haverá algum componente da qualidade que não será contemplado. À tarde, foram formados grupos de trabalho para ana- lisar as sete dimensões dos Indicadores, com base na re- 78 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 alidade das escolas locais. Os grupos demonstraram boa compreensão do instrumental e da metodologia de apli- cação. No momento das apresentações e da plenária fi- nal, as avaliações foram muito positivas quanto ao po- tencial do instrumental para o estabelecimento das dire- trizes da educação no município de Ituiutaba. Como corolário, as avaliações foram realizadas nas 17 escolas da rede municipal e em mais duas da rede esta- dual, que manifestaram interesse em aderir ao trabalho, por intermédio da Delegacia Regional de Ensino. Maratona comunitária A rede municipal de Ituiutaba esteve mobilizada, na semana de 29 de agosto a 2 de setembro de 2005, para mais uma etapa do processo de avaliação das escolas da rede pública com os Indicadores da Qualidade na Educa- ção. Após realizarem a avaliação usando os indicadores, as comunidades escolares voltaram a se reunir para defi- nir prioridades e elaborar planos de ação, com base nos resultados levantados na avaliação participativa. Foi uma verdadeira maratona, que envolveu a asses- soria da Ação Educativa e as 14 escolas: 12 municipais e duas estaduais. Houve uma significativa participação da comunidade na maior parte das escolas, gerando dis- cussões de suma importância, uma vez que, juntos, pro- fessores, estudantes, funcionários, gestores, familiares e a comunidade, de um modo geral, procuravam soluções coletivas para os problemas da escola. Depois disso, os planos de ação foram analisados em conjunto, de modo a serem considerados no processo de definição das diretrizes e prioridades da gestão munici- pal para os próximos anos. É importante destacar que, concomitantemente, a sociedade de Ituiutaba realizou a discussão e a elaboração participativa do Plano Muni- cipal de Educação para os próximos dez anos. Segundo a avaliação de Luciane Ribeiro, “a utilização dos indicadores nas avaliações participativas das unida- des escolares tem sido um diferencial neste processo do Plano Decenal. Tem permitido que todos tenhamos mais clareza quanto às dimensões envolvidas na qualidade que queremos para a educação de Ituiutaba”. Em 3 e 4 de novembro de 2005, houve outro encontro para a discussão das diretrizes municipais de educação, partindo dos resultados das avaliações realizadas, nas uni- dades de ensino, com os Indicadores da Qualidade na Edu- cação, como fechamento do processo de avaliação de to- das as escolas municipais, iniciado em março desse ano. O objetivo principal dessa ação foi traçar diretrizes para a política municipal de educação para os próximos três anos, período de vigência da atual administração. Durante os dois dias, foram alternadas discussões sobre princípios e fundamentos de uma política munici- pal de educação, a socialização dos resultados das ava- liações realizadas em cada escola e os planos de ação resultantes. Com base em pequenos textos introdutó- rios, as discussões versaram sobre temas como: o que é, como se organiza e qual a razão de existir de um Sis- tema Municipal de Educação. Também foram abordadas questões concernentes à gestão escolar democrática, en- tre elas: os Conselhos Escolares, o Conselho Municipal de Educação, as Conferências Municipais de Educação, formas de escolha da direção da escola, limites e possi- bilidades de participação. Domar o monstro autoritário A socialização dos resultados do processo de avaliação e planejamento consumiu a maior parte do tempo, pois houve uma tendência a descrições detalhadas de parti- cularidades da escola, objeto do relato, e uma certa di- ficuldade em se transpor a abordagem cotidiana de pe- quenos problemas (a goteira, o monte de entulho que de- morou para ser removido, a tomada elétrica que precisa de manutenção etc.) para uma reflexão em torno de pro- gramas de ação mais gerais que pudessem inspirar dire- trizes para a política municipal de educação. A respeito da participação democrática, muitos mani- festaram ainda pouca convicção de que este é o melhor modelo para a gestão escolar e também para o sistema municipal. A maior parte do grupo não demonstrou haver se apropriado de fundamentos para realizar uma discus- são qualificada desses temas. O processo de sistemati- zação dos resultados não teve, também, qualidade su- ficiente para facilitar a socialização e a formação de um grande painel, no qual fosse possível visualizar as cores atribuídas aos indicadores, para então se concentrar a atenção sobre aqueles cuja situação fosse comum a to- das ou à maioria das escolas do município. Porém, em que pesem esses limites, os relatos trouxe- ram muitos elementos positivos de processos que se ini- ciaram a partir do uso dos indicadores, tanto nas unida- des escolares quanto na rede municipal. Ao menos uma conseqüência de fundamental importância já se verifi- 79 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cou na gestão municipal: a volta da reunião pedagógica semanal no horário de trabalho regular. Esse ponto foi considerado crítico, na avaliação com o Indique, em todas as escolas, pois a Secretaria Munici- pal havia determinado a proibição da dispensa dos alu- nos nas tardes de sexta para viabilizar as reuniões entre os professores e as equipes gestoras das escolas. Isso por determinação da Secretaria Estadual de Educação, já que a rede de Ituiutaba ainda não se constituiu como um sistema municipal de educação, estando, portanto, subordinada às normatizações do sistema estadual. Ao mesmo tempo que se abriu uma discussão sobre a necessidade de o município ter maior autonomia em relação ao estado, a avaliação com os Indicadores gerou um processo que fez a Secretaria Municipal rever essa decisão e contratar uma equipe permanente de suplen- tes para que os professores possam se reunir sem dis- pensar os alunos. A avaliação desse momento foi muito positiva, pois, mais do que um evento, trata-se de um processo. E o di- álogo com os dirigentes da educação no município pros- seguiu, amadurecendo cada uma das partes e levando a resultados sólidos. Em 2006, o trabalho continuou, tendo sido implemen- tado um conjunto de programas de ação em função das demandas levantadas por meio das avaliações. Agora, os Indicadores da Qualidade na Educação estão consolida- dos com uma política da SMEC de Ituiutaba. A Secretaria avança na direção da construção de sua autonomia, ini- ciando estudos para a criação de seu Sistema Municipal de Educação, que deve acontecer em breve. À guisa de conclusão, podemos acrescentar que a construção de uma gestão democrática, assim como de uma sociedade democrática, não é um processo linear e uniforme. Sem dúvida, todos nós somos muito democrá- ticos até o momento que os desejos e opiniões dos ou- tros, especialmente dos mais fracos, contraponham-se aos nossos. Situações como as provocadas pelos Indicado- res da Qualidade na Educação são emblemáticas dessas características de nossa cultura autoritária e hierárquica. Muitas vezes, nas avaliações, professores, ou mesmo alunos, manifestam sua descrença de que os “podero- sos” acatarão as deliberações das comunidades. Vários exemplos de atitudes despóticas são arrolados como ar- gumentos nesse sentido. Porém, acredito que a demo- cracia — mais do que um conceito que, uma vez assimi- lado, transforma valores, atitudes e comportamentos — é um princípio e um horizonte. Um princípio que deve regular nossas práticas, discur- sos e ações e que precisamos observar em nós mesmos, vigiando e zelando para que saibamos domar o monstro autoritário que se esconde em nosso inconsciente. E um horizonte, já que não se pode construir uma democracia por decreto e todas as democracias historicamente exis- tentes foram ou são imperfeitas. Cabe a todos nós manter firmes a convicção e o em- penho na caminhada rumo a esse horizonte, por mais que ele, às vezes, pareça se afastar à medida que anda- mos em sua direção. Notas 1 Agradeço carinhosamente a Joana Borges Buarque de Gusmão, que me convidou a colaborar no Projeto Indicadores da Qualidade na Educação, e a Vera Masagão, da Ação Educativa, pela confiança depositada. 2 O Fundef - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério foi instituído pela Emenda Constitucional 14, de setembro de 1996, e regulamentado pela Lei 9.424, de 24 de dezembro do mesmo ano, e pelo Decreto 2.264, de junho de 1997. O Fundef foi implantado, nacionalmente, em 1o de janeiro de 1998, quando passou a vigorar a nova sistemática de redistribuição dos recursos destinados ao ensino fundamental (ver sítio: ). 3 LONGO, Rose Mary Juliano. Gestão da qualidade: evolução histórica, conceitos básicos e aplicação na educação. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, jan. 1996. 4 Note-se que a mesma gestão do MEC que lançou os PCN foi a que criou os sistemas de avaliação baseados em provas. Tudo estaria bem se toda a concepção de avaliação apresentada nos PCN — ou seja, que ela deve ser individualizada, processual, partindo de um diagnóstico etc. — não fosse absolutamente contraditória com uma avaliação baseada em testes de verifi- cação de conhecimentos ou em provas, como as que foram implementadas. mA UTILIZA¿»O DOS INDICADORES NAS AVALIA¿ÍES PARTICIPATIVAS DAS UNIDADES ESCOLARES TEM SIDO UM DIFERENCIAL NESTE PROCESSO DO 0LANO $ECENAL 4EM PERMITIDO QUE TODOS TENHAMOS MAIS CLAREZA QUANTO ̧S DIMENSÍES ENVOLVIDAS NA QUALIDADE QUE QUEREMOS PARA A EDUCA¿»O DE )TUIUTABAn ,UCIANE 2IBEIRO 79 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 80 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 81 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 artigo * Erika Himmel König é pesquisadora e professora catedrática da Pontifícia Universidade Católica do Chile. propósito deste relato é estimular o debate sobre a “cultura avaliativa”. Para tanto, apresenta-se, em primei- ro lugar, o conceito de avaliação, um dos pilares desta ex- posição e dos programas nacionais de avaliação do ren- dimento escolar. Em segundo lugar, elabora-se a idéia de “cultura avaliativa” no contexto educacional em geral e, em particular, com relação às avaliações massivas. Em terceiro lugar, expõem-se alguns fatores que favorecem ou inibem o desenvolvimento de uma cultura avaliativa, tendo como exemplo o caso do Chile. Por fim, examinam- se os efeitos que a formação da cultura avaliativa pode ter sobre o sistema educacional, assim como sobre o de- bate político e público em geral. 1. O conceito de avaliação e os programas nacionais de avaliação do rendimento escolar O conceito de avaliação converteu-se em um dos ele- mentos centrais do discurso educacional da atualida- de. No entanto, como seu significado está longe de ser unanimemente aceito, será adotada aqui uma conceitu- ação, para efeito desta exposição, que diz respeito ao seu entendimento como processo para a determinação do valor ou mérito de um objeto educacional submetido à avaliação, qualquer que seja ele. Isso implica identificação, análise e aplicação de cri- térios ou padrões determinados para avaliar a qualida- de, a utilidade, a efetividade ou o significado do obje- to em questão. O processo avaliativo emprega métodos de averigua- ção e juízo que incluem: • a determinação de critérios ou padrões para julgar o valor ou mérito, especificando se eles serão absolu- tos ou relativos; ! DEFESA DE UMA ERIKA HIMMEL KÖNIG* CULTURA AVALIATIVA / 82 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 • a coleta de informação relevante; • a aplicação dos critérios ou padrões para determinar o valor ou mérito, qualidade, utilidade, efetividade ou significado do objeto em questão. Todo esse processo culmina com recomendações que orientam as ações necessárias para melhorar a qualida- de, a utilidade, a efetividade ou o significado do objeto avaliativo, neste caso, sempre de caráter educacional. A avaliação é aplicada agora a aspectos muito variados, para averiguar, por exemplo, a aprendizagem dos alu- nos, a competência dos professores ou a qualidade das instituições escolares, dos planos e programas educacio- nais, dos programas de inovação pedagógica, das refor- mas educacionais e da própria educação. Na presente década, os programas nacionais para avaliar a aprendizagem ou o rendimento dos alunos têm adquirido especial relevância. Esta tendência en- contra suas raízes em diversos fatores que têm contri- buído para a implantação desses programas. De um lado, durante várias décadas, os países centraram to- dos os seus esforços na expansão da cobertura dos sis- temas de Educação, o que significou que a ênfase das políticas educacionais e dos investimentos no setor es- teve focada nos instrumentos. Em outras palavras, cons- truíram-se mais escolas e se contrataram mais professo- res para oferecer acesso à educação a toda a popula- ção em idade escolar. No entanto, uma vez conquistado esse objetivo, sur- giu a necessidade de se conhecer os resultados do esfor- ço empregado. Sobretudo, porque se detectou, nos paí- ses em que o problema de cobertura foi sendo gradual- mente solucionado, que a expansão dos sistemas edu- cacionais foi realizada à custa da qualidade do serviço educativo, já que os investimentos requeridos superavam amplamente suas possibilidades econômicas. Dessa forma, desponta um forte interesse político e público por indagar o que efetivamente os alunos apren- dem na escola. Esta inquietação é reforçada pela De- claração Mundial sobre Educação para Todos (Unesco, 1990, art. 4 – Concentrar a atenção na aprendizagem), que assinala: A tradução das oportunidades ampliadas de educação em de- senvolvimento efetivo — para o indivíduo ou para a sociedade — dependerá, em última instância, de, em razão dessas mesmas oportunidades, as pessoas aprenderem de fato, ou seja, apreen- derem conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio, aptidões e valores. De outro lado, a economia exerce pressão cada vez maior sobre a educação, conseqüência do aumento do livre comércio e da concorrência entre as nações. Estas exigem mão-de-obra cada vez mais qualificada para aten- der ao lucro e à competitividade. Assim, recupera-se a confiança na educação como alicerce para o desenvol- vimento do que se consagrou chamar de “capital huma- no”, uma das dimensões cruciais no desenvolvimento das economias (Kellaghan, 1997; Tiana, 1999). Coexistência de sistemas A decisão de organismos internacionais (BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, OEA – Organização dos Estados Americanos, Banco Mundial, por exemplo) de oferecerem apoio financeiro ao setor educacional, ten- do como contrapartida a demonstração de seu impacto sobre a melhoria dos vários sistemas educacionais, tem contribuído para impulsionar os programas de avaliação em andamento (Lockheed, 1992). Nesse contexto, os sistemas nacionais de avaliação têm avançado, permitindo: • adquirir informações acerca do êxito das metas edu- cacionais; • identificar variáveis internas e externas ao sistema que explicam as desigualdades nos resultados; • prever com segurança o funcionamento do sistema no futuro; • proporcionar indicadores sobre os itens mais perti- nentes do sistema. Os sistemas de avaliação compreendem, em geral, a aplicação de provas ou testes referentes ao êxito das aprendizagens esperadas nas áreas do conhecimento constituintes do currículo escolar, complementadas oca- sionalmente com questionários sobre variáveis poten- cialmente explicativas da variabilidade dos resultados, que são disseminados entre os agentes educacionais di- retos e indiretos. Entre os propósitos assinalados mais freqüentemente para esses sistemas de avaliação, destacam-se: • instituir e avaliar políticas educacionais; • avaliar programas educacionais específicos; • acompanhar as mudanças sobre os resultados edu- cativos ao longo do tempo; • responsabilizar professores, escolas, regiões e outras subdivisões administrativas pelas aprendizagens al- cançadas pelos estudantes; 83 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Já se mencionou que as ações avaliativas podem ser aplicadas com diferentes finalidades, mas, neste caso, o foco é a avaliação da aprendizagem dos alunos. Dependendo de quais sejam os objetivos de um sis- tema de avaliação do rendimento escolar, eles podem ter impacto em diferentes áreas ou setores, porém, al- guns deles têm efeito sobre o próprio sistema de ava- liação. O diagrama 1 sintetiza isso: DIAGRAMA 1 ÁREAS DE INFLUÊNCIA DOS PROGRAMAS NACIONAIS DE AVALIAÇÃO DO RENDIMENTO ESCOLAR Desse modo, se um programa de avaliação do ren- dimento escolar tem o objetivo de gerar informações para instituir e avaliar políticas educacionais e monito- rar os resultados educativos, os resultados da avalia- ção podem influir na proposta de novas políticas edu- cativas, que incluam, por exemplo, reformas educacio- nais. É possível, ainda, que tenha efeitos sobre a ges- tão pedagógica das escolas, assim como em relação às decisões adotadas pelos professores referentes à con- dução do processo educativo. Por outro lado, a implementação de uma reforma educacional pode gerar uma necessidade avaliativa es- pecífica que influa nas características de um programa nacional de avaliação. Em outras palavras, as diferentes áreas que sofrem a influência de um programa de ava- liação podem, por sua vez, incidir sobre ele, gerando novas necessidades avaliativas. • selecionar e distribuir os alunos por níveis educacio- nais superiores; • atestar o êxito da aprendizagem dos estudantes; • proporcionar dados aos pais e responsáveis sobre a qualidade da educação oferecida pelas escolas; • diagnosticar necessidades de aprendizagem. Como é muito difícil, senão impossível, atingir todos esses propósitos por meio apenas de um sistema de avaliação, freqüentemente coexistem dois ou mais sis- temas com intenções diferentes (Lockheed, 1996; Grea- ney; Kellaghan, 1996). Em todo caso, espera-se que um sistema, ou programa, que se proponha a alcançar al- guns dos propósitos enunciados: • contribua para uma melhor compreensão do funcio- namento do sistema educacional; • proporcione as orientações necessárias para as to- madas de decisão de diversos atores em diferentes níveis; • auxilie na melhoria da qualidade do serviço educativo. Ou seja, supõe-se que a avaliação do rendimento es- colar tenha um impacto sobre o próprio sistema educacio- nal que vá muito além de proporcionar informação sobre si mesmo. Espera-se que as informações orientem deci- sões que conduzam a ações efetivas, que, por sua vez, possam ser avaliadas pelos próprios sistemas, sempre que difundidas clara e oportunamente, bem como que o programa, ou sistema, demonstre estabilidade ao lon- go do tempo. 2. A “cultura avaliativa” O termo “cultura” encerra um conceito polissêmico e complexo. Mais ainda se combinado com o de avalia- ção no âmbito educacional. Sem pretensão reducionis- ta, mas no afã de chegar a um acordo para estimular a discussão, propõe-se entender por “cultura avaliativa” a combinação adicional de ações avaliativas formais que se difundem com a aplicação dos resultados de tais ava- liações, para as tomadas de decisão e para o reconheci- mento social da relevância da informação avaliativa. Em outros termos, propõe-se a seguinte equação: Cultura Avaliativa Difusão das ações avaliativas + Aplicação dos resultados + Relevância social da informação Política nacional de Educação Reformas educacionais Políticas educacionais locais Gestão pedagógica das escolas Programas educacionais Decisões dos professores Decisões dos pais Programas Nacionais de Educação Decisões dos alunos 84 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Cabe assinalar, contudo, que esses efeitos estão dire- tamente relacionados à utilização efetiva dos resultados das avaliações para as tomadas de decisão, o que nem sempre ocorre. Na literatura especializada, diversos auto- res (Alkin; Daillak; White, 1979; Alkin, 1985; Brown; New- man; Rivers, 1985) reconhecem duas formas de concei- tuar o uso das informações, quais sejam: • a denominada “perspectiva da corrente principal (mainstream perspective)” e • a “concepção alternativa”. A primeira concebe esse uso como o impacto direto e rápido da informação avaliativa sobre o sistema ou progra- ma educacional — em geral, o objeto da avaliação. Dessa forma, o uso é caracterizado como um evento e não como um processo, susceptível de ser iniciado desde o momen- to em que se planeja um sistema de avaliação. A dimensão desse uso é, assim, desmembrada em duas categorias principais: uso versus não-uso. Aderir a esta corrente implica presumir que se aceita a utilização da avaliação somente quando ela produz efeitos, como: introdução de reformas educacionais imediatas, troca de um programa por outro ou modificações drásticas nas es- tratégias pedagógicas. Essas ações radicais não ocorrem necessariamente, já que há um conjunto de fatores que condiciona o emprego da informação avaliativa e depen- de das características do processo de avaliação e dos re- sultados proporcionados. Deve-se considerar ainda que as tomadas de decisão são influenciadas por outros fato- res, além dos resultados de avaliações. King e Pechman (1984), numa tentativa de aclarar essa concepção de uso, indicam que, em sua base, encontram- se alguns pressupostos questionáveis, como: • considerar que as decisões podem ser adotadas de um modo classicamente racional, sem considerar as variáveis políticas, sociais e organizacionais que ne- las influem; • entender que a informação avaliativa constitui o úni- co fator desencadeante de efeitos imediatos e obser- váveis (o mito do Big Bang); • supor que a qualidade dos informes avaliativos é con- dição suficiente para seu uso cabal; • julgar que a colaboração ativa entre os avaliadores e os responsáveis pelas decisões incrementará neces- sariamente o uso. O impacto da avaliação não é imediato A esse respeito, pode-se mencionar que os gestores do Programa de Avaliação do Rendimento que se desen- volveu no Chile, entre 1982 e 1984, começaram a opera- ção do programa justamente com a adoção da maioria desses pressupostos, já que supuseram, erroneamen- te, que, a partir de tal informação, professores, diretores e autoridades educacionais conceberiam propostas de ação de vulto, mediante um processo de autogestão e autocontrole. No entanto, logo se deram conta da fragi- lidade dos pressupostos mencionados e aderiram à con- cepção alternativa. Outro exemplo que ilustra esse posicionamento en- contra-se em Schiefelbein (1992, p. 264), que julga o impacto do Programa de Avaliação do Rendimento ape- nas pela constatação de que os resultados alcançados pelos alunos não apresentaram variações significati- vas em um período, assinalando o seguinte: “...esses antecedentes demonstram que as expectativas acerca da melhoria dos rendimentos acadêmicos são dema- siado elevadas”. Por sua vez, o enfoque alternativo do uso da infor- mação avaliativa é concebido como um processo gra- dual, no qual essa informação, acompanhada de outros antecedentes, pode gerar pequenas ações que modifi- cam paulatinamente a situação inicial detectada. Des- sa perspectiva, o impacto da avaliação não é imedia- to, podendo demorar anos e ocorrer em combinação com outras informações contextuais, ou sob diferen- tes circunstâncias, o que resulta na possibilidade de adoção de significados diversos em distintos tempos (Braskamp, 1982). 85 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 King e Pechman (1984) explicam que é possível re- conhecer ao menos três níveis de uso da informação avaliativa: • simbólico ou persuasivo; • conceitual; • instrumental. A eles, pode-se agregar uma quarta categoria de “não-uso instrumental”. A relação entre produção de dados avaliativos, informações contextuais e seu em- prego como instrumento para as tomadas de decisão é sintetizada no Quadro 1. Quando o emprego dos resultados das avaliações se si- tua no nível simbólico ou persuasivo, é utilizado com fins pessoais. Por exemplo, os resultados de uma avaliação po- dem ser usados por um diretor de escola para justificar seu bom desempenho, dando-lhe um pretexto que irá colabo- rar para sua permanência no cargo. Esta modalidade exige, assim, uma análise do contexto em que opera, para avaliar adequadamente as intenções positivas ou negativas sub- jacentes. Nesse caso, a avaliação é empregada mais como justificativa para certas decisões do que como instrumen- to para embasá-las e, às vezes, costuma ser usada nesse sentido por razões político-administrativas. Pode-se ainda incluir, nesse primeiro nível, um efeito dos sistemas de avaliação do rendimento amplamente discutido na literatura (Greaney; Kellaghan, 1996), que é sua influência no ensino. Na verdade, nenhuma aplica- ção externa de provas é neutra. E os professores, quan- do percebem, de algum modo, a importância dos resul- tados dos testes, começam a orientar o processo de en- sino principalmente para os conteúdos e objetivos re- queridos nas provas, acabando por justificar sua forma de abordar o currículo escolar a partir do que as provas contemplam. Entretanto, o uso conceitual implica que a avaliação deve provocar, no usuário, uma reflexão mais detida acerca do objeto da avaliação, de forma que ele possa reconhecer que existem acertos e dificuldades para sua implementação, levando-o, assim, a uma mudança de postura, processo que pode, em longo prazo, estimulá-lo a tomar algumas decisões mais específicas. Por exemplo, o diretor de uma escola pode atribuir o baixo desempenho em uma avaliação do rendimento à falta de empatia dos alunos com os professores. Diante dessa conclusão, ele convoca os professores para uma jor- nada de discussões, na tentativa de buscar as causas do problema. Este exemplo mostra que, mesmo sem empre- QUADRO 1 SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DO RENDIMENTO ESCOLAR Níveis de uso Sistema Nacional de Avaliação do Rendimento Escolar Produz: Informação avaliativa Informações contextuais Usuários potenciais Informações contextuais Não-uso Usuários diretos Uso com fins pessoais Influência gradativa e al- gumas decisões de longo prazo Tomadas de decisão espe- cíficas de curto prazo “Não-uso instrumental” Uso conceitual Uso instrumental Mudanças de atitude Consolidação de novas atitudes Inovação ou mudança Uso simbólico Usos da informação avaliativa 86 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 ender ações específicas, a informação instigou o usuário a uma reflexão sobre o tema, a qual, eventualmente, po- derá traduzir-se em pequenas ações, como promover en- contros informais entre professores e alunos. Por sua vez, a concepção do uso como instrumental acontece quando se pode reconhecer claramente que as informações geradas pela avaliação constituem a base e estão diretamente vinculadas às decisões tomadas por seu usuário. Empregando o mesmo exemplo anterior, se o diretor decidir consultar sistematicamente as opiniões dos alu- nos sobre os aspectos que consideram positivos e nega- tivos na escola, para implantar um programa destinado a melhorar a relação dos alunos com os professores, esta- rá utilizando instrumentalmente a informação proporcio- nada pelo sistema de avaliação. Por fim, quando a informação é conscientemente des- cartada pelos usuários, ela pode ser denominada de “não- uso instrumental”. Digamos, por exemplo, que o informe dos resultados de uma avaliação de rendimento mostre que os alunos de um município obtiveram um desempe- nho extremamente baixo em ortografia, na 4a série, e o de- partamento técnico-pedagógico considere que ortografia não é um objetivo educativo fundamental para essa sé- rie. Então, ainda que tome ciência do fato, provavelmen- te o departamento não empreenderá qualquer ação para melhorar o êxito dos alunos nessa disciplina. Ao analisar o uso da informação de acordo com esse modelo, é possível reconhecer os efeitos de um sistema nacional de avaliação da aprendizagem, que pode desdo- brar-se em múltiplas ações, não necessariamente com rá- pida melhoria dos rendimentos. Ainda assim, tais inter- venções podem levar, em médio ou longo prazo, a uma melhora da aprendizagem dos alunos. Instaurar uma cultura avaliativa implica levar a cabo avaliações educativas formais e periódicas, assim como gerar e difundir uma estratégia de divulgação de seus pos- síveis usos, seja em relação à aprendizagem, seja no que diz respeito à competência profissional dos professores. Esta também é uma forma de demonstrar a relevância so- cial da informação avaliativa. 3. Fatores que facilitam ou inibem o desenvolvimento de uma cultura avaliativa É possível reconhecer quatro fatores principais: • a tradição avaliativa do país; • as políticas educacionais; • a legislação ou as normas; • as estratégias e formas de divulgação de resultados. Eles podem atuar nos dois sentidos, contribuindo ou dificultando o desenvolvimento da cultura avaliativa. DIAGRAMA 2 FATORES QUE FACILITAM OU INIBEM O DESENVOLVIMENTO DE UMA CULTURA AVALIATIVA A tradição avaliativa do país Este fator relaciona-se basicamente à freqüência com que se realizam ações avaliativas em um país, e também aos recursos humanos qualificados disponíveis para con- cretizá-las. Com efeito, passar muitos anos tentando rea- lizar ações avaliativas que envolvam massivamente alu- nos, pais e professores aumenta a probabilidade de ge- rar uma cultura avaliativa. Isso não quer dizer necessaria- mente que ela será bem-sucedida, tampouco que o esfor- ço empreendido terá apoio permanente. No entanto, é requisito básico que essas ações ava- liativas sejam implementadas, em todas as ocasiões, por profissionais competentes e com credibilidade para a opi- nião pública. Em apresentações sobre os sistemas de ava- liação desenvolvidos no Chile, foram mencionadas fun- damentalmente três experiências cuja base era esse fa- tor facilitador: • o Sistema de Ingresso à Educação Superior, vigente no país desde 1967; • o Programa de Avaliação do Rendimento Escolar (PER – Programa de Evaluación del Rendimiento Escolar), realizado entre 1982 e 1984; • o Sistema Nacional de Medição da Qualidade da Educação (SIMCE – Sistema Nacional de Medición de Calidad de la Educación), que vigora desde 1989 (Himmel, 1997). Cultura Avaliativa Normas sobre avaliação Estratégias e formas de divulgação Políticas educacionais Tradição avaliativa 87 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A essas iniciativas, podem ser agregadas, no caso do Chile, outras, ocorridas em um período mais extenso. A esse respeito, pode-se assinalar que as primeiras tenta- tivas ocorreram em princípios da década de 1930. Foram realizadas por um conjunto de educadores, os quais fi- zeram pós-graduação na Europa e nos Estados Unidos. Elas consistiram na adaptação e na elaboração de nume- rosas provas escolares (Aritmética, Ortografia, vocabulá- rio, leitura silenciosa e compreensão de texto, História, Geografia e outras disciplinas), ministradas a aproxima- damente 10 mil alunos. Também se pode mencionar a Prova Nacional, aplica- da, entre 1966 e 1968, por uma equipe de especialistas do Ministério da Educação do Chile. Na Colômbia, Méxi- co e Costa Rica, há 30 ou 40 anos, especialistas também realizam um trabalho nessa área, que se tem desenvolvi- do mais nos últimos dez anos. Como se pode verificar, a tradição leva à formação de uma cultura avaliativa, desde que a atividade seja manti- da ao longo do tempo. Políticas educacionais Outro fator que contribui para a geração de uma cultu- ra avaliativa são as políticas educacionais que promovem ações nesse sentido. Pode-se afirmar que, quando con- templada em uma política educacional, a avaliação cer- tamente passa a ser aplicada e, eventualmente, utilizada para as tomadas de decisão. Alguns exemplos confirmam isso, como a Reforma Educacional realizada no Chile, em 1965, que implicou uma mudança no ensino básico, nos planos e progra- mas, no enfoque do processo educativo e na continui- dade dos estudos no ensino médio (a Prova Nacional ti- nha como propósito encaminhar os estudantes para o ensino médio ou profissionalizante). Por sua vez, a descentralização administrativa do sistema educacional é a origem do Programa de Avalia- ção do Rendimento Escolar e do Sistema Nacional de Medição da Qualidade da Educação. No entanto, con- vém assinalar também que, no caso do primeiro, a po- lítica educacional foi formulada e implementada de for- ma incompleta. Na verdade, o Programa de Avaliação do Rendimento Escolar foi concebido, sobretudo, como um sistema de avaliação massiva que desencadearia ações de melho- ria desde a base, que são as escolas, sem, contudo, an- gariar apoio técnico e econômico do Ministério da Edu- cação, que autorizara a execução das ações. Esta carên- cia foi remediada no caso do Sistema Nacional de Medi- ção, já que ele foi acompanhado de numerosos progra- mas de apoio às escolas cujos alunos demonstrassem os rendimentos mais baixos (Himmel, 1997). A legislação ou as normas Este é o fator que legitima a avaliação. Tanto no caso da Prova Nacional, quanto no do Programa de Avalia- ção do Rendimento Escolar, não houve uma legislação ou norma definida que regulasse sua obrigatoriedade, características, periodicidade etc. Já em relação ao Sis- tema Nacional de Medição da Qualidade da Educação e ao Sistema de Ingresso à Educação Superior, exis- tem disposições a respeito. O primeiro encontra-se ofi- cialmente reconhecido em uma das leis orgânicas so- bre educação, e o segundo, pela normativa do Conse- lho de Reitores das universidades que recebem subsí- dios estatais. Além disso, uma parte desse sistema de avaliação — a Prova de Aptidão Acadêmica — encontra-se vinculada ao financiamento universitário pela legislação vigente. Nestes últimos exemplos, vê-se que a legislação e/ou a normativa contribuíram para a continuidade e a legitimi- dade dos sistemas de avaliação que, por sua vez, facili- taram o desenvolvimento da cultura avaliativa. As estratégias e formas de divulgação de resultados Este último fator tem efeito decisivo para a formação da cultura avaliativa. Como mencionado anteriormente, ela tem dois componentes: as ações de avaliação e o uso da informação. Ainda que eles atuem principalmente na realização das ações de avaliação, as estratégias e for- mas de divulgação de resultados incidem mais especifi- camente sobre o uso da informação produzida. Na ver- dade, se a informação gerada pelos processos avaliati- vos não for divulgada ou acabar sendo disseminada por meio de uma estratégia equivocada, dificilmente pode- rá ser utilizada nas tomadas de decisão. A divulgação compreende ao menos quatro fases: • antes do processo avaliativo; • durante o processo; • para demonstrar os resultados; • de continuidade. 88 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Antes do processo A difusão prévia tem o propósito de informar acerca dos objetivos, características e etapas do processo. Trata-se de uma fase de sensibilização dos que serão afetados e envolvidos pela avaliação. Pode-se pensar que, uma vez que um programa ou sistema de avalia- ção se encontre instaurado, esta etapa não seja ne- cessária. No entanto, esses sistemas não são estáti- cos. São dinâmicos e passíveis de mudanças ao lon- go do tempo, no que se refere, por exemplo, a conte- údos, modalidades, prazos, público-alvo, abrangên- cia etc., de modo que sempre é necessário sensibili- zar os envolvidos. Assim, no Sistema Nacional de Medição da Quali- dade da Educação, a informação anterior ao processo costuma consistir nas seguintes ações: • Distribuição de um folheto aos estabelecimentos de ensino, quatro meses antes da aplicação das provas, com descrição dos objetivos, relação de datas e comunicado de que, posteriormente, ha- verá explicações mais técnicas. • Envio de um informativo aos pais dos alunos, des- crevendo os objetivos do Sistema, as datas das pro- vas e anunciando a importância de sua participa- ção, com o objetivo de despertar neles o interesse pelo programa e de obter sua cooperação, em par- ceria com os colégios, na formação dos filhos. • Produção de um vídeo de cerca de 15 minutos, com caráter eminentemente motivacional, divulgado pri- meiro aos supervisores, que, posteriormente, mul- tiplicarão a informação, repassando-a a diretores e professores. Seus objetivos principais: - contribuir com o desenvolvimento de uma atitude positiva em relação ao programa nos diferentes níveis do sistema educacional; - promover seus fundamentos e propósitos de maneira compreensível para todos; - apoiar as atividades de divulgação realizadas pelas equipes de supervisores em nível local. • Distribuição de cartazes alusivos ao programa em todas as escolas e lugares públicos, algumas ve- zes acompanhados de um calendário do ano. • Difusão nacional de um programa de TV, com am- pla cobertura jornalística do processo. • Disseminação dos aspectos técnicos do programa a professores e diretores, por meio de um folheto, detalhando os fundamentos do Sistema, a forma de elaboração dos instrumentos de medição emprega- dos e suas características técnicas, e exemplos dos objetivos e das questões das provas. Além disso, o preparo de um conjunto de transparências para divulgação local pode auxiliar nas palestras reali- zadas pelos supervisores. Durante o processo A finalidade de transmitir a informação durante o processo de avaliação objetiva é chamar a atenção de toda a opinião pública para o processo em anda- mento. No Sistema Nacional de Medição da Qualidade da Educação, a fim de que os meios de comunicação se encarreguem da difusão, normalmente se elabo- ram comunicados para a imprensa, divulgados no dia anterior ao início da aplicação das provas. Além dis- so, as autoridades superiores do Ministério da Educa- ção, incluindo o ministro, visitam e se mostram pre- sentes nos locais de aplicação no dia em que come- ça o processo. Comunicação dos resultados No que diz respeito à disseminação de resultados, é necessário advertir que ela deve condizer com cada público específico e, sobretudo, ser feita em momen- to oportuno. É necessário distinguir, ao menos, a in- formação voltada às autoridades daquela dirigida aos professores, aos pais, aos especialistas em avaliação e à opinião pública. O tipo de informação fornecido a cada público depende do grau de desenvolvimento da cultura avaliativa. Dessa maneira, se tal cultura se encontrar em uma etapa muito incipiente, será necessário proporcionar uma informação mais simples, mas nunca simplista. Ao contrário, à medida que a cultura avaliativa se mos- trar mais desenvolvida, poder-se-á difundir uma infor- mação cada vez mais sofisticada, sempre se levando em conta o nível de conhecimento dos diferentes pú- blicos. Como o tipo de informação que se divulga tam- bém muda ao longo do tempo, é necessário incorpo- rar manuais de interpretação ao programa de dissemi- nação de resultados e, ainda, no caso dos sistemas de avaliação da aprendizagem, manuais com orienta- ções pedagógicas. 89 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Continuidade A continuidade do programa também requer um proces- so de divulgação. Basicamente, trata-se de disseminar as ações empreendidas pelos diferentes agentes para superar rendimentos insuficientes e monitorar o uso dos resultados. No Chile, por exemplo, foi elaborado um índice de vulnera- bilidade educacional baseado nos resultados do Sistema Nacional de Medição da Qualidade da Educação, o qual tem servido para destinar recursos e apoio às escolas com resul- tados mais deficitários de seus alunos. Uma das iniciativas consistiu em projetos de melhoria educacional, formulados pelas escolas a partir de um diagnóstico de suas necessida- des educativas. Os resultados da execução desses projetos são divulgados em publicações e exposições. É ainda importante assinalar que nenhum desses quatro fatores é suficiente, por si, para gerar uma cultu- ra avaliativa. Não basta, portanto, que um país disponha de uma tradição em avaliação, de uma legislação que a promova ou ainda de políticas educacionais que a in- centivem. São necessários todos esses fatores e, mais especificamente, a forma ou a estratégia de divulgação, que é o que permite fazer os diferentes atores assimila- rem a cultura avaliativa. Efeitos da cultura avaliativa sobre o sistema educacional e sobre o debate político e público em geral A cultura avaliativa pode produzir um efeito virtuoso ou um círculo vicioso sobre o sistema educacional e sobre o debate político e público. O efeito virtuoso acontece quando há melhoria no serviço educativo, de acordo com o consenso sobre o significado de “melhoria”, tra- duzido freqüentemente em priorizar a área da Educação e em lhe destinar mais recursos. Outro efeito positivo que deriva da cultura avaliativa é que os critérios ou padrões para julgar o desempenho dos alunos são mais bem definidos e com expectativas mais ele- vadas, o que contribui para que os educandos adquiram co- nhecimentos úteis e atualizados, maior habilidade de pen- samento, destrezas mais complexas e valores, em confor- midade com a declaração da Unesco de 1990. Dessa forma, conquistam-se recursos humanos melhores, ou seja, desen- volve-se um “capital humano” cada vez mais valioso. Por sua vez, o círculo vicioso se produz quando os re- sultados da avaliação se traduzem meramente em um tra- balho para lograr alcançar o que o sistema de avaliação pretende explicitamente. É claro que nenhum sistema de avaliação pode abarcar todos os propósitos e dife- rentes aspectos do processo educativo, portanto, sem- pre proporcionará uma visão parcial. Em outros termos, os alunos aprendem o que o sis- tema de avaliação pretende; os diretores contratam os professores que obtêm os melhores resultados de seus alunos; e os pais, quando podem, escolhem as escolas para os filhos de acordo com este mesmo critério. Este último efeito leva à conquista não das metas educacionais nacionais, e sim das contempladas no sistema de avaliação, pois tudo o que não é conside- rado no sistema ou programa é relegado a segundo plano ou simplesmente suprimido, já que é menos importante, tornando, assim, a educação desvirtua- da e empobrecida. Com esta síntese, espera-se haver alcançado o ob- jetivo de estimular o debate acerca da cultura avalia- tiva, dos fatores que a promovem e dos efeitos que pode ter. Referências ALKIN, M. The feasibility of measuring educational attainment in chilean schools. Consultant Report, Santiago, n. 8, 1981. ALKIN, M. C. A guide for evaluation decision makers. Beverly Hills: Sage Publica- tions, 1985. ALKIN, M. 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In: WORLD CONFERENCE ON EDUCATION FOR ALL, 1990, Jomtien, Thailand. 90 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 RELATO DE PRÁTICA: PAE - PROGRAMA DE AUMENTO DA ESCOLARIDADE Ensino para jovens em áreas vulneráveis Maria Amábile Mansutti Liliane Petris* * Maria Amábile Mansutti é pedagoga, integrante da equipe de assessores do CENPEC. Coordenou o projeto de monitoramento e avaliação do programa Aumento de Escolaridade em 2005/2006. Liliane Petris Batista é historiadora, mestre pela Faculdade de Educação da USP. No CENPEC, integra a equipe de monitoramento e avaliação do programa Território Escola. O PAE – Programa de Aumento da Escolaridade1 consiste na oferta de curso de complementação da esco- laridade de ensino fundamental, direcionado para popu- lações beneficiadas pelo Programa de Urbanização de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro – PROAP II. Abrangeu 53 comunidades, localizadas nas zonas Sul e Norte da cidade do Rio de Janeiro, caracterizadas como regiões com altos índices de violência social. A execução do Programa esteve a cargo das secreta- rias municipais de Assistência Social e da Educação do Rio de Janeiro, em parceria com organizações da socie- dade civil — Amebras - Associação de Mulheres Empre- sárias do Brasil, Cieds - Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável, DC Brasil, Viva Rio — e com o Cenpec - Centro de Estudos e Pesqui- sas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, que teve a função de monitorar e avaliar seu desenvolvimento. Em sua concepção original, o PAE caracterizava-se como um programa multissetorial, que incluía educa- ção e proteção social. Apostava-se numa ação que vi- sava ao aumento da escolaridade e ao desenvolvimen- to de condições favoráveis para a inserção do jovem no mundo do trabalho, da cultura, das relações sociais, e sua maior inclusão na vida das comunidades e da ci- dade do Rio de Janeiro. Embora o PAE já houvesse sido desenvolvido anterior- mente, por meio de telecurso, a versão 2004/5 apresenta- va características inovadoras que conferiam ao Programa um caráter inédito em termos de complementação de es- colaridade na modalidade Educação de Jovens e Adultos. O diferencial da nova proposta, em relação aos cursos de suplência oferecidos pelas escolas públicas, estava no fato de o PAE trabalhar em espaços comunitários onde se alocava um público que, por diversas razões, inclusi- ve de segurança, não teria condições de freqüentar es- colas das redes públicas de ensino. Para desenvolver o monitoramento e avaliação do PAE, o Cenpec formulou o Projeto Educação de Base Co- munitária para Jovens da Cidade do Rio de Janeiro, que cobriu a implantação do Programa, iniciada em 2004, e seu desenvolvimento até julho de 2005. O projeto aliou acompanhamento diagnóstico e formativo, gerando ações de formação e um plano de monitoramento e ava- liação para aferir a efetividade do processo e a eficácia de alguns resultados. Monitorar e avaliar o desenvolvimento de uma ação educativa inovadora, como o PAE, representou uma opor- tunidade singular para a produção de análises e refle- xões acerca de possibilidades, variações, riscos e acer- tos na oferta de cursos de complementação de escolari- dade e para o avanço de uma discussão nacional sobre a necessidade de garantir a escolaridade fundamental completa para todos os brasileiros. O PAE atingiu, em março de 2004, um total de 2.748 estudantes; porém, esse número foi se modificando no decorrer do ano letivo. Assim, em junho, freqüentavam o PAE 4.075 estudantes e, em setembro, 3.833. Em 2005, estavam previstas 156 turmas, totalizando 4.590 estudan- tes — 1.140 para duas organizações parceiras e 1.155 para as outras duas. Em fevereiro de 2005, havia 4.336 estu- dantes e, em junho, 14.459. Monitoramento e avaliação no PAE Todo projeto que pretenda introduzir novos nexos, objetivos, estratégias e formas organizacionais exige o monitoramento de sua implementação e a avaliação do processo e de seus resultados, em função dos objetivos 91 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 que pretende atingir. Assim, o objetivo principal do pla- no de monitoramento e avaliação, proposto para o PAE, foi aferir a consistência e aderência do Programa duran- te o seu desenvolvimento. O PAE introduzia alguns diferenciais na oferta de es- colaridade aos jovens e adultos, sobretudo no que se referia aos aspectos institucionais e pedagógicos. Por isso, a metodologia proposta para desenvolver o moni- toramento e a avaliação adotou uma abordagem parti- cipativa e formativa, que possibilitou a percepção das transformações ocorridas durante o processo, a amplia- ção e a consolidação da autonomia e dos conhecimen- tos produzidos pelos diferentes sujeitos e instituições envolvidas. Alguns princípios orientaram o plano de monitora- mento e avaliação: • Abrangência, no sentido de contemplar diretrizes es- tabelecidas no Programa, resultados não previstos e atuação dos segmentos envolvidos, abarcando dife- rentes percepções e pontos de vista. • Constituição de um processo formativo que propor- cione, aos segmentos participantes, elementos para o aprimoramento de concepções e práticas. • Garantia da participação das instâncias executoras, de modo a aprimorar a formação de quadros profis- sionais envolvidos. • Realismo e exeqüibilidade no tocante às condições técnicas e operacionais das instituições executoras, para que possa se tornar um pilar de sustentação do Programa. • Valorização das iniciativas da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, na área da Educação de Jo- vens e Adultos, sem colocar em segundo plano nem descuidar das dimensões de proteção e inclusão so- cial, base substantiva do PAE. A avaliação e o monitoramento desenvolvidos no PAE tinham uma dupla função: sustentar o processo de forma- ção de jovens e adultos, de professores, coordenadores, supervisores e instituições parceiras e, ao mesmo tempo, fazer uma avaliação processual que permitisse identifi- car obstáculos e elementos facilitadores, assim como o grau de adesão e resistência dos diferentes sujeitos en- volvidos. Para tanto, o Cenpec elaborou instrumentos de coleta de dados, que foram submetidos à aprovação das secretarias e das organizações parceiras e possibilitaram a obtenção de informações e a produção de análises para a reorientação de ações e planejamentos. Os primeiros dados obtidos sobre o Programa, refe- rentes ao levantamento do perfil de estudantes, profes- sores, técnicos e comunidades, foram discutidos em se- minário, do qual participaram representantes de todos os segmentos envolvidos no PAE, o que permitiu um mo- mento de reflexão e um mapeamento inicial do projeto, apontando alguns desafios. Outros dados foram discutidos com os coordenado- res das organizações parceiras e com a equipe da SMAS no decorrer do processo. Os dados quantitativos, coletados em 2004, foram enviados em CD para as equipes das secretarias e das Organizações da Sociedade Civil - OSCs. A avaliação abarcou diferentes sujeitos, ligados ao Pro- grama, incluindo estudantes e lideranças comunitárias. 92 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 OBJETIVOS, INDICADORES E INSTRUMENTOS. Objetivos Indicadores Instrumentos Avaliar uma alternativa de escolarização para a Edu- cação de Jovens e Adultos – EJA à medida que: - propõe uma nova forma de organização de curso; - faz uso de orientações curriculares, material de apoio ao estudante e ao professor, elaborados para atender as especificidades do público-alvo; - apóia-se na interatividade e na ligação entre esco- la e comunidade. Utilização das orientações curricula- res e materiais de apoio pelos pro- fessores. Grau de satisfação dos alunos em relação ao curso, suas orientações e seus materiais. Grau de satisfação dos professores em relação ao curso, orientações, ma- teriais e formação. Relação entre a equipe das organi- zações parceiras e as lideranças comunitárias. Grupos focais com estudantes e pro- fessores. Registros dos professores (planeja- mento, avaliações). Relatórios das ações de formação dos professores. Avaliação dos estudantes e institui- ções parceiras. Relatórios de visita aos núcleos. Desenvolver a formação dos estudantes para pro- mover: - novos vínculos com a escolarização (freqüência e interesse); - uso social dos conhecimentos que adquirem no PAE; - continuidade dos estudos. Número de estudantes inscritos no Programa (3). Índices de freqüência e evasão. Grau de satisfação em relação ao Pro- grama. Índices de aprovação por unidades de progressão. Ficha de inscrição. Cadastro e perfil dos estudantes. Planilha mensal de freqüência/eva- são. Resultados de avaliação por UP. Grupos focais. Relatórios de visitas aos locais dos cursos – Cenpec. Promover e apoiar a atuação do professor para: - aprimorar seus conhecimentos e vínculos, a fim de que exerça a docência e obtenha informações so- bre as características particulares dos estudantes; - despertar seu interesse em discutir critérios de se- leção e organização de conteúdos curriculares do PAE; - subsidiar o trabalho docente na construção de um curso que atenda às necessidades do público- alvo. Número de professores que participa- ram do Programa (assiduidade, auto- nomia, abandono). Pautas dos encontros de formação. Grau de entendimento, envolvimento e satisfação em relação ao Programa. Presença dos elementos da realida- de local nas práticas e nos conteúdos desenvolvidos na sala de aula. Resultados obtidos nas avaliações da aprendizagem dos estudantes. Planilhas de freqüência. Cadastro e perfil dos professores. Grupos focais com estudantes, professores, supervisores e coor- denadores. Relatórios da equipe de formação. Observação da sala de aula. Apoiar a atuação dos coordenadores, assistentes de coordenação e supervisores das OSCs na: - organização de uma dinâmica de trabalho que garanta planejamento, periodicidade das ações, participação, registro das tarefas, avaliação e in- tervenções necessárias; - assessoria aos professores nos aspectos pedagó- gicos. Gestão do Programa: circulação de informações entre as diferentes ins- tâncias envolvidas. Periodicidade do contato com profes- sores e locais dos cursos. Formação dos professores: carga ho- rária, periodicidade, pautas. Entrevistas com supervisores e co- ordenadores. Análise documental. Visitas do Cenpec aos locais dos cursos. Grupo focal com coordenadores. Contribuir para a viabilização de parcerias entre instâncias de governo (SMDS e SME), organizações da sociedade civil e associações de moradores, na implementação de ação política que visa à escola- rização de jovens e adultos, de forma que: - possibilite experiência de gestão compartilhada; - garanta condições técnico-pedagógicas de realiza- ção do Programa; - proporcione troca de experiências e ampliação de conhecimentos; - assegure documentação, análise e avaliação da experiência nos aspectos institucionais e peda- gógicos. Disponibilização de materiais. Circulação de informações. Periodicidade das reuniões e conta- tos entre os parceiros. Estabelecimento de acordos entre os parceiros. Intervenções realizadas. Avaliação do Programa realizada pelos parceiros. Avaliação do Programa feita pe- los diferentes atores beneficiados (alunos e comunidades). Entrevistas individuais. 93 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 As análises produzidas focalizaram as seguintes di- mensões: • Estudantes – interesse pelo Programa, freqüência, par- ticipação, representações sobre a escolaridade; proces- sos de aprendizagem; relações com a comunidade. • Professores – participação, atuação pedagógica ade- quada à realidade do Programa, representações sobre a escolarização de jovens e adultos. • OSCs – implementação e execução do Programa. • Técnicos do PEJ (SME) – diretrizes pedagógicas do PAE. • Técnicos da SMAS – apoio logístico e acompanhamen- to do Programa em todas as dimensões (estrutural, or- ganizacional, pedagógica). O processo e os indicadores de avaliação De modo geral, as organizações dão muita importância ao planejamento da ação e reservam um lugar secundário para a avaliação, interpretando-a apenas como justifica- tiva de uma ação ou como procedimento de prestação de contas. Com o plano de monitoramento e avaliação pro- posto, o Cenpec procurou tratar a avaliação como um pro- cesso que permitisse aprimorar as ações e manter uma dis- cussão aberta no que tange aos propósitos, processos e re- sultados do PAE. Para tanto, foi necessário definir objetivos relaciona- dos às dimensões focalizadas pelo PAE e, para cada um deles, propor um conjunto de indicadores e de instrumen- tos de coleta de informações que garantisse tanto uma vi- são de aspectos quantitativos, quanto de qualitativos. Foram utilizadas as seguintes estratégias no levanta- mento de dados: entrevistas individuais, grupos focais, mapas de desempenho dos estudantes nas avaliações periódicas e finais, questionários estruturados, roteiro de observação local, fichas quantitativas (matrícula, freqüên- cia mensal, evasão). O processo de monitoramento foi retardado pelas difi- culdades iniciais para se formular um planejamento con- junto entre Cenpec, SMAS e SME e definir as informações que seriam solicitadas às organizações parceiras, o que provocou uma sobrecarga de trabalho para os coordena- dores e os supervisores. Os indicadores foram definidos a partir de parâme- tros que orientam o Programa Aumento de Escolarida- de, e dos objetivos e estratégias indicados. Eles englo- bam três categorias: • realidade educativa (estrutura, organização e gestão do Programa; currículo, sistema de avaliação e práti- cas da sala de aula); • sucesso/fracasso escolar (matrícula, evasão, freqüên- cia, resultados da aprendizagem, certificação no EF); • caminho multissetorial: educação e proteção social, opção básica desenhada neste Programa. Reflexões e indicações sobre a experiência O PAE apresenta-se como um modelo de escolarização para EJA, recomendável para ser implantado em regiões vulneráveis devido à pobreza e riscos sociais, desde que associe efetivamente ações de escolarização e proteção social como opção básica da proposta. Em futuras implantações, é preciso considerar os ris- cos da descontinuidade. Devido ao alto grau de vulnera- bilidade a que está sujeito o público-alvo deste Programa, depois de ingressarem no PAE, dificilmente os estudantes terão condições de organizar a vida pessoal e migrar para as escolas integradas aos sistemas de ensino. Assim, caso não possam continuar no Programa até concluírem o cur- so, esses grupos certamente estarão fadados a se depa- rar com um novo fracasso, na tentativa de completarem o ensino fundamental. A experiência do PAE mostrou que o sucesso de sua 94 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 implantação apóia-se nos estreitos vínculos estabeleci- dos entre as instituições gestoras e as comunidades e li- deranças locais. Por isso, a gestão precisa considerar e investir em estratégias de articulação entre formulado- res, gestores e beneficiários do Programa, para promo- ver a escolarização e a proteção social. Na busca de aprimoramento do modelo organiza- cional do PAE, será necessário se pensar em mudanças que considerem fatores apresentados nesta análise, so- bretudo no que se refere à dramática realidade da sus- pensão de aulas, propondo uma organização do tem- po mais flexível e uma proposta curricular mais orgâni- ca. Assumir essa perspectiva realista não significa redu- zir as expectativas em relação à qualidade, mas ter uma visão estratégica coerente com a realidade vivida nesta experiência do PAE. Pode-se pensar num curso que inclua momentos de estudo presenciais e não-presenciais, estruturado em módulos, oficinas e projetos: • Módulos organizados a partir dos conteúdos funda- mentais das áreas do currículo, com tempo delimita- do e indicação de expectativas de aprendizagem pre- vistas ao término de cada módulo. Atividade presen- cial desenvolvida três vezes por semana. • Oficinas culturais direcionadas para a ampliação dos conhecimentos e para promover a integração e o conví- vio dos jovens e adultos. Poderá abarcar eixos como: - a comunicação e a compreensão de diferentes tipos de linguagens – verbal, textual, corporal, fotográfica etc.; - a convivência social – ética, valores, direitos, trânsito nos espaços públicos, solução de conflitos, erradi- cação de preconceitos culturais e discriminações, conhecimento ajustado de si mesmo, autoconfiança etc.; - o domínio de recursos tecnológicos – informática, tecnologias da informação e da comunicação: TV, vídeo etc.; - o senso estético e a valorização das diferentes formas de arte – música, cinema, teatro, artes plásticas etc. Atividade presencial semanal ou quinzenal. - Projetos desenvolvidos com a perspectiva de apli- car, de forma integrada, os conhecimentos estu- dados nos módulos e nas oficinas, para investigar problemas ou assuntos de interesse da comunidade local e apontar alternativas para minimizá-los. Muitas questões marcaram o desenvolvimento do PAE; uma das mais relevantes diz respeito à composi- ção de uma parceria inédita, que reuniu a Secretaria de Educação e a Secretaria da Assistência Social; organi- zações da sociedade civil, como gestoras da ação, e, ainda, uma terceira instituição encarregada de seu mo- nitoramento e avaliação. Com essa composição, a experiência do PAE foi cons- truída baseada em um modelo de gestão articulada que demandou um grau de envolvimento considerável de todos e pressupôs que se criasse um fluxo de informa- ção e divulgação eficiente. Exigiu abertura e disposição para se compreender, de modo consensual, a natureza do Programa e a necessidade de flexibilidade para a to- mada de decisões, possibilitando o surgimento de no- vas idéias e a formulação coletiva de processos e estra- tégias mais compatíveis com a natureza da ação. A familiaridade e a proximidade, estabelecidas entre a equipe de avaliação e o grupo executivo, reverteram o estranhamento inicial e permitiram ao Cenpec oferecer algumas contribuições para a formação dos professo- res, a adequação do currículo e a avaliação da apren- dizagem, à luz das análises e avaliações produzidas no processo de desenvolvimento do PAE. A experiência de escolarização do PAE é singular e complexa; por isso, exige o compartilhamento de conhe- cimentos, experiências e visões de diferentes instituições para que se desenvolva de modo satisfatório. Uma par- ceria, como a estabelecida neste Programa, pressupõe uma nova cultura de gestão compartilhada, que implica possibilidades de diálogo em tempo real; comunicação por escrito, por meio de mensagens curtas e objetivas; e coletivizar o processo de tomada de decisões. No PAE, nem sempre foi possível vivenciar os pro- cessos de uma gestão compartilhada como era o dese- jo de todos, porém, há saldos positivos nessa experiên- cia. O papel desempenhado pela coordenação do Pro- grama, sediada na SMAS, foi fundamental para a efeti- vação das condições e o apoio administrativo que ofe- receu às organizações sociais. Em ações nas quais estejam envolvidas duas ou mais secretarias, aprendemos que é fundamental haver uma divisão clara de atribuições e responsabilidades, com momentos de discussão e reflexão sobre essa ação con- junta e uma instância que faça a intermediação dessa relação e contribua para a resolução e a superação de possíveis obstáculos ou dificuldades. 95 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Também as quatro organizações sociais parceiras tiveram uma atuação destacada e procuraram traba- lhar de modo integrado, apoiando-se mutuamente e trocando experiências. A constituição de fortes vín- culos de articulação entre as equipes da SMAS, das instituições sociais e as comunidades atendidas foi, e continua sendo, fundamental para a efetivação do programa e para garantir, de algum modo, a preser- vação física dos professores e supervisores que entram nas comunidades. Os líderes comunitários reconhecem a importância dessa parceria e sabem que são figuras-chave. Segundo sua avaliação, a implantação do PAE tem contribuído para que a associação de moradores tenha um reconhecimento maior pela comunidade. Destaca-se, ainda, o fato de que as verbas destinadas, pelo Programa, às associações per- mitem que elas melhorem sua infra-estrutura. Ainda será preciso que as organizações públicas e pri- vadas incorporem, em suas práticas, a produção de in- vestigações e conhecimentos sobre determinadas ques- tões e contribuam para fazer avançar os estudos sobre o ensino e a aprendizagem de jovens e adultos, que ainda são bastante incipientes na área da pesquisa educacio- nal. Uma dessas questões diz respeito à evasão. Também é interessante que se estude mais o movi- mento da freqüência dos estudantes, que foi bastante ir- regular no PAE, bem como as questões relacionadas dire- tamente com a aprendizagem. A escolarização proposta no PAE é uma experiência rica em termos de informações e variáveis para alimentar essas investigações. Diante desses fatos, é importante se refletir o quanto as experiências alternativas de escolarização, como o PAE, precisam criar condições para que as práticas pedagógicas se tornem mais produtivas, agregando estudos, monitora- mento e avaliação das práticas habitualmente utilizadas em sala de aula e estimulando a formulação de outras. A experiência PAE ainda revelou que a associação en- tre escolaridade e proteção social é um ponto forte, em- bora de difícil articulação. Por exemplo, há muitas mu- lheres que desejam estudar e não têm com quem deixar seus filhos; ou os casos de violência contra as mulheres estudantes relatados nos grupos focais; e, ainda, a ne- cessidade de se desenvolver ações, como a campanha de regularização de documentos pessoais, a fábrica de cartões postais, idéias nascidas no PAE, que não foram levadas adiante. Um programa que contempla uma região de alto risco social não pode deixar de atuar na área da proteção. As equipes dos órgãos de Assistência Social e as organiza- ções parceiras devem ser mais propositivas nesse senti- do, pois a realidade das comunidades mais vulneráveis enseja ações de apoio psicossocial para que possam li- dar com os problemas que emergem tanto para os estu- dantes quanto para os professores. Cabe pensar ainda nas possibilidades de aprendiza- do e uso da tecnologia digital. Em vários momentos, os estudantes do PAE afirmaram que gostariam de apren- der informática e, certamente, o acesso ao computador e à Internet poderia facilitar o aprendizado on line, evi- tando-se a imposição de freqüência diária regular, que exige tempo e disposição nem sempre disponíveis na- quelas condições. Por fim, seria recomendável e necessário intensificar a vertente cultural de programas de escolarização de jovens e adultos, casando educação formal e outros processos de aprendizagem que ajudem a criar um repertório ampliado, facilitando a apreensão dos conteúdos curriculares. Notas 1 Os dados aqui apresentados constituem parte do relatório avaliativo de dezembro de 2005, elaborado pelo Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. 2 Indicadores de avaliação são sinalizadores de processo e de resultados relativos a uma dada ação planejada. São como um termômetro criado para orientar e aferir a observação, o registro e a avaliação de planos, programas, projetos e ações pretendidas. %M A¿ÍES NAS QUAIS ESTEJAM ENVOLVIDAS DUAS OU MAIS SECRETARIAS APRENDEMOS QUE Á FUNDAMENTAL HAVER UMA DIVIS»O CLARA DE ATRIBUI¿ÍES E RESPONSABILIDADES COM MOMENTOS DE DISCUSS»O E REÚEX»O SOBRE ESSA A¿»O CONJUNTA E UMA INSToNCIA QUE FA¿A A INTERMEDIA¿»O DESSA RELA¿»O E CONTRIBUA PARA A RESOLU¿»O E A SUPERA¿»O DE POSSÅVEIS OBST1CULOS OU DIÙCULDADES 96 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 97 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Ao identificar boas práticas relacionadas com as- pectos tangíveis e intangíveis das escolas, o es- tudo fortaleceu nossa visão de que escolas têm corpo e alma. Inseparáveis e complementares, corpo e alma são fonte geradora de aprendizagens. Mas é a alma da escola que faz com que todos e cada um dos integrantes da comunidade escolar vi- venciem a bela experiência humana de apren- der um pouco mais a cada dia. stas são as palavras de encerramento do Aprova Brasil: o direito de aprender, uma publicação lançada em de- zembro de 2006 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef (sigla em inglês do United Nations Children’s Fund, redução do nome original United Na- tions International Children’s Emergency Fund) e pelo Ministério da Educação e Cultura - MEC, contendo os re- sultados de um estudo realizado em 33 escolas públi- cas, situadas em 14 Estados e no Distrito Federal.1 A idéia dessa iniciativa conjunta do Ministério da Educação e do Unicef tem origem nos resultados da Pro- va Brasil; e sua inspiração e motivação vêm do compro- misso com a garantia do Direito de Aprender de todas as crianças e jovens brasileiros. artigo #ONHECER AS MIL FACES DA ESCOLA PARA AMPLIAR O Maria de Salete Silva* DIREITO DE APRENDER % * Maria de salete silva é arquiteta, consultora de educação do Unicef e coordenou o estudo Aprova Brasil: o direito de aprender. 98 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A Prova Brasil Realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesqui- sas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, em 2005, a Prova Brasil foi a primeira avaliação em caráter universal efe- tuada nas escolas públicas urbanas que oferecem a 1a fase e/ou a 2a fase do ensino fundamental, com mais de 30 alunos na série avaliada. Foram aplicadas provas aos alunos de 4a e 8a série com o objetivo de avaliar seu de- sempenho em Língua Portuguesa (leitura) e Matemáti- ca. No total, fizeram a prova 3.306.378 alunos de 40.290 escolas, localizadas em 5.398 municípios de todas as re- giões brasileiras. Esse tipo de avaliação permitiu a divulgação dos resultados por unidade escolar. Conhecendo os resul- tados obtidos pelas escolas na Prova Brasil, gestores, dirigentes escolares e a sociedade em geral podem se mobilizar para buscar melhorias no ensino, tomando como base o desempenho das escolas do seu estado, seu município, sua rede escolar ou demais escolas de seu bairro, e cobrar mais responsabilidade das esco- las, professores e dirigentes em relação ao desempe- nho dos seus alunos.2 O Unicef e o direito de aprender A base para a cooperação do Unicef e das demais agên- cias do sistema ONU, no âmbito do Marco de Assistência das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Undaf), é a criação e o desenvolvimento das capacidades dos de- tentores dos direitos e dos responsáveis pela garantia desses direitos, com os quais os países-membros com- prometeram-se ao ratificar a Convenção dos Direitos da Criança e, no caso brasileiro, ao aprovar o Estatuto da Criança e do Adolescente. O Programa de País do Unicef, para o período 2007- 2011,3 pretende apoiar o Brasil no cumprimento de suas obrigações de garantir os direitos de cada crian- ça e cada adolescente, desenvolvendo cinco Progra- mas, denominados: • Sobreviver e se Desenvolver; • Aprender; • Proteger-se do HIV/AIDS; • Crescer sem Violência; e • Ser Prioridade nas Políticas e Orçamento Públicos. As perspectivas de eqüidade de raça/etnia e gêne- ro e de participação dos adolescentes permeiam todos os programas. O foco da atuação do Unicef concentrar- se-á nas áreas onde se encontram as crianças mais vul- neráveis e excluídas: o semi-árido brasileiro, a Amazô- nia e as comunidades populares de grandes centros urbanos. O Brasil quase atingiu o Segundo Objetivo do Milê- nio — Ensino Fundamental Universal — com 98% das crianças, de sete a 14 anos, matriculadas. Esses 2% sig- nificam ainda que cerca de 800 mil crianças nessa faixa etária permanecem fora da escola, das quais, 500 mil são negras. A situação das crianças indígenas expres- sa ainda uma maior iniqüidade: cerca de 21,5% delas, de sete a 14 anos, estão fora da escola. Persistem também grandes desigualdades regio- nais: enquanto no Norte e Nordeste somente 40% das crianças terminam o ensino fundamental, no Sul e no Sudeste, esta proporção sobe para 70%.4 O Brasil tem 21 milhões de adolescentes entre 12 e 18 anos, representando 11% da população. Mais de 3,5 milhões deles estão fora da escola. De cada 100 es- tudantes que entram no ensino fundamental, 82 con- cluem a 5a série, 59 terminam a 8a série e apenas 40, o ensino médio.5 Diante dessa situação marcada pela desigualdade e iniqüidade no acesso e na qualidade da educação, o Programa de País do Unicef concentra o foco de sua atuação na busca de educação de qualidade para to- das as crianças e adolescentes de até 17 anos e na ga- rantia de acesso de 800 mil crianças de sete a 14 anos que estão atualmente fora da escola, assim como o in- 99 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cas brasileiras, segundo critérios socioeconômicos e de desempenho na Prova Brasil. As escolas foram escolhidas devido a seus resultados na avaliação. Não deixaram de ser também consideradas as informações sobre a situação socioeconômica dos alu- nos que participaram da Prova e dos municípios em que elas se localizam. Com isso, foi possível comparar as escolas, não só ob- servando a nota média obtida por seus alunos, como tam- bém o quanto cada uma delas pode ter contribuído efeti- vamente para o seu desempenho na prova. É o que se cha- mou de IEE – Índice de Efeito Escola, que mede o impacto que a instituição tem na vida e no aprendizado da criança. Por isso, as escolas visitadas não são as que obtiveram melhores notas, em valores absolutos, e sim aquelas com o mais alto “efeito-escola”. Elas situam-se em municípios ou bairros onde moram famílias de baixa renda, portanto, seus alunos apresentam alta vulnerabilidade para a exclu- são social e, mesmo assim, eles aprendem. Chegou-se então a um grupo de escolas que apresen- tou resultados de desempenho na Prova Brasil sempre aci- ma da média nacional e superiores também em relação às escolas da mesma região e com características semelhan- tes, segundo os critérios utilizados pelo Unicef e MEC. As escolas analisadas Foram visitadas e analisadas 33 escolas de ensino fun- damental, sendo 20 municipais e 13 estaduais, em 32 mu- nicípios de 14 estados e do Distrito Federal. ESTADOS E ESCOLAS UNIDADE FEDERATIVA NÚMERO DE ESCOLAS Amazonas 4 Bahia 2 Ceará 2 Distrito Federal 1 Goiás 1 Maranhão 1 Minas Gerais 4 Mato Grosso do Sul 2 Pará 1 Piauí 1 Paraná 3 Rio de Janeiro 6 Rio Grande do Sul 1 São Paulo 3 Tocantins 1 gresso de oito milhões de adolescentes de baixa renda e baixa escolaridade no ensino médio. A indissociabilidade entre educação de qualidade e aprendizagem Dirigir para o aprender o foco da mobilização em torno da educação de qualidade tem sido cada vez mais fre- qüente no Brasil. Dois exemplos de grandes mobilizações da sociedade civil demonstram esse movimento. A Cam- panha Nacional pelo Direito à Educação, que tem a par- ticipação de diversas organizações sociais, estabelece, como foco de sua ação, a qualidade da educação para que o aprendizado seja efetivo. O Compromisso Todos pela Educação, envolvendo setores da sociedade civil, empresas e governo, estabeleceu cinco metas para 2022 (bicentenário da Independência), todas elas fortemente relacionadas com as possibilidades de aprendizagem de meninos e meninas nas escolas públicas do país. Refletir sobre a aprendizagem como resultado de uma educação de qualidade envolve os aspectos rela- cionados com os tempos, práticas e conteúdos da esco- la. Significa também pensar em educação integral, em articulações sistêmicas entre políticas públicas e pro- gramas de atendimento a crianças, famílias e comuni- dades. Uma educação de qualidade deve garantir o di- reito de aprender. Um universo a ser observado... Os resultados da Prova Brasil abriram um rico campo de observação sobre situações que podem levar à aprendi- zagem da leitura, dos cálculos e raciocínio matemáticos em escolas públicas de ensino fundamental. O estudo realizado pelo MEC e Unicef partiu de uma idéia-chave: as respostas para as indagações referentes à aprendizagem das crianças podem estar nas próprias escolas. Mais do que isso, elas devem surgir de obser- vações e reflexões com participação ativa dos protago- nistas do fazer escolar. Quais as características das escolas nas quais os alu- nos alcançaram bom desempenho na Prova Brasil? Que escolas deveriam ser observadas e estudadas? Para identificar as diversas dimensões da gestão, or- ganização e funcionamento de escolas que podem ter contribuído para a melhor aprendizagem dos alunos, fo- ram selecionadas 36 escolas das cinco regiões geográfi- 100 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Princípios norteadores do Projeto Alguns princípios orientaram a direção do olhar so- bre as escolas, procurando-se identificar em que medi- da elas estão garantindo os direitos da criança, em es- pecial o direito de aprender. São eles: • o direito à educação é direito de todas e de cada uma das crianças e adolescentes; • o direito à educação deve observar os princípios da universalidade, progressividade, indivisibilidade e interdependência, exigibilidade e participação; • todas as crianças e adolescentes têm direito à edu- cação de qualidade, independente de origem étnica, racial, social ou geográfica; • a escola é parte integrante do sistema de garantia de direitos das crianças e adolescentes; • a escola é lugar privilegiado para assegurar a cada criança e adolescente o direito de aprender; • a gestão escolar deve ser democrática, garantindo a alunos, professores, funcionários, famílias e comuni- dade o direito à participação. Aprova Brasil: uma experiência de observação participativa Com um olhar orientado pelo marco de direitos, o pro- jeto buscou identificar que aspectos podem ter contri- buído para o bom desempenho das escolas, o que cer- tamente não se deve a um único fator ou dimensão da gestão escolar. Cada escola tem história, rotinas, proje- tos e formas de trabalho construídas ao lo ngo do tem- po. As escolas visitadas situam-se em municípios e co- munidades com características culturais, sociais e eco- nômicas diferenciadas, e pertencem a redes também di- versas. Portanto, para anunciar os resultados da pesqui- sa como “boas práticas de educação pública”, foi preci- so ir além da identificação de um ou outro fator, e des- crever, ainda que sucintamente, os processos e ativida- des por meio dos quais essas práticas se efetivam e o contexto em que elas se inserem. O estudo lançou mão de uma metodologia denomi- nada “pesquisa rápida” (rapid assesment), que parte da investigação de um núcleo central de interesse — no caso, as escolas selecionadas — para levantar elementos que permitam identificar questões relevantes do univer- so pesquisado. Para realizar a pesquisa em campo, foram selecio- nados 12 pesquisadores, por meio de edital público. O grupo tinha formação e experiência bastante diversifica- das em pesquisa e avaliação. Os pesquisadores foram incentivados e capacitados, a fim de realizar uma análi- se a mais aberta e ampla possível, estarem totalmente disponíveis para escutar e observar, além de, por meio de muita determinação e disciplina, registrar cada mo- mento da visita. Todo o trabalho nas escolas foi basea- do em um “Caderno de Campo”, organizado de manei- ra a orientar os contatos e possibilitar o registro das ob- servações, conversas, entrevistas e reuniões. Nos dois dias em que passaram em cada escola, os pesquisadores procuraram conversar com todos os ato- res que poderiam contribuir — e como contribuíram! — para o entendimento das razões do bom desempenho das crianças na Prova Brasil. Para entender o processo de aprendizagem dos alunos, buscava-se a visão mais ampla e multifacetada possível. A inspiração para essa postura aberta e para a neces- sidade de captar a diversidade das faces e dimensões da escola veio de um poema de Paulo Leminsky: Quando eu vi você Tive uma idéia brilhante Foi como se eu olhasse De dentro de um diamante E meu olho ganhasse Mil faces num só instante.7 Além de observar estas “mil faces”, era preciso ouvir cada uma delas. E essa escuta foi inspirada em um texto de Leonardo Boff: Ler significa reler e compreender, interpretar: cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiência tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.8 101 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Os atores, com os quais obrigatoriamente o pes- quisador deveria fazer contato, seja por meio de ob- servação de práticas, entrevistas, reuniões ou mes- mo de conversas mais informais, foram: a direção, a coordenação pedagógica, os professores, os alunos, suas famílias, funcionários e membros do Conselho Escolar. Para complementar, eventualmente foram ou- vidos parceiros externos da escola, dirigentes muni- cipais de educação, membros da comunidade do en- torno da escola. Todo o processo de escuta tinha, como coluna verte- bral, uma questão central, que deveria ser respondida por todos os atores: Esta escola teve um desempenho na Prova Brasil — Matemática e Língua Portuguesa na 4a e/ou 8a série — acima da média das escolas públicas brasileiras. A que pode ser atribuído esse resultado? O Caderno de Campo, guia desse processo de ob- servação e escuta, foi elaborado de maneira simples e adequada à metodologia de pesquisa rápida, e es- tava dividido em três blocos: • quadros com registro de informações quantitativas sobre o município e a escola; • roteiros para observação, entrevistas, conversas, reuniões, com orientações de caráter geral e indi- cações específicas para cada um dos atores parti- cipantes; • formulários para registro de informações qualitati- vas do pesquisador. O roteiro de observação e contato com os atores foi construído a partir da publicação Indicadores de Qua- lidade9 na Educação, cujo objetivo é incentivar a co- munidade escolar a avaliar a qualidade da educação em sua escola. Nela, são propostas sete dimensões de avaliação que serviram de base para a construção do Caderno de Campo: • ambiente educativo; • prática pedagógica; • avaliação; • gestão escolar democrática; • formação e condições de trabalho dos profissionais da escola; • ambiente físico escolar; • acesso, sucesso e permanência na escola. Durante as visitas às escolas, os alunos, crianças e ado- lescentes, tiveram um papel central: eles conduziram os pesquisadores, mostraram e opinaram sobre os espaços, contaram sobre sua percepção das aulas e atividades de- senvolvidas, seus processos de aprendizado, as relações entre os atores, os resultados da Prova Brasil. Por que a nossa escola foi bem no Prova Brasil: • por causa do bom desempenho dos alunos; • porque tem professores inteligentes; • porque as cantineiras são boazinhas e fazem uma merenda gostosa; • porque os professores são criativos e trazem coisas novas, como músicas, livros, pesquisas, e não fica aquela aula cansativa; • porque temos muitas tarefas na sala de aula; • porque a avaliação é por trimestre e estimula o aluno a estudar o ano todo; • porque a supervisora é maravilhosa, uma fada. Alunos da 8a série da Escola Municipal Desembargador Aprígio Ribeiro de Oliveira, São Brás do Suaçuí, MG. A percepção dos atores sobre as razões do bom desempenho das crianças As respostas à questão central da pesquisa revelam a percepção dos atores em relação às causas do bom de- sempenho das crianças de cada escola visitada. A maio- ria dos que participaram das entrevistas, reuniões e con- versas atribuiu o bom desempenho das crianças aos pro- fessores, aos próprios alunos, às práticas pedagógicas desenvolvidas e à participação da comunidade. • O professor: atitudes, capacidades, formação. Empenho, competência, capacitação, interesse, dedicação, abertura para criar atividades e estimular os ! MAIORIA DOS QUE PARTICIPARAM DAS ENTREVISTAS REUNIÍES E CONVERSAS ATRIBUIU O BOM DESEMPENHO DAS CRIAN¿AS AOS PROFESSORES AOS PRËPRIOS ALUNOS ̧S PR1TICAS PEDAGËGICAS DESENVOLVIDAS E ̧ PARTICIPA¿»O DA COMUNIDADE 102 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 alunos. Estas foram as características destacadas por todos os que consideraram o professor como o principal responsável pelo bom desempenho das crianças. Os professores são criativos e trazem coisas novas, como mú- sicas, livros, pesquisas, e não fica aquela aula cansativa. Alunos da 8a série da Escola Municipal Desembargador Aprígio Ribeiro de Oliveira, São Braz do Suaçuí, MG. • Alunos: sujeitos ativos da aprendizagem A atitude dos participantes em relação aos alunos é francamente positiva. Eles são parte ativa do sucesso das escolas e não a razão de seus problemas, posição muitas vezes adotada por alguns setores da comunidade esco- lar. Essa atitude repercute na auto-estima e auto-imagem dos alunos que, em muitas das escolas pesquisadas, afir- mam que confiam nas suas capacidades, consideram-se inteligentes e têm facilidade para aprender: A prova foi fácil e nós somos inteligentes. Alunos da Escola Estadual Coronel Antônio Trindade, Aquidauana, MS. • Práticas pedagógicas: inovações, interação com outros ambientes. As atividades pedagógicas desenvolvidas nas salas de aula ou em outros ambientes são consideradas um dos fatores mais importantes para o bom desempenho das crianças, embora muitas dessas atividades e propostas não cheguem a configurar um projeto pedagógico formal e estruturado. A variedade de recursos utilizados, os tem- pos dedicados à aprendizagem — no turno de estudo e em atividades complementares no turno oposto — a mobiliza- ção e a participação de alunos, e até mesmo das famílias, nos projetos, a quebra da rotina de sala de aula ou da for- ma de organizar os espaços e o mobiliário escolar foram citados por muitos dos participantes da pesquisa. Além desses aspectos, muitos atores se referiram à disciplina e à organização da escola como elementos que impulsionam e valorizam a aprendizagem: Aqui os alunos, pais e professores são cobrados e cobram com muito rigor e disciplina. Diretora de uma das escolas visitadas. • Famílias e comunidade: parte do cotidiano da escola Em muitas das escolas analisadas, a participação das famílias e da comunidade foi considerada um fa- tor importante para o bom desempenho escolar das crianças. Pelos depoimentos, foi possível verificar que essa participação acontece de três formas: • na gestão da escola; • no envolvimento e presença dos pais de alunos; • nas parcerias firmadas com instituições, como em- presas, organizações sociais, associações de mo- radores, universidades e ONGs, entre outras. Entendida como um fator que interfere positivamente na aprendizagem, a gestão democrática e participativa aponta para a ampliação do processo educativo que se estende para além da estrita relação educador-educan- do, envolvendo outros territórios, o contexto social e co- munitário e outros tempos, além do tempo escolar. Sei que a escola tirou o “primeiro lugar” na Prova Brasil. Tem um outdoor aqui na frente da escola. Acho que isso foi possível pelo jeito que os professores ensinam as crianças. Eles sabem ensinar e os alunos têm mais liberdade de perguntar quando têm dúvidas. Pai de aluno na escola Professor Guiomar Gonçalves Neves, Trajano de Moraes, RJ. As boas práticas das escolas: inspiração para melhorar a aprendizagem No estudo Aprova Brasil, o direito de aprender, a ex- pressão “boas práticas” significa procedimentos, ati- vidades, experiências e ações que apresentam resul- tados positivos na aprendizagem de crianças e ado- lescentes, alunos das escolas analisadas. A sistematização de práticas, apresentada na pu- blicação, foi feita a partir da análise da coerência pe- dagógica, da adequação aos princípios norteadores do estudo, da sintonia com a abordagem dos direitos das crianças e adolescentes, da sua relação com o dia-a- dia da escola e do potencial de disseminação para ou- tras escolas. A metodologia e o desenvolvimento do estudo não permitem atribuir o bom desempenho dos alunos das escolas analisadas exclusivamente às práticas relatadas. Mas é possível destacá-las como relevantes e significa- tivas para a escola, para os atores que participaram da pesquisa e, principalmente, para os resultados na apren- dizagem das crianças. O estudo as apresenta como sugestões ou boas 103 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 idéias, não como receitas ou fórmulas prontas. Elas te- rão cumprido um importante papel se servirem de ins- piração para políticas, programas, diretrizes ou projetos que possam contribuir para a melhoria da qualidade da aprendizagem de crianças e adolescentes, alunos de escolas públicas brasileiras. Dimensões do aprender: os achados do Aprova Brasil Complementando a resposta à questão central, todos os participantes do estudo — direção, professores, co- ordenadores, alunos, famílias, funcionários e membros da comunidade — foram solicitados a descrever uma ou mais práticas desenvolvidas na escola que contribuíam efetivamente para a aprendizagem das crianças. Ao analisar e sistematizar as boas práticas apontadas pelos atores-participantes nas 33 escolas pesquisadas, foi possível agrupá-las, por similaridade, em cinco blo- cos, chamados de “dimensões do aprender”. Dimensão 1: práticas pedagógicas, a caminho da educação integral. O maior número de atividades citadas refere-se a prá- ticas pedagógicas, envolvendo estratégias de trabalho dos educadores, projetos de ensino, uso e produção de materiais didáticos, processos de avaliação e recupe- ração da aprendizagem dos alunos. Verificou-se que elas não nascem no vazio ou da in- tenção ou desejo isolados de um ou mais setores da co- munidade escolar. Elas são fruto de uma conjunção de condições objetivas e do compromisso da equipe e da comunidade escolar com a aprendizagem dos alunos. Sua força e efetividade dependem de uma atitude aten- ta e cuidadosa de todos no momento de planejar, rea- lizar e avaliar cada passo. Essas práticas não são eter- nas nem imutáveis. A publicação apresenta-as agrupadas em sete gru- pos temáticos, seja por características de gestão, por forma de desenvolvimento ou tipos de atividades de- senvolvidas. São eles: • Trabalho coletivo, em equipe, compartilhado, co- ordenado. Muitas das escolas estudadas desenvolvem experi- ências de planejamento coletivo, de encontros e cen- tros de estudo, de articulação, intercâmbio de práticas e conhecimento entre educadores. • Projetos de ensino Todas as escolas analisadas desenvolvem projetos de ensino próprios, nas salas de aula, em outros espa- ços da escola ou externos. Muitos envolvem mais de um professor ou mais de uma turma e disciplinas dife- rentes. Tomam a forma de oficinas de teatro ou músi- ca, de produção de textos, de programas de rádio, de informática. Alguns acontecem no turno oposto ao de aulas re- gulares, outros são apresentados para a comunidade como eventos socioeducativos. Os projetos descritos apresentam forte potencial para mobilizar a participação dos alunos, propiciar a in- terdisciplinaridade, abrir portas para a integração com a comunidade. Mais do que isso, interferem positiva- mente na mudança dos processos de avaliação do de- sempenho dos alunos. Os projetos são uma inovação, mas não fazemos nada mirabo- lante, trabalha-se com aquilo que se tem. A maior dificuldade é colocar os projetos no papel e registrar cada passo e os resultados, pois falta hábito ao professor. Mas os projetos são sempre um trabalho conjunto, interdisciplinar, e têm ajudado na melhoria do ensino e aprendizagem. Professoras de Matemática e Português da Escola Estadual Cristóforo Myskiv, Prudentópolis, PR. • Inovações na organização da escola Aqui estão algumas experiências de mudança na or- ganização espacial das salas de aula e de outros espaços educativos, no aumento e na forma de distribuição dos tempos escolares, na integração entre disciplinas. 104 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 • Ensino contextualizado A forma, o conteúdo e o material didático utilizado nas atividades de ensino consideram a realidade dos alunos e de sua comunidade. Em muitas das escolas, há materiais construídos pela própria equipe, muitas ve- zes com participação dos alunos. Todas utilizam livros didáticos, mas, na maioria delas, o projeto da própria escola determina a ordem dos temas, o momento e a forma de sua utilização pelos alunos. • Novas formas de avaliação e acompanhamento da aprendizagem Experiências de programas de recuperação paralela ao período de aulas, aulas de reforço, atenção indivi- dual. Algumas dessas atividades são realizadas com parceiros externos. • Atividades externas com alunos Programas que abrem as portas da escola, permi- tindo que as crianças conheçam sua cidade e outras escolas. Idas ao cinema e ao teatro, atividades de edu- cação ambiental e, até mesmo, viagens para outros municípios são relatadas neste bloco. • Incentivo à prática de jogos e esportes Em muitas escolas, as crianças jogam xadrez, damas, competem em torneios e campeonatos de esportes cole- tivos, muitos deles com a participação da comunidade. Dimensão 2: a importância do professor Em todas as escolas, houve relatos de boas práticas re- lacionadas ao professor, sejam aquelas voltadas para sua 105 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Nas escolas analisadas, muitas foram as formas de participação de alunos em atividades pedagógicas, como o apoio ao reforço escolar, a elaboração de jor- nais-murais, a produção da rádio-escola. Grêmios atu- antes, com presença ativa e efetiva na escola, também foram encontrados. Dimensão 5: as parcerias externas A idéia de parcerias externas vem da compreensão de que a escola, sozinha, não é capaz de garantir a totali- dade dos direitos de crianças e adolescentes. A garantia do direito à vida, à saúde, à liberdade, à convivência fa- miliar e comunitária é resultado da ação de inúmeros or- ganismos, governamentais ou não, das esferas públicas e privadas. A parceria dessas instituições com a escola, além de cooperar para o fortalecimento da própria insti- tuição, contribui efetivamente para a garantia de alguns desses direitos, principalmente, o de aprender. As escolas analisadas exercitam ricas experiências de parcerias com as instituições da comunidade, do município e até mesmo regionais ou nacionais. Os par- ceiros têm perfis diferenciados, são do setor empresa- rial (bancos, empresas de comunicação ou pequenos comerciantes), outras escolas, fundações, ONGs, uni- versidades, sindicatos e associações comunitárias ou de moradores. A maioria delas apóia projetos realizados pelas pró- prias escolas, como laboratórios de informática, pro- gramas de empreendedorismo e segurança no trânsi- to, combate à violência, apoio a famílias, preservação ambiental e atividades artísticas. Além de viabilizar projetos, elas criam importan- tes espaços de mobilização social pela qualidade na educação. Aprova Brasil: ponto de partida para... Mais do que ponto de chegada, o Aprova Brasil é ponto de partida para compreender e disseminar as condições e o potencial de aprendizagem nas escolas públicas brasileiras. O estudo deixou questões em aberto, assim como novas possibilidades de estudos e pesquisas. Alguns aspectos — como a importância do clima da escola, o ambiente escolar e as relações entre as pessoas — foram citados muitas vezes como fatores que estabelecem boas condições para a aprendiza- formação inicial e continuada, sejam as que relatam ex- periências que comprovam seu compromisso, entusias- mo, dedicação e criatividade. As boas práticas relatadas são agrupadas em dois blocos: Formação e Valorização. No primeiro, são rela- tadas experiências de formação inicial e continuada e mobilização dos professores para a busca de infor- mações. No segundo, formas de valorização no campo da remuneração e do reconhecimento. Dimensão 3: gestão democrática e participação da comunidade escolar O estudo confirmou a importância da participação como processo constitutivo da democracia. Portanto, boas práticas de participação ampliam e qualificam a ges- tão democrática da escola. Nas escolas analisadas, fo- ram identificados processos diferenciados e criativos de participação. O maior reflexo na aprendizagem é decor- rente do aprimoramento da interlocução da gestão da escola com seus atores e da escola com interlocutores externos, como os órgãos de gestão municipal ou esta- dual da educação, e de outras políticas e programas de interesse da comunidade escolar, como os da assistên- cia social, saúde, esportes, cultura. Mais do que a existência de espaços de participação — como reuniões, colegiados, informativos eficientes — o estudo verificou o incentivo e o exercício dessa partici- pação, concretizada em conselhos escolares atuantes e presentes na vida da escola, no envolvimento ativo das famílias e dos alunos nos processos de decisão e acom- panhamento da gestão escolar. Dimensão 4: alunos e alunas atuantes no dia-a-dia da escola As práticas apontadas nas escolas, envolvendo a parti- cipação de alunos, extrapolam os limites do simbólico — quando as crianças compartilham ações concebidas, pla- nejadas e realizadas por adultos — demonstrando o pro- tagonismo e a importância das ações dos estudantes. Mais do que um direito, a participação de meninos e meninas é uma condição essencial para o desenvolvi- mento de práticas pedagógicas construtoras de apren- dizagens. Eles e elas podem e devem ser protagonistas e sujeitos ativos no ambiente social e comunitário, no ambiente escolar e na gestão da escola. 106 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 gem. Há também um novo olhar sobre a organização da escola, disciplina e normas de convivência, perce- bidas mais como elementos importantes para o bom funcionamento e para os resultados atingidos pelas instituições e menos como formas de coerção ou im- peditivas da participação. Um outro campo de obser- vação aberto pela pesquisa é o das relações entre es- colas e sistemas ou redes e seus organismos e mode- los de gestão. O estudo não teve o objetivo de recolher ou siste- matizar as dificuldades que as escolas enfrentam para desenvolver suas práticas. No entanto, essas dificul- dades foram citadas pelos participantes da pesquisa e afetam diferentes áreas e momentos da vida da es- cola, por exemplo: as condições de infra-estrutura e a disponibilidade de espaços, equipamentos e mate- riais; o isolamento entre escolas da mesma rede ou do território do município; as demandas que as diferentes esferas do poder público exigem da escola; a expectati- va e as dificuldades na relação com famílias; a distância e o descrédito da comunidade em relação à escola. Voltando ao conceito inicial, de corpo e alma da es- cola, verificou-se que, embora sejam o lado mais visí- vel, os aspectos materiais da escola — infra-estrutu- ra, equipamentos, espaços — são mais eficientes para impulsionar a aprendizagem quando estão integrados, como meios, a projetos e atividades pedagógicas con- sistentes, concebidos e realizados pelos atores da pró- pria escola. O desafio que o Unicef e o MEC enfrentam, assim como todos os parceiros e instituições comprometidas com a boa qualidade da educação, é disseminar as expe- riências e práticas dessas 33 escolas, fazendo, do Aprova Brasil, um impulso mobilizador que inspire novas práti- cas e experiências em escolas públicas brasileiras. O objetivo central da caminhada da boa qualidade da educação pública no país deve ser o de garantir, como finalidade essencial da escola, o direito de aprender para todas e cada uma das crianças e dos jovens brasi- leiros. O foco no direito de aprender pode reposicionar e dar novo significado à dimensão material e às possi- bilidades geradas pelas condições objetivas e subjeti- vas do fazer escolar. Notas 1 O texto da publicação está disponível, na íntegra, em formato pdf, no sítio: . 2 Mais informações sobre a Prova Brasil podem ser obtidas no sítio: . 3 Nos 155 países onde o Unicef atua, suas ações se realizam por meio de Programas de Cooperação, cada um com duração de cinco anos. Estes Programas de Cooperação são preparados com a participação do Governo e de diferentes atores da sociedade civil, incluindo as próprias crianças e os adolescentes. O documento do Programa de País (PP), resultado desse processo de discussão, é assinado com os governos nacionais e serve de aval para a atuação do Unicef no país. 4 IBGE/PNAD, 2004 e MEC/INEP Censo Escolar, 2005. 5 IBGE/PNAD, 2004 e MEC/INEP Censo Escolar, 2005. 6 Foram visitadas 36 escolas, mas, em três delas, foram identificadas práticas de seleção para ingresso. Como isso estabeleceria um diferencial importante em relação às outras escolas, essas três não foram incluídas nos resultados do estudo. 7 Trecho do poema Amor bastante, de Paulo Leminsky. 8 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: metáfora da condição humana. Petró- polis: Vozes, 1999. 9 MEC/INEP, Unicef, PNUD e Ação Educativa. Indicadores de Qualidade na Educação. São Paulo, 2004. 107 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O que nossas crianças devem, de fato, aprender na escola? É isso o que seus professores estão ensinando? Estas foram as principais questões que nortearam a seleção dos 3.851 trabalhos inscritos para o Prêmio Vic- tor Civita Educador Nota 10, em 2006. Em outras pala- vras, procurou-se buscar o que cada professor e cada professora efetivamente ensinaram e como se deu esse processo. O importante é pensar: para que serve um prêmio na área da Educação? Ao longo de todos esses anos, ficou muito claro, para nós, que o Prêmio Victor Civita tem três objetivos principais: • Valorizar o bom professor e mostrar a importância da profissão de educador Sobretudo porque o Prêmio tem ampla divulgação, tanto pela revista Nova Escola quanto pela rede pú- blica de televisão, graças a uma parceria com a TV Cultura, de São Paulo; • Revelar a situação real da Educação brasileira ano após ano Por meio da leitura e análise dos projetos, é possível identificar claramente o que está sendo realizado nas escolas, principalmente nas redes públicas, que res- pondem pelo maior número de inscrições; • Divulgar boas experiências, com ênfase para o fato de que elas podem servir de referência para os pro- fessores Ao publicar os perfis dos professores vencedores e os relatos de seus trabalhos, procura-se ser indutor de boas práticas pedagógicas. Nesse contexto, um elemento é fundamental: esco- lher bem a equipe de selecionadores para garantir que eles tenham condições de julgar adequadamente se os professores inscritos realizaram um trabalho consistente com os alunos. Alguns dos critérios utilizados em 2006 para a escolha dos selecionadores foram: a familiarida- de com a escola pública e o conhecimento didático de sua área de atuação. A importância da seleção Como todos os projetos que adquirem relevância, o Prêmio Victor Civita é hoje uma atividade que consome o ano todo, praticamente sem interrupção. Terminada a festa de entrega dos troféus, já é hora de pensar se é necessário fazer algum tipo de alteração no regulamen- to, afinar as parcerias e preparar o material para divul- gar, na revista Nova Escola, tanto os trabalhos vencedo- res quanto as chamadas para o ano seguinte. Mas nada se compara à tarefa que cabe aos selecio- nadores. Em 2006, tivemos o privilégio de poder contar com um grupo de 16 professores e formadores de profes- sores nessa equipe, que trabalha durante pouco mais de um mês na leitura e análise dos projetos inscritos. Este processo tem várias etapas. Na primeira leitura dos textos, há uma separação quase natural do “joio” e do “trigo” – uma pré-seleção. São visíveis os projetos que não têm um propósito claro de ensinar conteúdos re- levantes. É nessa hora que os selecionadores começam a observar se os critérios gerais para a classificação dos trabalhos foram atendidos: • o trabalho é modesto e seus objetivos e metodolo- gias adequados ao que se propôs realizar; • há intencionalidade do trabalho desenvolvido pelo pro- fessor. A metodologia reflete uma ação planejada; • apresenta um conteúdo relevante e pertinente à fai- xa etária e ajuda os alunos a avançarem na sua com- preensão; • as estratégias metodológicas utilizadas podem ser tomadas como referência para realização de proje- RELATO DE PRÁTICA: PRÊMIO VICTOR CIVITA EDUCADOR NOTA 10 Não é fácil premiar com justiça Gabriel Grossi Regina Scarpa* * Gabriel Grossi é diretor de redação da revista Nova Escola. Regina Scarpa é coordenadora pedagógica da Fundação Victor Civita. 108 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 tos semelhantes por outros professores que conhe- cerem este trabalho; • demonstra a atuação dos alunos e há, em sua avalia- ção, indicadores de aprendizagem. Em uma segunda análise, mais minuciosa, conside- ram-se os critérios específicos da área para a seleção e os potenciais vencedores. Nesse momento, é comum pe- dir a ajuda dos colegas. Por exemplo, um trabalho sobre meio ambiente sem- pre será lido, no mínimo, pelos responsáveis por fazer a triagem de Geografia e também pelos de Ciências. Dia após dia, no contato permanente e na troca de idéias, os selecionadores vão estreitando os critérios para de- finir o que é um bom concorrente e por que ele deve ser premiado. A coordenação pedagógica participa lendo e discutindo os trabalhos com os selecionadores. Na reta final, temos uma lista com algo entre 50 e 80 candidatos a Educador Nota 10. É nesse momento que os selecionadores pedem aos inscritos todo o material utili- zado em classe e também o que foi desenvolvido pelos estudantes, às vezes, pacotes enormes com a produção de textos, desenhos, fitas de vídeo, CD-ROMs etc. Após a análise desse material, é hora de conversar por tele- fone com os candidatos e esclarecer dúvidas, checar se o professor efetivamente domina o que foi feito em sala de aula e garante que sua turma construiu efetivamen- te aprendizagens relevantes. Uma das professoras ven- cedoras deste ano disse ter se sentido argüida pelo se- lecionador como numa defesa de tese. Nessa etapa, todos os selecionadores lêem os traba- lhos indicados por seus colegas, acompanhados de um questionário contendo os seguintes itens: • Por que considerou este trabalho relevante? Que as- pectos lhe chamaram a atenção? • Que expectativas de aprendizagem o professor (a) ti- nha? O que os alunos aprenderam? Outros resultados foram alcançados? • Os conteúdos estavam compatíveis com as necessi- dades de aprendizagem dos alunos? Justifique. • O desenvolvimento do trabalho ocorreu de forma com- patível com seus objetivos e conteúdos? Comente. • O professor valorizou a interação entre os alunos como fator de aprendizagem? Em que situações? • E o professor, aprendeu algo? Dê a sua opinião. • Em que aspectos o trabalho poderia ser melhor? Que devolutiva você daria ao professor no sentido de con- tribuir com a sua formação profissional? Esta troca entre os selecionadores, este debate que se estabelece no dia-a-dia criam um sentimento fascinan- te de responsabilidade coletiva, que culmina com uma grande reunião para definir os dez finalistas. Em 2006, ela consumiu dois dias inteiros de trabalho, sob a lideran- ça da coordenação pedagógica da Fundação Victor Civita, e com a participação de jornalistas da Nova Escola. Nesse encontro, regado a muito café, água, suco, pão de queijo e biscoitos, os selecionadores apresentam uma síntese sobre tudo o que cada um leu, com os destaques positivos e negativos, algo que retrate o “estado da arte” da área de conhecimento analisada. É impossível, diante de tanta informação e reflexão, não aprender com esse gigantesco panorama da Educação no Brasil. Esse momento ajuda a localizar os trabalhos indi- cados em relação aos trabalhos recebidos. Tudo para garantir que os vencedores sejam os melhores do pon- to de vista daquilo que foi analisado e do que os alu- nos aprenderam. O projeto, ao vivo. Esse panorama ganha novas cores no mês de agosto, quando os jornalistas e fotógrafos vão, finalmente, co- nhecer ao vivo os dez finalistas. Eles são os primeiros a visitar pessoalmente a escola em que esses profes- sores trabalham, entrar em suas casas, descobrir como eles fazem (quase sempre em condições bem distantes das ideais) para ensinar mais e melhor. É óbvio que, vez ou outra, na história do prêmio, apa- receram pequenos problemas. Um trabalho que pare- cia muito consistente revela-se mais frágil. Um profes- sor, que se mostrava confiante no relato escrito, mos- tra-se mais tímido e inseguro na conversa pessoal. De certa forma, esse parece ser um risco difícil de evitar por causa de uma polêmica que sempre pairou sobre a história do Prêmio Victor Civita: afinal, estamos pre- miando os Educadores Nota 10 ou os trabalhos que eles inscreveram? Por isso, já há quatro anos, todos esses professo- res também são avaliados quando chegam a São Pau- lo para a grande festa de premiação, no mês de outu- bro. Todos têm a obrigação de apresentar seus proje- tos – não apenas aos outros vencedores, como tam- bém para um grupo muito selecionado de especialis- tas, o júri que, até 2006, tinha por tarefa escolher o Educador do Ano. 109 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Esse é, sem dúvida, um dos momentos mais produ- tivos, uma verdadeira aula para todos os que têm a chance de acompanhá-la. A argüição dos jurados aju- da todos os Educadores Nota 10 a perceber o que po- deriam ter feito a mais em seus projetos: • como definir objetivos claros de aprendizagem; • como criar atividades mais relevantes para atingir esses objetivos; • como estimular as crianças e jovens a se envolver mais com essas atividades; • como montar instrumentos capazes de avaliar corre- tamente se essas propostas se traduzem em apren- dizagens significativas. E, para encerrar, os selecionadores (que também têm a oportunidade de acompanhar esta “banca”) dão um retorno aos finalistas para lhes dizer por que seus trabalhos foram escolhidos entre os dez melhores e também para fazer uma análise crítica do trabalho por eles realizado. Além, é claro, de contribuir com biblio- grafia e materiais que ajudem os professores em sua qualificação profissional. Depois de tudo isso, sem dúvida, merecemos apro- veitar, junto com esses professores, a grande festa que a Fundação Victor Civita prepara para a entrega dos tro- féus. A lição que fica é que, para muito além da emo- ção de premiar professores das mais diversas regiões do país, que tantas vezes “tiram leite de pedra” em situações bastante desfavoráveis, a real importância do Prêmio Victor Civita é, como destacamos no início deste artigo, valorizar o professor, divulgar boas ex- periências, induzir outros professores a seguir essas boas práticas para que ensinem mais e melhor e, as- sim, possam ter orgulho de sua profissão. Em constante aprimoramento O Prêmio Victor Civita é uma das mais antigas premiações da área de Educação no país. Surgiu em outubro de 1998 e chega, em 2007, à sua décima edi- ção. Nesse percurso, passou por várias mudanças. Algumas merecem destaque. Em seu primeiro ano, não houve inscrição. Os candidatos eleitos foram professores cujos trabalhos tinham sido publicados na revista Nova Escola. A partir do segundo ano, começou o processo de inscrição pelo correio e a seleção feita por uma equipe de especialistas de todas as áreas do co- nhecimento. Em 1999 e 2000, a escolha teria que contemplar todas as disciplinas: três selecionados de cada uma das áreas concorriam ao prêmio em dinheiro e ao troféu. Em 2001, dos 12 professores finalistas, oito deviam ser de escolas públicas e os outros qua- tro, de instituições privadas. E surgiu também o título de Professor do Ano, concedido a um desses finalistas. De 2002 a 2004, manteve-se o número de pre- miados, mas essa divisão entre escolas públicas e particulares deixou de existir. Em 2005, o número de professores finalistas passou para dez. Para saber mais, consulte o site: e o endereço: para conhecer o resul- tado do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10, em 2006. 110 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 111 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 / ARTIGO * Vera Masagão Ribeiro é doutora em Educação e coordenadora de programas da ONG Ação Educativa. %STATÅSTICAS PARA MELHORAR O CONHECIMENTO DE LETRAS E NÒMEROS Grandes tendências O interesse por mensurar as condições de alfabetização da população não é novo em nosso país. De fato, as es- tatísticas oficiais sobre a alfabetização no Brasil remon- tam ao final do século XIX e, como observa Ferraro (2002), constituem o mais antigo indicador das condições edu- cacionais da população de que dispomos. Até hoje, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- tica - IBGE apura esse índice com base na auto-avaliação da população recenseada sobre sua capacidade de ler e escrever um bilhete simples e, ainda que os critérios dos recenseadores ou da população possam ter variado ao longo do tempo, é possível construir uma série histó- rica consistente, que mostra que o analfabetismo entre brasileiros com 15 anos ou mais veio decrescendo pau- latinamente no último século, de 65,3%, em 1920, para 13,6%, em 2000 (Ferraro, 2003), chegando a 10,9%, em 2005, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Do- micílios - Pnad (Henriques; Ireland, 2006). Esse método de medição, ainda que tenha valor para a manutenção de séries históricas nas estatísticas edu- cacionais, vem sendo cada vez mais questionado por es- pecialistas da área. Tendo em vista teorias atuais sobre o processo de aquisição da escrita e seus usos efetivos nas diversas esferas sociais, é difícil sustentar uma abor- dagem dicotômica, que visa estabelecer uma única linha divisória entre analfabetos e alfabetizados. Vera Masagão Ribeiro* 112 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Cada vez mais, é preciso compreender a leitura e a es- crita como práticas culturais e como competências multi- dimensionais, que abarcam diversos tipos e níveis de ha- bilidades. Entre conhecer algumas letras, assinar o pró- prio nome, reconhecer palavras, retirar uma informação de um pequeno aviso, copiar uma receita, ler um trecho em voz alta com pouquíssima ou com razoável fluência, analisar o editorial de um jornal ou redigir uma carta co- mercial, onde caberia a linha divisória que divide os al- fabetizados dos analfabetos? Saber ler e escrever um bilhete simples é uma defi- nição operacional, utilizada pelo IBGE, mas outros paí- ses usam critérios diferentes, enquanto alguns países com altíssimo grau de desenvolvimento educacional, como Holanda, Suécia ou Suíça, nunca incluíram per- guntas desse gênero em seus levantamentos censitá- rios (Unesco, 2005). O conceito de alfabetismo funcional, disseminado in- ternacionalmente pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco (sigla do inglês para United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) a partir da década de 1960, repre- sentou um primeiro esforço para superar uma visão dico- tômica que se refere à capacidade de efetivamente usar as habilidades de leitura e escrita de modo a responder às demandas do contexto. O conceito trazia, também, im- plícita a idéia de que, atingido um certo patamar de ha- bilidades e alcançando-se uma prática sistemática, evi- tar-se-ia a chamada “regressão ao analfabetismo”, ou a perda das habilidades por desuso. O conceito de alfabetismo funcional animou uma cam- panha internacional de alfabetização de adultos, coor- denada pela Unesco, entre 1966 e 1973. Num primeiro momento, o foco estava nas habilidades associadas ao aumento da produtividade, mas, paulatinamente, pas- sou a abranger outras dimensões, como a participação cidadã, a convivência familiar e comunitária e o próprio desenvolvimento cultural. Tratava-se, entretanto, de um universo amplo e va- riado de demandas sociais de usos da leitura e escrita, diferente para cada contexto e mesmo para cada indiví- duo, tornando praticamente impossível estabelecer al- gum critério operacional necessário para a geração de estatísticas. Diante desse problema, a Unesco sugeriu a utilização dos anos de estudo da população como um indicador proxi (aproximado) das condições de alfabeti- zação funcional da população. Na América Latina, comumente se utilizou o patamar de quatro séries completas para indicar a condição de al- fabetismo funcional. Entretanto, não existem evidências que permitam determinar objetivamente uma quantidade precisa de anos de escolarização suficientes para se che- gar a um nível de alfabetização “funcional” e “estável”. Um primeiro aspecto a considerar é que a qualidade da escolarização pode variar, assim como as condições e as motivações extra-escolares, para a manutenção e o de- senvolvimento das habilidades (Wagner, 1999). Visão multidimensional do alfabetismo Os resultados das avaliações dos sistemas de ensino brasileiro, como o Sistema de Avaliação da Educação Bá- sica - SAEB ou a Prova Brasil, comprovam, com eloqüên- cia, que quatro anos de estudo podem significar coisas muito diferentes em termos de aquisição de habilidades de leitura, de acordo com o grau de desenvolvimento eco- nômico da região; o tipo de escola: pública ou privada; a zona: urbana ou rural; e mesmo o sexo do alunado. Além disso, persiste ainda a dificuldade de fundamentar um cri- tério único para o nível ou tipo de habilidade que deveria ser considerado suficiente. Mais recentemente, os surveys baseados em amostras de população, incluindo testes de leitura e questionários sobre práticas de leitura e escrita em diversos contextos, oferecem dados mais detalhados sobre a distribuição da cultura escrita nas populações. Com base em estudos nacionais realizados em países do Hemisfério Norte, a Organização para Cooperação Eco- nômica e Desenvolvimento - OECD e o Instituto de Estatís- ticas do Canadá conduziram o International Adult Litercacy Assessment - IALS, uma iniciativa que, entre 1994 e 1998, recolheu dados comparativos de 19 países, quase todos na Europa e América do Norte. No IALS, o termo analfabe- tismo sequer aparece, pois seu foco é definir e comparar, entre populações com alto grau de escolaridade, níveis de habilidade de alfabetismo em diversos domínios — com- preensão de prosa, textos esquemáticos e quantitativos — e também reunir um amplo conjunto de dados sobre usos da leitura e da escrita na vida diária, especialmente no contexto de trabalho, além de outras informações so- bre a inserção profissional, oportunidades de capacitação, renda etc. (OECD; Statistics Canada, 2000). Em 2003, o estudo começa a mensurar diretamente também as habilidades de resolução de problemas, 113 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 passando a se chamar Life Skills Survey - ALL. No primeiro relatório do ALL, os autores reafirmam esta nova perspectiva: não se trata de distinguir entre analfabetos e alfabetizados; uma determinada habilidade é definida como um contínuo de proficiência e mensurada por meio de uma escala, cuja interpretação permite indicar o quanto os adultos são capazes num certo domínio (OECD; Statistics Canada, 2003). Em 2005, a Unesco passou a conduzir uma iniciati- va visando adaptar essa mesma metodologia de estudo do alfabetismo para países pobres, com índices muito mais baixos de escolarização: além de analisar mais detalhadamente os níveis mais reduzidos de profici- ência, o Literacy Assessment and Monitoring Program - LAMP se propõe a estudar também o que chama de ha- bilidades componentes da alfabetização, como a iden- tificação de letras e palavras, fluência, vocabulário etc. (Unesco, 2005). Em todas essas iniciativas, algumas tendências co- muns se verificam: em primeiro lugar, uma visão multi- dimensional do alfabetismo, envolvendo leitura, escrita e processamento de informação numérica, nas quais se podem distinguir ainda sub-habilidades componentes; em segundo lugar, a combinação de medição direta das habilidades por meio de testes com coleta de informa- ções sobre práticas de leitura e escrita em diferentes esferas de vivência. Ainda que dentro dos limites do que é possível apren- der por meio de estudos em larga escala — em que se comparam, pelos mesmos critérios, subgrupos popula- cionais muito diferentes — essas novas metodologias procuram apreender o fenômeno do alfabetismo de modo mais qualitativo, sob diversas dimensões. Uma perspectiva brasileira No Brasil, a única medida de alfabetismo baseada em surveys — com medição direta de habilidades por meio de testes, além de coleta de informações detalhadas so- bre práticas de leitura, escrita e cálculo matemático na vida diária — é o Indicador Nacional de Alfabetismo Fun- cional - INAF, iniciativa de duas organizações não-gover- namentais brasileiras: a Ação Educativa e o Instituto Pau- lo Montenegro. A Ação Educativa tem, como missão, a defesa de direi- tos educacionais e atua na área de pesquisa e informação, desenvolvimento de programas de educação de adultos, mobilização social e advocacy. O Instituto Paulo Monte- negro é ligado a uma grande empresa de pesquisa que atua em toda a América Latina — o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística - Ibope — e sua intenção é canalizar recursos financeiros e técnicos da empresa e de terceiros para iniciativas de interesse social, sem finalidade lucrativa. O objetivo dessas organizações, ao idealizar o INAF, foi oferecer, à sociedade, informações sobre as condi- ções de alfabetismo da população adulta brasileira, de modo a fomentar o debate público sobre o tema e sub- sidiar a formulação de políticas de educação e cultura (Ribeiro, 2003). 114 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O INAF Brasil é feito com base em pesquisas anuais re- alizadas com amostras de duas mil pessoas, representa- tivas da população brasileira de 15 a 64 anos, em todas regiões do país, em zonas urbanas e rurais. Em entrevis- tas domiciliares, são aplicados testes e questionários aos sujeitos que compõem a amostra. Em 2001, 2003 e 2004, o levantamento abordou a leitura e a escrita, em 2002 e 2004, as habilidades matemáticas. Para a elaboração dos instrumentos, partiu-se da construção de uma matriz que inclui várias esferas da experiência cotidiana em que os materiais escritos es- tão presentes. Para cada uma, listaram-se os suportes e tipos de textos escritos correspondentes a diversos ob- jetivos que motivam a leitura e a escrita (distrair, infor- mar, registrar, controlar etc.). Finalmente, elencaram-se também as habilidades de leitura e escrita envolvidas nessas diferentes práticas, por exemplo: localizar o material escrito em que uma infor- mação desejada pode ser encontrada, identificar o tema central de um texto, localizar nele informações específi- cas, comparar informações de diferentes textos, estabe- lecer relações entre fato e opinião, mobilizar dados ne- cessários à redação de um texto, identificar o destinatá- rio do texto e suas necessidades de informação sobre o tema tratado, e muitas outras. Processo semelhante foi feito com relação às práticas e habilidades que abrangem representações e cálculos ma- temáticos. Nos questionários, procurou-se fazer um levan- tamento extenso de informações sobre práticas de leitura, escrita e cálculos. Focalizaram-se o acesso e o uso de qua- tro materiais escritos principais: livros, revistas, jornais e computadores. Outros materiais escritos foram incluídos e suas finalidades de uso averiguadas, considerando-se seis esferas de vivência: doméstica, do trabalho, da par- ticipação cidadã, da educação e da religião. Os resultados dos testes foram analisados tendo em vista a conceituação das habilidades num contínuo. Em um primeiro passo, analisaram-se as características dos itens que foram realizados com sucesso por pessoas com diferentes desempenhos (escore total) e, com base nessa análise, caracterizaram-se os níveis de habilidade de acordo com as faixas de desempenho. As tarefas que serviram para definir certo nível de habilidade são aquelas realizadas corretamente por, ao menos, 75% das pessoas naquela faixa de escore total. Depois disso, seria preciso qualificar cada um des- ses níveis, estabelecendo um julgamento: qual nível de habilidade seria aceitável e qual deveria ser caracteri- zado como insuficiente? Com base na análise das de- mais informações coletadas pela pesquisa e em diálo- go com consultores especialistas, chegou-se à seguinte definição: os sujeitos que não respondessem a, ao me- nos, dois itens, seriam classificados como analfabetos; os demais, em três níveis de alfabetismo. O termo analfabeto funcional — ainda que de uso cor- rente na mídia — não foi utilizado, pois, a rigor, mesmo QUADRO 1 HABILIDADES QUE CARACTERIZAM OS NÍVEIS DE AFABETISMO DO INAF Leitura Habilidades Matemáticas Analfabetismo Ausência de domínio das habilidades medidas. Ausência de domínio das habilidades medidas. Alfabetismo Nível Rudimentar Localizar uma informação simples em enunciados muito curtos, um anúncio ou chamada de capa de revista, por exemplo. Ler e anotar números de uso freqüente — preços, horários, números de te- lefone; medir um com- primento com fita mé- trica; localizar uma data num calendário. Alfabetismo Nível Básico Localizar uma informação em textos curtos ou mé- dios — notícia ou manual de instrução, por exem- plo, mesmo que seja ne- cessário realizar inferên- cias simples. Ler números naturais, in- dependente da ordem de grandeza; ler e comparar números decimais que se referem a preços; con- tar dinheiro e fazer troco; resolver situações envol- vendo operações usuais de adição e subtração ou mesmo multiplicação, quando não conjugada a outras operações. Alfabetismo Nível Pleno Localizar mais de um item de informação em textos mais longos; comparar informação contida em diferentes textos, estabe- lecer relações entre as in- formações (causa/efeito, regra geral/caso, opinião/ fonte); ater-se à informa- ção textual quando con- trária ao senso comum. Adotar e controlar uma es- tratégia na resolução de problemas que deman- dam a execução de uma série de operações, por exemplo, tarefas envol- vendo cálculo proporcio- nal e porcentagens; inter- pretar gráficos e mapas. 115 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 habilidades muito limitadas têm funcionalidade em certos contextos. A manutenção do termo “analfabeto” também visou chamar a atenção para uma situação que ainda é significativa em países como o Brasil, nos quais re- presentativas parcelas da população têm baixa renda e baixa escolaridade, e a problemática do analfabetismo é pauta das políticas sociais e educacionais. Os três níveis de habilidade de alfabetismo e habili- dades matemáticas estão descritos no Quadro 1. Em 2006, a equipe do INAF dedicou-se ao aperfei- çoamento da metodologia utilizada. Introduziu a Teo- ria da Resposta ao Item - TRI — metodologia usada nos estudos internacionais sobre alfabetismo adulto, assim como nas grandes avaliações educacionais no Brasil e no exterior —, de modo a viabilizar o desenvolvimento de instrumentos de avaliação mais precisos e flexíveis. Com base em estudo especial feito com a população carcerária paulistana (IPM/Funap, 2006), foi possível comprovar que as habilidades de leitura e matemática, medidas pelo INAF, podem ser abordadas como uma única dimensão cognitiva, relativa à capacidade de ope- rar com informações escritas — verbais e/ou numéricas — para enfrentar as demandas e aproveitar as oportu- nidades de comunicação e acesso à informação, pre- sentes em nosso contexto. Já em 2007, a equipe passou a trabalhar na inter- pretação de uma escala combinada, procurando iden- tificar as semelhanças existentes nas operações lógi- cas que as pessoas dominam em cada nível da escala, operações essas implicadas na capacidade de ler, pro- cessar informações e interpretá-las. Outro importante ganho metodológico com a utili- zação da TRI é a possibilidade de gerar um banco de itens, com base no qual podem ser produzidos instru- mentos específicos para estudos especiais, cujos resul- tados sejam comparáveis com os da população brasi- leira. Como se comentará mais adiante, a avaliação de programas, especialmente os voltados a jovens e adul- tos, é uma enorme lacuna a ser preenchida no âmbito das políticas educacionais. Alguns resultados Os resultados do INAF, obtidos ao longo desses cin- co anos, mostram que o País vem fazendo avanços pequenos no que se refere à ampliação das capaci- dades de leitura, escrita e cálculo da população. Na faixa etária investigada, o INAF identificou, em 2005, 7% de pessoas na condição de analfabetismo abso- luto. No terreno das habilidades matemáticas, esse percentual é menor — apenas 2% em 2004. Em am- bos os domínios, entretanto, há aproximadamente 30% de pessoas que demonstram um domínio mui- to rudimentar das habilidades: só sabem ler os nú- meros e realizar operações muito simples, ler textos muito breves e localizar informações muito eviden- tes. Só 26%, para a leitura, e 23%, para a matemá- tica, mostram que têm domínio pleno das habilida- des (Tabela 1). Corroborando todos os estudos internacionais, o caso brasileiro evidencia que o aumento da escola- ridade é o principal fator a promover o alfabetismo, tanto no que se refere às habilidades quanto às prá- ticas de leitura, escrita e cálculo matemático. Os re- sultados mostram, entretanto, que as aprendizagens correspondentes a cada grau de ensino são bastante desiguais e que, para a maioria, a baixa qualidade da educação oferecida compromete enormemente os ga- nhos, em que a ampliação das oportunidades de es- colarização deveria resultar. TABELA 1 EVOLUÇÃO DOS NÍVEIS DE ALFABETISMO INAF 2001 – 2005 Leitura e Escrita Habilidades Matemáticas 2001 2003 2005 Diferença 2002 2004 Diferença Analfabetismo 9% 8% 7% -2 pp 3% 2% -1 pp Alfabetismo Nível Rudimentar 31% 30% 30% - 1 pp 32% 29% -3 pp Alfabetismo Nível Básico 34% 37% 38% + 4pp 44% 46% + 2 pp Alfabetismo Nível Pleno 26% 25% 26% - 21% 23% + 2 pp 116 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Os quatro anos de escolaridade que supostamen- te garantiriam a alfabetização funcional, de fato, não se mostram suficientes para que uma grande parcela su- pere o nível rudimentar de habilidades. Entre os indi- víduos com menos tempo de estudo, a situação é ainda mais alarmante, pois aproximadamente um terço se en- contra ainda na condição de analfabetismo absoluto. Só entre a população com, ao menos, o ensino fundamental completo é que mais de 80% atingem os níveis básico ou pleno das habilidades, tanto em leitura quanto em ma- temática (IPM; Ação Educativa, 2004 e 2005). O grande peso do tempo de escolaridade na determi- nação dos níveis de alfabetismo se explica, por um lado, pelo fato de que é na prática escolar que essas habili- dades são ensinadas e exercitadas de forma sistemática por longos períodos. Além disso, as credenciais escola- res franqueiam o acesso aos contextos e práticas sociais em que tais habilidades poderão, com mais ou menos intensidade, serem aplicadas, mantidas, aperfeiçoadas e ampliadas após o processo de escolarização. Quando se está estudando o alfabetismo na popula- ção jovem e adulta, é fundamental considerar as opor- tunidades de uso da leitura e da escrita que as pessoas têm em seu dia-a-dia, condicionadas por seu tipo de ocu- pação e nível de renda, entre outras variáveis. O trabalho constitui, para essa população, uma esfera crucial de vivências que catalisa demandas, oportunida- des e motivações para que as pessoas sigam aprendendo ao longo da vida e utilizando a língua escrita para se infor- mar, planejar e se comunicar. Para investigar as práticas nessa esfera, o INAF pergunta às pessoas que estão traba- lhando, ou que já trabalharam alguma vez, que materiais lêem e escrevem em seu trabalho. Oferece-se uma lista de 18 itens, e o entrevistado pode citar ainda outros. Os tipos de materiais mais lidos no trabalho, segundo le- vantamento de 2005, são: bilhetes (26%), jornais (25%), re- vistas (23%), relatórios (22%), pedidos ou comandas (19%), agendas ou calendários (17%), faturas, notas fiscais, recibos ou duplicatas (17%), manuais de instrução (15%), plantas, mapas ou desenhos técnicos (11%), entre muitos outros. Os materiais escritos com mais freqüência são: bi- lhetes (30%), pedidos ou comandas (22%), relatórios (22%), contas e orçamentos (18%), faturas, recibos, no- tas fiscais e duplicatas (13%), agenda (18%), formulários (13%), cartas, ofícios e memorandos (11%). Proporções bastante significativas de pessoas nada lêem (32%) nem escrevem (38%) no contexto de trabalho. A proporção dos que lêem ou escrevem três ou mais tipos de materiais — e que, portanto, fazem usos mais diversificados de suas habilidades de alfabetismo — cor- responde, respectivamente, a 23% e 30%. Como era de se esperar, as pessoas com maior nível de habilidade são as que têm, no ambiente de trabalho, maiores exigências de leitura e escrita, como mostra a Tabela 2. É fato, portanto, que as demandas de leitura e escrita no ambiente do trabalho são restritas para a maioria da população. Uma abordagem estritamente economicis- ta, que procure vincular desenvolvimento econômico à elevação dos níveis de habilidade de forma muito sim- plista, não deve chegar a bons resultados. As chamadas demandas sociais a que o alfabetismo responde, entre- tanto, abarcam não somente as atividades produtivas, como ainda as possibilidades de consumo cultural e par- ticipação social de forma geral, atuando, também nesse âmbito, para produzir desigualdades. Ao investigar esses outros domínios, o INAF verifica que, considerando os baixos graus de escolarização e renda de parcela importante da população, o interesse dos brasileiros pela leitura é significativo: • 68% dos entrevistados afirmam que gostam de ler para se distrair; • 79% afirmam que lêem livros ainda que de vez em quando; TABELA 2 QUANTIDADE DE TIPOS DE MATERIAIS LIDOS NO TRABALHO, SEGUNDO O NÍVEL DE ALFABETISMO – INAF 2005 Total Alfabetismo Rudimentar Básico Pleno Materiais de leitura nenhum 32% 50% 27% 9% um 17% 20% 19% 12% dois 12% 10% 16% 9% três ou mais 38% 20% 38% 70% Materiais de escrita nenhum 38% 56% 31% 17% um 14% 25% 30% 21% dois 25% 9% 17% 19% três ou mais 23% 10% 22% 43% 117 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 • 35% afirmam que lêem jornal ao menos uma vez por semana; • 28% afirmam ler revistas ao menos uma vez por semana. O gênero de leitura varia, evidentemente, de acordo com o nível de alfabetismo das pessoas. A leitura de inspiração religiosa é freqüente em todos os grupos, independente do desempenho, certamente porque o tipo de leitura realizada nessa esfera não corresponde à leitura de tipo analítica que o teste demanda. Outros tipos são mais freqüentes entre pessoas com níveis mais elevados. É interessante observar que a poesia já aparece no nível básico com freqüência semelhante à do nível ple- no, evidenciando, mais uma vez, que há leituras de or- dem subjetiva em que não necessariamente são mobi- lizadas as habilidades analíticas verificadas no teste. Já a leitura de livros de ficção, história e biografias, livros técnicos e de orientação pessoal mantém uma correção bastante linear com o nível de alfabetismo. Outro aspecto que uma investigação sobre habili- dades e práticas de alfabetismo não poderia deixar de abordar é o acesso às tecnologias de comunicação e informação, já que, atualmente, o computador é tam- bém um importante veículo de textos escritos. Os dados mostram, entretanto, que seu uso é muito reduzido na população: só 19% utiliza computador ao menos uma vez por semana; 6% o utiliza eventualmente, enquanto 75% não o utiliza (INAF, 2005). Outro recurso tecnológico mais simples, entretanto, é bem mais disseminado na população: 47% afirma usar habitualmente a calcula- dora para realizar operações em seu dia-a-dia. Em algumas questões do teste de habilidades ma- temáticas, a taxa de utilização desse instrumento su- pera 70% (IPM; Ação Educativa, 2004). Apesar de seu uso favorecer as possibilidades de acerto do item no teste, os usuários nem sempre são bem-sucedidos na resolução do problema. Em parte, por não dominarem seus recursos, mas também, e principalmente, porque a resolução de problemas não depende apenas da exe- cução dos cálculos, e sim da capacidade de elaborar e executar controladamente um plano de resolução e ve- rificar a pertinência do resultado. Diante desse grau de disseminação do uso da calcu- ladora, é surpreendente que os programas de educação básica para crianças e adultos não a utilizem como re- curso pedagógico com mais freqüência, tanto para que mais pessoas aprendam a usá-la com eficiência quanto para que possam dedicar-se mais à compreensão das situações-problema e das relações numéricas do que à mecanização dos procedimentos de cálculo. Indicações para as políticas A pesquisa sobre o alfabetismo funcional no Brasil re- vela, portanto, um país onde a cultura letrada está am- plamente disseminada, mas de forma muito desigual. Da população alfabetizada, um contingente significa- tivo utiliza as habilidades de leitura e escrita em con- textos restritos e demonstra habilidades também res- tritas nos testes de leitura e habilidades matemáticas. Apesar de todos os níveis de alfabetismo serem funcio- nais — ou seja, úteis para enfrentar ao menos algumas demandas do cotidiano — só os que se classificam no nível pleno apresentam domínio das habilidades ava- liadas, fazendo usos mais intensos e diversificados da leitura e da escrita em vários contextos. A escolaridade é fator decisivo na promoção do alfa- betismo da população. A pesquisa revela como os défi- Total Alfabetismo Rudimentar Básico Pleno Bíblia ou livros religiosos 45% 46% 48% 47% Romance, aventura, policial, ficção 30% 19% 32% 49% Livros didáticos 21% 16% 19% 33% Poesia 15% 12% 18% 19% Biografia, rela- tos históricos 15% 9% 16% 26% Livros técnicos, de teoria, ensaios 11% 4% 9% 22% Auto-ajuda, orientação pessoal 11% 5% 9% 22% Não costuma ler livros 21% 29% 15% 7% TABELA 3 GÊNEROS DE LIVROS QUE OS ALFABETIZADOS COSTUMAM LER, POR NÍVEIS DE HABILIDADE – INAF 2005 118 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cits educacionais se traduzem em desigualdades quan- to ao acesso a vários bens culturais, oportunidades de trabalho e desenvolvimento pessoal que caracterizam as sociedades letradas. Se for necessário um indicador único, relativo a anos de escolaridade, para dimensio- nar o alfabetismo funcional da população, mais apro- priado seria considerar oito anos de escolaridade o pe- ríodo mínimo para se atingir essa condição. A pesquisa mostrou que os porcentuais de pessoas nos níveis básico e pleno de alfabetismo — tanto em leitura e escrita quanto em habilidades matemáticas — ultrapassam os 80% da população só entre aqueles com ensino fundamental completo, grau educacional que a Constituição brasileira determina como direito de todos os cidadãos, independentemente da idade, e cuja oferta gratuita é obrigação do Estado. Diferente do que muitas vezes é divulgado na mídia, os brasileiros, de forma geral, não são avessos à leitura. Dois terços dos entrevistados afirmam que gostam de ler para se distrair, e o Brasil ainda tem muito a inves- tir na promoção do acesso gratuito a materiais escritos — não só livros, como também revistas e jornais — e, principalmente, aos computadores e à Internet. Diante de tanto conhecimento já acumulado sobre a alfabetização como fenômeno cultural complexo, de sua associação com a questão das desigualdades, em geral, e, em particular, com as de oportunidades edu- cativas, não deixa de ser espantoso que as campanhas de combate ao analfabetismo, na sua acepção mais res- trita, ainda tenham tanto apelo nas políticas dos gover- nos nacionais e dos organismos internacionais (Ribei- ro; Batista, 2005). Preocupados em fazer baixar o “número mágico” — a porcentagem de pessoas que consideram que não sabem ler e escrever — os governos ainda promovem campanhas para alfabetização inicial de adultos, sem reconhecer e enfrentar adequadamente as dificuldades para chegar até a população-alvo, sem investir suficien- temente na qualidade pedagógica, sem equacionar ade- quadamente a oferta de oportunidades de continuidade e quase sempre obtendo resultados muito abaixo das expectativas. Diante do malogro, o caminho tem sido, muitas vezes, criar uma certa confusão de números para a opinião pública, encobrindo dados censitários com quantidades de inscritos nos seus programas. O fato é que diversos planos nacionais ou multila- 119 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 terais já incluem, em seus preâmbulos, essa visão am- pla da alfabetização como promoção da cultura escrita, reconhecem a importância da escolarização básica, do acesso aos livros e a outros impressos, assim como às novas tecnologias da comunicação (OEI, 2006). Entretanto, ao estabelecerem suas metas e previ- sões orçamentárias, em que de fato se explicitam as orientações e condições para a ação, os planos retor- nam ao universo restrito: definem metas de atendimen- to para alfabetização inicial de jovens e adultos — qua- se sempre propondo, de forma irrealista, a “erradicação do analfabetismo” como primeiro passo a ser dado — sem qualquer meta mais concreta em relação às opor- tunidades de continuidade de estudos na educação bá- sica ou qualificação profissional, de educação não for- mal, de acesso a livros, a outros impressos e às novas tecnologias de comunicação. Essa foi, por exemplo, a inspiração do mais recente programa nacional, o Brasil Alfabetizado, cujos resul- tados frustraram o Ministério da Educação, pois gran- de parte dos milhões de adultos atendidos não era, de fato, a que se declara analfabeta, e sim com baixa es- colaridade, não afetando, portanto, as estatísticas nem suprindo adequadamente as necessidades educativas do público atendido. Os estudos sobre cultura escrita — tanto no viés quantitativo quanto qualitativo —, principalmente as avaliações independentes e criteriosas dos programas de alfabetização e educação de adultos, são essenciais para que possamos estabelecer planos mais realistas e eficazes para elevar os níveis educacionais da popula- ção. Infelizmente, ainda há muita carência nesse sen- tido, e mesmo os educadores progressistas resistem às avaliações, porque, nesse campo, elas são quase sem- pre utilizadas como veredicto, ou para glorificar os su- cessos da política ou para condenar a alfabetização e a educação de adultos como políticas “ineficazes” do ponto de vista econômico. Nesse contexto, é essencial, antes de tudo, afirmar enfaticamente que a educação — da qual a alfabetiza- ção faz parte — é um direito de todas as crianças, jo- vens e adultos. Com base nesse princípio, então, po- deremos avaliar os planos e as políticas em curso, vi- sando a seu aperfeiçoamento, com diretrizes mais coe- rentes quanto a estratégias e recursos necessários para colocá-las em prática. Referências: FERRARO, Alceu R. Analfabetismo e níveis de letramento no Brasil: o que dizem os Censos? Educação & Sociedade, v. 23, n. 81, p. 15-47, dez. 2002. FERRARO, Alceu R. História quantitativa da alfabetização no Brasil. In: RIBEIRO, Vera Masagão (Org.). Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. p. 195-207. HENRIQUES, Ricardo; IRELAND, Thimoty. Avaliação do Programa Brasil Alfabeti- zado. Brasília, 2006 (Apresentação na 29a Reunião Anual da Anped). IPM – INSTITUTO PAULO MONTENEGRO; AÇÃO EDUCATIVA. 4o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional: avaliação de habilidades matemáticas. São Paulo: IPM/Ação Educativa, 2004. ______ 5o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional: avaliação de leitura. São Paulo: IPM/Ação Educativa, 2005. ______; FUNAP – Fundação de Amparo ao Preso Prof. Dr. Manuel Pedro Pimentel. Educação que liberta: indicador de alfabetismo funcional da população carcerária paulista. São Paulo: IPM/Funap, 2006. OECD; STATISTICS CANADA. Learning a living: first results of the Adult Literacy and Life Skills Survey. Paris: OECD, 2005. OECD. Literacy in the information age: final report of the International Adult Literacy Survey. Paris: OECD, 2000. OEI – ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Plan iberoamericano de alfabetizacíon de pernonas jóvenes y adultas 2007-2015: documento base. 2006. Disponível em: . Acesso em: 6 fev. 2007. RIBEIRO, Vera Masagão (Org.). Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. ______; BATISTA, Antônio Augusto. Commitments and challenges towards a literate Brazil. Disponível em: . Acesso em: 6 fev. 2007. UNESCO. Education for All: Literacy for life. Paris: Unesco, 2005. ______ Standards and Guidelines For the Design and Implementation of the Literacy Assessment and Monitoring Program (LAMP). Montreal: Unesco, 2005. WAGNER, Daniel. Literacy skill retention. In: WAGNER, Daniel; VENESKY, Richard; STREET, Brien. Literacy: An international handbook. Colorado: Westiew, 1999. /S ESTUDOS SOBRE CULTURA ESCRITA q TANTO NO VIÁS QUANTITATIVO QUANTO QUALITATIVO q PRINCIPALMENTE AS AVALIA¿ÍES INDEPENDENTES E CRITERIOSAS DOS PROGRAMAS DE ALFABETIZA¿»O E EDUCA¿»O DE ADULTOS S»O ESSENCIAIS PARA QUE POSSAMOS ESTABELECER PLANOS MAIS REALISTAS E EÙCAZES PARA ELEVAR OS NÅVEIS EDUCACIONAIS DA POPULA¿»O 120 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 RELATO DE PRÁTICA: PROJETO CRIANÇA Uma experiência formativa Ana Luíza Mendes Borges José Hamilton Maruxo Júnior Sônia Maria de Oliveira Nudelman* A escola pública, como se sabe, sempre quer o sucesso dos seus alunos. Por isso, está atenta às suas próprias potencialidades e limites, busca alternativas com bom senso e prudência e discute possibilidades para atingir esse objetivo. Quando vê chances de ser apoiada em seus propósitos, torna-se parceira de experiências inte- ressantes. Sabe que valem a pena mais ritmo, movimen- to, intensidade, trabalho coletivo, muita conversa, estu- do e, principalmente, coragem para trilhar novos cami- nhos, se isso significa atingir seus propósitos. É o que vem acontecendo com as escolas partici- pantes do Projeto Criança, uma proposta para o ensi- no da leitura e da escrita, direcionada à 4a e 5a série do ensino fundamental, que alia o estudo da Língua Por- tuguesa a estratégias de teatro. O Projeto é resultado da parceria entre o Instituto Algar de Responsabilida- de Social e o Cenpec, e vem promovendo a reorienta- ção e a problematização de práticas escolares essen- ciais: leitura de livros literários, produção de textos pe- las crianças, desenvolvimento de habilidades artísti- cas, entre outras. Como se sabe, a avaliação da aprendizagem é tam- bém uma dessas práticas escolares. O seu objetivo é acompanhar o desenrolar do processo de ensino e apren- dizagem, a fim de orientar intervenções pedagógicas consideradas necessárias, com o propósito de garantir a aprendizagem dos alunos. Um dos instrumentos que compõem a avaliação é a prova. Provas podem ser elaboradas pelos próprios profes- sores e demais membros da equipe escolar e aplicadas aos alunos ou , então, por organizações externas à esco- la, tais como institutos de pesquisa especialmente con- tratados para esse fim, fundações e organizações não- governamentais, entre outros. No primeiro caso, professores e alunos — os agen- tes do processo da aprendizagem — estão envolvidos na avaliação de forma imediata, isto é, sem a mediação de agentes externos à escola. No segundo caso, há intervenção de agentes exter- nos — seja na elaboração das provas, seja na sua apli- cação, correção ou aferição de resultados. Este relato descreve a experiência de elaboração de uma prova da qual participaram os professores e as es- colas do Projeto Criança e o Cenpec, ou seja, envolveu agentes escolares imediatamente implicados na ava- liação e agentes externos. Para se compreender como essa experiência aconteceu, faremos um breve históri- co do Projeto e, em seguida, situaremos, dentro dele, o processo de elaboração da prova e sua aplicação. Por fim, apresentaremos alguns resultados alcançados com esta experiência. Breve histórico e objetivos do Projeto Criança O Projeto Criança existe há mais de uma década e é de- senvolvido em 28 escolas das redes municipais de ensino de 15 cidades dos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo. No segundo semestre de 2004, estabeleceu-se uma parceria entre o Instituto Algar de Res- ponsabilidade Social e o Cenpec. Com a parceria consoli- dada, o Projeto Criança vem se transformando num projeto de formação em Língua Portuguesa e Arte-Educação para professores, com o objetivo de se desenvolver, ao longo de três anos (de 2005 a 2007), uma proposta para o ensi- no da leitura e da escrita que se valha do teatro como es- tratégia. Além disso, contamos com a participação direta dos gestores das escolas e de secretarias municipais. Em 2005, foram desenvolvidas atividades para fomen- tar a leitura e o teatro nas escolas. No final de 2006, foi pos- * Ana Luíza Mendes Borges é cientista social (FFLCH-USP) e pes- quisadora do Cenpec. José Hamilton Maruxo Júnior é mestre em Letras (FFLCH-USP) e pesquisador. Sônia Maria de Oliveira Nudelman é pedagoga (PUC-SP) e coor- denadora do Projeto Criança, no Cenpec. 121 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 sível integrar o ensino da Língua Portuguesa ao da Arte, por meio do teatro, a partir de uma metodologia de trabalho que tem trazido bons resultados: as crianças lêem adap- tações de boa qualidade de textos da literatura universal (Romeu e Julieta, Dom Quixote, Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, Sonhos de uma noite de verão, O natal do avarento), contam e recontam as histórias lidas, opinam sobre elas, concordam ou não com os autores, conversam sobre suas leituras e escritas e ainda produzem livros e coletâneas de textos de sua própria autoria. Foram realizadas, até o final de 2006, aproximada- mente 300 horas de formação continuada para cada um dos participantes, outras tantas de estudo e planejamen- to para difundir o projeto nas salas de aula de 4a e 5a sé- ries, inúmeras outras de experimentação das ações nas classes, sem contar o tempo para registro e sistematiza- ção de conhecimentos, acompanhamento e avaliação, e celebração de conquistas. Em 2007, pretende-se completar o ciclo de formação com a perspectiva de se avançar na construção de se- qüências didáticas para aprendizagem da escrita, an- coradas no teatro, o qual fomenta a cooperação gru- pal, potencializa a concentração e a atenção, abre es- paço para a participação, incentiva a oralidade e per- mite, por meio da expressão corporal, ampliar níveis de compreensão do que se lê e se escreve, de forma lúdica e prazerosa. O ponto de partida e chegada são os alunos, seus conhecimentos e vivências culturais. Do universo com o qual convivem, foram escolhidas, como tema, as fes- tas das quais participam nas suas escolas ou nas suas comunidades. A partir do repertório de experiência des- ses alunos, promove-se a interação com o novo, a apro- ximação com a leitura de livros que, se não forem lidos na escola, talvez não o sejam em lugar algum. Dos aromas, das comidas, das brincadeiras, das músicas de festas — como a junina, a cavalhada, a congada, a folia de reis e o natal — são construídas ligas com os temas, personagens, enredos e com o ambiente das histórias lidas e encenadas. São cria- das cenas para vivenciar as festas, para antecipar o conteúdo da leitura de textos literários, para checar o que se lê, para reviver a seqüência de ações dos per- sonagens e, também, para contar, recontar e criar no- vas histórias. Ler e escrever não se dissociam neste projeto. Do contexto das obras literárias, determina-se a seqüência didática da escrita. Se Romeu e Julieta trocam bilhetes e, também na festa junina, acontece o correio elegan- te, as crianças escrevem cartas e as trocam, como “Ro- meus” e “Julietas”. Se Dom Quixote se envolve em mil aventuras, imortalizadas pela mão do seu autor-cria- dor, as crianças também inventam seus heróis e escre- vem suas aventuras. Se o Rei Artur reflete sobre quais estratégias usar para conquistar e apaziguar os povos que se rebelam contra seu poder, os meninos também escrevem, em seus diários de bordo, suas próprias re- flexões sobre o esforço cotidiano que despendem para conquistar mais e novos conhecimentos. A leitura dá a régua e o compasso da escrita. Ofere- ce a indicação do gênero a ser trabalhado e, além dis- so, com o teatro, aquece o imaginário e fortalece re- pertórios. Prontos, os textos são novamente encena- dos, para que, em grupo, com a parceria dos alunos, se atue sobre a coerência da produção. Esse trabalho se estabelece com o respeito neces- sário às práticas pedagógicas correntes nas várias es- colas e cidades onde o Projeto Criança se instala. Por isso, procura cumprir a tarefa de conciliar os tempos de ação na urgência, característicos da escola, com os tempos da formação, a qual, à frente das questões mais rotineiras, constrói novos encaminhamentos e in- tervenções para as práticas de ensino em curso. Não parte dos sistemas de ensino, embora conte com as autoridades locais para a criação de condições estrutu- rais e logísticas que viabilizem sua implementação: • constituição de acervo de livros da literatura universal; • garantia da presença dos profissionais nos encon- tros de formação; • estabelecimento de jornadas de trabalho que comportem tempos remunerados para a irradiação, acompanha- mento e avaliação do projeto nas escolas. É de adesão voluntária, mas demanda esforço in- dividual de estudo, compromisso com a experimenta- ção das atividades construídas nos encontros de for- mação e registro, em diário de bordo, da experiência que toma teatro como meio para ensinar a ler e a es- crever com compreensão, autonomia e prazer. Implica flexibilizar a gestão, ou seja, organizar gru- pos de relações horizontais que, em intenso trabalho coletivo, reflitam sobre as práticas de ensino da leitu- ra e da escrita em curso, bem como promovam a apro- priação de “competências leitoras e escritoras” entre todos os alunos das 4a e 5a séries. 122 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O Projeto compromete-se em acompanhar e avaliar os resultados de aprendizagem conquistados pelos alunos. O processo de elaboração da prova Para nós, avaliar e acompanhar a implementação do projeto e medir seus resultados com base em alguns in- dicadores tem sido, mais do que uma tarefa, um compro- misso. Na cultura dos parceiros do Projeto está a origem da decisão de sempre ter os olhos bem abertos para sa- ber se os rumos previamente estabelecidos no plano do projeto estão sendo seguidos. Para isso, desenvolvemos um modelo de avaliação composto pelos seguintes indicadores: 1. Gestão do projeto na secretaria: • abrangência e infra-estrutura das escolas; • acesso ao material pedagógico; • carga horária do professor; • presença dos profissionais nos encontros de formação. 2. Gestão do projeto na escola: • organização dos horários de trabalho coletivo e dos horários de trabalho individual; • formação de grupos horizontais de gestão do projeto; • irradiação do projeto nas escolas; • acompanhamento das práticas de ensino do projeto nas escolas; • presença do Diário de Bordo; • organização do espaço da escola. 3. Gestão do projeto na sala de aula: • presença do Clube de Leitura; • execução da seqüência de atividades (festa, leitura e escrita, mediadas por cenas); • presença dos ateliês das seqüências didáticas de gê- neros orais e escritos (leitura e escrita, mediadas por cenas); • presença do Diário de Bordo (professor e aluno); • acompanhamento das produções dos alunos. 4. Formação: • grau de apropriação dos conceitos e das propostas de trabalho desenvolvidas na formação; • grau de apropriação dos gêneros textuais desenvol- vidos na formação (diário de bordo, roteiro de cenas, contos etc.); • elaboração de seqüências de atividades e seqüên- cias didáticas de gêneros orais e escritos. 5. Aprendizagem: • grau de apropriação do uso das cenas como recurso para evidenciar compreensão na leitura — seqüência de ações, caracterização dos personagens, do tempo e do espaço; • grau de apropriação de estratégias pessoais de leitu- ra — leitura de indícios, antecipação e verificação; • grau de apropriação de estratégias de leitura dramatizada; • presença de escrita espontânea nos gêneros traba- lhados; • presença de parceria com os alunos no aperfeiçoa- mento dos seus textos escritos (cenas); • grau de apropriação dos gêneros, entrevista e expo- sição oral. Como forma de completar esse percurso avaliativo, a equipe propôs-se a elaborar um instrumento que des- se um passo à frente em relação à matriz avaliativa do projeto, buscando obter dados relativos à aprendizagem dos alunos. A equipe do Cenpec responsável pelo Proje- to ponderou que uma avaliação de aprendizagem pode- ria ser realizada de várias formas, mas, em larga escala, a escolha por provas seria eficiente e daria efetividade ao processo de avaliação. Após discussões com os participantes, chegou-se à conclusão de que a prova se justificaria, em sua elabora- ção e aplicação, se, além de obter resultados de apren- dizagem dos alunos, se transformasse em uma experi- ência de aprendizagem para a equipe escolar. Com esse objetivo é que a prova foi elaborada e apli- cada: além de mostrar resultados de aprendizagem dos alunos, ela poderia dar aos participantes e parceiros do Projeto a ocasião de aprender a elaborar um instrumen- to de avaliação em construção coletiva. Durante os encontros de formação de 2005, quan- do os resultados do SAEB - Sistema Nacional de Avalia- ção da Educação Básica, Saresp - Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo e Sima- ve - Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública eram apresentados para a discussão de aprendizagem, a equipe do Cenpec percebeu certa dificuldade dos pro- fessores em entender os dados, compreender o que sig- nificavam os indicadores e descritores dessas avaliações governamentais e, por vezes, uma certa resistência em aceitar que esses dados pudessem representar resulta- dos de aprendizagem de seus alunos. Como estudantes 123 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 que iam tão bem nas provas elaboradas por seus pró- prios professores poderiam ter resultados aquém do es- perado nas avaliações governamentais, como o SAEB? A experiência de elaboração e aplicação de uma pro- va semelhante ao SAEB poderia auxiliar esses profissio- nais a compreender melhor essa forma de avaliar e, caso os resultados fossem semelhantes aos das avaliações governamentais, a experiência ainda poderia confirmar as indicações sobre a aprendizagem dos alunos. Como a prova foi elaborada Uma das condições fundadoras do Projeto é a parceria. Seus produtos são sempre elaborados em parceria com os professores participantes da formação. Assim, no seu início, não contava com materiais e metodologia prontos a serem simplesmente utilizados pelos professores. Os encontros de formação tinham como objetivo a discussão de práticas pedagógicas do ensino da Língua Portuguesa e da gestão escolar, e os produtos das formações eram testados pelos professores em suas aulas. Esse modo de trabalho foi aplicado à elaboração da prova. No início de 2006, as escolas e secretarias munici- pais de educação participantes do Projeto Criança fo- ram consultadas sobre a sugestão do Instituto Algar de elaboração e aplicação de uma prova. A sugestão foi aceita e a equipe do Cenpec passou a definir estraté- gias para elaborar essa prova em parceria com os parti- cipantes da formação. Construir uma prova a 600 mãos — há aproximada- mente 300 profissionais que participam das formações do Projeto — não é uma tarefa muito fácil. Mas não po- deria ser feita de outra maneira. Como sustentar o prin- cípio da participação e da construção coletiva de uma proposta se se chegasse às escolas com uma prova pronta? Foi necessário tornar participativa a formula- ção do instrumento de avaliação, com todas as impli- cações que isso pudesse acarretar. Durante as videoconferências, realizadas em feve- reiro e março de 2006, foram definidos alguns crité- rios de elaboração da prova, a saber: • deveria ser feita de forma coletiva, em função da na- tureza do Projeto e dos objetivos a que se propunha (transformar-se numa experiência de aprendizagem para professores e profissionais do Cenpec); • deveria medir habilidades de leitura e de escrita li- gadas às atividades desenvolvidas no Projeto Crian- ça. Por isso, restringir-se-ia a avaliar estas habilida- des ligadas aos gêneros narrativos; • seus resultados deveriam ser analisados com os outros indicadores de avaliação do projeto; • o SAEB, sendo a única avaliação realizada em to- dos os estados onde o projeto acontece, serviria como modelo. Para dar início às atividades de 2006, em função de haver muitos participantes novos no Projeto, o Cenpec enviou às escolas um questionário para obter informa- ções sobre o perfil desses participantes. Todos o pre- encheram. Já sabendo que a prova deveria ser elabo- rada, nele constava a seguinte questão: “Se você fosse elaborar uma prova de leitura e escrita para seus alunos, qual(is) texto(s) utilizaria?” Diversas sugestões foram apresentadas. Chamou- nos a atenção a uniformidade de gêneros textuais apresentados: • 22% das sugestões eram fábulas; • 18%, contos de fadas; • 17%, textos informativos; • 15%, contos de aventura; • 10%, poemas; • 18%, outros gêneros (histórias em quadrinhos, crô- nicas, romance, auto-ajuda). Dessas sugestões, foram excluídos os textos informa- tivos, os poemas e os outros, pois os textos-base da pro- va deveriam ser narrativos. Assim, ficamos com fábulas, contos de fadas, contos de aventura. ! EXPERIÂNCIA DE ELABORA¿»O E APLICA¿»O DE UMA PROVA SEMELHANTE AO 3!%" PODERIA AUXILIAR OS PROFESSORES A COMPREENDER MELHOR ESSA FORMA DE AVALIAR E CASO OS RESULTADOS FOSSEM SEMELHANTES AOS DAS AVALIA¿ÍES GOVERNAMENTAIS A EXPERIÂNCIA AINDA PODERIA CONÙRMAR AS INDICA¿ÍES SOBRE A APRENDIZAGEM DOS ALUNOS 124 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Diante da impossibilidade de se privilegiar um des- ses três gêneros em detrimento dos outros, acabamos por sugerir a elaboração de mais de uma prova. O que tornou isso possível foi a seleção das habilidades “lei- toras e escritoras” que seriam avaliadas. Para a leitu- ra, foram elaboradas questões baseadas em cinco ha- bilidades pertinentes ao texto narrativo, em igual dis- tribuição nas diferentes provas: • reconhecer e identificar os elementos da narrativa; • reconhecer e identificar o conflito que gera a narrativa; • reconhecer o tema do texto; • identificar e localizar uma informação explícita no texto; • inferir uma informação implícita no texto. Na escrita, houve a mesma preocupação em uni- formizar as habilidades. Essas habilidades, distribuí- das nas provas de maneira idêntica, permitiriam uma posterior comparação de resultados, caso isso fosse realizado. Para se chegar a elas, foi necessário discutir com o grupo de professores o que é uma “habilidade lei- tora”, o que é uma “habilidade escritora” e como ela- borar questões relativas a elas. Isso deu a todos os participantes uma idéia da forma como são preparadas avaliações baseadas em habilidades, bem como da estabilidade que esse tipo de avaliação pode propor- cionar na hora da análise de seus resultados. Cumpre dizer, ainda, que cabia aos professores es- colher a prova a ser aplicada a seus alunos. É interes- sante notar que as escolhas dos professores segui- ram a tendência dos gêneros textuais indicados, sen- do que 30,5% escolheram a prova baseada na fábula; 62,2%, a prova baseada no conto de fadas; e 7,3%, a prova baseada no conto de aventura. Para facilitar o posterior trabalho de correção, no que se refere à leitura, as questões das provas eram objetivas, com quatro alternativas para cada uma. As questões foram elaboradas pela equipe do Cenpec e, quando estavam prontas, foram discutidas e testadas com a intenção de mostrar a sua pertinên- cia em relação às habilidades a serem avaliadas, bem como os problemas surgidos (por exemplo, na parte de leitura, questões em que pudesse haver mais de uma resposta aceitável). Corrigidos os problemas, encer- ramos o processo de elaboração, ao qual se seguiu a fase da aplicação e da correção. A aplicação e a correção Como forma de assegurar a lisura dos resultados, o encaminhamento da aplicação foi feito também via vi- deoconferências, nas quais foram combinados os cri- térios para a aplicação: o aplicador deveria preencher uma ficha com os nomes de todos os alunos que rea- lizassem a prova, orientar o grupo a fazer uma leitu- ra prévia de toda a avaliação antes de começar a res- ponder e não poderia esclarecer dúvidas pertinentes ao texto nem às questões. Ao final da aplicação, em outra ficha, deveria anotar eventuais ocorrências, bem como o tempo gasto para as respostas. Como os pro- fessores das escolas estavam a par de todo o proces- so, porque dele participaram, foram eles os próprios aplicadores. Já que havia diferentes provas, ficou a cargo de cada escola escolher, com o seu grupo de professores, qual delas seria aplicada. Assim, os professores pu- deram optar pela prova que achassem mais adequada aos seus alunos. A única solicitação do Cenpec, quan- to à escolha, foi a de que os professores elaborassem uma justificativa. Nessa fase, houve o cuidado de não se divulgar o gabarito das questões objetivas: foi soli- citado que cada professor que aplicasse a prova a seus alunos respondesse às questões e elaborasse seu pró- prio gabarito. Esse cuidado, além de, mais uma vez, colocar o pro- fessor como participante da construção da avaliação, poderia revelar se as respostas dadas pelos professores e aquelas consideradas corretas pela equipe do Cenpec eram compatíveis. No momento da correção, poderiam, por exemplo, ser descartadas as questões que estives- sem em desacordo com os gabaritos. Após a aplicação, cada professor deveria entregar as provas ao diretor da escola, acompanhadas da lis- ta de alunos, da justificativa de escolha e do gabarito do professor. Assim foi feito, e os diretores encaminharam as ava- liações ao Cenpec. Quanto ao processo de correção, vale dizer que a análise dos gabaritos enviados pelos professores reve- lou absoluta adequação entre as respostas dadas por eles e o gabarito do Cenpec. Houve apenas poucos ca- sos isolados de não-concordância, em um número ínfi- mo de questões (apenas duas, em todas as provas). A correção foi realizada pela equipe do Cenpec. 125 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Alguns resultados dessa experiência até o momento O efeito mais significativo, já perceptível durante os encontros de formação realizados no segundo se- mestre de 2006, foi o fato de os professores terem co- meçado a se preocupar com os resultados das avalia- ções oficiais, como o SAEB e a Prova Brasil. Além dis- so, mostraram-se muito mais prontos a interpretá-los à luz de suas práticas docentes, passando a reconhe- cê-los como válidos. A rejeição surgida no grupo de professores, no início do Projeto Criança, em relação à análise de dados provenientes das avaliações go- vernamentais, já não se colocava no grupo de educa- dores do Projeto Criança. Nossa hipótese inicial era a de que os resultados apresentariam um desempenho médio dos alunos em cada uma das habilidades (superior a 60%), o que se confirmou a partir dos dados a seguir: • 69,1% dos alunos reconhecem e identificam os ele- mentos da narrativa; • 63,9% reconhecem e identificam o conflito que gera a narrativa; • 72,4% reconhecem o tema do texto; • 79,1% identificam e localizam uma informação ex- plícita no texto; e • 64% inferem uma informação implícita no texto. No entanto, é importante salientar que esses dados requerem análises mais aprofundadas, que estabele- çam as relações necessárias entre eles e os outros in- dicadores, acima citados. Mesmo assim, já promovem significado para os professores, que se sentem mais responsáveis por encaminhá-los e, por isso, compro- metidos com a estruturação de novas estratégias de melhoria da aprendizagem dos alunos. A avaliação fortaleceu a importância do ensino do texto narrativo para os professores. No início do Pro- jeto, muitos deles tinham dificuldade em compreen- der os elementos e a estrutura textual da narrativa, assim como a identificação dos gêneros narrativos. A discussão em torno das “habilidades leitoras” para o texto narrativo mudou essa situação. Isso se refletiu indiretamente até nas escolhas dos professores: no início do ano, os textos sugeridos por eles, para o trabalho com os alunos e até para a ela- boração da prova, restringiam-se a narrativas curtas e a gêneros de pouca complexidade, como as fábu- las e os contos de fadas. No fim do ano, as opções de leitura, efetuadas pelos mesmos professores, incluí- am textos mais longos e complexos, o que indica que eles passaram a acreditar que seus alunos seriam ca- pazes de ler textos mais longos do que aqueles que sugeriram antes. Durante o processo de elaboração da prova, ficou evidente, para a equipe do Cenpec, a necessidade ur- gente de o projeto ter uma transposição mais direta para a sala de aula, com a explicitação clara de mo- delos que pudessem ser recriados nas classes. Nesse sentido, a própria prova serviu como modelo para ou- tras situações de avaliação, das quais se pôde ter no- tícia ao longo do ano, no acompanhamento das ativi- dades do Projeto (professores participantes do Proje- to se aventuraram a criar suas provas a partir de habi- lidades de leitura e escrita). Assim sendo, haver elaborado uma prova de forma participativa se tornou uma grande experiência de aprendizagem para todos: participantes e equipe do Cenpec. Contribuiu para que a avaliação pudesse ser mais bem apropriada pelos professores e para criar uma mentalidade propositiva em relação à parceria entre professores e alunos nesse processo. Notas 1 Os três autores compõem a equipe do Projeto Criança no Cenpec. 2 O Instituto Algar de Responsabilidade Social está ligado às empresas do Grupo Algar, com sede em Uberlândia, Minas Gerais, e financia projetos educacionais, dos quais participam escolas públicas dos municípios onde as empresas do Grupo atuam. Esses projetos têm assessoria educacional de ONGs como o Cenpec. 3 A videoconferência é um dos instrumentos do Projeto Criança para a gestão compartilhada: em 2005, mensalmente, todos os participantes do projeto se reuniam, via videoconferência, com o Cenpec. Durante essas reuniões, acompanhavam-se as ações dos professores e também se toma- vam decisões no âmbito da gestão. Estas videoconferências aconteciam alternadamente com os encontros mensais de formação, de modo que, quinzenalmente, a equipe do Cenpec encontrava-se com os participantes do Projeto. Em 2006, esse esquema de reuniões se manteve, alternando encontros de formação presenciais e videoconferências. Graças a isso, foi possível a elaboração da prova durante fevereiro e março de 2006. 4 Segundo alguns pesquisadores (ver: Brandão; Spinillo. Aspectos gerais e específicos na compreensão de textos. Universidade de Pernambuco, 1998. Disponível em: ), a compreensão pode ser avaliada pelo reconto — paráfrase — ou por questões baseadas em habilidades específicas. No primeiro caso, consi- dera-se o texto como um todo, e se avalia a compreensão em relação às informações nele contidas; no segundo, as questões permitem focalizar informações e partes específicas do texto. 125 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 126 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 127 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 uais mudanças no modo de gerir a política educacional dos municípios podem ser atribuídas à formação rece- bida pelos gestores participantes do Programa Melhoria da Educação no Município? Quais os impactos do Programa na política municipal de educação, no rendimento escolar dos alunos e na atu- ação profissional dos participantes? Considerando essas duas questões, a equipe técni- ca que coordena o Programa Melhoria da Educação no Município concebeu, formulou e desenvolveu a primeira avaliação de impacto1 do trabalho realizado. A intenção foi averiguar as mudanças ocorridas, sua consolidação e seus reflexos na educação das crianças e adolescentes dos municípios, cujos gestores participaram do proces- so de formação desenvolvido pelo Programa. Múltiplos são os conceitos correntes de avaliação social. Ao se adotar um deles, é preciso saber exatamente quais ob- jetivos se pretende avaliar e quais valores, implícitos ou ex- plícitos, estão envolvidos. Como Brant de Carvalho (2005), entendemos que avaliar vai além de medir; significa fazer um julgamento baseado em um referencial de valores: Avaliação é atribuição de valor sobre o grau de eficiência, eficácia e efetividade de políticas, programas e projetos sociais com base em pressupostos teórico-políticos, parâmetros e padrões que as- seguram objetividade e comparação na atribuição de valor (Brant de Carvalho, 2005, p. 56 ). Pretendemos, com este artigo, divulgar e compartilhar os resultados encontrados nesta avaliação. Para tanto, co- meçamos com uma apresentação do Programa; depois, ARTIGO / IMPACTO POSITIVO DO 0ROGRAMA -ELHORIA DA %DUCA¿»O NO -UNICÅPIO Ana Maria Falsarella Vanda Noventa Fonseca* * Ana Maria Falsarella, pedagoga, doutora em Educação pela PUC- SP, pesquisadora do Cenpec e professora do curso de Pedagogia da Uniban-SP. Vanda Noventa Fonseca, psicopedagoga, pesquisadora do Cenpec, coordenadora do Programa Melhoria da Educação no Município. 1 128 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 explicitamos os procedimentos de pesquisa adotados e seus principais resultados; finalmente, realizamos uma apreciação dos resultados. Programa Melhoria da Educação no Município Resultado de uma iniciativa da Fundação Itaú Social (FIS) e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infân- cia), com apoio da Undime (União Nacional dos Dirigen- tes Municipais de Educação) e sob a coordenação técni- ca do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educa- ção, Cultura e Ação Comunitária), o Programa teve início em 1999, com o seguinte objetivo: Contribuir para a formação de gestores municipais na for- mulação e na gestão compartilhada de políticas públicas educacionais, tendo por objetivo o ingresso, a permanên- cia, o progresso e o sucesso na aprendizagem de todas as crianças e adolescentes de seus municípios. Entre 1999 e 2006, o Programa esteve presente em 17 estados brasileiros: AC, AL, AP, AM, BH, CE, GO, MA, MT, MG, PA, PB, PE, PI, RN, SP, SE, abrangendo 1.237 muni- cípios. Nesse período, foram capacitados 3.210 agentes educacionais: gestores municipais, membros de conse- lhos de defesa de direitos das crianças e adolescentes, coordenadores de organizações não-governamentais e de outras instituições da sociedade civil. Atualmente, o Programa se encontra em sua edição VIII, sendo que a avaliação de impacto abarcou as edições de II a V. O Programa é ancorado em três princípios básicos: 1. Contextualização Investigar a situação de atendimento aos direitos das crianças e adolescentes do município, com garantia da multiplicidade de olhares sobre a realidade e a sin- gularidade local, considerando-se: espaço, tempo e saberes das pessoas que habitam o território. 2. Participação e Articulação Constituir e consolidar um grupo voltado à defesa dos direitos da criança e do adolescente, tendo a educa- ção como foco, e estabelecer relações dialógicas que suscitem o debate e a reflexão entre os diferentes su- jeitos e instituições responsáveis pela educação no município, de maneira que as decisões sejam toma- das de forma compartilhada e co-responsável. 3. Aprendizagem Contínua Reconhecer a formação dos gestores como processo continuado de aprendizagem que possibilita a bus- ca de alternativas para a superação das necessida- des identificadas e o desenvolvimento de estraté- gias conjuntas de intervenção. Dentro de uma visão de educação para o desenvolvi- mento integral do ser humano, entende-se que as propos- tas educativas voltadas às crianças e adolescentes ne- cessitam de ligação com a comunidade, não podendo ser impostas de forma descontextualizada. Requerem, por- tanto, consenso e articulação entre Estado e sociedade civil na formulação de políticas públicas que reconheçam a educação como um dos direitos sociais básicos. Considerando que propostas educacionais só se con- cretizam à medida que são desenvolvidas, o trabalho de formação de gestores municipais, neste Programa, é centrado na elaboração de um Plano de Ação Educativa (PAE)2 que toma por base a Avaliação Diagnóstica (AD) da situação educacional do município. Aposta-se que ganhos na aprendizagem dos alunos decorrem de uma gestão calcada em atitude diagnóstico-interventiva sis- temática dos gestores. Portanto, o monitoramento siste- mático da implementação do Plano é fundamental e faz parte do processo de formação. Ao propor a elaboração do diagnóstico da situação socioeducacional, o Programa visa à leitura da realidade, para que, considerando as potencialidades e as fragilida- des educacionais do município, as prioridades (de cur- to, médio e longo prazo) sejam estabelecidas e as ações que levem à solução das situações-problema identifica- das sejam propostas. Esta avaliação diagnóstica norteia e torna possível a elaboração de um plano de ação ade- quado às peculiaridades locais. Nesse sentido, os principais temas abordados no processo de formação do Programa têm como linha condutora: a educação como um dos direitos sociais básicos — o município educador: crianças e adolescentes como sujeitos de direito à educação; o papel dos Conselhos Municipais e dos Conselhos de Direitos das Crianças e dos Adolescentes; a educação contextualizada à região; a gestão escolar participativa e a elaboração do pro- jeto político-pedagógico pelas escolas do sistema; a análise estatística do desempenho escolar dos alu- nos como um dos componentes direcionadores da avaliação do plano de ação. Com a finalidade de subsidiar os gestores na efetivação 1. 2. 3. 4. 5. 129 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 das propostas apresentadas pelo Programa, os municípios participantes recebem, como material de apoio, o “kit Me- lhoria”, composto por um conjunto de publicações e víde- os produzidos pelo Cenpec e editados pela FIS.3 Duas são as modalidades de formação, sempre envolvendo encontros presenciais e monitoramento à distância: a. formação direta: as formadoras que compõem a equi- pe do Programa atuam diretamente junto aos gesto- res dos municípios participantes; b. formação indireta (formação de formadores): em Nú- cleos Regionais de Formação (NRFs), a equipe do Pro- grama prepara e habilita técnicos de determinados municípios para atuarem como formadores em Nú- cleos Municipais – NMs, que englobam municípios de uma mesma região, disseminando as orientações e a metodologia do Programa. Antecedem os encontros de formação as reuniões de concertação, quando se realizam o primeiro contato com os municípios envolvidos e a articulação para o desen- volvimento do trabalho, de acordo com as peculiarida- des de cada região. Durante a concertação, em conjun- to, são combinadas decisões e discutidas as demandas educacionais locais. No último encontro, é realizado um Seminário de Ava- liação e Socialização de Experiências, quando, além da avaliação do processo de formação, são apresentados os resultados alcançados pelos municípios participantes quanto à implementação de seus planos de ação. A avaliação das ações, parte integrante da formação, tem como característica a multidimensionalidade, o que envolve seu desdobramento em diferentes tipos de re- gistro. Sempre com enfoque participativo e formador, o SM&A (Sistema de Monitoramento e Avaliação) do Pro- grama vale-se de quatro tipos de avaliação: 1°. Ex-ante Antecede a implantação do Programa, quando são ex- plorados o contexto e o perfil dos participantes, que guiarão a elaboração das metas, dos objetivos e do desenho adequado de intervenção. 2°. Avaliação de Processo Acontece por meio de monitoramento dos municí- pios, identificando-se os pontos fortes e as dificul- dades que surgem durante o desenrolar do Progra- ma, para possíveis aperfeiçoamentos e correções de percurso. 3°. Avaliação de Resultado Apresenta os resultados alcançados ao final do pro- cesso ou de uma de suas etapas, verificando a efe- tividade da proposta de responder às necessidades constatadas, diante das metas estabelecidas. Toma, por base, a apresentação da Avaliação Diagnóstica e do Plano de Ação Educativa. 4°. Avaliação de Impacto Seu objetivo é levantar as repercussões do Programa nas políticas públicas locais para a educação, após o término do período de formação, quer dizer, trata- se de uma avaliação pós facto que observa a influên- cia do “Melhoria” em médio e longo prazo nas regiões contempladas. A. O estudo avaliativo sobre o impacto do Programa A discussão referente ao impacto do Programa na ges- tão municipal e, em última instância, na qualidade da educação oferecida aos alunos, é delicada e complexa. Por mais que sejam associados procedimentos qualita- tivos a procedimentos quantitativos e por mais que a re- levância e a confiabilidade da avaliação tragam credibili- dade ao trabalho, sabemos que os resultados de um pro- grama educacional nunca são lineares, pois muitas são as variáveis intervenientes. Além disso, sempre há uma boa dose de subjetividade presente, a começar pela se- leção dos aspectos a serem observados e dos critérios de análise. Assim, seu produto final traz indicadores, nunca certezas absolutas. A avaliação não tem um fim em si: seu objetivo é pro- duzir um conhecimento que possa direcionar decisões so- bre a reformulação e/ou continuidade das ações, na busca $ENTRO DE UMA VIS»O DE EDUCA¿»O PARA O DESENVOLVIMENTO INTEGRAL DO SER HUMANO ENTENDE SE QUE AS PROPOSTAS EDUCATIVAS VOLTADAS ̧S CRIAN¿AS E ADOLESCENTES NECESSITAM DE LIGA¿»O COM A COMUNIDADE N»O PODENDO SER IMPOSTAS DE FORMA DESCONTEXTUALIZADA 130 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 (*) Nesta coluna, o total de municípios é de 501. Para compor o universo da pes- quisa, foram desconsiderados os municípios que participaram mais de uma vez do Programa, o que explica o total de 483 municípios (e não 501). Para a caracterização dos municípios participan- tes deste estudo, foram sistematizados os seguintes dados: porte da população e distribuição dos municí- pios nas regiões brasileiras, segundo o IDH-M. Os mu- nicípios pequenos4 foram os que mais participaram do Programa, o que trouxe repercussões à seleção reali- zada para este estudo. Dentre os 483 que compõem a amostra, 333 são de pequeno porte e, na maioria, com IDH-M até 0,6138. Destes, 131 estão localizados na Região Nordeste. Partindo dos princípios do Programa — contextuali- zação, articulação e participação, e aprendizagem contí- constante de maior eficácia e eficiência. Confronta os ob- jetivos enunciados com os de fato concretizados. Em parti- cular, uma avaliação de impacto analisa mudanças signifi- cativas e permanentes que ultrapassam os resultados ime- diatos de um projeto. A implementação de políticas públicas é um processo múltiplo e complexo que acontece em um espaço de deci- sões carregado de negociações, dissensos e consensos, inerentes a forças políticas e níveis de governabilidade dos gestores, contexto este que não pode ser desconsiderado na realização da pesquisa. Assim, na seleção dos indicadores, na coleta de dados e na análise dos resultados, foram considerados, por um lado, a sua compatibilidade com os princípios norteadores do Programa e, por outro, as condições do ambiente social, institucional e organizacional ao qual estão ligados os ges- tores. Procurou-se levantar parâmetros comuns, porém, res- peitando e incorporando distintas realidades municipais. Este estudo, realizado em 2006, toma por referência as mudanças derivadas da implementação do Plano de Ação, singular às peculiaridades locais, e elaborado com base na Avaliação Diagnóstica. Constitui seu objetivo central: Verificar a repercussão, a consolidação e a permanên- cia de alterações, desencadeadas nas políticas públicas para a educação das crianças e adolescentes dos municí- pios participantes do Programa, que podem ser atribuídas à formação recebida pelos gestores. Definiram-se como objetivos específicos: Observar mudanças na gestão educacional dos muni- cípios, nos resultados escolares e nas ações e proce- dimentos dos atuais gestores dos municípios que po- dem ser associadas ao Programa. Observar em que medida as estratégias da gestão edu- cacional contribuíram para a democratização da apren- dizagem — melhoria dos padrões de acesso, perma- nência e qualidade. Identificar a consolidação dos princípios propostos pelo Programa (contextualização, participação e arti- culação, e aprendizagem contínua) na gestão educa- cional em exercício atualmente nos municípios. Identificar a consolidação e a utilização adequada de aprendizagens conquistadas pelos participantes do Programa na função que exercem atualmente. 1. 2. 3. 4. Melhor esclarecendo, a presente avaliação buscou conhecer, decorrido um período de 12 a 24 meses após o término da formação, a ocorrência de impactos nos beneficiários diretos — a política municipal de educa- ção e os participantes — e nos beneficiários indiretos — os alunos dos sistemas municipais de ensino. Ela abar- cou 483 municípios, de 13 estados da Federação, que participaram do Programa entre as Edições II (2000) e a Edição V (2003). Nestas edições, a formação acontecia em um ano, por meio de dois encontros semestrais, nas modalidades de formação direta ou indireta. O Quadro I apresenta a delimitação do universo da pesquisa. Região Estado Total de Municípios* Edições Norte AC 22 II MA 35 III Nordeste PB 127 III, IV, V RN 27 IV AL 25 III PI 21 III, V SE 21 IV BA 16 V Centro- Oeste MS 23 II GO 21 III , IV Sudeste MG 34 III,IV SP 126 II,III QUADRO I UNIVERSO DA PESQUISA 131 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 nua — foram definidos três eixos estruturantes que ser- viram para orientar a formulação, a aferição e a análi- se dos indicadores: 1o A Política Municipal de Educação Ganhos na qualidade da gestão educacional, deriva- dos da consolidação de mudanças no modo de gerir a Educação, no que se refere à maior participação e par- tilha de decisões. 2o Os Alunos Avanços no rendimento escolar dos alunos das es- colas municipais, como repercussão das alterações na gestão educacional, advindas da participação do muni- cípio no Programa. 3o Os Participantes Benefícios em relação aos conhecimentos técnicos e ao compromisso com as políticas públicas educacionais. Optou-se por uma abordagem metodológica pluralista, isto é, quali-quantitativa, que associa a lógica dos atores, estabelecida a partir da avaliação qualitativa, ao sistema de ação, observado por meio de dados quantitativos. Entende-se que a avaliação quantitativa revela os im- pactos nas variáveis objetivas, mas não explica os moti- vos pelos quais um projeto provoca ou não mudanças na realidade e na vida das pessoas. Só a avaliação qualitati- va adensa e ilumina a análise, pois leva em conta o con- texto, a historicidade, o movimento da realidade, a fala dos sujeitos, a compreensão dos saberes e as caracterís- ticas culturais de determinada localidade. Consoante a esse entendimento, foram adotados di- ferentes procedimentos de pesquisa para a coleta de da- dos: pesquisa de opinião, pesquisa de campo e estudo estatístico sobre indicadores socioeducacionais. Os resultados observados na condução da política edu- cacional municipal e na atuação dos participantes do Pro- grama foram aferidos por intermédio de pesquisa de opi- nião (questionários enviados aos atuais secretários mu- nicipais de educação e aos participantes da formação à época do desenvolvimento do Programa) e de pesquisa de campo (visitas técnicas a oito municípios beneficiários do Programa nas edições selecionadas). Com relação à pesquisa de campo, considerando a abrangência nacional do Programa em quatro das cinco regiões brasileiras e a diversidade de contextos dessas regiões, foram selecionados dois municípios de pequeno a médio porte de cada uma delas (Norte, Nordeste, Cen- tro-Oeste e Sudeste), num total de oito, para receberem a visita técnica dos pesquisadores do Cenpec: Acrelândia (AC), Alagoa Grande (PB), Catalão (GO), Itapeva (SP), Mi- naçu (GO ), Pocinhos (PB), Senador Guiomard (AC) e Sud Minnucci (SP). Aos municípios de Alagoa Grande e Pocinhos (ambos da Paraíba), outro foi acrescentado: a possibilidade de um estudo longitudinal, dando continuidade a pesquisas an- teriormente realizadas pelo Programa e documentadas nas publicações: Relatório de avaliação – Núcleo Regional de Formação da Paraíba, e Municípios em Busca da Melho- ria da Educação no Município. Uma coisa que ficou muito forte em relação ao Melhoria foi incen- tivar a participação da comunidade, de fazer com que a cidade se transformasse mesmo numa cidade educadora, que a educação não ficasse somente nas escolas, tivesse outras formas, que não fosse uma coisa restrita ao conteúdo de sala de aula, mas uma coisa de que os pais participassem, em que a comunidade estivesse presente dentro da escola. MARIA GORETT SANTOS Secretária Municipal de Educação de Alagoa Grande/PB Além da pesquisa de opinião e da pesquisa de cam- po, foi realizado também o estudo estatístico sobre os indicadores socioeducacionais dos municípios, um ano antes e um a dois anos após o período de formação. Por intermédio desse estudo, procurou-se avaliar se hou- ve repercussões positivas na trajetória escolar dos alu- nos das redes escolares envolvidas, levantando-se índi- ces relativos a aprovação, reprovação, abandono e dis- torção idade-série. Foram pesquisados, ainda, os indicadores sobre o contexto social e econômico desses municípios – IDH-M e estimativa populacional – e suas possíveis influências nos resultados do Programa. Estabeleceu-se uma compa- ração entre os dados dos municípios participantes, cha- mado Grupo Tratamento – GT, e os dados de municípios não-participantes, mas com perfil semelhante, que cons- tituíram o Grupo Controle – GC. Finda a coleta de dados, procurou-se estabelecer um corpo explicativo coerente para as informações obtidas. Uma série de procedimentos de análise, citados a seguir, foram utilizados no tratamento dado às informações: análise comparativa dos índices socioeducacionais dos municípios constantes da amostra um ano antes e um ou dois anos após a participação no Programa, • 132 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cotejando-os com os dados dos municípios do Gru- po Controle; tabulação, categorização e organização das respos- tas dos questionários; estabelecimento de categorias explicativas para o tra- balho de caráter qualitativo desenvolvido em campo; comparação das práticas observadas e das falas dos atores envolvidos com as respostas aos questioná- rios e os dados objetivos coletados na pesquisa de campo. Por fim, com base nesses procedimentos, chegou-se à análise avaliativa, comparando-se as informações ob- tidas com os três princípios básicos do Programa: con- textualização, participação e articulação, e aprendiza- gem contínua. B. Indicadores de gestão e resultados: pesquisa de opinião e pesquisa de campo Para a análise das respostas aos questionários e dos relatórios de visitas técnicas, foram levantados indicado- res que revelassem o impacto nos beneficiários diretos do Programa, quer dizer, nos ganhos obtidos no que tan- ge ao sistema municipal de educação e à atuação profis- sional dos participantes. Optou-se pela apresentação e análise conjunta dos dados oriundos destes dois procedimentos (questioná- rio e visita técnica), uma vez que os resultados encon- trados estão imbricados de tal forma que as respostas aos questionários foram ilustradas pelas estratégias singulares que os municípios visitados em campo en- contraram para seus contextos. Procurou-se identifi- car como os gestores atuais conduzem a política edu- cacional em seus municípios, ou seja, quais traços dis- tinguem suas gestões. Freqüentemente, os sistemas educacionais encon- tram muita dificuldade para criar espaços que possibili- tem compartilhar conhecimentos ou tomar decisões co- letivamente. Entende-se que a transparência nas deci- sões favorece a autonomia dos sujeitos, amplia a per- cepção das necessidades locais e possibilita uma atua- ção mais eficaz dos envolvidos. O Programa Melhoria en- fatiza a importância de uma cultura democrática de par- tilhar responsabilidades e de tomar decisões baseadas em informações claras e objetivas. Nesta direção, bus- cou-se aferir indicadores da gestão educacional nas se- guintes dimensões: implantação de gestão participati- • • • va e compartilhada; compromisso com a aprendizagem — acesso à escola e ao conhecimento. O Quadro II apresenta os indicadores levantados rela- tivos à gestão, e o Quadro III, os indicadores relativos à aprendizagem dos alunos. Discriminaremos, a seguir, a síntese dos principais pontos constatados que evidenciam a contribuição do “Melhoria” para uma gestão mais eficaz: 1. uma atitude investigativa que direciona a decisão em relação a possíveis intervenções parece haver se sedi- mentado entre os participantes: a coleta e a análise de informações para a leitura da realidade é uma estraté- gia de gestão amplamente citada, bem como a prática de consulta a fontes oficiais de dados e informações (IBGE, MEC–INEP) e às avaliações externas (SAEB, Pro- va Brasil), para se verificarem os resultados do traba- lho e nortear as intervenções na gestão municipal; 2. comunicação, transparência e participação são aspec- tos estreitamente relacionados. Nesse sentido, pôde- se observar os cuidados dos gestores quanto ao uso de diferentes instrumentos para a divulgação das ações da SME e para chamar os vários segmentos envolvidos QUADRO II INDICADORES RELATIVOS À GESTÃO • coleta e análise de infor- mações da situação edu- cacional do município, das condições de vida das crianças e adolescen- tes, e das potencialidades educativas da cidade, re- alizada por meio de um processo de construção coletiva; • consulta a fontes oficiais (dados primários e se- cundários); • pesquisa de opinião dos ativos sociais do muni- cípio; • participação de diferen- tes secretarias e insti- tuições do município na elaboração da Avaliação Diagnóstica. LEITURA DA REALIDADE AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA INTERVENÇÃO NA REALIDADE PLANO DE AÇÃO • planejada e implementada coletivamente; • elaborada a partir das necessi- dades apontadas no processo da avaliação diagnóstica; • articulada com diferentes se- tores da sociedade civil, orga- nizações não-governamentais e governos federal e estadual; • utilização de práticas avalia- tivas; • socialização de informações; • estabelecimento de relações entre municípios da região, com a perspectiva de forma- ção de redes; • utilização das publicações e/ou vídeos do Programa. 133 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 com a educação nos municípios, a fim de compartilhar as decisões (estações de rádio, carros de som, reuni- ões, assembléias), o que revela o empenho em se es- tabelecer uma gestão democrática e participativa; 3. a articulação de diferentes sujeitos e instituições en- volvidas com a educação é um dos princípios do Pro- grama, no sentido de diminuir o distanciamento en- tre as pessoas e a fragmentação de ações; nessa di- reção, destaca-se a alta freqüência de respostas dos gestores no que diz respeito ao envolvimento das fa- mílias dos alunos e ao estabelecimento de alianças e parcerias com os sistemas estaduais e outras institui- ções cujas ações incidem sobre o mesmo território; 4. o Programa tem, como diretriz, incentivar os gestores a estabelecer procedimentos de convívio e tomada de decisão que desenvolvam as responsabilidades indi- viduais e sociais; o posicionamento dos gestores, que permeia todo esse estudo, demonstra o compromisso com o estabelecimento de uma cultura democrática em seus municípios, que dê voz e vez a todos os envolvidos nas políticas públicas, estejam eles ligados direta ou in- diretamente à educação, já que todos contribuem com seus distintos trabalhos para a vida em sociedade.5 C. Ações destacadas No entanto, todo o movimento desencadeado na bus- ca de uma gestão verdadeiramente democrática e eficaz só ganha sentido se colocado a serviço da democratiza- ção da aprendizagem, ou seja, da garantia de acesso e permanência na escola, com ensino de boa qualidade a todas as crianças e adolescentes. Seguem as ações que foram destacadas pelos gestores, na avaliação, para cum- prir essa premissa: a. o mapeamento dos espaços e das instituições educa- tivas e o planejamento de ações para sua utilização, visando proporcionar uma educação integral e abrir horizontes para além da sala de aula, é um ponto des- tacado pelo “Melhoria” no processo de formação. Os resultados apresentados neste estudo demonstram a ocorrência de trabalho educativo em diferentes es- paços, o que possibilita aos alunos, ao participarem de ações extra-escolares, a ampliação de seu reper- tório de saberes; b. repensar os currículos escolares, contextualizando-os é outro aspecto destacado durante a formação dos ges- tores. Espera-se que sejam planejadas coletivamente ações para reorganizar os currículos, de modo que pro- fessores e alunos problematizem a realidade local para poder transformá-la. Os resultados apontados neste es- tudo mostram que esse processo já está sendo desen- cadeado nas escolas pelos gestores municipais; c. repensar e contextualizar o currículo implicam uma me- lhor formação dos profissionais da educação; também a formação continuada dos professores faz parte da pauta de preocupações dos gestores, conforme se pode ave- riguar no estudo aqui apresentado; d. rendimento escolar dos alunos das escolas munici- pais: indicadores levantados e resultados. O estudo do rendimento escolar dos alunos teve início com a constituição de dois grupos: um Grupo Tratamen- to – GT, composto pelos municípios que participaram do Programa, e um Grupo Controle – GC, composto por muni- cípios não- participantes, mas com características seme- lhantes quanto à estimativa populacional e IDH-M. A partir daí, foi realizado o levantamento de indicado- res educacionais (taxas de aprovação, reprovação, aban- dono e distorção idade-série) dos municípios de ambos os grupos, nos anos anterior e posterior ao desenvolvimento do Programa. Para as Edições II e III, foram considerados também os índices de dois anos posteriores ao desenvol- vimento do Programa. Foi realizada, então, a comparação Acesso Existência de ações que visem: Permanência Existência de ações que visem: Qualidade Existência de ações que visem: ao atendimento à demanda escolar; à provisão de equipamentos e da estrutura física; ao fornecimento do transporte escolar. • • • ao controle da freqüência dos alunos; à adequação do calendário escolar; à recuperação da aprendizagem. • • • à formação de professores; à valorização de professores; à construção e /ou reconstrução de currí- culos; à elaboração e /ou revisão do projeto das escolas. • • • • QUADRO III INDICADORES RELATIVOS À APRENDIZAGEM 134 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 entre os resultados dos indicadores do GT e do GC para se verificar se havia diferença significativa entre eles. O Quadro IV apresenta os indicadores selecionados para a indicação de impactos nos resultados escolares dos municípios participantes do Programa. QUADRO IV INDICADORES RELATIVOS AOS RESULTADOS ESCOLARES RESULTADOS ESCOLARES 1. reprovação escolar 2. aprovação escolar 3. distorção idade-série 4. abandono escolar Foram calculadas as variações para cada indicador, por meio da diferença entre as taxas anterior e posterior, e, em seguida, foi utilizado o Test-T, instrumento estatís- tico que sinaliza se houve diferença significativa entre as médias do GT, e do GC para cada indicador. O teste foi re- alizado em oito grupos de municípios parelhados: para cada município do GT, havia um município do GC. O estudo estatístico mostrou que houve impactos positivos nos resultados escolares nas escolas de redes municipais beneficiárias do Programa Melhoria da Edu- cação no Município. Observou-se, ainda, que a ocorrência de impactos po- sitivos foi mais significativa quando o município: participa da modalidade direta de formação; elabora efetivamente a Avaliação Diagnóstica; • • elabora e implementa efetivamente o Plano de Ação Educativa, tendo, por base, o diagnóstico realizado. A seguir, por meio de tabelas, discriminaremos as situações que provocaram maior impacto, consideran- do os indicadores levantados: a. Municípios que realizaram a Avaliação Diagnóstica, elaboraram o Plano de Ação e participaram de mo- dalidade direta de formação: observou-se impacto nas taxas de aprovação, reprovação e abandono. A Tabela I apresenta as variações nas taxas de aban- dono, distorção idade-série, aprovação e reprovação dos municípios que realizaram Avaliação Diagnósti- ca e Plano de Ação, e participaram da modalidade di- reta de formação. b. Municípios que realizaram a Avaliação Diagnósti- ca e participaram da modalidade direta de forma- ção: observou-se impacto nas taxas de aprovação, reprovação e abandono. A Tabela II apresenta as variações nas taxas de aban- dono, distorção idade-série, aprovação e reprovação dos municípios que realizaram Avaliação Diagnóstica e participaram da modalidade direta de formação. Considerando-se esses resultados, conclui-se que a formação dos gestores para a elaboração e a implemen- tação de planos educacionais, a partir de diagnósticos voltados às realidades locais, conforme proposto pelo Programa Melhoria da Educação no Município, provoca ganhos no aproveitamento escolar dos alunos. Quando a realização da Avaliação Diagnóstica e do Plano de Ação é associada à modalidade direta de formação, os resul- tados se mostram mais significativos. • Situação do município n Média Desvio padrão Erro médio padrão Variação da taxa de distorção participação do programa 90 -10,234 7,115 0,75 não participação no programa 90 -10,264 9,070 0,956 Variação da taxa de aprovação participação do programa 90 2,636 7,595 0,801 não participação no programa 90 -1,953 9,697 1,022 Variação da taxa de reprovação participação do programa 90 -0,167 5,539 0,584 não participação no programa 90 2,669 7,039 0,742 Variação da taxa de abandono participação do programa 90 -2,469 5,055 0,533 não participação no programa 90 -0,716 5,793 0,611 * Variações nas taxas de abandono, distorção idade-série, aprovação e reprovação dos municípios que realizaram Avaliação Diagnóstica – AD e Plano de Ação – PA, e participaram da Modalidade Direta de Formação TABELA I AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA, PLANO DE AÇÃO E MODALIDADE DIRETA* 135 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Variação da taxa de Situação do município n Média Desvio padrão Erro médio padrão distorção participa do programa 101 -10,497 7,099 0,706 não participa do programa 101 -9,937 8,855 0,881 aprovação participa do programa 101 3,144 7,813 0,777 não participa do programa 101 -1,980 9,639 0,959 reprovação participa do programa 101 -0,199 5,293 0,527 não participa do programa 101 2,699 6,872 0,684 abandono participa do programa 101 -2945 5,635 0,561 não participa do programa 101 -0,719 5,743 0,571 TABELA II AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA E MODALIDADE DIRETA D. Resultados finais: apreciação Como secretária, em 2002 (...) aprendi com o Melhoria que, para se fazer um diagnóstico, é preciso consultar as fontes oficiais de dados e informações. Naquele tempo, nós estávamos precisando fazer o censo escolar. Decidimos fazê-lo com o envolvimento de todos da escola e a equipe da Secretaria de Educação. Este processo causou muita polêmica. Com base no IBGE e colocando esta atividade no calendário escolar, mapeamos toda a cidade. Cada escola fez o censo de sua comunidade. Esta medida radical de colocar o profes- sor para fazer o censo escolar provocou muitas reclamações, com a alegação de que eu poderia contratar uma empresa para fazer o trabalho. Meu argumento foi de que os educadores precisavam conhecer realmente o que estava acontecendo na vida de nossas famílias, com as crianças com deficiências, largados em casa, sem condições de freqüentar a escola (...). Mady Rolim Professora, ex-secretária municipal de educação – Itapeva, SP. O compromisso com a educação pública exige uma ação mais estratégica para o avanço da política edu- cacional brasileira, que é o de investimento na compe- tência gestora dos governos municipais. O desafio atu- al é o de formar gestores municipais de educação. A le- gitimidade e a assertividade de planos educacionais, sinalizados até mesmo pelo Plano Nacional de Educa- ção, dependem de gestores que saibam acessar e pro- cessar informações, assegurar a participação, definir metas consensuais e implementar e monitorar planos educacionais. Nesse sentido, o Programa Melhoria da Educação no Município nasceu com a pretensão de não se constituir em “mais um programa” a ser oferecido aos municípios. Seu objetivo é formar os gestores educacionais para es- truturar suas ações diante da multiplicidade de projetos e programas planejados “de fora” e alheios ao contex- to local. Entende-se que somente um gestor que exer- ça a reflexão e a crítica, com uma postura democrática e participativa, será capaz de selecionar, dentre tudo o que lhe é ofertado, o que convém à sua realidade, ten- do, como foco, os problemas locais e, como finalidade última, a melhor aprendizagem dos alunos. Outrossim, sabemos que impactos positivos nos sis- temas educacionais não advêm apenas de um programa e/ou de um projeto, pois muitas são as variáveis inter- venientes. As redes escolares locais são partes consti- tuintes do sistema nacional de educação que, por sua vez, sofre repercussões das condições socioeconômi- cas nacionais e internacionais adversas. No entanto, a magnitude dos problemas da educa- ção brasileira não pode levar à paralisia na busca de so- luções. Nesta procura, os princípios e as práticas demo- cráticas são apreendidos mediante o diálogo e o deba- te em torno de diferentes pontos de vista, legitimando as vozes, as experiências e as histórias daqueles que pouco são ouvidos. Só o “espaço das possibilidades” pode oferecer novos caminhos para o avanço das con- dições educacionais. O discurso por si só não provoca mudanças. Por isso, o “Melhoria” não se pauta na reflexão teórica apenas, ele também se volta para a prática reflexiva e para a for- mação de uma postura investigativa. A proposta se con- cretiza no apoio aos gestores municipais de educação para que superem a falta de perspectivas; encontrem soluções criativas para os problemas locais; racionali- zem e otimizem recursos financeiros e culturais; bus- quem novos recursos e articulem parcerias para desen- volver a educação municipal. 136 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Mudanças nas gestões educacionais vigentes, decor- rentes da participação dos municípios no Programa Me- lhoria da Educação, puderam ser observadas por intermé- dio deste estudo. A permanência e a consolidação dessas mudanças foram identificadas por meio de indicadores de desempenho sobre estratégias de gestão que consideram, por um lado, a leitura da realidade, operacionalizada na elaboração da Avaliação Diagnóstica, e, por outro, a in- tervenção nesta realidade, consolidada pela elaboração, implementação e avaliação do Plano de Ação Educativa. A marca do Programa se encontra justamente nas ações singulares, criadas e concretizadas pelas equipes gestoras em resposta às demandas e condições, igualmente singu- lares, dos diferentes contextos municipais. Para redirecionar as ações do Programa, a equipe do “Melhoria” se apóia nas avaliações de processo e de re- sultados, recolhidas no decorrer da formação. O Programa montou um banco de dados, em cooperação com o IBGE e com o INEP, que armazena informações quanto às ações desenvolvidas pelas equipes gestoras locais, os indicado- res sobre a realidade dos municípios e os indicadores de desempenho da educação estadual e municipal. A aposta que o Programa faz na elaboração e na im- plementação compartilhadas de planos educacionais, a partir de diagnósticos voltados às realidades locais, pro- voca, na ponta do sistema, ganhos na aprendizagem dos alunos. Para que isso aconteça, o fortalecimento dos ges- tores em seu papel estratégico na condução de políticas públicas, voltadas à garantia do direito à educação para todos, é fundamental. Com efeito, dentre os instrumentos que orientam o trabalho da SME, os mais apontados pelos gestores atu- ais foram: diagnóstico educacional – 69,08%; plano de ação – 62,65%; cronograma de atividades – 54,22%. O que de mais significativo aconteceu em relação à mudança na forma de gerir a educação foi seu efeito em cadeia, que pôde ser constatado estatisticamente na al- teração das taxas escolares. Comparando-se os municípios participantes do Pro- grama — Grupo Tratamento - GT — com os municípios que compuseram o Grupo Controle - GC, os dados mais significativos foram: a. média de variação positiva na taxa de aprovação e média de variação negativa nas taxas de reprovação e de abandono, nos municípios que fizeram a Ava- • • • liação Diagnóstica e participaram da modalidade de formação direta; b. média de variação positiva na taxa de aprovação e variação negativa nas taxas de reprovação e de aban- dono, nos municípios que fizeram a Avaliação Diag- nóstica e o Plano de Ação, e participaram da moda- lidade de formação direta. Para que essa diferença ocorresse, os gestores se va- leram de diversos procedimentos para buscar a universa- lização do acesso à escola e a permanência com apren- dizagem significativa: reorganização curricular, voltada para o contexto lo- cal e com participação dos professores e represen- tantes da comunidade — 69,48%; otimização de diferentes espaços e instituições, para o desenvolvimento de ações extra-escolares, consi- derando a educação integral das crianças e adoles- centes — 95%; valorização do magistério, com a oferta de cursos de formação inicial e continuada aos professores e a implantação do horário de trabalho coletivo — 94,78%; providências quanto ao transporte escolar — 55,82% e quanto aos projetos especiais para alunos que apresentam dificuldades — 62,24%; contato com as famílias de alunos com freqüência irregular — 94,37%; • • • • • 137 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 aliança com conselhos tutelares e promotorias pú- blicas — 75,10%. As repercussões observadas se mostram especial- mente positivas, considerando-se que, nas edições ava- liadas (II a V), a formação acontecia em apenas um ano, com dois encontros presenciais, totalizando 64 horas, e 30 horas de monitoramento à distância. Esse desenho, pelo curto tempo de permanência do Programa nos mu- nicípios, permitia orientações à distância somente até a elaboração da Avaliação Diagnóstica, o que acontecia no intervalo do primeiro para o segundo encontro, quando os municípios apresentavam, então, a proposta do Pla- no de Ação, não ocorrendo assim o monitoramento na implementação do Plano de Ação. Constatou-se, ainda, que as atuais gestões tra- zem marcas que evidenciam a consolidação de estra- tégias propostas pelo Programa, mesmo que os ges- tores não tenham participado pessoalmente do pro- cesso de formação. Para a leitura da realidade, visando ao planejamento das intervenções e ao monitoramento de resultados esco- lares, é procedimento sistemático, entre os gestores, a co- leta e a análise de informações, o levantamento de dados estatísticos no próprio município (91,97%) e as consultas a fontes oficiais de dados sobre os resultados educacio- nais: IBGE, MEC-INEP/SAEB, Prova Brasil (52,21%). A preocupação com a transparência, socializando as ações da SME e incentivando a participação da popula- ção nos encaminhamentos relativos às políticas públicas, vale-se de diferentes meios (reuniões – 93,17%; progra- mas de rádio – 51,81%; jornal – 32,13%). Esta é outra mar- ca detectada nas atuais gestões. Também se destaca o empenho na articulação para o estabelecimento de políticas públicas, decididas, em conjunto, com os diferentes atores e instituições, gover- namentais ou não, vinculadas à educação (outras secreta- rias municipais — 76,31%; conselhos e fóruns — 71,08%; escolas públicas estaduais — 70,68%). Especialmente em relação aos pais de alunos, percebe-se o esforço para aproximar família e escola, valorizando, a um só tempo, o envolvimento dos pais nas decisões escolares e a cul- tura local (81,53%). Uma informação importante é que 92% dos ex-partici- pantes do Programa continuam atuando na área da Edu- cação. E mais: 30,52% dos secretários de educação em exercício que responderam ao questionário foram parti- cipantes do Programa. • Enfim, o Programa Melhoria da Educação no Município enseja uma fotografia diagnóstica da realidade educacio- nal local, induzindo o governo municipal a eleger priorida- des educacionais e a escaloná-las no tempo. Introduz me- todologias de ação pautadas na formação-ação de agen- tes locais heterogêneos na função que exercem — gesto- res municipais, conselheiros, técnicos supervisores, agen- tes da escola e de ONGs — e na leitura de dados oficiais da realidade municipal, combinados com a investigação cartográfica, isto é, com a avaliação diagnóstica empíri- ca da realidade local. O exame da realidade, por meio de indicadores so- ciais — IBGE, INEP — combinados à verificação empírica, tem se tornado um ponto-chave da formação-ação. Outro ponto-chave incide na formulação de planos de ação. Am- bas as tarefas — Avaliação Diagnóstica e Plano de Ação Educativa — exigem a consulta à comunidade, a mobili- zação e a articulação com os demais programas e servi- ços do local. Aposta-se que a formação, assim contextu- alizada e consubstanciada na ação, desenvolve compe- tências de gestão imprescindíveis à melhoria duradoura da qualidade da educação, conjugando formação presen- cial e à distância. Referências BRANT DE CARVALHO, Maria do Carmo. Avaliação de projetos sociais. In: BRANT DE CARVALHO, Maria do Carmo (Org.). Avaliação: construindo parâmetros das ações socioeducativas. São Paulo: Cenpec, 2005. p. 47-75. Notas 1 Equipe de pesquisa: Vanda Noventa Fonseca (coordenadora), Ana Maria Aparecida de Abreu Guedes Pinto, Ana Maria Falsarella, Elisabete da As- sunção José, Maria Tereza Antonia Cárdia, Neusa Maria Mendes Borges e Wladilene Maryan Alves Duch. 2 A partir da Edição VIII, o Plano de Ação Educativa passou a ser chamado de Plano Integrado de Ação Educativa (PIAE). Neste texto, continua sendo chamado de Plano de Ação Educativa (PAE) ou, simplesmente, de Plano de Ação (PA). 3 O kit é composto por: Coleção Jovens e a Escola Pública; Formação em serviço — Guia de apoio às ações do Secretário de Educação; Guia de ações complementares à escola para crianças e adolescentes; Os municí- pios em busca da melhoria na educação; Coleção Raízes e Asas; Melhoria da educação no município — um trabalho coletivo (Coleção para Gestores Educacionais). 4 Segundo o IBGE, os municípios que têm até 20 mil habitantes são classi- ficados como municípios pequenos. 5 A utilização dos materiais pedagógicos, disponibilizados pelo “Melhoria”, também foi uma constatação positiva: de acordo com os depoentes, o material (em especial, o Raízes e Asas) é útil e atualizado, o que convalida a sistemática, adotada pelo Programa, de aliar, à formação, materiais pedagógicos que subsidiem as ações das equipes gestoras. 138 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Em 2002, com o lançamento do EducaRede no Brasil (www.educarede.org.br), nascia uma experiência inova- dora de inclusão social. Na atual sociedade da informa- ção e do conhecimento, o investimento em educação ga- nha destaque quando assume o compromisso com o de- senvolvimento pleno e com a oferta igualitária de opor- tunidades a todos os cidadãos. Ao lançar seu Portal inteiramente direcionado ao aten- dimento da escola pública, a Fundação Telefônica apos- tou não só na ampliação do acesso de uma parcela ex- pressiva da população à sociedade da informação, como também na formação de cidadãos capazes de lidar com as demandas das tecnologias digitais. Guiados pela crença de que a inclusão digital cons- titui fator de eqüidade social, a Fundação Telefônica e seus parceiros brasileiros — Cenpec - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, Fundação Carlos Alberto Vanzolini e Terra Networks — as- sumiram o desafio de difundir o uso pedagógico da In- ternet por meio do EducaRede. O Portal estrutura-se como um programa de educa- ção que atua na capacitação de educadores e no desen- volvimento de projetos de mobilização e sensibilização ESTUDO DE CASO: PROGRAMA EDUCAREDE Internet na escola, escola na Internet. Denise blanes Márcia Padilha Lotito Mílada Tonarelli Gonçalves Priscila Gonsales* de escolas, em parceria com governos locais. Em cinco anos de atividade, formou diretamente mais de dez mil professores e beneficiou 56 mil alunos da rede pública de ensino. Este artigo apresenta a reflexão acumulada no perío- do acerca de um dos temas mais importantes da educa- ção contemporânea: a relação entre Internet e aprendi- zagem, com base no conceito de letramento digital, para detalhar e explicitar as aprendizagens favorecidas pelo uso da Internet na escola. A partir da reflexão conceitual, apresentam-se: a concepção da avaliação no EducaRede, os processos utilizados e a sua matriz avaliativa. Internet e aprendizagem Os desafios enfrentados ao longo dos cinco primeiros anos do EducaRede no Brasil resultaram em um conjunto de reflexões sobre a relação entre Internet e aprendiza- gem. Se o século XXI oferece a possibilidade de a www — world-wide web, a interface gráfica da Internet — enri- quecer o modo de aprender e ensinar, é preciso proble- matizar sua relação com os processos desejáveis para a aprendizagem significativa e socialmente compartilha- da, pensando de que maneira os meios tecnológicos po- dem favorecer a produção do conhecimento em contex- tos educativos. No contexto da cultura das mídias, o professor, e até mesmo um especialista, perde a função de única fon- te de informação. A dinâmica que se estabelece na sala de aula — ou no laboratório de Informática — marcada por atividades múltiplas e simultâneas, favorece o diá- logo e a troca entre educadores e alunos, horizontali- zando as relações. Nesse cenário, cabe ao professor selecionar fontes de pesquisa, refletir criticamente sobre as informações * Denise Neri Blanes é doutora em Serviço Social e analista de projetos do Instituto de Estudos Especiais da PUC-SP. É es- pecialista e consultora na área de gestão, desenvolvimento, avaliação e monitoramento de programas e projetos sociais. Marcia Padilha foi coordenadora-executiva do EducaRede. É especia- lista no desenvolvimento de projetos com uso de Internet e de conteú- dos digitais para educadores e jovens. É consultora da ONG Midiativa. Mílada Tonarelli Gonçalves é psicóloga e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Desde 2000, traba- lha como pesquisadora do Cenpec, no Programa EducaRede Brasil. Priscila Gonsales é jornalista, pós-graduada em Comunicação e Edu- cação pela Universidade de São Paulo. Desde 2001, trabalha como pes- quisadora do Cenpec, na coordenação do Programa EducaRede Brasil. 139 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Ciberespaço e hipermídia O mundo que se acessa ao entrar na Internet, chama- do de ciberespaço, é formado por uma série de dados que aparece em forma de textos, sons ou imagens. Pode-se di- zer que um de seus grandes diferenciais é o fato de a orga- nização, a manipulação e a troca de informações depende- rem da interação do usuário, que pode atuar de maneiras diferenciadas para obter resultados com os recursos dis- poníveis na Rede. A isso se chama “navegar”. Navegar é mais do que visitar passivamente um univer- so pré-definido de informações. Ao navegar, o internauta interfere no ciberespaço, reorganizando o fluxo de infor- mações das quais ele é composto. Por isso, de certa for- ma, ele é um leitor-autor, pois, ao escolher suas ações na web com seus “cliques”, interfere no modo, no tempo e na ordem com que as informações são apresentadas. Do ponto de vista da educação, a navegação no cibe- respaço pode ser compreendida como uma ação de apren- dizagem exploratória e criativa, realizada de modo parti- cular e reflexivo: • exploratória porque permite ao aluno clicar livre- mente, ir e vir, repetir e experimentar caminhos; • criativa e particular porque exige definição de critérios, regras e lógicas que auxiliam na cons- trução do percurso e na obtenção de resultados significativos; • reflexivo, pois, ao definir um método de navegação, o aluno deve analisar e readequar suas estratégias e seu raciocínio, ainda que de maneira informal. Muitas possibilidades estão abertas no ciberespaço: • comunicar-se por meio de ferramentas, como bate- papos e fóruns; • participar de grupos e comunidades virtuais; • tornar-se autor de informações, por meio da cria- ção de páginas e sites, sejam elas com recursos simples de textos ou envolvendo recursos de simulações e bancos de dados, entre outros. Conhecer as diferentes ferramentas disponíveis no ci- berespaço possibilita ao professor usar a Internet de for- ma consciente e personalizada. Além de seu potencial de pesquisa e de comunicação, a Internet é um importante instrumento cognitivo, que potencializa os processos de ensino e aprendizagem. Para tanto, é necessário que o professor compreenda e saiba usar esse meio, definindo com clareza os objetivos que pretende atingir, planejan- encontradas, atribuir-lhes significados, contribuir para que os alunos identifiquem o que é relevante, orien- tar a publicação de trabalhos e qualificar a comunica- ção digital entre os alunos. Sua formação e experiência como educador lhe conferem condições para exercer o papel a que se tem exaustivamente chamado de profes- sor-mediador. A profusão de fontes de conhecimento e o aumento das oportunidades de comunicação ressaltam a centra- lidade do educador na proposição de desafios e contra- pontos ao aluno. Para isso, contudo, é necessário que o professor entenda a Internet como instrumento cogniti- vo, sabendo equilibrar seu uso para tarefas em que ela realmente faça a diferença. Ao aluno, coloca-se a oportunidade de assumir uma postura ativa na construção das habilidades necessárias para ter acesso às oportunidades que a Internet oferece. Assim, ao mesmo tempo em que fascina por ser uma po- derosa ferramenta para o alargamento da ação educativa em novos espaços de aprendizagem, esse meio torna ain- da mais complexas as tarefas de ensinar e aprender. Em face disso, o papel do educador é fundamental para estimular, nos alunos, uma ampla gama de apren- dizagens, além de provê-los da orientação e do apoio ne- cessários para que se tornem aptos a pesquisar, publi- car e interagir na Internet com segurança, de forma crí- tica e autônoma, dentro ou fora da escola — questões que demandam um processo de formação continuada do próprio professor. O PAPEL DO EDUCADOR Á FUNDAMENTAL PARA ESTIMULAR NOS ALUNOS UMA AMPLA GAMA DE APRENDIZAGENS ALÁM DE PROVÂ LOS DA ORIENTA¿»O E DO APOIO NECESS1RIOS PARA QUE SE TORNEM APTOS A PESQUISAR PUBLICAR E INTERAGIR NA )NTERNET COM SEGURAN¿A DE FORMA CRÅTICA E AUTÌNOMA DENTRO OU FORA DA ESCOLA q QUESTÍES QUE DEMANDAM UM PROCESSO DE FORMA¿»O CONTINUADA DO PRËPRIO PROFESSOR 140 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 do como avaliá-los durante o processo, de preferência com a participação dos alunos. Quantidade e qualidade: uma conquista Desde a segunda metade do século XIX, a informação converteu-se em importante mercadoria. Se, por um lado, existe a tecnologia para tornar disponível todo o conhe- cimento elaborado, por outro, a informação-mercadoria não favorece a construção do conhecimento, uma vez que é marcada por imediatismo, redundância de conte- údos, produtos de fácil e rápida leitura, pouco exigentes em termos de interpretação (Barato, 2005). Nesse contexto, a enorme disponibilidade de dados exige habilidades de apreensão rápida e simultânea, além da capacidade de relacionar informações em um raciocínio disperso, movido por links. No entanto, o com- pleto usufruto das informações impõe a necessidade de se recorrer cada vez mais à interpretação, à seleção e à crítica, ações que exigem concentração e análise. Além da familiaridade com formas de comunicação di- fusas e com a diversidade de linguagens, análise e con- centração são igualmente relevantes para a transforma- ção da informação em conhecimento pessoal e significa- tivo. As ferramentas são instrumentos para uso dos recur- sos de interatividade da Internet. Elas podem ser de: • busca — pesquisa na Rede; • comunicação — fórum, bate-papo; • publicação — como a Oficina de Criação e a Galeria de Arte do EducaRede. Aprender a pesquisar Enciclopédias, dicionários, livros, websites, bancos de imagens, animações, vídeos... São tantas as infor- mações disponíveis na Internet, em variados formatos e fontes, que não é difícil se perder entre as múltiplas ja- nelas abertas do navegador, em uma espécie de labirin- to digital. Nesse cenário, os novos modos de acessar e ler textos em enorme quantidade e codificados em dife- rentes linguagens tornam-se um grande desafio. Como chegar a algum lugar nesse labirinto? Como estabelecer unidade nesse universo de conexões? Como construir conhecimento nesse mar de informações? Para que a pesquisa na Internet seja significativa no processo de construção do conhecimento do aluno, evi- tando o famoso “copiar e colar”, é importante uma me- todologia focada no desenvolvimento de aprendizagens relacionadas a identificar e selecionar informações rele- vantes. Essas aprendizagens envolvem diversos recur- sos cognitivos, como levantamento de hipóteses, análi- se, comparação e síntese, e pressupõem outras habili- dades — leitura de textos não-lineares, como hipertex- tos, e alfabetização nos códigos das linguagens do am- biente hipermídia. Hiperlink e hipertexto Uma característica marcante da Internet é o hiperlink, ligação que permite que se vá de um texto a outro, ou de uma parte de um texto a outra desse mesmo texto, por meio de palavras ou imagens interligadas. Com o hiper- link, constroem-se hipertextos — textos organizados para uma leitura não-linear, isto é, com várias possibilidades de percurso, conforme associações de idéias, direciona- mento de interesse ou níveis de aprofundamento. Desse modo, o leitor acessa conteúdos elaborados por outras pessoas, porém, criando a própria rota, um caminho que produzirá sentidos de acordo com a nave- gação individual. Os links normalmente são planejados de modo a pro- porcionar ao leitor autonomia na escolha de direções, dentro de caminhos inicialmente previstos pelos auto- res daquele site ou documento. Além de ligarem trechos de um texto ou partes de um mesmo site, eles podem fa- zer a ponte entre vários sites. Nos processos de ensino e aprendizagem, do ponto de vista individual, links e hipertextos possibilitam que o aluno tenha a liberdade de caminhar em sua pesqui- sa de acordo com seu interesse e seu ritmo. Do ponto de vista coletivo, é enriquecedor que o trabalho do grupo seja complementado pelos percursos individuais e dife- renciados de cada aluno. Aprender a publicar Um recurso importante disponibilizado pela Internet é a possibilidade de publicar documentos de qualquer tipo (texto, som ou imagem) de forma organizada para o leitor. Pode-se publicar a partir de soluções sofisticadas ou simples, como as ferramentas para construção de si- tes pessoais ou blogs, voltadas especialmente para o pú- blico leigo. Essa facilidade torna a publicação na Internet uma ação bastante difundida nos dias de hoje. 141 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 rem, com seus alunos, as habilidades de comunicação e expressão e suas particularidades no meio digital. Os fóruns e bate-papos também têm um importante potencial para constituir novas aplicações pedagógicas. O fórum é um ambiente em que as mensagens podem ser postadas a qualquer momento, ficando registradas para leitura dos participantes do grupo. As mensagens são enviadas com o nome dos destinatários e geralmen- te ficam organizadas em listas de perguntas e respostas. Os participantes têm a liberdade para comentar mensa- gens já existentes ou inserir novas. Por ser um ambiente em que os tempos de escrita e leitura não influenciam no fluxo da comunicação, os fó- runs são adequados para a realização de debates e es- tudos aprofundados, com mensagens longas, sejam re- flexivas ou descritivas. Em relação às discussões presenciais, os fóruns em meio digital apresentam algumas vantagens para o uso pedagógico, como: • registro completo das participações, facilitando o acompanhamento do professor e a análise das opiniões dos alunos; • estímulo à escrita, como instrumento significativo de comunicação entre pares; • valorização do papel do aluno, com o incentivo à participação dos mais tímidos; • restrição da dispersão e da indisciplina, em razão da identificação das mensagens; Do ponto de vista da educação, trata-se de uma opor- tunidade de incrementar as habilidades de comunicação entre os jovens, tornado-os produtores e editores de con- teúdos próprios e de terceiros. Publicar na Internet é tam- bém uma forma de dar maior alcance aos produtos desen- volvidos na escola, oferecendo a alunos e professores a oportunidade de agir como promotores de cultura. A publicação das atividades escolares no ciberespa- ço também é um canal para expressar as diferentes rea- lidades, reafirmando questões de identidade, ao mesmo tempo que permite visualizar os contextos localizados e globalizados que caracterizam a atual era. Para assegurar qualidade no uso educacional des- se recurso, é necessário orientar os alunos a construir um significado próprio para a atividade de publicação de conteúdos na web, entendendo-a como uma opor- tunidade criativa de interferir em uma rede que congre- ga conhecimentos, diferentes modos de ver e de estar no mundo. Para publicar algo, é necessário planejar o que será divulgado, definir tamanhos e tipos de documentos, a na- vegação entre eles, num trabalho que envolve produção e edição das informações. É preciso que o aluno tenha algo importante a dizer e a publicar e que se veja como autor de informações e produtor de conhecimento. Aprender a se comunicar digitalmente O caráter interativo da Internet é um dos distintivos mais notáveis dessa mídia. Embora o debate seja am- plo entre estudiosos, pode-se dizer que a interativida- de diz respeito à relação homem-máquina (ou homem- software) e à relação homem-homem, mediada pela má- quina. Em seu primeiro aspecto, ela pode ser bastante simples, como nos casos de ação e reação em softwa- res de perguntas e respostas que indicam acertos e er- ros, ou complexa, quando o usuário modifica o conteú- do e a forma do ambiente no momento em que navega, em tempo real. O EducaRede adota a interação entre pes- soas em processos de comunicação com o uso de com- putadores ligados à Internet. Ambientes interativos como fóruns, salas de bate-papo e listas de discussão são os mais populares da Internet. Todos têm a finalidade de colocar grupos de pessoas em comunicação, mas as características de cada um os tornam mais adequados a este ou àquele tipo de uso. Eles repre- sentam uma oportunidade para os professores trabalha- 142 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 • apoio à concentração e à análise necessárias à participação no ambiente. O bate-papo permite que pessoas se comuniquem em tempo real: os participantes trocam mensagens uns com os outros abertamente, sendo propiciado a todos aces- sar as mensagens enviadas. Há ambientes em que dois participantes podem conversar de modo reservado. A co- municação sincrônica é a principal marca das atividades desenvolvidas no bate-papo. A troca entre as pessoas é bastante dinâmica, assemelhando-se à conversa face- a-face. A flexibilidade de encaminhamento do tema con- forme o interesse do grupo também é maior. Do ponto de vista cognitivo, a velocidade de escrita das mensagens demanda a habilidade de síntese, para a elaboração de mensagens curtas e objetivas. A agilidade na leitura e na classificação das temáticas já abordadas é exigida para evitar a repetição desnecessária de mensagens. Do ponto de vista social, cria uma auto-regulamen- tação no grupo, que demanda a adequação do tempo pessoal ao tempo do grupo, e a crítica em relação à in- tensidade da participação pessoal, viabilizando a parti- cipação de todos. Em relação à conversa presencial, o bate-papo tem em comum com o fórum a mudança na dinâmica entre os alunos. Se for gravado, também engloba a qualidade do registro. Ambos desenvolvem leitura, escrita e comu- nicação em meio digital, embora com exigências de ha- bilidades e competências distintas. Aprender em rede: comunidades virtuais Na construção coletiva, a Internet semeia novas pos- sibilidades educacionais, novos processos e novas es- truturas que estimulam, provocam e facilitam a colabo- ração, em que os saberes individuais são valorizados e contribuem para a construção, que é do grupo. A rede é, antes de tudo, um instrumento de comuni- cação entre pessoas, um laço virtual em que as comu- nidades auxiliam seus membros a aprender o que de- sejam saber. Os dados não representam senão a maté- ria-prima de um processo intelectual e social vivo, alta- mente elaborado. Enfim, toda a inteligência coletiva do mundo jamais dispensará a inteligência pessoal, o esforço individual e o tempo necessário para aprender, pesquisar, avaliar e se integrar a diversas comunidades, sejam elas virtu- ais ou não (Lévy, 1998, p. 2). Comunidades virtuais são ambientes planejados para a realização de trabalhos em grupo na Internet. Podem apresentar recursos de pesquisa, de publica- ção e de comunicação digital, combinando ferramen- tas de registro de produtos e processos, de comparti- lhamento entre colegas, de comunicação síncrona e assíncrona. Elas se estruturam conforme seus objetivos. Nas co- munidades de troca de informações, participantes orga- nizam-se para disponibilizar e obter informações sobre temas de interesse comum. Nas comunidades de apren- dizagem, são estabelecidos objetivos, metas e um pro- jeto pedagógico adequado para a construção colabora- tiva de determinado saber. Do ponto de vista da escola, os ambientes virtuais têm possibilitado o desenvolvimento de metodologias enriquecedoras que podem combinar, de forma origi- nal e personalizada, os recursos de pesquisa, de comu- nicação digital e de compartilhamento de registros vol- tados ao trabalho colaborativo. A ampliação do número e da diversidade de sujei- tos em um ambiente virtual, devido à superação de bar- reiras de tempo e espaço, intensifica a necessidade de negociação de sentidos ou, em outras palavras, de vi- vência de conflitos sociocognitivos, fundamentais para os processos de aprendizagem. É necessário compreender as comunidades virtuais e seu caráter colaborativo para utilizá-las com bom sen- so. Elas têm o potencial de gerar mudanças nos proces- sos de ensino e aprendizagem, nas formas de interação entre quem aprende e quem ensina e na relação com o conhecimento, gerando estratégias pedagógicas inusi- tadas. Também podem potencializar estratégias reco- nhecidamente importantes, como a cooperação, o re- gistro e o sentido social dos trabalhos escolares. !S COMUNIDADES VIRTUAIS TÂM O POTENCIAL DE GERAR MUDAN¿AS NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAS FORMAS DE INTERA¿»O ENTRE QUEM APRENDE E QUEM ENSINA E NA RELA¿»O COM O CONHECIMENTO GERANDO ESTRATÁGIAS PEDAGËGICAS INUSITADAS 143 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Mas nada disso ocorrerá se forem repetidos, nesses ambientes, os velhos modelos de aprendizagem isola- da, de comunicação unidirecional, ou se forem propos- tas tarefas cuja natureza não seja colaborativa. Nesse caso, a ação resultará em um artificialismo que gera o desinteresse e o baixo aproveitamento dos alunos (Barato, 2005). Uma faceta marcante das comunidades virtuais está ligada à promoção das relações sociais no âmbito da educação, uma vez que constituem um dos canais mais acessíveis para ampliar e consolidar redes pessoais, in- crementando aquilo que sociólogos chamam de “capi- tal social” e que determina as oportunidades culturais, profissionais e até mesmo afetivas das pessoas. O que avaliar: recortes e escolhas Avaliar significa estabelecer um processo contínuo e permanente que embasa a tomada de decisão quanto a propósitos, processos de ação e alocação de recursos, envolvendo concepção, imple- mentação e resultados do Programa (...). É também um exercício de controle social que possibilita transparência e publicização do Programa nas suas diversas facetas. Maria do Carmo Brant de Carvalho A avaliação no EducaRede é um processo sistemá- tico e contínuo, parte integrante das ações desenvolvi- das. Considera os conhecimentos acumulados, os refe- renciais teórico-metodológicos e os objetivos e resulta- dos a serem alcançados. Como todo processo avaliati- vo, estabelece recortes e escolhas para ganho de rele- vância e de viabilidade na execução. Desde antes do lançamento do Portal, desenvolveu- se um sistema de monitoramento concebido para regis- trar permanentemente as informações relevantes sobre o continuum das ações. Em termos quantitativos, o uso do EducaRede tem sido acompanhado por meio de rela- tórios com os números de páginas vistas, de visitantes únicos, de visitas, de cadastros e de postagens dos usu- ários nas seções interativas. As análises dos números alcançados e dos gráficos comparativos, gerados a partir deles, permitem monito- rar o impacto das ações e a eficácia das estratégias im- plantadas. Possibilitam também a previsão de metas e sua adequação aos recursos disponíveis, em termos de acessos e disseminação do Portal. A análise do cadastro dos participantes propicia o acompanhamento do per- fil dos usuários, explicitando a assertividade do públi- co a que se destina a iniciativa: a rede de educação pú- blica brasileira. Em termos qualitativos, a avaliação tem utilizado es- tratégias diversificadas para coletar informações que or- ganizam e explicitam elementos que possam ajudar na tarefa de aferir a pertinência das ações desenvolvidas. Dentre elas, destacam-se: grupos focais para entrevistas; pesquisas on line com usuários cadastrados; questioná- rios em ações presenciais; estudos de caso. Todo o processo já implantado favoreceu muitos en- sinamentos e permitiu a adequação de ações estratégi- cas, assim como o melhor entendimento das questões norteadoras relativas à Educação e Internet que direcio- nam as iniciativas do EducaRede. Em 2005, visando aprimorar o sistema de monitora- mento do Portal, a Fundação Telefônica promoveu entre os parceiros — Cenpec e Fundação Vanzolini — um pro- cesso de reflexão que permitiu rever pressupostos, obje- tivos e conceitos fundamentais da iniciativa, assim como metodologias empregadas até então. A dinâmica de trabalho incluiu um ciclo de leituras e debates entre as equipes e especialistas convidados, os professores Jarbas Novelino Barato, da Escola do Fu- turo da USP, e Rogério da Costa, da PUC-SP. Questões norteadoras que direcionam as iniciativas do Educarede Como e quanto o Portal colabora com o uso pedagógi- co da Internet nas escolas? Como a utilização sistemática e permanente da In- ternet e, em especial, do EducaRede, pode trazer bene- fícios à prática pedagógica na escola? O que professores e alunos necessitam para usar a Internet de forma positiva em processos de ensino e aprendizagem? Quais desses elementos estão presentes? Um dos produtos1 desse processo foi a construção da Matriz Avaliativa, um recurso gráfico-metodológico que apresenta o arranjo que se estabeleceu entre os elemen- tos, pressupostos, referenciais e estratégias a serem ava- liados, delimitando claramente as dimensões e os indi- cadores de monitoramento e avaliação. 144 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Matriz avaliativa Para construir a Matriz, o EducaRede partiu de sua mis- são — contribuir para a melhoria da qualidade da edu- cação pública por meio do uso pedagógico da Internet — e definiu dois aspectos fundamentais para alcançá-la. Tais aspectos são apontados como objetivos e se rela- cionam com a origem, a abrangência e os resultados es- perados por meio de sua consecução. Para cada objetivo, determinou-se uma ou mais “di- mensões”, traduzidas em “indicadores”, que permitem mensurar, de modo conciso e contínuo, os resultados e os avanços. Os “descritores” são coletados em fontes de pesquisa determinadas, como o próprio Portal, softwa- res específicos para a coleta de acessos e depoimentos de usuários, entre outras. Objetivos e Dimensões • Objetivo 1: tornar público o uso pedagógico da Internet na escola. Compreende colocar à disposição, democratizar, promover o uso da Internet como espaço de aprendizagem, por meio do EducaRede. Dimensões: “público usuário do EducaRede” e “redes de relacionamento do EducaRede”. • Objetivo 2: promover aprendizagens relacionadas ao letramento digital: pesquisa, comunicação e publicação. Dimensões: “ação pedagógica” e “ferramentas tecnológicas”. 145 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 A Matriz Avaliativa foi construída a partir dos valores e princípios certificados pelos parceiros do EducaRede, portanto, está impregnada dos valores presentes nas concepções de Educação e Internet que permeiam a ini- ciativa. Seu processo de elaboração foi deliberado, no sentido de perseguir os objetivos e a missão. Isso signi- fica que a Matriz tem sentido político, ético e valorativo, como qualquer processo avaliativo. Sabe-se, no entanto, que os valores indicados não são os únicos. Contudo, muitos indicadores e descrito- res apontados na Matriz podem contribuir para a refle- xão de outras ações de uso pedagógico da Internet e de inclusão digital. Ao leitor interessado, sugerimos consultar a matriz de avaliação do EducaRede no volume 1 da Coleção Educa- Rede, páginas 44 a 48, disponível para consulta e impres- são no Portal EducaRede . Letramento Digital Um uso aprimorado da Internet remete à com- preensão de sua utilidade como instrumento peda- gógico no desenvolvimento de aprendizagens rela- cionadas à pesquisa (buscar, selecionar e analisar informações), comunicação digital (trabalho em rede e a distância) e publicação de materiais (postura ativa e autoral). Referências BARATO, Jarbas N. Internet e educação nas sociedades da informação e da ima- gem. 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Para navegar no século XXI: tecnologias do imaginário e cibercultura. Porto Alegre: EDIPUCRS; Sulina, 2000. v. 1 (Col. Comunicação.) Notas 1 Foram produzidos textos e um DVD com a edição dos encontros e debates da equipe. 146 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 147 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 !VALIANDO NA PERSPECTIVA SOCIOCULTURAL * Tânia Regina de Souza Romero é doutora em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora de graduação e pós-graduação em Lingüística Aplicada da Universidade de Taubaté e do curso Avaliação na Visão Sociocultural– PUC/SP – COGEAE. ato de avaliar era, até bem pouco tempo, talvez uma das tarefas mais óbvias do processo de ensino-aprendizagem nas escolas: tradicionalmente, por meio de prova ou cha- mada oral, o professor verificava “o que ficou” do conteú- do “passado aos alunos”. A exigência da média sete “para passar” garantia que o aluno tinha “retido” 70% do total ensinado, ou seja, o suficiente para que se considerasse que ele aprendeu a maior parte do conteúdo. Então, por meios quantitativos e de modo extrema- mente simples, solucionava-se a grande questão, em tese, resguardando objetividade, precisão e neutralidade. Aliás, esses mesmos critérios deveriam estar presentes nas respostas dos alunos, que se constituía em um pro- cesso de “corta e cola” dos textos usados pelo professor ou do material didático selecionado para as aulas: a me- morização era o instrumento básico para se aprender. Até aí, nada de novo. Sabemos que essa prática é re- sultante do pensamento positivista que foca quantidade e produto, verificados ao final de um processo. Caracte- rizava-se, assim, um modelo educacional tecnicista em que os resultados e comportamentos deveriam ser clara- mente (entenda-se: objetivamente, sem dúvidas ou jul- gamentos de valor) observáveis e medidos com precisão para se promover a eficiência. A visão de educar, portanto, calcava-se no que Luckesi (1998) denominou de “pedagogia do exame”, responsá- vel até hoje pela preocupação maior dos alunos: “passar na prova, tirar nota boa”, contribuindo assim para o de- senvolvimento de indivíduos submissos ante o papel au- toritário, classificatório e excludente da avaliação (Hadji, 1994, 1997; Luckesi, 1998; Santos, 2003). Avaliação sig- nificava um veredicto dado ao aluno, uma vez que “a pro- va ou a-prova ou re-prova” (Romero, 2004, p. 28). ARTIGO Tânia Regina de Souza Romero* / 148 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Os verbos estão no passado, mas não se pode deixar de lembrar que muitos professores, assim como coorde- nadores e diretores de escolas públicas e particulares, continuam a praticar e incentivar esse tipo de avaliação, acreditando ser esta a orientação oficial. Lembre-se, entretanto, que há documentos — como a LDB, Lei 9394/96, Deliberação CEE 9/97 e Indicação CEE 8/97, Normas Regimentais Básicas (Parecer CEE 67/98) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998) — em que a avaliação é concebida como contínua e qualitativa, um elemento que integra a aprendizagem e o ensino, portanto, destinada a ser processual, para possibilitar a conscienti- zação das dificuldades dos alunos pelos professores e pe- los próprios alunos, de modo a orientar (re)planejamentos e estar a serviço do desenvolvimento de aprendizagem, re- negando seu caráter punitivo e excludente. Não acredito, em absoluto, que prosseguir com uma prática considerada hoje inadequada se deva à má von- tade dos educadores. É muito difícil mudar, pois, como nos lembra Bourdieu (1989), interiorizamos conjuntos de estruturas que refletem as condições sociais que adqui- rimos em situações vivenciadas em nosso percurso his- tórico. Ou seja, precisamos fazer um esforço muito gran- de para deixar de agir como estamos acostumados, para adotar (e acreditar em!) novas formas de ação das quais temos pouca (e, muitas vezes, nenhuma!) referência. Pois bem, o paradigma mudou: queremos alunos que saibam se expressar, colocar e defender seus pontos de vis- ta, cuidadosamente argumentados, levando em considera- ção posições divergentes em um mundo de múltiplas verda- des coexistentes que, de repente, expandiu-se e está, em tempo real, em nossa casa, ao alcance de uma tecla. Precisamos de sujeitos críticos, conscientes do mundo em que vivem e alertas, para não se deixarem modelar pas- sivamente diante de um discurso em que prevalecem inte- resses econômicos e políticos, “fundado em um pensamen- to único, pautado pela globalização” (Moita Lopes, 2003, p. 31). A pergunta que se faz é: como conseguir isso? Avaliando a avaliação Podemos iniciar uma tentativa de resposta a esta can- dente questão salientando que avaliação, na perspecti- va sociocultural, que hoje orienta os parâmetros educa- cionais em voga (a exemplo dos Parâmetros Curricula- res Nacionais, divulgados nacionalmente no final do úl- timo século), é entendida como parte inerente do pro- cesso ensino-aprendizagem. Isso equivale a dizer que o foco de nossa questão não é a avaliação em si, e sim a prática pedagógica, percebida como um processo inte- rativo em que se avalia para melhor se (inter)agir: a ava- liação dá subsídios para o professor, a escola, a comu- nidade, a família, o aluno encaminharem o desenvolvi- mento, levando em conta as premências sociais de nos- so tempo. Com isso, todos os envolvidos no processo são igualmente aprendizes. Salienta-se aqui a necessidade de um esforço co- letivo — pouco ou nada adiantarão esforços isolados. Busca-se uma mudança para que se cultive uma cultu- ra de aprendizagem que sirva como base para se enten- der a vida, engajar-se nela, saber se colocar diante dela e transformá-la, em consonância com as discussões de Paulo Freire (1970). Neste enfoque, deve-se procurar instaurar um clima de confiança em sala de aula, em que não cabem, por exemplo, os “testes-surpresa” para “pegar o aluno des- prevenido”. Se o aluno e o professor trabalham em co- laboração mútua, eles se vêem como aliados, não como ameaça. Então, também se entendem os erros e as tenta- tivas como partes do processo de aprendizagem e cons- cientização, além de incentivo à interação constante, com o discurso do professor voltado para a orientação. Em consonância com essa visão, está a idéia de que ser justo não significa dar exatamente o mesmo teste ou tarefa para todos os alunos. Ao contrário: é preciso levar em conta que diferentes alunos têm interesses, compreen- são, motivação, vivência e envolvimento também diferen- tes em relação a determinados tópicos e disciplinas. Ao professor, não se restringe mais a tarefa de só en- sinar conteúdos. A ele, cabe propor desafios, e, ao mes- mo tempo, dar os instrumentos ao aluno para lidar com eles, enfatizando o desenvolvimento de suas habilidades ou estratégias, tanto diretas quanto indiretas. Dentre as estratégias diretas, segundo destaca Re- becca Oxford (1990, p. 17, apud William e Burden, 1997, p. 153), encontram-se as de: A AVALIA¿»O D1 SUBSÅDIOS PARA O PROFESSOR A ESCOLA A COMUNIDADE A FAMÅLIA O ALUNO ENCAMINHAREM O DESENVOLVIMENTO LEVANDO EM CONTA AS PREMÂNCIAS SOCIAIS DE NOSSO TEMPO 149 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 a. memória como criar imagens e sons, organizar material por ca- tegorias, fazer relações mentais, revisar, criar mne- mônicos; b. cognição como praticar, receber e enviar mensagens, analisar e raciocinar, criar estruturas facilitadoras; c. compensatórias como inferir de maneira inteligente ou superar limi- tações para falar e escrever. As três estratégias indiretas, elencadas pela autora, são: a. metacognitivas como planejar o tempo de estudo e auto-avaliar pro- gressos e conquistas; b. sociais como fazer perguntas, trabalhar em colaboração com outros; c. afetivas como diminuir a ansiedade, encorajar-se e confiar em si. Um esforço inicial para realizar a mudança é o exame da própria prática avaliativa, numa reflexão crítica dire- cionada inicialmente a se entender os princípios e cren- ças que a regem. Em cursos dedicados a discutir a ava- liação, seguindo os passos da educadora Maria Antonie- ta Alba Celani, percebemos que o ponto de partida para a transformação deve ser a prática. Assim, é fundamental que o professor, junto com seu grupo institucional, inicie o processo de transfor- mação tentando entender os princípios que fundamen- tam sua prática para, somente depois, empenhar-se no processo dialético com outras fundamentações teóri- cas. Para orientar o processo de reflexão crítica, par- tindo-se da análise de um instrumento (ou conjunto de instrumentos) de avaliação, são oferecidas, a se- guir, algumas sugestões que retomam as questões até aqui discutidas. Por meio das seguintes perguntas, entendemos que é relevante verificar se o instrumento — ou o conjunto de instrumentos — de avaliação: 1. É coerente com os princípios de ensino-aprendizagem adotados pela instituição: sua instituição considera- se construtivista, socioconstrutivista, por exemplo? 2. Reflete o projeto político-pedagógico da instituição: a ação educacional direciona-se ao desenvolvimento de quais características no educando? Qual é a missão a que a Instituição se propõe? As ações didático-pe- dagógicas convergem, direcionam-se a este fim? 3. É parte integrante e intrínseca do processo educacio- nal, ou seja: faz parte do processo de ensino-apren- dizagem contínuo ou é colocado de forma isolada, como verificação de um produto final? 4. Destina-se a verificar necessidades e/ou interesses dos alunos, ou seja: tem a função de orientar um planejamento negociado? 5. Serve para se saber quais são os conhecimentos prévios dos alunos: esse tipo de instrumento de avaliação estaria atuando como iniciador de interação significativa? 6. É válido para se entender o processo de aprendizagem dos alunos, para que o professor possa trabalhar o desenvolvimento de habilidades metacognitivas, por exemplo? 7. É útil para investigar qualitativamente o entendimen- to que o aluno construiu? Em outras palavras, esse instrumento não deve ser construído com perguntas fechadas, exigindo respostas lacônicas? 8. Serve para averiguar a qualidade de ensino oferecido? 9. É adequado para o professor planejar sua regulação? 10. Investiga se determinada habilidade foi adquirida? 11. Examina se houve transferência? 12. Prevê uma rediscussão das questões colocadas, visando à ampliação do entendimento do item trabalhado? 13. Proporciona a auto-avaliação procedimental (rela- cionada ao “como fazer”), atitudinal (relacionada à maneira de a pessoa se colocar socialmente) e conceitual (referente ao conteúdo trabalhado)? 14. Trabalha com a habilidade de raciocínio? 15. Propicia ao aluno a reflexão e a expressão de sua opinião, fundamentando-a? 16. Possibilita que o aluno formule questões ou levante hipóteses? 17. Leva o aluno a analisar ou sintetizar algo? 18. As instruções são claras? 19. Os critérios são explícitos? Esta observação remete a uma política de transparência, segundo a qual o aluno deve ter um entendimento claro do que será levado em conta para avaliar seu trabalho. Esta compreensão a respeito dos critérios pode, inclusive, ajudar o aluno a avaliar seu próprio trabalho, desenvolvendo nele uma conscientização metacognitiva, auxiliada pela explicitação do professor. 150 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 20.Engloba várias áreas do conhecimento? 21. Faz com que o aluno pesquise ou considere os pontos de vista divergentes? 22.É familiar para o aluno, ele entende como este instru- mento funciona e deve ser trabalhado? 23.Ensina algo para o aluno? Se sim, o quê? 24.Ensina algo para o professor, instituição ou comuni- dade? Se sim, o quê? 25. Está sendo usado em momento adequado no desen- volvimento do curso ou da disciplina? Essa listagem pode e deve ser adaptada ao contex- to peculiar de cada escola. Observe-se que várias ques- tões se sobrepõem e são, inclusive, redundantes, pois pretendem incentivar uma (re)análise cuidadosa da prá- tica de avaliação que está sendo utilizada pelo profes- sor ou instituição. Além disso, devemos apontar, como o leitor já deve ter percebido, que um só instrumento não será capaz de satisfazer todos os pontos indicados por esses 25 itens. Isso se explica por acreditarmos que ape- nas um instrumento ou poucos não coadunam com a vi- são de que a avaliação é parte contínua e integrante do processo de ensino-aprendizagem. Alguns exemplos para a prática A título de ilustração, daremos alguns exemplos de avaliações que, em conjunto com outras ações didático-pedagógicas coerentes, podem caminhar na direção do que foi discutido até aqui. Elas são contribuições de leituras diversas sobre avaliação e de professores atuantes na prática educativa. A. Meio ambiente 1. Em uma escola da Grande São Paulo, um aluno comentou, em classe, quando estavam sendo dis- cutidas formas de não se desperdiçar água, que a propaganda de uma marca de chuveiro, veiculada na televisão naquela época, incentivava as pesso- as a se entregarem ao prazer de banhos longos. A propaganda, afirmou o aluno, estava na contramão de campanhas contra o desperdício. Aproveitando a sua contribuição, a classe resolveu pesquisar o endereço do fabricante do chuveiro para lhe enviar uma carta. A carta foi preparada pela classe toda, sob a orientação da professora de Português, que cuidou para que ela fosse respeitosa, contivesse o problema percebido e mencionasse o poder da mídia para influenciar as pessoas. Pedia-se ainda para que medidas fossem tomadas. Rapidamente, a propaganda foi retirada do ar. 2. Em uma escola da periferia da cidade de São Paulo, chegou a notícia de que o bairro fora escolhido para abrigar um dos lixões da área metropolitana. Preocupados com o impacto am- biental e as possíveis conseqüências sanitárias que daí pudessem advir para os moradores, os alunos debateram a questão em sala de aula e decidiram envolver a comunidade, conversar com as autoridades municipais e promover passeatas, além de chamar a imprensa para testemunhar as iniciativas. O lixão não foi para este bairro. 3. Uma professora de Inglês levou, a pedido de um grupo de alunas, uma música do grupo Backstreet Boys. A escolha foi contestada por outros grupos da sala que alegaram não gostar daquele tipo de música, insinuando que os componentes do grupo eram homossexuais. Estas diferenças de opinião e expressão de preconceito contra orientações sexuais consideradas “certas” deram margem a discussões frutíferas quanto à diversidade, exclu- são e negociação. E, para subsidiar as discussões, foram usados outros textos, também em inglês, pesquisados na Internet pelos alunos, que falavam sobre a vida dos componentes do grupo musical, violência em conseqüência de preconceitos etc. Estes são exemplos de ações cidadãs. Segundo Clough e Holden (2002), para que isso ocorra, é ne- cessário que a escola atue de forma que os alunos desenvolvam: a. confiança para emitir opiniões; /S PORTIFËLIOS POSSIBILITAM O DESENVOLVIMENTO DE APRENDIZAGEM AUTO REGULADA NEGOCIA¿»O DE SIGNIÙCADOS PROCESSOS E PRODUTOS COM O PROFESSOR E OPORTUNIDADES DE REÚEX»O CONJUNTA 151 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 cognitivo da auto-avaliação. No terceiro exemplo, já se prevê espaço para essa interação. 1. Auto-avaliação de projeto • O que você gostou do projeto? • O que poderia ter feito com que este projeto fosse melhor? • De que você mais se orgulha? Por quê? • Como você se dedicou ao projeto? • O que foi difícil? • O que você sabe agora que não sabia antes? (Seja específico.) • Que nota você acha que seu grupo merece neste projeto? Justifique sua resposta. 2. Apresentação para a professora do próximo ano. Escreva uma carta se apresentando para a sua professora do próximo ano. Escolha seu melhor trabalho do portfólio e anexe a sua carta. Des- creva seus pontos fortes como leitor e escritor, usando o trabalho anexo como referência. 3. Com base nesta prova [de Biologia] que você acabou de fazer: 1. Avalie sua aprendizagem. 2. Você necessita de orientação da professora? Em qual conteúdo? 3. O que você deve fazer para melhorar ou continuar melhorando o seu desempenho? Comentários da professora: .............................. ............................................................................... D. História do Brasil 1. Em seguimento a uma discussão sobre assinatura da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, res- ponda: qual a conseqüência desse ato? Explique. 2. Suponhamos que você tivesse a possibilidade de viajar em uma máquina do tempo e voltasse para 1889, no Rio de Janeiro, e lá atuasse como repórter de um importante jornal. Escreva um artigo de/para jornal noticiando a Proclamação de Independência. b. habilidades para reconhecer pontos de vista e/ou opiniões diferentes das suas; c. habilidades de pensamento crítico, dialético, e argumentação embasada; d. habilidades de colaboração e resolução de con- flitos, quando discutir acordos com outros; e. habilidade de participação democrática; f. experiência em tomar iniciativas para conseguir mudanças. Pode-se verificar que os três casos relatados puderam propiciar o desenvolvimento desses seis requisitos, a partir de situações reais. B. Portfólios Em vários níveis de escolaridade, os portfólios vêm sendo usados para a avaliação, segundo relatam Paris e Ayres (1994). Esses instrumentos têm encon- trado grande respaldo de educadores por se cons- tituírem em alternativa mais significativa a formas quantitativas de avaliação, além de, potencialmente, possibilitarem, muito além de uma amostragem estática, o desenvolvimento de aprendizagem auto- regulada, o envolvimento do aluno e a negociação de significados, processos e produtos com o professor e oportunidades de reflexão conjunta. Shores e Grace (2001) consideram os portfólios “uma coleção de itens que revela, conforme o tem- po passa, os diferentes aspectos do crescimento e desenvolvimento de cada [aluno]”. É importante, entretanto, ressaltam as autoras, que se estipule uma política de coleta de trabalhos consistente com o projeto político-pedagógico da instituição. C. Auto-avaliação Destacam-se, a seguir, duas contribuições de Paris e Ayres (1994, p. 78 e 83): a primeira deve ser aplicada logo após a realização de um projeto em grupo; a segunda favorece também o desenvolvimen- to de escrita com propósito real. O terceiro exemplo foi elaborado por uma profissional especialista em avaliação. Para os dois primeiros exemplos, em acréscimo, sugerimos que as produções dos alunos sejam posteriormente discutidas com o professor para que se confrontem, possivelmente, opiniões diferentes e também para orientar o processo meta- 152 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Ambas as questões requerem que o aluno faça avaliações das situações apresentadas, expresse- se e exponha seus pontos de vista, embasando-os criticamente. São questões abertas que propiciam o desenvolvimento da linguagem e funções psicológicas superiores, em termos vygotskianos, como: pensa- mento abstrato, raciocínio dedutivo, capacidade de se relacionar e transferir conhecimento. E. Projeto conjunto: Geografia, História, Inglês e Informática 1. Escolha três países distintos em que a língua inglesa é falada (exceto a Inglaterra). 2. Pesquise as razões históricas da introdução da língua inglesa nestes países. 3. Pesquise as características gerais e as particula- ridades de cada país. 3. Faça um resumo das especificidades de cada país e compare-as. 4. Prepare um pôster para ser afixado no corredor da escola e apresentado oralmente para os colegas, resumindo sua pesquisa. Este projeto foi realizado em duplas, com a cola- boração dos professores das disciplinas envolvidas ou de um único professor-orientador escolhido pelos grupos. Os alunos foram orientados, entre outras necessidades, quanto aos instrumentos básicos de pesquisa e busca na Internet, redação e organização adequadas para o pôster. Com esta tarefa, incentiva- ram-se, por exemplo, a criatividade, a iniciativa de busca, a variedade de interesses, a organização de sínteses e a relação interpessoal. Algumas considerações A discussão, dúvidas e buscas sobre a avaliação são tão infindas, propensas ao debate e polêmicas quan- to o próprio processo de ensino-aprendizagem. Não há receita pronta, um “faça assim que vai dar certo”, por- que a vida (seus vários prismas, significados, sentidos e premências) é multifacetada. Felizmente! Resguarda- se, assim, nossa ação atenta e crítica ante as nossas ações passadas e futuras como profissionais da educa- ção, comprometidos com a missão que assumimos para nós mesmos. Olhando por esse ângulo, estas considerações têm o propósito de instigar novas discussões e, por conseguin- te, incentivar pesquisa, diálogo, reflexão. Para finalizar, recorremos a Maria Antonieta Alba Ce- lani (2000, comunicação pessoal). Segundo ela, a ava- liação não deve se desvincular do entendimento que, na escola, “conteúdos são meios para que os alunos desen- volvam as capacidades que lhes permitam produzir bens culturais, sociais e econômicos e deles usufruir”. Referências BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro; Lisboa: Bertrand Brasil; Difel, 1989. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução. Brasília: MEC/SEF, 1998. CLOUGH, N.; HOLDEN, C. Education for citizenship: ideas intoaction. London: Routledge Falmer, 2002. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. HADJI, A. A avaliação, regras do jogo. Das intenções aos instrumentos. Portugal: Porto Editora, 1994. LUCKESI, C. Avaliação da aprendizagem escolar. 8. ed. São Paulo: Cortez, 1998. MOITA LOPES, L. P. A nova ordem mundial, os parâmetros curriculares nacionais e o ensino de inglês no Brasil: a base intelectual para uma ação política. In: RAMOS, L. Bárbara; RAMOS, R. de C. G. (Org.). Reflexão e ações no ensino- aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de Letras, 2003. PARIS, S. G.; AYRES, L. R. Becoming reflective students and teachers with por- tfolios and authentic assessment. Washington: American Psychological Association, 1994. PERRENOUD, P. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens – entre duas lógicas. Porto Alegre: Artmed, 1999. ROMERO, T. R. S. Os desafios da avaliação: contribuições da visão sociocul- tural. Contexturas: ensino crítico de língua inglesa, São Paulo, Apliesp (Associação de Professores de Língua Inglesa do Estado de São Paulo), n. 7, 2003/2004. SANTOS, P. S. Avaliação: representações da instituição, dos professores e alunos. 2003. Dissertação (Mestrado) - LAEL, PUC-SP, São Paulo, 2003. SHEPARD, L. The role of assessment in a learning culture. Educational Researcher, v. 2, n. 7, p. 4-14, out. 2000. SHORES, E.; GRACE, C. Manual de portfólio: um guia passo-a-passo para o pro- fessor. Porto Alegre: ArtMed, 2001. WILLIAM, M.; BURDEN, R. L. Psychology for language teachers. Cambridge: Cam- bridge University Press, 1997. Para saber mais Curso de avaliação na visão sociocultural, no COGEAE, PUC-SP, e no site: . Notas 1 Segundo Perrenoud (1999, p. 89), regulação é a ação intencional do professor ou educador, “cuja intenção seria determinar ao mesmo tempo o caminho já percorrido por cada um [o aluno] e aquele que resta percorrer com vistas a intervir para otimizar os processos de aprendizagem em curso”. 2 Diz-se que houve transferência de conhecimento quando se é capaz de usar o conhecimento adquirido em situações novas, o que requer flexibilidade, novas relações e generalizações (Shepard, 2000). 153 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 RELATO DE PRÁTICA: PRÊMIO CULTURA VIVA Critérios para premiar tradições brasileiras Maria do Carmo Brant de Carvalho* Em um processo seletivo, a avaliação tem o propósito de julgar o mérito de uma ação a partir de um determi- nado referencial valorativo, explícito e aceito pelos su- jeitos que avaliam. Avaliar, portanto, significa julgar com base em um referencial de valores. Para o processo de seleção das iniciativas inscritas na primeira edição do Prêmio Cultura Viva, buscou-se uma avaliação pautada na idéia de que a cultura na comuni- dade potencializa os processos de inclusão social, au- tonomia, empoderamento e protagonismo: • cultura é mediação insubstituível para a construção da cidadania e o desenvolvimento sustentável das comunidades, é força na coesão social; • cultura é conhecimento e aprendizado. Em outras pa- lavras, em qualquer sociedade, a cultura ressignifica- se enquanto conhecimento e aprendizado comparti- lhados; • cultura pode se transmutar em economia solidária, geração de trabalho e renda. O Ministério da Cultura do Brasil, na gestão de Gilber- to Gil, procura destacar a relação entre cultura e cidada- nia, potencializando as inúmeras práticas culturais de- senvolvidas pela sociedade. Nesse sentido, implemen- tou, no território brasileiro, o Programa Nacional de Cul- tura, Educação e Cidadania – Cultura Viva – cuja princi- pal ação são os Pontos de Cultura. Ao final de 2005, lançou o Prêmio Cultura Viva, com a intenção de dar visibilidade ao tamanho e à diversida- de das práticas culturais que pulsam em cada canto do país. Um Brasil feito da cultura que faz o Brasil. O processo de avaliação das iniciativas inscritas foi de extrema importância, pois se constituiu em um meio de mobilização e reconhecimento de práticas que resul- tam dos saberes e fazeres das comunidades. Assim, o processo, mais que a premiação em si, foi o “coração” do Prêmio Cultura Viva, já que permitiu que fossem al- cançados objetivos maiores, como: • o desenvolvimento de consensos para a avaliação de iniciativas culturais: avaliação participativa, realiza- da de modo descentralizado; • a produção de um mapeamento nacional do “estado da arte” das iniciativas culturais; • a indução de políticas públicas mais robustas e as- sertivas no que se refere ao fortalecimento da cultu- ra, de forma abrangente, no país. As etapas de seleção do Prêmio Cultura Viva O processo de avaliação dividiu-se em quatro etapas: 1. Análise preliminar Teve por objetivo verificar a compatibilidade das iniciati- vas inscritas com os requisitos definidos no Regulamen- to, desclassificando aquelas que não estivessem de acor- do com este documento. 2. Seleção das 100 iniciativas semifinalistas As iniciativas, classificadas na análise preliminar, foram avaliadas com base nos indicadores de análise estabe- lecidos no Manual de Avaliação de Iniciativas Culturais do Prêmio Cultura Viva. Para cada regional, foi composta uma equipe de ava- liadores locais que realizou a seleção a partir da leitura das fichas de inscrição e dos materiais complementares, segundo as orientações propostas no manual. * Maria do Carmo Brant de Carvalho é coordenadora geral do Cenpec, doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. 154 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Feita de maneira regionalizada, a seleção partiu de um critério de proporcionalidade, ou seja, o número de semifinalistas de cada regional foi proporcional ao res- pectivo número de inscrições em cada categoria. 3. Seleção das 30 iniciativas finalistas A seleção das iniciativas finalistas foi realizada por um Comitê Técnico, com base na leitura das fichas de inscri- ção, dos materiais complementares e dos pareceres pro- duzidos pelos avaliadores regionais. O Comitê Técnico foi composto por representantes de institutos, fundações, universidades, organizações gover- namentais e da sociedade civil, além de profissionais de reconhecida atuação na área da cultura. 4. Seleção nacional das nove iniciativas premiadas Fase A – Os participantes de cada uma das 30 iniciati- vas finalistas receberam a visita de um profissional da Comissão Técnica de Visitas, que apresentou um relató- rio com elementos complementares para a avaliação da Comissão Julgadora. Fase B – Seleção das nove iniciativas vencedoras (três em cada categoria), realizada pela Comissão Julgadora, por meio da leitura das fichas de inscrição e materiais com- plementares, da documentação produzida pelos avalia- dores regionais e pelo Comitê Técnico, além dos relató- rios elaborados pela Comissão Técnica de Visitas. A análise documental e visitas técnicas A análise preliminar, a seleção dos 100 semifinalistas e a dos 30 finalistas foram baseadas na avaliação documen- tal — ficha de inscrição contendo informações detalhadas de cada iniciativa inscrita e material complementar. A análise documental conjuga duas perspectivas: uma, mais objetiva, considera as informações factuais, como conteúdo, estratégias, processo e resultados da ação; e outra, subjetiva, capta valores, atitudes, condu- tas, motivações e tensões. Cada iniciativa foi analisada buscando-se compre- ender a sua importância no contexto em que se encon- tra inserida. Sem dúvida, a diversidade de experiências e de conhecimentos acumulados pelos avaliadores trou- xe olhares objetivos e subjetivos também variados. Se, por um lado, isso foi um risco, por outro, constituiu a ri- queza do processo avaliativo implementado. Na quarta e última fase, foram realizadas visitas téc- nicas aos locais das 30 iniciativas finalistas recomenda- das, para atestar os pareceres avaliativos produzidos, confirmando ou não a seleção proposta. Os avaliadores No processo de avaliação, a convocação de agentes sociais ligados à cultura, à política social, à gestão go- vernamental e às organizações da sociedade civil demo- cratizou e diversificou o olhar sobre as iniciativas cultu- 155 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 rais presentes na sociedade brasileira, tornando o pro- cesso mais participativo e transparente, e criando uma rede de parceiros na produção dos retratos de cultura deste país. Respeitando as características socioculturais e geo- gráficas do território, foram estabelecidas três regionais: Nordeste, Sul e Sudeste, Norte e Centro-Oeste. Este processo gerou alguns produtos sociopolíticos da maior importância: • valorização de práticas culturais; • fortalecimento de políticas locais e regionais de cul- tura; • desenvolvimento de competências em torno da pró- pria avaliação de iniciativas culturais. Precedendo o trabalho de avaliação, cabe destacar que os 72 avaliadores regionais receberam formação pre- sencial, visando a uma discussão mais aprofundada a respeito dos critérios definidos no manual. O processo O Manual de Avaliação de Iniciativas Culturais do Prê- mio Cultura Viva orientou a avaliação/seleção, apontan- do critérios e valores que seriam os parâmetros da aná- lise das iniciativas culturais inscritas. Se, por um lado, o manual organiza indicadores de avaliação no campo da cultura, por outro, não encerra o assunto. Ao contrário: abre possibilidades, suscita re- flexões e revisões, permitindo a construção de olhares mais atentos e cuidadosos sobre a riqueza das manifes- tações culturais brasileiras. Além disso, traz indicadores para avaliar, em sua to- talidade, a iniciativa inscrita, situada e datada neste Bra- sil de regiões absolutamente distintas. Introduz, igual- mente, indicadores mais específicos para cada catego- ria: Tecnologia Sociocultural, Manifestação Tradicional e Gestão Pública. Dada a variabilidade de sujeitos e propostas, e con- siderando, sobretudo, a diversidade regional e a pre- sença dos grupos informais, foi necessária uma boa dose de flexibilidade durante o processo de seleção. Não é possível, por exemplo, esperar portfólios com- pletos dos grupos informais, nem dos apresentados pela maioria das organizações constituídas legalmen- te. Por isso, foram solicitados materiais complementa- res, e não portfólios. Houve iniciativas apresentadas com documentação e escritas irrepreensíveis; outras, com lacunas documen- tais e redação muitas vezes incompreensível, mas que si- nalizavam criatividade e potencialidade. Foram necessá- rias, portanto, a experiência e a sensibilidade dos avalia- dores para a compreensão das várias desigualdades re- gionais/locais, do isolamento de muitas dessas iniciati- vas, sua rara presença no espaço público maior e, entre- tanto, sua forte inserção no espaço público das comuni- dades. Cultura é pertencimento. Portanto, adquire a cor e a identidade das comunidades. Outra peculiaridade importante é a de que a cultura é expressa por meio de projetos que têm sentido multisse- torial, isto é, aparece às vezes na interface com a educa- ção ou com a área de combate à pobreza, ora como de- senvolvimento local, ora, ainda, como empoderamento de grupos considerados minorias, ditadas por gênero, etnia, faixa etária... Assim, é necessário compreender que cultura é a me- diação fundamental em projetos das demais áreas de po- líticas públicas que visam ao exercício de cidadania, à educação popular e ao desenvolvimento local. O parecer avaliativo/seletivo, no âmbito do Prê- mio Cultura Viva, incidiu na pertinência, consistên- cia, coerência, legitimidade e peso social da iniciati- va para a comunidade, aferindo sua relevância e be- leza como expressão de identidade e pertencimento à comunidade. $ADA A VARIABILIDADE DE SUJEITOS E PROPOSTAS E CONSIDERANDO SOBRETUDO A DIVERSIDADE REGIONAL E A PRESEN¿A DOS GRUPOS INFORMAIS FOI NECESS1RIA UMA BOA DOSE DE ÚEXIBILIDADE DURANTE O PROCESSO DE SELE¿»O .»O Á POSSÅVEL POR EXEMPLO ESPERAR PORTFËLIOS COMPLETOS DOS GRUPOS INFORMAIS NEM DOS APRESENTADOS PELA MAIORIA DAS ORGANIZA¿ÍES CONSTITUÅDAS LEGALMENTE 155 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 156 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 O ser humano se avalia e é avaliado diariamente. Ao final de cada dia, imperceptivelmente, cada um de nós está com bom ou mau humor. Com certeza, essa sensação tem algo a ver com o balanço das avaliações que fizemos e que fizeram de nós mesmos: - Terei dormido bem? - Chegarei a tempo ao trabalho? - O chefe e/ou os chefiados estarão receptivos? - Estou desempenhando bem meu ofício? - Esta é a roupa que devo usar na festa? - Estou elegante? - Saí-me bem na reunião? Quantas outras perguntas nos fazemos e quantas fazemos em relação aos outros! Somos seres avalia- tivos. O tempo todo. No extremo, podemos chegar à maledicência... Apesar dessa intensa convivência, temos medo da avaliação. Tememos tanto avaliar quanto sermos avaliados. Se isso acontece informalmente no dia-a-dia, o que não acontece na atividade de avaliação em educação? Alunos, professores, gestores, administradores, todos são questionados quando os resultados das avaliações escolares ficam abaixo dos desejados. E então... Certamente, refletir sobre esse fenômeno pode diminuir nossa ansiedade tanto ao avaliarmos quanto ao sermos avaliados. Mas a questão não é apenas diminuir a ten- são. A questão é: o que fazer com os resultados de uma avaliação, seja ela pessoal, seja profissional? Esta edição do Cadernos Cenpec oferece um sem- número de argumentos para que enfrentemos profis- sionalmente o tema da avaliação em educação. Nesta seção, procuramos complementar essa oferta, apre- sentando alguns filmes, livros, artigos e sítios. Nossa intenção é que, com mais elementos para reflexão, cer- tamente ampliaremos nossa consciência e poderemos desenvolver ações mais conseqüentes. * Fernando Rios é jornalista, publicitário, cientista social e consultor em comunicação organizacional integrada. Isa Maria F. Rosa Guará é pedagoga, doutora e mestre em Serviço Social (PUC-SP) e pós-graduada em Psicopedagogia. É consultora em programas e projetos sociais. &ILMES O que você faria DIRETOR: MARCELO PIÑEYRO. ATORES: EDUARDO NORIEGA, NAJWA NIMRI, EDUARD FERNÁN- DEZ, PABLO ECHARRI, ERNESTO ALTERIO, CARMELO GÓMEZ, ADRIANA OZORES, NATALIA VERBEKE. DRAMA, ESPANHA-ARGENTINA-ITÁLIA, 2005, 115 MINUTOS. Uma situação de avaliação, no mais alto nível, de uma competitividade que pretende ser cordial: sete executivos se candidatam a um emprego e se sub- metem a um processo de seleção no mesmo dia em que Madri é movimentada por marchas de protesto contra a globalização e a política monetária do FMI, que realiza sua reunião no mesmo prédio. O grupo é deixado a sós em uma sala e são promovidos vá- rios testes por computador que pretendem avaliar a interação entre eles. De início, todos acreditam ter controle sobre seu comportamento e emoções, mas os jogos os levam a situações-limite que, alia- das ao fato de saberem estar sendo observados, colocam-nos em um nível de tensão insuportável. As alianças, paranóias, medos e misérias não tardam a aparecer. Em um clima claustrofóbico, de máxima descon- fiança e absoluta falta de escrúpulos, acontecem acordos, disputas, revelam-se segredos, vêm à tona conflitos passados. Aos poucos, emerge uma incon- seqüente e fria luta pela sobrevivência, muito co- mum em nossa economia capitalista globalizada. A cada instante, avaliamos e somos avaliados. -OSAICO Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará* SITES LIVROS E ÙLMES 157 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Segundo o crítico Luiz Carlos Merten, “a força do filme vem das relações. A personagem da mulher fornece a chaveeémagnífica. O mundo globalizado ficou pior, mas o cinema do argentino Marcelo Piñeyro continua ótimo”. Ganhou dois prêmios no Goya, da Academia das Artes e Ciências Cinematográficas da Espa- nha, nas categorias de Melhor Ator Coadjuvante (Carmelo Gómez) e Melhor Roteiro Adaptado (Mateo Gil e Marcelo Piñeyro). Foi, ainda, indicado nas categorias de Melhor Ator (Eduard Fernández), Melhor Revelação Masculina (Pablo Echarri) e Melhor Edição (Ivan Aledo). Bicho de sete cabeças DIRETORA: LAÍS BODANSKY. ATORES: RODRIGO SANTORO, OTHON BASTOS, CÁSSIA KISS E CACO CIOCLER. DRAMA, BRASIL, 2000, 80 MINUTOS. Quem pode ter a verdade numa conflituosa relação pai e filho? Quem estrutura a família? Como um jovem pode reagir a fatos que acontecem no cotidiano, compreendê-los, avaliá- los, fazer prevalecer sua individualidade e permanecer ileso? Este filme de Laís Bodansky é um convite à reflexão. Tudo é questionado: a família, a pa- ternidade, a maternidade, a juventude, a questão das drogas, o tratamento hospitalar de deficientes mentais, a sociedade contemporânea, a urbanidade... E neste vórtice de inconseqüências, cada personagem se apresenta diante e em relação ao personagem central, o adolescente Neco, interpretado por Rodrigo Santoro, que parece caminhar inexoravelmente para uma tragédia. Não se diga que o filme retrata uma típica família de classe média periférica brasileira. Mas essas famílias costumam apresentar muitas dessas situações. É um trabalho supercuida- doso, com ótima direção de atores e belos movimentos de câmera. O crítico Thiago P. Ribeiro faz uma síntese elucidativa: Temos o prazer em ver Rodrigo Santoro mostrar por que está onde está. Internados em seus pen- samentos difusos e fora do normal, os atores conseguem retratar com perfeição o mundo criado pelos roteiristas, diretores e diretores de arte. Afinados com a falta de realidade comum entre os internos de qualquer manicômio, os atores pare- cem se fechar em mundos próprios, recôncavos e circundados por delicados movimentos e olhares sem expressão definida. Caminham pelo pátio entediados, sem esperança, sujos, renegados. Os melhores momentos são aqueles em que a prisão, imposta pela sociedade aos rotulados ‘fora do padrão’, revela personagens criados com carinho pelos cineastas e atores. São nas mínimas expressões entre alento e perdição que encontramos o tom do filme. Janela da alma DIRETORES: JOÃO JARDIM E WALTER CARVALHO. ENTREVISTADOS: AGNES VARDA, ANTÔNIO CÍCERO, ARNALDO GODOY, CARMELLA GROSS, EUGEN BAVCAR, HANNA SHYGULLA, HERMETO PASCOAL, JOÃO UBALDO RIBEIRO, JOSÉ SARAMAGO, MADALENA GODOY, MANOEL DE BARROS, MARIETA SEVERO, MARJUT RIMMINEN, OLIVER SACKS, PAULO CEZAR LOPES, WALTER LIMA JR., WIM WENDERS. DOCUMENTÁRIO, BRASIL, 2001, 73 MINUTOS. “O olho abraça a beleza do mundo inteiro. É janela do corpo, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo. O que há de admirável no olho é que através dele – de um espaço tão reduzido – seja possível a absorção das imagens do universo. De sorte que esse órgão – um entre tantos –éajanela da alma, o espelho do mundo.” Esse texto, atribuído a Leonardo da Vinci (além de tudo, ele sabia escrever bem) serviu de epígrafe e inspiração para este maravilhoso filme que fala sobre ver, olhar, enxergar, discernir, vislumbrar, descortinar... a vida e seus pertences, visíveis pelo olho e pela alma. 158 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Utilizando um grupo seleto de entrevistados, de míopes e cegos – entre eles, o escritor e Prêmio Nobel José Saramago, o músico Hermeto Paschoal, o cineasta Wim Wenders, o fotógrafo cego franco-esloveno Evgen Bavcar, o neurologista Oliver Sacks, a atriz Marieta Severo, o vereador cego de Belo Horizonte, Arnaldo Godoy – o filme nos propõe uma reflexão que remete para a maneira de cada um estar no mundo, percebê-lo e interpretá-lo. Todos trazem revelações surpreendentes: do funcionamento fisiológico do olho, o signifi- cado de ver ou não a poluição visual que domina o planeta até a importância das emoções como elemento transformador da realidade. Cada um deles, a partir de sua deficiência, maior ou menor, articula uma nova eficiência. Esta é uma das grandes lições do trabalho de João Jardim e Walter Carvalho. Uma lição que pode enriquecer o dia-a-dia de qualquer pessoa, sobretudo de professores e alunos. Janela da Alma ganhou o Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Documentário e recebeu outras seis indicações: Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Trilha Sonora, Melhor Montagem, Melhor Fotografia e Melhor Som; o prêmio de Melhor Documentário, no Festival do Rio 2001; os prêmios de Melhor Documentário - Júri Oficial e Melhor Documentário - Júri Popular, na Mostra de Cinema de São Paulo. Depois que abrimos com cuidado a “Janela da Alma” e lançamos nosso olhar sobre a paisagem que ela propõe, notamos quão importante é sentir a realidade e perceber que é possível transformá-la para melhor. Pro dia nascer feliz DIRETOR: JOÃO JARDIM. DOCUMENTÁRIO, BRASIL, 2006, 88 MINUTOS. Provavelmente, o melhor documentário já feito no Brasil comparando escolas públicas e particulares, por meio de depoimentos de adolescentes de classes baixa, média e alta, mesmo considerando que uma entrevistada tenha subido ao palco do Cine Sesc São Paulo, na estréia, para protestar contra os trechos escolhidos de sua entrevista. Ainda assim, os depoimentos de adolescentes de áreas urbanas e rurais, dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco revelam angústias, esperanças e desesperanças, incertezas e conflitos vividos por eles. Não se podem generalizar as situações apresentadas em Pro Dia Nascer Feliz. Contudo, no fim do filme sobra um grande desalento em relação ao ensino público, no qual o ado- lescente brasileiro enfrenta preconceito, precariedade e violência. Ao menos é traçado um retrato realista das adversidades enfrentadas pelos adolescentes nas escolas brasileiras e a reprodução de um sistema social injusto, no qual apenas os ricos têm acesso às melhores escolas, aos melhores empregos e, conseqüentemente, às melhores condições de vida. Uma denúncia que merece apuração e medidas para transformá-la. Em um bate-papo no site UOL, o diretor João Jardim comentou seu trabalho: A idéia do documentário nasceu quando eu estava fazendo uma pesquisa sobre gravidez precoce. Comecei a perceber que os adolescentes reclamavam muito da escola. Esse antagonismo entre o adolescente e a escola foi o ponto de partida para fazer o filme. (Este filme é) ... um diário de observação. Acompanhei durante um tempo o que os adolescentes viviam. É um filme de pessoas contando histórias, misturadas com imagens de momentos da vida deles. Basicamente todas as histórias me chocaram. A que mais me choca é a história de uma menina que matou uma colega. Ela já estava presa, eu fui atrás um tempo depois e colhi o depoimento dela. A variação do tom é muito grande, esse momento é muito imprevisível. É uma mistura de tédio com emoção. 159 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Acho que é muito essa questão de o mundo ter mudado muito e a educação ainda ser a mesma. A família é o que tem de mais importante, às vezes no momento que o filho precisa de apoio, os pais são muito rígidos e vice-e-versa. Falta uma discussão melhor dentro da escola sobre o que está acontecendo com o jovem. Ninguém precisa dizer aos pais como fazer, mas vale explicar melhor. (...) os professores estão na mesma realidade que os alunos. É um pouco sem saída. O professor não sabe lidar muito bem com o jovem, ele está aí sem os recursos necessários. Os diretores, mais ainda. A situação, que não parece ser nova para quem está no magistério, também não vem sendo alvo de estudo pelas Universidades. Não percebi em nenhuma das Universidades onde estive fazendo pesquisa a preocupação de formar pessoas que saibam lidar com essa realidade de desinteresse. Não há sistematização desse conhecimento. O filme ganhou os Kikitos de Ouro de Melhor Filme - Júri Popular, Melhor Trilha Sonora, o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio da Crítica, no Festival de Gramado; recebeu o prêmio de Melhor Documentário - Júri Oficial, o Prêmio da Juventude e o Prêmio Bombril de Melhor Documentário Brasileiro, na Mostra de Cinema de São Paulo. Sobre o título, Jardim explica: “é uma tentativa de dizer que Pro Dia Nascer Feliz a realidade que esse filme mostra tem que ser mudada”. Nenhum a menos DIRETOR: ZHANG YIMOU. ATORES: WEI MINZHI, ZHANG HUIKE, TIAN ZHENDA, GAO ENMAN, SUN ZHIMEI, LI FANFAN. DRAMA, CHINA, 1999, 106 MINUTOS. Um retrato da precária escola rural na China, uma história de obstinação para ganhar algum dinheiro, uma discussão sobre evasão escolar, uma lição para quem precisa dar aulas sem qualquer recurso, um exemplo do caos urbano chinês, o desenvolvimento de um processo de solidariedade. Sim, tudo isso está presente no singelo Nenhum a Menos, de Zhang Yimou. Mas prefiro destacar aquilo que Sócrates chama de ética da consciência. A emergência de um grande compromisso com o objetivo de seu trabalho, uma responsabilidade moral, que surge e cresce numa professora, adolescente de 13 anos. Com atores amadores e uma câmara que podemos classificar de rústica, o diretor nos apre- senta muitos argumentos para uma reflexão sobre o processo pedagógico em situações-limite. E nos mostra ainda como é possível fazer um filme contundente com poucos recursos. Ele também dirigiu o poético O Caminho para Casa (ver Cadernos Cenpec, n. 2, p. 160). A história é simples: Gao, professor de uma escola primária, precisa tirar um mês de licença para cuidar de sua mãe doente. Nada demais, se estivéssemos em um país desenvolvido. Acontece que, na pequena cidade de Shuiquan, apenas uma menina de 13 anos, Wei Min- zhi, pode substituí-lo. Além disso, de uma turma de 50 alunos, apenas 28 permanecem. Nos primeiros dias de Wei, uma das alunas foi selecionada para freqüentar uma escola de esportes e um aluno de 10 anos abandona a classe para procurar emprego na cidade. E o único pedido do professor Gao é o de que a classe não diminua, nem um aluno sequer. Está aí o motivo do filme: a mobilização de uma adolescente e de seus alunos, pouco mais novos, para recuperar a ovelha desgarrada, num périplo do rural para o urbano, com todos os riscos que isso pode trazer. Num primeiro momento, o único envolvimento de Wei é com a possibilidade de ganhar uns trocados a mais, se nenhum aluno desistir. Mas isso muda. Está aí um filme que nos coloca 160 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 diante de dilemas aparentemente insolúveis. Porém, quando se quer realmente mudar a realidade, surgem as propostas e as maneiras de implementá-las. Nenhum a Menos ganhou o prêmio Leão de Ouro, no Festival de Veneza, em 1999. ,IVROS E TEXTOS NA )NTERNET Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos MARIA TERESA ESTEBAN (ORG.). REGINA LEITE GARCIA, ÁNGEL DÍAZ BARRIGA, ALMERINDO JANELA AFONSO, CORINTA M. G. GERALDI, JUSSARA M. P. LOCH. DP&A EDITORA, RIO DE JANEIRO, RJ, 1999, 144 P. Um pequeno livro (do último ano do século passado, que parece tão distante) desafia-nos: o que temos feito? Essa afirmação de Maria Teresa Esteban nos provoca: O processo de avaliação do resultado escolar dos alunos e alunas está profundamente marcado pela necessidade de criação de uma nova cultura sobre avaliação, que ultrapasse os limites da técnica e incorpore em sua dinâmica a dimensão ética. Este livro leva à reflexão, estimula a ação e, principalmente, incita a nossa indignação. No texto “Uma polêmica em relação ao exame”, Angel Diaz Barriga alfineta: O exame se converteu num instrumento no qual se deposita a esperança de melhorar a educação. (...) Um falso princípio didático: um melhor sistema de exame, melhor sistema de ensino. Nada mais falso que essa proposição. (...) a proposta técnica de fazer exames – manejo estatístico dos dados, construção de reativos, objetivos, entre outros – contribuiu ao empobrecimento da visão sobre a educação. A pedagogia do exame criou mais problemas para a educação do que resolveu. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança. Por uma práxis transformadora. CELSO DOS S. VASCONCELLOS. EDITORA LIBERTAD, COLEÇÃO CADERNOS PEDAGÓGICOS, SÃO PAULO, SP, 2005, 7a EDIÇÃO, 232 P. Celso Vasconcelos se propõe a responder perguntas que vivem sem resposta nas mentes de milhares de pessoas: - Como passar das muitas análises do papel político da avaliação, das simples negações das práticas avaliativas dos professores, do uso de uma linha avaliativa ingênua ou repro- dutora para a construção de caminhos concretos na perspectiva crítica? - O que fazer a fim de superar as práticas autoritárias de avaliação ou, ao menos, o que fazer em termos de preparação para uma mudança maior? - Como avançar para além do discurso e traduzir em ações a nova visão da avaliação? Aqui, o leitor encontrará boas respostas, e explicações para elas ainda não terem sido utilizadas. Mas Vasconcelos não desanima, muito menos os leitores, já que o livro está na sétima edição. Para ele: (...) o ser humano gosta de desafios (...); a tarefa que está posta é superar sua formulação alienada – “ser o melhor”, “conseguir nota”, “passar de ano” – e apontar novas tarefas para os alunos: aprender mais e melhor; não deixar ninguém pelo caminho, avançar juntos (“nenhum a menos”); refletir, desfrutar o prazer de conhecer; pensar com a própria cabeça; descobrir novas possibilidades de organização do real; ser capaz de intervir, abrir novos horizontes dentro e fora da escola. Na perspectiva de uma práxis transformadora, Vasconcelos defende que a avaliação deve ser considerada um compromisso com a aprendizagem de todos e com a mudança institucional. 161 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 E conclui: Por não haver uma forma perfeita de avaliação, há necessidade de alimentarmos uma atitude ao mesmo tempo de humildade e de ousadia: não ter medo de fazer, não deixar de avaliar, de criar dis- positivos avaliativos que favoreçam a efetiva aprendizagem e estar aberto à crítica, ter presente que qualquer prática de avaliação é sempre uma aproximação, o que demanda diálogo autêntico. Nossa escola pesquisa sua opinião MANUAL DO PROFESSOR. INSTITUTO PAULO MONTENEGRO / GLOBAL EDITORA, SÃO PAULO, 2002, 2a EDIÇÃO, 192 P. Nossa escola pesquisa sua opinião DIÁRIO DE PESQUISA JANUÁRIA ALVES. INSTITUTO PAULO MONTENEGRO / GLOBAL EDITORA, SÃO PAULO, SP, 2002, 2a EDIÇÃO, 192 P. O aluno é sempre avaliado. Em tese, na teoria e na prática, é ele quem precisa “passar de ano”. Mas... e os professores, e os gestores, e a escola, e os pais, e a comunidade? Os resultados das avaliações da educação brasileira não têm sido muito animadores. Quem sabe, se pudéssemos fazer uma avaliação “em processo” da educação – conhecer melhor alunos, professores, gestores, condições materiais da escola, pais, comunidade, durante o período letivo – conseguíssemos melhores resultados? É exatamente isso o que propõem estes dois livros, editados pelo Instituto Paulo Montenegro, uma ONG voltada para a educa- ção, do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, mais conhecido como Ibope. Logo no início, o livro propõe: Você já parou para pensar por que fazemos pesquisa de opinião? Por que a opinião sobre outras pessoas e fatos é tão importante que precisa ser medida? Responda, então, ao teste: Fazemos pesquisa de opinião: a. Para averiguar a existência de algum problema? b. Para confirmar a continuidade de uma ação que já está em andamento? c. Para compreender a visão que as pessoas têm de um fato ou de alguma ação em curso? d. Para detectar a dimensão de algum problema ou de alguma ação? e. Para refletir sobre como agir, como mudar, como superar, ou como reafirmar as posições ou caminhos já escolhidos? f. Todas as alternativas anteriores estão corretas. É claro que você optou pela alternativa “f”. Estes dois livros ensinam tudo isso. Resta saber se todos os envolvidos estão dispostos a serem avaliados. Mas que vale a pena não apenas ler os livros como também colocar suas idéias em prática, lá isso vale! E ainda há um ótimo sítio para se esclarecerem as dúvidas: . Avaliação sob exame HÉLIA SONIA RAPHAEL E KESTER CARRARA (ORG.). ALDA JUNQUEIRA MARIN (COM: CLAUDIA CRISTINI FLORIO GUILHERME, JOSELY KOBAL DE OLIVEIRA, MARIA CRISTINA DE SENZI ZANCUL, MARIA IOLANDA MONTEIRO), ANA CLÁUDIA BARTOLOZZI MAIA, ELIANA MA- RIA GRADIM FABRON, LÉA DEPRESBITERIS, MIGUEL CLÁUDIO MORIEL CHACON, RITA DE CÁSSIA TIBÉRIO ARAÚJO, ROSALY MARA SENAPESCHI GARITA, SADAO OMOTE. FAPESP / EDITORA AUTORES ASSOCIADOS, CAMPINAS, SP, 2002, 226 P. Pedagogia e psicologia sempre andaram juntas. A psicologia é um dos principais instru- mentos de inteligência do processo pedagógico. E isso faz sentido: a pedagogia tem sido prioritariamente chamada a se relacionar com crianças e jovens, para desenvolver processos 162 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 de aprendizagem; e para se conhecer essa população, a psicologia é imprescindível. As autoras, contudo, chamam a atenção para a abrangência da questão pedagógica e remetem os leitores para questões mais amplas. Elas mesmas advertem: O que se torna necessário é o entendimento das questões emanadas da psicologia da educação, da sociologia, da filosofia, da antropologia e de quaisquer outras áreas do saber presentes na questão abordada, como algo indissociável, ou seja, uma totalidade de inter-relações que oferecem um en- tendimento dinâmico do processo avaliatório. É nessa direção que caminham os oito estudos apresentados, que tratam desde as óticas teóricas e processo de construção da cidadania – ao propor uma avaliação da avaliação, e avaliação diagnóstica em educação especial – até a abordagem ecológica na análise de notas escolares, além da pergunta crucial: podemos ser conscientes quando avaliamos? Leia mais Para quem deseja mais informações, indicamos também outros livros e artigos. ,IVROS Análise das práticas dos professores e das situações pedagógicas MARGUERITE ALTET. PORTO EDITORA, PORTO, PORTUGAL, 2000, 192 P. Avaliação educacional: regulação e emancipação ALMERINDO JANELA AFONSO. CORTEZ EDITORA, SÃO PAULO, SP, 2000, 2a EDIÇÃO, 152 P. Escola, currículo e avaliação MARIA TERESA ESTEBAN (ORG.). ALMERINDO JANELA AFONSO; ANA LÚCIA SOUZA DE FREITAS; MAILSA CARLA PASSOS E CARLOS ROBERTO DE CARVALHO; ANELICE RIBETTO, GENI AMÉLIA NADER VASCONCE- LOS, PAULO SGARBI E VALATER FILÉ; INÊS BARBOSA DE OLIVEIRA E DIRCEU CASTILHO PACHECO; MARIA CLÁUDIA REIS FERRAZ E STELLA MARIS MOURA DE MACEDO; CARMEN SANCHES SAMPAIO. CORTEZ EDITORA, SÉRIE: CULTURA, MEMÓRIA E CURRÍCULO, SÃO PAULO, SP, 2003, 168 P. Mitologias da avaliação – de como ignorar, em vez de enfrentar problemas PEDRO DEMO. EDITORA AUTORES ASSOCIADOS, COLEÇÃO: POLÊMICAS DO NOSSO TEMPO, CAMPINAS, SP, 2002, 86 P. !RTIGOS NA )NTERNET A avaliação do desempenho escolar como ferramenta de exclusão social ANDRÉA CRISTINA MARQUES DE ARAÚJO Disponível em: A dimensão reflexiva da avaliação ENTREVISTA COM MARIA TEREZA ESTEBAN Disponível em: . 163 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Avaliação educacional e projeto político-pedagógico MOACIR GADOTTI. Disponível em: . Avaliação na pedagogia de projetos PGM 5 – Práticas avaliativas na pedagogia de projetos MARIA TERESA ESTEBAN Disponível em: . Avaliação: uma roupa nova em um corpo novo FLORA SUMIE TAKAMORI, LUIZ SEABRA JÚNIOR, MARIA LOURDES VIEIRA Disponível em: . Avaliar para crescer REPORTAGEM: PAOLA GENTILE Disponível em: . Boa gestão, e não orçamento maior, determina boas notas. SIMONE IWASSO Disponívelem: . Educação infantil inspira avaliação formativa ENTREVISTA: ANTONI ZABALA Disponível em: . Intencionalidade: palavra-chave da avaliação ENTREVISTA: CELSO DOS SANTOS VASCONCELOS Disponível em: . 3ÅTIOS www.abave.org.br INTERCÂMBIO DE EXPERIÊNCIAS A Associação Brasileira de Avaliação Educacional - Abave é uma associação de natureza científica que se apresenta como um espaço de intercâmbio de experiências entre os aca- dêmicos e os implementadores da avaliação educacional. http://www.inep.gov.br/ AVALIAÇÃO INTERNACIONAL Entre no site do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei- xeira. No menu, do lado esquerdo, encontra-se a área Biblioteca Virtual de Educação. Ela traz uma relação de sites internacionais com textos sobre avaliação. http://www.unesco.org.br/ EDUCAÇÃO NO BRASIL E NO MUNDO Unesco-Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – sítio no qual se pode conhecer a atuação da entidade no mundo em suas diversas áreas de atu- 164 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 ação: Educação, Ciências Naturais, Ciências Humanas e Sociais, Cultura, Comunicação e Informação, Pesquisa e Avaliação. http://www.preal.org/Default.asp PRÁTICAS EDUCACIONAIS LATINO-AMERICANAS PREAL – Programa de Promoção da Reforma Educativa da América Latina e Caribe promove a participação de diversos atores sociais no desenvolvimento e aperfeiçoamento de políti- cas, além de estimular a busca de acordos nacionais para melhorar a qualidade, eqüidade e eficácia dos sistemas educativos na região. www.ice.deusto.es/rinace/ PESQUISA SOBRE QUALIDADE E EQÜIDADE A Rede Ibero-Americana de Investigación sobre Cambio e Eficacia Escolar é uma rede de pesquisadores em educação comprometidos em aumentar os níveis de qualidade e eqüi- dade dos sistemas educativos. www.icsei.net. EFEITO ESCOLA Um grupo de pesquisadores de todo o mundo tem realizado conferências anuais sobre o tema da Escola Efetiva – International Congress for School Effectiveness and Improvement – oferecendo contribuições importantes para o desenvolvimento da pesquisa sobre os efeitos da escola. Em inglês. www.ncrel.org DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL E PESQUISA Para leitores de língua inglesa, o sítio do Learning Point Associates oferece pesquisas, recursos de desenvolvimento profissional para professores e informa sobre as melhores práticas existentes para o aperfeiçoamento da eficácia escolar. 165 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Cadernos Cenpec Ano II Número 3 Primeiro semestre de 2007 Cadernos Cenpec é uma publicação do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Dante Carraro, 68 05422-060 – São Paulo – SP Brasil Telefax: (55) (11) 2132 9000 cenpec@cenpec.org.br www.cenpec.org.br Os artigos assinados não representam necessariamente os ponto de vista do Cenpec. As opiniões e idéias expressas neles são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Presidência Maria Alice Setubal Diretora Presidente Ricardo Campus Caiuby Ariani Diretor Vice-Presidente Diretores Administrativos Lydia Maria Queiroz Ferreira de Magalhães Tereza Maria Macedo Soares de Araújo Conselho de Administração Antonio Carlos Caruso Ronca Bernardete Angelina Gatti Hélio Mattar Maria Alice Setubal Michel Paul Zeitlin Ricardo Campos Caiuby Ariani Conselho Fiscal Reginaldo José Camilo Rebecca de Castro Filgueiras Raposo Coordenação Coordenadora Geral Maria do Carmo Brant de Carvalho Assessoria da Coordenação Maria Ângela Leal Rudge Maria Cristina S. Zelmanovits Carola Carbajal Arregui Coordenadora Administrativo-Financeira Maria Aparecida Acunzo Forli 166 Cadernos Cenpec 2007 n. 3 Priscila Gonsales Regina Scarpa Sônia Maria de Oliveira Nudelman Tânia Regina de Souza Romero Terezinha Azerêdo Rios Vanda Mendes Ribeiro Vanda Noventa Fonseca Vera Masagão Ribeiro Waldenir (Nino) Bernini Lictenthaler Redator Fernando Rios Revisão e preparação de textos Dora Helena Feres Sylmara Beletti Projeto gráfico original Homem de Melo & Troia Design Diagramação e editoração eletrônica Fonte Design Fotos João Kulcsár (consultor) Arquivo Prêmio Cultura Viva Arquivo Unicef Daniel Malva Daniela Savastano Fernando Rios Tiragem 2.000 exemplares Créditos desta edição Organização e Coordenação Isa Maria F. Rosa Guará Comitê Editorial Ana Regina Carrara Eloísa de Blasis Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará Maria do Carmo Brant de Carvalho Conselho Editorial Âmbar de Barros Antonio Jacinto Mathias Bernadete Gatti Fernando Almeida Fernando Rossetti Gilda Portugal Gouveia Isa Maria F. Rosa Guará Marco Aurélio Nogueira Maria Alice Setubal Maria do Carmo Brant de Carvalho Vera Masagão Colaboram nesta edição Ana Luíza Mendes Borges Ana Maria Falsarella Bernardete Gatti Claudia Petri Denise Blanes Erika Himmel König Gabriel Grossi Heloísa Trenche Joana Buarque de Gusmão Jorge Kayano José Francisco Soares José Hamilton Maruxo Júnior Liliane Petris Márcia Padilha Lotito Maria Amábile Mansutti Maria de Salete Silva Maria Helena Guimarães de Castro Mílada Tonarelli Gonçalves Naércio Menezes Cadernos Cenpec / Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. – N. 3 (2007) – São Paulo: CENPEC, 2007 ISSN 1808-9631 Semestral 1. Educação 3. CENPEC CDD 370 Cadernos Cenpec: educação em todos os sentidos Cadernos Cenpec é um importante periódico brasileiro dedicado à discussão dos gran- des problemas da educação pública brasileira e sua interface com a cultu- ra e as ações sociais. Os dois primeiros números abordam temas que estão na pauta das questões educacionais e deverão continuar por muito tempo: Cidade Educadora e Educação Integral. Este terceiro volume trata de Avalia- ção em Educação. Em cada edição, o Cenpec utiliza sua larga experiência, por meio de artigos e seus colaboradores diretos, e convida especialistas para desenvolverem te- as específicos. Cadernos Cenpec é dirigido a professores, gestores escolares, ministradores e políticos, enfim, a todos aqueles comprometidos com a me- ria da educação brasileira. O Cenpec é uma das principais organizações não-governamentais brasileiras atua na formação e aperfeiçoamento técnico-pedagógico das equipes de edu- o, cultura e ação social e no desenvolvimento de projetos, metodologias e re- s didáticos voltados para a educação integral. Em cada revista, um tema atual. No volume 1, que trata de Cidade Educadora, um grupo de re- nomados educadores debate o tema “Qual cidade educadora queremos”. Outros artigos abordam a educação na cidade sob diferentes olhares, as possibilidades de organização de uma cidade voltada para a educação, a utilização dos espaços edu- cativos, práticas e experiências de educação articuladas com a comunidade, além de indicações e propostas para uma boa política municipal de educação. No volume 2, que discute Educação Integral, os artigos abor- dam experiências que vão do campo à cidade na busca de um lugar da educação integral na política social. Discutimos o que se diz sobre a escola pública de horário integral e as possibili- dades educativas de diversos espaços complementares com- pondo, com a escola, um programa de tempo integral. Refle- tindo sobre os conceitos de cidadania integral, escola de tem- po integral e educação integral, a edição apresenta relatos e depoimentos que ilustram os caminhos teóricos. Contribuição teórica e prática “Educação parece ser o grande desafio da sociedade brasi- leira”, comenta a professora Maria do Carmo Brant de Carva- lho, coordenadora geral do Cenpec, que argumenta: “não es- tamos conseguindo preparar corretamente os alunos das es- colas públicas para enfrentar uma sociedade altamente com- petitiva, que veicula uma grande quantidade de informação e que exige uma consistente formação profissional. Com esta publicação, queremos contribuir, teórica e praticamente para discutir, entre outros temas, a formação e o papel dos profes- sores na sociedade do conhecimento, a relação entre violên- cia e conhecimento na escola, a importância dos gestores es- colares e a formulação e implementação de políticas públicas em educação”. Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Dante Carraro, 68, 05422-060 Pinheiros, São Paulo, SP. Telefone: 55 11 2132.9000 E-mail: cenpec@cenpec.org.b ec.org.br Site: www.cenpec.org.br Como adquirir Cadernos Cenpec podem ser comprados diretamente na ins- tituição. Para adquirir a publicação, você também pode acessar o site: e seguir as instruções de compra. O preço é R$ 20,00, por exemplar. Quantidades acima de 20 exemplares têm desconto de 20%. Mais informações pelo telefone 11 2132.9000 ou pelo email Os Cadernos estão à venda também na Livraria Cortez. Telefax 11 3873.7111; site: 167 Cadernos Cenpec 2007 n. 3

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Oficinas
Leitura e escrita

Poemas: poetas da escola

Esta edição dos Cadernos Docentes, produzida pelo programa Escrevendo o Futuro, oferece oficinas para ensinar a escrita do gênero poema, com estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental.

O que são os Cadernos Docentes? Introdução poetas da escola 7 Os Cadernos Docentes são materiais de orientação para a prática destinados a professoras e professores de Língua Portuguesa que, estruturados de forma sistemática a partir da noção de sequência didática, propõem um trabalho com os gêneros textuais, com o objetivo de desenvolver a aprendizagem da leitura e da escrita por estudantes. Esses materiais foram organizados para que professoras e professores desenvolvam com suas turmas atividades com os gêneros Poema, Memórias literárias, Biografia, Crônica, Documentário e Artigo de opinião. São, portanto, seis Cadernos Docentes elaborados, originalmente, para o trabalho com estudantes desde o 5o ano do Ensino Fundamental até a 3a série do Ensino Médio, da seguinte forma: • Caderno Poetas da Escola: atividades do gênero poema desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 5o ano do Ensino Fundamental I. • Caderno Se bem me lembro: atividades do gênero memórias literárias desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6o e 7o anos do Ensino Fundamental II. • Caderno Biografia a tessitura da vida: atividades do gênero biografia desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6o e 7o anos do Ensino Fundamental II. • Caderno A ocasião faz o escritor: atividades do gênero crônica desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 8o e 9o anos do Ensino Fundamental II. • Caderno Pontos de vista: atividades do gênero artigo de opinião desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 9o ano do Ensino Fundamental II . • Caderno Olhar em movimento: cenas de tantos lugares: atividades do gênero documentário desenvolvidas preferencialmente para estudantes da 1a e 2a séries do Ensino Médio. Apesar de serem indicados para determinadas etapas, anos e séries, as sequências didáticas podem ser adaptadas para outros anos e séries, conforme a turma de estudantes, a necessidade e a criatividade de professoras e professores. A sequência didática como eixo do ensino da escrita Joaquim Dolz, Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação, Universidade de Genebra (Suíça) [Tradução e adaptação de Anna Rachel Machado] A sequência didática é a principal ferramenta proposta pelos Cadernos Docentes do programa Escrevendo o Futuro para se ensinar a escrever. Estando envolvido há muitos anos na elaboração e na experimentação desse tipo de dispositivo, iniciado coletivamente pela equipe de didática das línguas da Universidade de Genebra, é um prazer ver como se adapta à complexa realidade das escolas brasileiras. Uma sequência didática é um conjunto de oficinas e de atividades escolares sobre um gênero textual, organizada de modo a facilitar a progressão na aprendizagem da escrita. Cinco conselhos me parecem importantes para os professores que utilizam esse dispositivo como modelo e desenvolvem com seus alunos as atividades aqui propostas: 1) Fazer os alunos escreverem um primeiro texto e avaliar suas capacidades iniciais. Observar o que eles já sabem e assinalar as lacunas e os erros me parece fundamental para escolher as atividades e para orientar as intervenções do professor. Uma discussão com os alunos com base na primeira versão do texto é de grande eficácia: o aluno descobre as dimensões que vale a pena melhorar, as novas metas para superar, enquanto o professor compreende melhor as necessidades dos alunos e a origem de alguns dos erros deles. 2) Escolher e adaptar as atividades de acordo com a situação escolar e com as necessidades dos alunos, pois a sequência didática apresenta uma base de materiais que podem ser completados e transformados em função dessa situação e dessas necessidades. 3) Trabalhar com outros textos do mesmo gênero, produzidos por adultos ou por outros alunos. Diversificar as referências e apresentar um conjunto variado de textos pertencentes a um mesmo gênero, propondo sua leitura e comparação, é sempre uma base importante para a realização de outras atividades. 4) Trabalhar sistematicamente as dimensões verbais e as formas de expressão em língua portuguesa. Não se conformar apenas com o entusiasmo que a redação de um texto para participar de uma competição provoca e sempre buscar estratégias para desenvolver a linguagem escrita. 5) Estimular progressivamente a autonomia e a escrita criativa dos alunos. Os auxílios externos, os suportes para regular as primeiras etapas da escrita são muito importantes, mas, pouco a pouco, os alunos devem aprender a reler, a revisar e a melhorar os próprios textos, introduzindo, no que for possível, um toque pessoal de criatividade. Uma contribuição para o desenvolvimento da aprendizagem da escrita Joaquim Dolz*, Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação, Universidade de Genebra (Suíça) [Tradução e adaptação de Anna Rachel Machado] O programa Escrevendo o Futuro nasce imbuído com o desafio de enfrentar o fracasso escolar decorrente das dificuldades do ensino de leitura e de escrita no Brasil. Quais são os objetivos do programa Escrevendo o Futuro? Primeiro, busca-se uma democratização dos usos da língua portuguesa, perseguindo reduzir o “iletrismo” e o fracasso escolar. Segundo, procura-se contribuir para melhorar o ensino da leitura e da escrita, fornecendo aos professores material e ferramentas, como a sequência didática – proposta nos Cadernos –, que tenho o prazer de apresentar. Terceiro, deseja-se contribuir direta e indiretamente para a formação docente. Esses são os três grandes objetivos para melhorar o ensino da escrita, em um projeto coletivo, cuja importância buscaremos mostrar a seguir. Ler e escrever são duas aprendizagens essenciais de todo o sistema da instrução pública. Um cidadão que não tenha essas duas habilidades está condenado ao fracasso escolar e à exclusão social. Por isso, o desenvolvimento da leitura e da escrita é a preocupação maior dos professores. Alguns pensam, ingenuamente, que o trabalho escolar limita-se a facilitar o acesso ao código alfabético; entretanto, a tarefa do professor é muito mais abrangente. Compreender e produzir textos são atividades humanas que implicam dimensões sociais, culturais e psicológicas e mobilizam todos os tipos de capacidade de linguagem. Trata-se de incentivar a leitura de todos os tipos de texto. Do ponto de vista social, o domínio da leitura é indispensável para democratizar o acesso ao saber e à cultura letrada. Do ponto de vista psicológico, a apropriação de estratégias de leitura diversificadas é um passo enorme para a autonomia do aluno. Essa autonomia é importante para vários tipos de desenvolvimento, como o cognitivo, que permite estudar e aprender sozinho; o afetivo, pois a leitura está ligada também ao sistema emocional do leitor; finalmente, permite desenvolver a capacidade verbal, melhorando o conhecimento da língua e do vocabulário e possibilitando observar como os textos se adaptam às situações de comunicação, como eles se organizam e quais as formas de expressão que os caracterizam. Dessa forma, o professor deve preparar o aluno para que, ao ler, aprenda a fazer registros pessoais, melhore suas estratégias de compreensão e desenvolva uma relação mais sólida com o saber e com a cultura. Não é suficiente que o aluno seja capaz de decifrar palavras, identificar informações presentes no texto ou lê-lo em voz alta – é necessário verificar seu nível de compreensão e, para tanto, tem de aprender a relacionar, hierarquizar e articular essas informações com a situação de comunicação e com o conhecimento que ele possui, a ler nas entrelinhas o que o texto pressupõe, sem o dizer explicitamente, e a organizar todas as informações para dar-lhes um sentido geral. Ele precisa aprender a tomar certo distanciamento dos textos para interpretá- los criticamente e ser capaz de identificar suas características e finalidades. Se queremos que descubra as regularidades de um gênero textual qualquer (uma carta, um conto etc.), temos de fornecer- -lhe ferramentas para que possa analisar os textos pertencentes a esse gênero e conscientizar-se de sua situação de produção e das diferentes marcas linguístico-discursivas que lhe são próprias. Entretanto, o que se pretende sobretudo é incentivar a escrita. Por isso, o programa acertadamente afirma que estamos em uma “batalha” e para ganhá-la precisamos de armas adequadas, de desenho de estratégias, de objetivos claros e de uma boa formação dos atores envolvidos. Não é suficiente aprender o código e a leitura para aprender a escrever. Escrever se aprende pondo-se em prática a escrita, escrevendo-se em todas as situações possíveis: correspondência escolar, construção de livro de contos, de relatos de aventuras ou de intriga, convite para uma festa, troca de receitas, concurso de poesia, jogos de correspondência administrativa, textos jornalísticos (notícias, editorial, carta ao diretor de um jornal) etc. Do ponto de vista social, a escrita permite o acesso às formas de socialização mais complexas da vida cidadã. Mesmo que os alunos não almejem ou não se tornem, no futuro, jornalistas, políticos, advogados, professores ou publicitários, é muito importante que saibam escrever diferentes gêneros textuais, adaptando-se às exigências de cada esfera de trabalho. O indivíduo que não sabe escrever será um cidadão que vai sempre depender dos outros e terá muitas limitações em sua vida profissional. O ensino da escrita continua sendo um espaço fundamental para trabalharmos os usos e as normas dela, bem como sua adaptação às situações de comunicação. Assim, consideramos que ela é uma ferramenta de comunicação e de guia para os alunos compreenderem melhor seu funcionamento todas as vezes que levam em conta as convenções, os usos formais e as exigências das instituições em relação às atividades de linguagem nelas praticadas. Do ponto de vista psicológico, a escrita mobiliza o pensamento e a memória. Sem conteúdos nem ideias, o texto será vazio e sem consistência. Preparar-se para escrever pressupõe ler, fazer registros pessoais, selecionar informações... atividades cognitivas, todas elas. Mas escrever é também um auxílio para a reflexão, um suporte externo para memorizar e uma forma de regular comportamentos humanos. Assim, quando anotamos uma receita, as notas nos ajudam a realizar passo a passo o prato desejado, sem nos esquecermos dos ingredientes nem das etapas a serem seguidas. Do mesmo modo, quando escrevemos um relato de uma experiência vivida, a escrita nos ajuda a estruturar nossas lembranças. Do ponto de vista do desenvolvimento da linguagem, escrever implica ser capaz de atuar de modo eficaz, levando em consideração a situação de produção do texto, isto é, quem escreve, qual é seu papel social (jornalista, professor, pai); para quem escreve, qual é o papel social de quem vai ler, em que instituição social o texto vai ser produzido e vai circular (na escola, em esferas jornalísticas, científicas, outras); qual é o efeito que o autor do texto quer produzir sobre seu destinatário (convencê-lo de alguma coisa, fazê-lo ter conhecimento de algum fato atual ou de algum acontecimento passado, diverti-lo, esclarecê-lo sobre algum tema considerado difícil); algum outro objetivo que não especificamos. Deve-se também, para o desenvolvimento da linguagem, planificar a organização do texto e utilizar os mecanismos linguísticos que asseguram a arquitetura textual: a conexão e a segmentação entre suas partes, a coesão das unidades linguísticas que contribuem para que haja uma unidade coerente em função da situação de comunicação. Esses aspectos de textualização dependem, em grande parte, do gênero de texto. As operações que realizamos quando escrevemos uma receita ou uma carta comercial ou um conto não são as mesmas. Mas, independentemente do texto que escrevemos, o domínio da escrita também implica: escolher um vocabulário adequado, respeitar as estruturas sintáticas e morfológicas da língua e fazer a correção ortográfica. Além disso, se tomarmos a produção escrita como um processo e não só como o produto final, temos de levar em consideração as atividades de revisão, de releitura e de reescrita, que são necessárias para chegarmos ao resultado final desejado. *Juntamente com Jean-Paul Bronckart, Bernard Schneuwly e outros pesquisadores, Joaquim Dolz pertence a uma escola de pensamento genebrina que tem influenciado muitas pesquisas, propostas de intervenção e de políticas públicas de educação em vários países. No Brasil, a ação do trabalho desses pesquisadores se faz sentir até mesmo nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Dolz nasceu em 1957, em Morella, na província de Castellón, Espanha. Atualmente, é professor da unidade de didática de línguas da Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação da Universidade de Genebra (Suíça). Em sua trajetória de docência, pesquisa e intervenção, tem se dedicado sobretudo à didática de línguas e à formação de professores. As atividades propostas neste Caderno visam à apropriação, por parte de crianças e jovens, da linguagem e das palavras como meios de comunicação e de expressão da criatividade. São brincadeiras sérias, na medida em que exigem treino de leitura e percepção; e também divertidas, porque a poesia permite que se brinque com as palavras. Ler e produzir poemas pode ser uma atividade lúdica, criativa e original. Brincar de poesia é exercício para uma vida – quanto mais se sabe, mais se quer descobrir e aprender. É um exercício de perceber o que se diz, como se diz ou se escreve e, ainda, como se busca levar o leitor a interpretar o sentido. José Paulo Paes, além de poemas, escreveu ensaios.

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Podcast
Políticas públicas, participação e cidadania

Valorização docente na educação Básica

No sexto episódio do podcast Educação na ponta da língua, convidamos você a pensar com a gente: o que é necessário para garantir que a carreira docente seja valorizada no Brasil? Acompanhe!

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Revistas digitais
Educação Integral

Cadernos Cenpec (nº 2, 2006): Educação integral

A segunda edição do Cadernos Cenpec, traz para você o “estado da arte” da educação integral no Brasil, com reflexões e práticas que se embasam nessa concepção ou bebem dessa referência. Acesse!

2 Educação integral Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Editorial resce o debate em busca de consenso em relação aos conceitos e conteúdos da educação integral. Para contribuir com essa discussão e ampliar o conhecimento sobre o tema, esta edição do Cadernos Cenpec procura lançar luz sobre o “estado da arte” da educação integral no Brasil, apresentando as reflexões e as práticas que se embasam nessa concepção ou bebem nessa referência. O tema da educação assume uma centralidade indis- cutível. É unânime que ela deve ser apoiada e melhora- da, e que todos, além dos governos e da iniciativa priva- da, somos responsáveis pelos resultados que precisam ser alcançados nos próximos anos em relação à inclu- são justa e qualificada de todos os brasileiros no mun- do do conhecimento. Na área pública, organizações governamentais, socie- dade, organizações sociais e cidadãos vocalizam seu de- sejo de uma boa educação para crianças e jovens, consi- derada agora numa perspectiva mais ampla, como já in- dicam as leis nacionais. Nesse cenário, ressurge a idéia da educação integral, pensada e concretizada de varia- dos modos e a partir de diferentes concepções, todos eles devedores do entusiasmo e da ousadia de Anísio Teixeira e herdeiros das contradições inerentes aos pro- jetos mais arrojados de mudança. Ressurge como expectativa de ampliação do tempo de estudo, via sistema público de ensino, como estratégia de convocação de muitos espaços de aprendizagem, como possibilidade de alargamento da participação de diferen- tes políticas sociais e da sociedade organizada no proces- so educativo e, também, como alternativa importante para a melhoria dos índices educacionais do País. A educação integral renasce sob a inspiração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, que prevê o aumento progressivo da jornada escolar para o regime de tempo integral (Artigos 34 e 87) e, ao mesmo tempo, reconhece e valoriza as iniciativas de instituições que desenvolvem, como parceiras da escola, experiên- cias extra-escolares (LDB, Artigo 3, item 10). Os artigos e estudos de caso que apresentamos foca- lizam o tempo e o espaço para aprender e permitem re- lembrar aprendizagens nascidas de processos intencio- nais e planejados e aquelas construídas no cotidiano, de maneira simples e distraída, como as que experimenta- mos com pais, mães e comunidade. Permitem também entender a semeadura do conhecimento, em experiên- cias de ousadia e esperança, e outras, em que o conflito e o desafio instigam a insistência pedagógica e a cons- ciência política de educadores sociais, pais e professo- res em todo o Brasil. Sob a lona colorida de circo, na caatinga nordestina ou na metrópole agitada, as crianças e adolescentes vi- venciam diferentes experiências educativas, seja em pro- gramas pós-escolares, seja na jornada escolar ampliada, construindo composições curriculares que procuram aten- der a uma demanda das famílias pelo cuidado pedagógico com seus filhos e pela possibilidade de obter, para eles, por meio da educação integral, um passaporte para a in- dependência econômica e a melhoria social. É importante lançar um olhar sobre a educação inte- gral, considerando-a um processo de redescoberta da criança e do adolescente como sujeitos de direito em sua inteireza humana. É também uma oportunidade para ati- var e estimular o compromisso de todos com a educação pública brasileira, que ainda precisa de uma revolução, a cada dia e em cada contexto, para a superação de dé- cadas de atraso educacional. Maria Alice Setubal Diretora-Presidente do enpec O ressurgimento da educação integral C Sumário editorial Maria Alice Setubal O ressurgimento da educação integral 3 @ artigo Maria do Carmo Brant de Carvalho O lugar da educação integral na política social 7 @ opinião Antonio Jacinto Mathias É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança 12 @ artigo Isa Maria F. Rosa Guará É imprescindível educar integralmente 15 relato de prática Abdalaziz de Moura No meio rural, alunos, famílias e professores aprendem e ensinam. 25 @ artigo Gil G. Noam Aprendendo com entusiasmo: conectando o mundo da escola ao pós-escola por meio da aprendizagem por projetos. 29 relato de prática Cristina Fernandes de souza Um caso de amor entre uma escola formal e uma escola de samba 39 @ artigo Dulce Critelli A condição humana como valor e princípio para a educação 43 relato de projeto Maria Cristina S. Zelmanovits Em Parati foi assim... 49 @ artigo Lúcia Velloso Maurício O que se diz sobre a escola pública de horário integral 57 depoimento Luiz Braga A nau dos insensatos 68 @ artigo Maria Júlia Azevedo Gouveia Educação integral com a infância e a juventude 77 depoimento Gilberto Dimenstein Tirar os muros entre viver, aprender, ser e fazer. 86 artigo Ana Maria Cavaliere Em busca do tempo de aprender 91 depoimento Adalberto Wodianer Marcondes A classe média vai para a escola pública 102 @ artigo Célio Turino Educação não formal, jogo e brincadeira. 107 depoimento Magali Leite de Freitas As quatro estações 115 @ artigo Ulisses F. Araújo, Ana Maria Klein Escola e comunidade, juntas, para uma cidadania integral. 119 depoimento Maria Cristina S. Zelmanovits É mais simples do que parece 126 @ artigo Antonio Sérgio Gonçalves Reflexões sobre educação integral e escola de tempo integral 129 relato de prática Maria José Reginato, Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes No Aracy, com garra, transformando idéias em ações. 136 @ artigo Maurício Ernica Dos outros de que somos feitos: educação, cultura e conflitos sociais. 143 estudo de caso Seluta Rodrigues de Carvalho, Ione Garcia Altieri, Izabel Brunsizian, Célia Terumi Sanda E o circo chegou à capital do pequi! 148 @ memória Marcos Cezar de Freitas Anísio Teixeira, leitor da História do Brasil. 153 @ Mosaico Sites, livros & filmes. 158 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 temática “educação integral” ganha alta relevância no Brasil de hoje. Queremos e precisamos de educação integral para to- das as crianças e todos os adolescentes brasileiros. Mas como estamos compreendendo a educação integral? Alguns pensam educação integral como escola de tempo integral. Outros pensam como conquista de qua- lidade social da educação. Outros, como proteção e de- senvolvimento integral. Alguns a reivindicam a partir das agruras do baixo desempenho escolar de nossos alunos e apostam que mais tempo de escola aumenta a aprendizagem... Alguns outros a vêem como comple- mento socioeducativo à escola, pela inserção de outros projetos, advindos da política de assistência social, cul- tura, esporte. Enfim, estamos em pleno debate e busca de con- sensos em torno do conceito, conteúdo e lócus da educação integral. A educação brasileira não cumpriu o ideário a ela pre- destinado no século XX. Somente na entrada do século XXI é que, finalmente, universalizou-se o acesso ao en- sino fundamental e, no entanto, essa meta não tem sido suficiente para que nossas crianças e adolescentes ob- tenham os saltos de aprendizagem esperados. Todos conhecemos os limites que o desempenho da educação brasileira apresenta. • Adentramos o século XXI com 9% de analfabetos ab- solutos, 31,3% de pessoas que pouco utilizam a lei- artigo O lugar da educação integral Maria do Carmo Brant de Carvalho* na política social * Maria do Carmo Brant de Carvalho é Professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da PUC/SP e coordenadora geral do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. A Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tura e a escrita em sua vida diária, revelando compre- ensão mínima de um texto escrito; e somente 26,2% atingem níveis mais elevados nessas habilidades, usando de forma intensa e diversificada a lingua- gem escrita, por exemplo, lendo jornais regularmente ou usando meios escritos para obter novos conheci- mentos (IBGE, 2000/INAF, 2001).1 Essa é a face mais contundente da pouca eficiência da escola, uma vez que tais habilidades são, ao mesmo tempo, um dos principais objetivos do ensino fundamental e conhe- cimento de base para a aprendizagem em todas as áreas do currículo escolar. • Paralelamente, mais de 80% dos alunos que freqüen- taram a 4a série do ensino fundamental não se apro- priaram das habilidades esperadas para essa etapa escolar (SAEB, 2001). • De cada cem crianças matriculadas na primeira sé- rie do ensino fundamental, apenas 54 concluem a 8a série. Entre jovens de 15 a 17 anos , apenas 44% cur- sam o ensino médio. Na zona rural, este índice cai para 22%. Não é tarefa fácil assegurar qualidade de educa- ção, a começar pelo tamanho e deficiências ain- da presentes na rede de ensino. • É sempre importante lembrar que possuímos cerca de 50 milhões de alunos na rede de ensino básico, o que representa mais que a população conjunta dos nossos países vizinhos do Mercosul (Argentina, Pa- raguai e Uruguai). Possuímos 2,5 milhões de profes- sores nessa rede. As escolas públicas mantêm enor- mes deficiências (40% delas não possuem energia elétrica); faltam materiais didáticos; faltam bibliote- cas; a maioria não possui computadores e menos ain- da, acesso à Internet. Para dar conta do número de alunos, nossas escolas funcionam no geral com três e mesmo quatro turnos. • Nossos professores recebem baixos salários, o que os leva a trabalhar em mais de uma escola, e não se tem ainda uma boa política de formação continua- da; é bastante constrangedor assumir que a maioria dos nossos professores ganha menos de dois salá- rios mínimos mensais, para atribuição tão nobre. • O orçamento destinado à educação básica ainda é insuficiente se comparado com o orçamento desti- nado por países que radicalizaram os investimentos em educação e apresentam hoje um enorme salto na escolaridade de seu povo. Um exemplo bastante co- nhecido é o da Coréia do Sul, onde o aluno do ensi- no fundamental recebe duas vezes mais investimento que um universitário. No Brasil, o gasto público com aluno do ensino superior é 12 vezes mais que o gas- to com um aluno do ensino fundamental. Mas nem tudo é limite! A sociedade brasileira ga- nhou consciência da importância da educação e a vocalização social em torno dela cresceu e se generalizou. A Educação se apresenta hoje como o ponto central do desenvolvimento econômico e social. Esse conceito está produzindo um novo deslocamento. • Um primeiro fato a ser compreendido neste novo contexto é que a educação ganhou sentido multise- torial. Já não se invoca a escola como único espaço de aprendizagem. As políticas públicas, como cultu- ra, assistência social, esporte e meio ambiente, in- vadem o campo das chamadas ações/programas so- cioeducativo objetivando proporcionar às crianças e adolescentes brasileiros ampliação do universo cul- tural, aprendizados de iniciação tecnológica e inclu- são digital, aprendizados no campo esportivo, cons- ciência e trato ambiental ... enfim, aprendizagens bá- sicas que se deslocam da escola, mas a ela se com- plementam. • As organizações comunitárias, organizações da so- ciedade civil (o terceiro setor) e iniciativa privada têm investido expressivamente na educação em seu sen- tido multidimensional. • A mídia vem apresentando sistematicamente infor- mações sobre o desempenho da educação pública nacional, o que indica vocalização social. A política social pública está mudando! A política social – pós levante neoliberal – vem in- troduzindo novas sínteses e lógicas para dar conta dos direitos do cidadão sob a consigna da equidade. Uma política social que se desenha na sua inteireza, pelo prisma da multisetorialidade, com forte protagonis- mo do Estado, mas também da sociedade civil. Há um inegável contributo das políticas sociais no desenvolvi- Cadernos Cenpec 2006 n. 2 mento social e humano, no enfretamento da pobreza e desigualdades que assolam o país. Já não são mais to- leráveis, para além da descontinuidade da política, os desenhos centralizadores e setorizados na condução da política social, os conceitos corporativos de seus agen- tes que inibem a maior inovação e densidade de respos- tas da política social. É absolutamente prioritário bus- car com total radicalidade a maior efetividade e eqüida- de da ação pública. Democracia, participação e descentralização das ações públicas produziram mudanças substanti- vas na condução da política social. A governabilidade social passou a depender, cada vez mais,­ da participação dos diversos sujeitos do fazer social: o Estado, a sociedade civil, a comunidade e o pró- prio público-alvo da ação pública. Na arena pública, estão presentes, interagindo de for- ma conflituosa ou cooperativa, o Estado, a sociedade ci- vil, movimentos sociais, minorias, terceiro setor, iniciati- va privada, mercado, comunidades e cidadãos. O Estado tem aqui papel central na regulação e garantia na pres- tação dos serviços de direito dos cidadãos. Não se com- preende mais o Estado como agente único da ação públi- ca, mas espera-se que cumpra sua missão de intelligentia do fazer público e, em conseqüência, exerça papel indu- tor e articulador de esforços governamentais e societários em torno de prioridades da política pública. É assim que, na conjuntura atual, descentralização, municipalização e parcerias público-privadas contidas no receituário neoliberal tornaram-se realidade irrever- sível, não para desresponsabilizar o Estado, e sim para compor governância democrática e sentido público da rés pública. Em síntese , há uma nova arquitetura de ação públi- ca colocada em movimento. • Uma arquitetura de gestão pública fundamentada na lógica da cidadania que promova ações integradoras em torno do cidadão e do local como eixos de um de- senvolvimento sustentável. • O cidadão já não quer ser reconhecido como um soma- tório de necessidades e direitos; deseja atenções inte- grais (integralizadas). O Estatuto da Criança e do Ado- lescente é, nesse sentido, uma lei exemplar, pois anun- cia de forma enfática o direito de crianças a adolescen- tes a uma proteção e desenvolvimento integral. • Políticas e programas desenhados pelo prisma da multisetorialidade, substituindo os tradicionais re- cortes setoriais e especializações estanques . • O reconhecimento da incompletude e necessária com- plementaridade entre serviços e atores sociais. Estes princípios reforçam uma nova tendência: ações em rede fortemente conectadas com o conjunto de sujei- tos, organizações e serviços da cidade. Não mais ações isoladas. Por isso mesmo, os serviços na ponta ganham uma margem fundamental de autonomia para produzir res- postas assertivas, flexíveis e combinadas, de direito do cidadão e de direito ao desenvolvimento sustentável do território a que pertencem. No Brasil, as políticas setoriais ainda padecem de um certo saudosismo em torno dos parâmetros que funda- ram a política social do pós-guerra da primeira metade do século XX: o afã de bem definir seu recorte setorial, a produção estatal de seus serviços, a padronização e igualitarismo de oportunidades, a reserva orçamentária setorial. Em consequência, resiste-se a adoção de po- líticas combinadas e programas rede. Não se percebe que as mudanças nos parâmetros de construção da política social são , neste caso, menos pres- sionadas pelo receituário neoliberal e mais, sobretudo, pres- sionadas por novas demandas da sociedade civil. Na primeira metade do século XX, construímos uma política social pautada na igualdade de oportunidades que acabou por resultar em homogeneidade de serviços ofertados a todos os cidadãos. As fraturas, nesse proces- so, estão às claras para todos nós. • não consegue garantir efetiva igualdade de oportuni- dades; • não contempla conteúdos socialmente significativos porque não pode ajustar-se à dinâmica de âmbitos sociais distintos (grupos sociais e regionais). [...] a educação ganhou sentido multisetorial. Já não se invoca a escola como único espaço de aprendizagem. 10 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Resulta daí o hoje valorizado paradigma de eqüida- de: oferta de múltiplas e distintas oportunidades para as- segurar eqüidade, produzindo o que todos os cidadãos tem direito: igualdade de resultados. Posta essas questões de fundo, como introduzir a educação integral no escopo de uma política social que se quer mais efetiva? 1. Uma primeira colocação para instigar nosso debate pode ser assim formulada: a educação integral, como nova prioridade na agenda pública, deve ser proces- sada como medida multisetorial ou circunscrita à po- lítica setorial de educação? Para a sociedade que nos toca a viver, uma política de educação fechada em si mesma perdeu seu sentido transformador. Não se quer mais uma política de educa- ção centrada apenas em sistemas formais de ensino (es- colas). A educação tem presença e investimento em ou- tras políticas setoriais (cultura, esporte, meio ambien- te...). Ela ganha efetividade quando integrada a um pro- jeto retotalizador da política social. 2. Os projetos socioeducativos, como forma de com- plementar as aprendizagens ofertadas pela escola à crianças e adolescentes pobres, nasceram nas comu- nidades brasileiras por iniciativa da sociedade e não pela mão do Estado.2 Aliás, é assim que nascem as respostas públicas às demandas de sua população. Expandem-se como políticas da comunidade, cons- troem-se no microterritório e são promovidas por orga- nizações não-governamentais que, em parceria com a prefeitura, a igreja, empresas e membros da comunida- de, oferecem um serviço de atenção à infância e juven- tude. Os microterritórios em que estão instalados, em sua maioria, têm poucas oportunidades e serviços des- tinados à proteção, educação e lazer de crianças, ado- lescentes e jovens. É preciso insistir que milhares de programas de pós- escola, hoje existentes no Brasil, voltados às camadas po- pulares, são ainda iniciativas da sociedade civil, cunha- dos pelas próprias organizações da comunidade. Tendo – estes programas – nascido nas comunidades e adentrado ao Estado pela porta da assistência social ou da cultura, não são reconhecidos como projeto educacio- nal. As alianças e parcerias de complementaridade com a escola, quando ocorrem, têm origem no próprio interesse de cada escola ou organização social, não sendo costura- das e assumidas como política pública da cidade. Estas ações são um bem público comunitário e se constituem em um capital social das próprias popula- ções vulnerabilizadas pela pobreza e escassez de opor- tunidades e serviços. No estudo sobre estas iniciativas, constata-se a oferta de um mosaico de ações socio culturais, lúdicas e de con- vivência infanto-juvenil. Sem dúvida, constituem-se como serviço de proteção social, mas vão além, compondo-se como programa multisetorial que abarca, em seu leque de atividades, cultura, educação, esporte, lazer e saúde. Neste sentido, elas indicam uma inovação da maior im- portância: são ações realizadas nos microterritórios da cidade, construídas com olhar multisetorial capazes de responder ao leque de aprendizagens socioeducativas que o grupo infanto-juvenil precisa e deseja. Nesta perspectiva, já se torna obsoleta a idéia de com- por o pós-escola apenas com iniciativas internas da própria política de educação. O fundamental é concebê-las como políticas da cidade, articulando aí o mosaico de ofertas de aprendizagem disponibilizadas pelo conjunto das po- líticas públicas setoriais de assistência social, educação, cultura, esporte, e das ações originárias nas próprias co- munidades. Abarcam o conjunto de sujeitos e espaços de aprendizagem construídos no local e operados/conduzi- dos por organizações sociais e poder público. Aprofundemos os sentidos desta ação socio educati- va. Primeiro, ela produz oportunidades de aprendizagem sem ser repetição do espaço escolar. Não possui um cur- rículo e uma programação pedagógica padrão. Ao con- trário, sua eficácia educacional está apoiada num currí- culo-projeto que nasce nas comunidades, de suas de- mandas, interesses, particularidades, potencialidades, e por seu próprio protagonismo. O termo socioeducativo, contido, na programática da educação integral, designa um campo de múltiplas apren- dizagens para além da escolaridade, voltadas a assegurar proteção social e oportunizar o desenvolvimento de inte- resses e talentos múltiplos que crianças e jovens aportam. Designa igualmente finalidades, como a convivência, so- ciabilidade e participação na vida pública comunitária, en- tendendo este campo como privilegiado para tratar, de for- ma intencional, valores éticos, estéticos e políticos. Nossa reflexão problematiza e propõe que o pós-es- cola resulte da articulação do conjunto de esforços/res- 11 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 postas multisetoriais já existentes nos microterritórios da cidade e tomem a realidade local, seus sujeitos e iden- tidades como pauta inicial das situações de aprendiza- gem oferecidas à população infanto-juvenil. Nesta proposição, concretiza-se um traço inovador: realiza de forma convergente propósitos intersetoriais de desenvolvimento e proteção integral de crianças e ado- lescentes, objetivos esses que compartilham a intenção máxima do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, julho de 1990). Como conclusão, resta ainda uma última problemati- zação ou dilema dos tempos atuais: o tempo integral exi- gido pela LDB pode ser feito exclusivamente na escola? Não. Por quê? Uma primeira resposta é pragmática: A rede escolar opera com dois ou até mesmo três tur- nos para atender à demanda por vagas, situação que não se resolverá no médio prazo, o que inviabiliza propostas de escolas em tempo integral. Assim, a busca do tempo integral exige uma articula- ção orgânica entre escola pública e programas socioedu- cativos realizados por organizações não-governamentais nos próprios microterritórios. A expansão dessa articula- ção irá pressionar o debate e gerar proposições sobre a educação integral e não apenas de tempo integral. Uma segunda resposta é definida pela intencio- nalidade educacional: A sociedade atual é caracterizada por sua complexi- dade: uma sociedade multifacetada, tecida pela veloci- dade de mudanças, constantes e cumulativas, provoca- das pelos avanços científicos e, sobretudo, pelo aumen- to das possibilidades de acesso à redes de informação e de consumo. Uma sociedade movida pelo conhecimento e pela informação. Uma sociedade-rede com novos ato- res e movimentos sociais que incindem seu papel pro- tagônico não só na revolução cultural, como também e cada vez mais, na definição da agenda política dos Es- tados. As organizações não-governamentais, com todas as suas contradições e mesmo particularismos, alargam e revitalizam a esfera pública. Nossa sociedade é também marcada pela transfor- mação produtiva: quebra da sociedade salarial, precari- zação do trabalho, extinção de postos de trabalho e in- dução a novas ocupações no mercado que exigem um novo perfil de trabalhador. A sociedade complexa de hoje aumentou o grau de in- certeza dos indivíduos e das organizações. Por isso mes- mo, a educação tem que avançar nas aprendizagens que este novo cidadão está a exigir e, em conseqüência, não é possível mais se pensar na escola como o único espa- ço de aprendizagem. Este novo cidadão requer, para seu trânsito no exercício da cidadania, circular em diversos es- paços de aprendizagem, visando à sua maior sociabilida- de, o desenvolvimento da capacidade de estabelecer tro- cas e o exercício da tolerância na pluralidade. Há uma riqueza de possibilidades contida na comple- mentaridade mais orgânica entre o sistema escolar e as oportunidades de aprendizagem implementadas por ou- tros sujeitos e espaços de aprendizagem da cidade. Po- tencializam as oportunidades de escolhas de trajetórias de desenvolvimento, de trânsito e de circulação de crianças e adolescentes em diversos espaços. Sintonizam com o modo peculiar de aprendizagem, difuso e descentrado, constitutivo desta sociedade complexa, ampliando as oportunidades de sociabilidade e convivência. Vários municípios no Brasil já estão operando ou buscando implementar uma rede de serviços pós-esco- la multisetoriais envolvendo, sobretudo, educação, cul- tura, esportes e assistência social para constituir a jor- nada de tempo integral exigida pela LDB. Contudo, para responder às demandas de aprendi- zagem e sociabilidade requeridas na contemporaneida- de, há um outro avanço democrático e irrecusável nos tempos que nos tocam viver: articulações e convivência mais orgânica entre programas e serviços públicos es- tatais e serviços públicos não estatais – de iniciativa da comunidade e sociedade civil – como uma tendência à expansão de ações de educação pública. Essas tendências podem e devem trazer, em seu es- copo, compromisso político com: a inclusão e a eqüida- de social; a qualidade da educação e da escola pública; a gestão democrática e partilhada com a comunidade; a participação e o fortalecimento da sociedade organi- zada e seus diferentes segmentos. Notas 1 INAF: Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional, construído pelo Instituto Paulo Montenegro, ONG Ação Educativa e Ibope. Analfabetismo funcional refere-se às condições de uso das habilidades de leitura e escrita em diferentes situações da vida diária. 2 Para crianças brasileiras ricas, o comércio empresarial deu conta. 12 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Ser humano, pessoa, cidadão e sujeito. O conceito de educação integral coloca em destaque o papel central que a educação tem no desenvolvimento do ser humano como pessoa, cidadão e sujeito da sua história. Assim, sempre que fazemos algum questiona- mento sobre educação, políticas educacionais, méto- dos e pedagogias, devemos primeiro nos perguntar: “O que entendemos por ser humano, que pessoa estamos formando, que cidadão estamos preparando, que sujei- to reconhecemos?”. Na sociedade atual, com as rápidas transformações que experimentamos, com a agilidade da comunicação e a velocidade da informação, novos desafios são im- postos à educação. Cada vez mais, as políticas educa- cionais que implementamos determinam o sucesso ou o fracasso da nossa sociedade, da nossa vida em comum, considerando a amplitude que a vida em sociedade ga- nhou no contexto da globalização. A transmissão de informações e conhecimento acu- mulados pela história da humanidade não é suficiente para preparar o indivíduo para os desafios pessoais e profissionais que a contemporaneidade e o futuro nos impõem. A nossa busca constante de significados, de compreensão, intervenção e transformação da realida- de nos colocam desafios que extrapolam o simples con- tato com as informações. Torna-se necessário oferecer às novas gerações instrumentos que as ajudem a elaborar novos conhecimentos, a desenvolver seu potencial cria- tivo, a interagir socialmente de forma autônoma e cons- trutiva. Cada vez mais, há que se transformar informação em conhecimento crítico e compartilhado. Esse é um grande desafio educacional. * Antonio Jacinto Mathias, engenheiro de Produção, pós-graduado em Administração de Empresas, é Vice-presidente da Fundação Itaú Social. OPINIÃO “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” Antonio Jacinto Mathias* Diante desse desafio, a compreensão da educação integral como estratégia de formação integral do ser hu- mano indica uma nova e promissora perspectiva no en- frentamento das questões que se impõem. Educação Integral entendida como formação integral do ser humano amplia o conceito de educação, abrindo espaço para o envolvimento e responsabilidade de toda a sociedade na formação das novas gerações. Um ditado africano traz o cerne da questão: “É preci- so uma aldeia inteira para educar uma criança”. Esse entendimento de educação entegral, além de contemplar o ser humano de forma integrada e integra- dora, pressupõe a diversidade dos espaços educativos como conceito fundamental. A circulação em diversos espaços de aprendizagem traz possibilidades de ampliação de repertórios relacio- nais, culturais, científicos, artísticos, todos importantes para a criação de significados, compreensão da realidade e aumento da capacidade de intervenção positiva. As equipes técnicas das diversas secretarias de edu- cação têm trazido essas questões ao propor políticas educacionais de tempo integral. E as diferentes esco- lhas que têm sido feitas nos mostram que o longo cami- nho que temos a percorrer já foi iniciado e que passos seguros estão sendo dados. Mas devemos separar con- ceitualmente as expressões “educação integral” e “edu- cação de tempo integral”. Evidentemente, educação in- tegral tem muito maior abrangência. Educação de tem- po integral pode ser um dos bons caminhos para atin- girmos a educação integral. O poder público, a sociedade civil organizada e a ini- ciativa privada têm se unido em diversos projetos nes- sa direção e têm apresentado possibilidades inovado- ras para que as novas gerações aprendam “a conhecer, a fazer, a conviver, a ser”. 13 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Proteção e educação para crianças e adolescentes Temos, no Brasil, várias experiências escolares que estão em sintonia com o mundo e o território em que os alunos vivem. A criação de espaços para a troca de ex- periências entre os educadores e a visibilidade dessas experiências são estratégias importantes para que haja a apropriação das experiências bem-sucedidas. Na Fundação Itaú Social, temos algumas vivências que consideramos ricas e inovadoras na ampliação dos espaços educativos, nos lugares de aprendizagem que extrapolam a sala de aula. Trabalhamos numa perspectiva de comple- mentaridade de ações, em coerência com a visão de educa- ção integral que expus acima. Com o Programa Educação e Participação, desenvolvemos duas ações centrais que bus- cam formas inovadoras de concretizar a educação integral: o Prêmio Itaú-Unicef e o Gestores de Aprendizagem. Com o Prêmio Itaú-Unicef, reconhecemos e estimula- mos o trabalho de ONGs que, em parceria com a escola pública, desenvolvem ações socioeducativas, tornando- se um espaço complementar de educação. Acreditamos que a interlocução entre a proteção social, cultura e edu- cação é fundamental para o avanço das políticas de edu- cação integral em nosso país. Mais de cinco mil projetos já foram inscritos no Prê- mio Itaú-Unicef ao longo destes dez anos de premia- ção. Consideramos importante dar luz a esses projetos, endossando-os e reconhecendo-os como espaços que, aliados ao poder público, tornam-se alternativas viáveis e inovadoras para a educação integral. No ano passado, ao realizarmos um seminário sobre educação integral, com mais de 400 educadores, tivemos a oportunidade de refletir sobre os fundamentos teóricos que sustentam diversas opções e alternativas educacionais e pudemos conhecer propostas de efetiva interação entre escolas e ONGs que estão construindo amplos espaços educati- vos com a comunidade. Os técnicos do projeto Gestores de Aprendizagem, os profissionais das secretarias de educação e de as- sistência social e os membros de ONGs, num proces- so sinérgico altamente positivo, propõem e implemen- tam ações socioeducativas sempre relacionadas ao en- sino público. O objetivo do projeto é contribuir para au- mentar a integração de ações intersetoriais com vistas ao aumento da proteção e da educação das crianças e adolescentes. 15 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender e ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Carlos Rodrigues Brandão Uma aproximação conceitual e um novo debate aquecimento do debate em torno da educação integral nos anima a revisitar um estudo realizado pelo Cenpec, em 1999,1 atualizando a reflexão sobre o tema. Rediscu- timos, neste texto, os diferentes conceitos de educação integral para, a partir dessa referência, refletir sobre o de- safio da implantação dos programas de educação inte- gral e das questões que mobilizam os ânimos a respeito do tema. Há muitos atores nessa reflexão: os especialis- tas, os agentes públicos da política educacional e a so- ciedade brasileira em geral parecem convergir na inten- ção de encontrar alternativas para a melhoria de educa- ção das crianças brasileiras. A educação integral retor- na à cena como uma delas. Isoladamente, nenhuma norma legal, concepção ou área da política social dá conta do atendimento comple- to pretendido pelas propostas de educação integral. A perspectiva que adotamos é, portanto, a da necessida- de de uma composição de estratégias e alternativas po- líticas e pedagógicas para repensarmos o modo de fun- cionamento das instituições educativas, a fim de colo- cá-las a favor da lógica da inclusão e da formação inte- gral das crianças e adolescentes. ARTIGO É imprescindível educar Isa Maria F. Rosa Guará* integralmente * Isa Maria F. Rosa Guará é Pedagoga, Doutora em Serviço Social (PUC/SP) e Pós-Graduada em Psicopedagogia. É Vice-Presidente da Fundação ABRINQ pelos Direitos da Criança e do Adolescente e Assessora de Coordenação do Cenpec. O 16 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 A construção de um pacto garantidor do esforço cole- tivo a favor da educação integral deve considerar a meta, sem pretender enquadrar as iniciativas regionais, o que supõe estimular soluções não homogeneizadoras, que respeitem os diferentes contextos e possibilidades. Com diversas propostas políticas concretas sendo efetivadas por secretarias e órgãos públicos, em vários municípios e estados do País, a questão da educação in- tegral tem alcançado maior visibilidade. Mas a concreti- zação das propostas expõe os desafios da prática e faz emergir a necessidade de se estabelecer um patamar bá- sico de compreensão do significado da experiência pre- tendida, alinhando entendimentos em torno da concep- ção que circula nas produções acadêmicas e nos progra- mas políticos na área. Educação Integral como formação integral O que se observa nas discussões de vários autores, especial- mente os clássicos da pedagogia, é que, quando se fala em educação integral, fala-se de uma concepção de ser humano que transcende as concepções redutoras que hoje predominam na educação, por exemplo, as que enfatizam apenas o homem cognitivo ou o homem afetivo. A integralidade da pessoa huma- na abarca a intersecção dos aspectos biológico-corporais, do movimento humano, da sociabilidade, da cognição, do afeto, da moralidade, em um contexto tempo-espacial. Um processo educativo que se pretenda “integral” trabalharia com todos estes aspectos de modo integrado — ou seja — a educação visaria à formação e ao desenvolvimento humano global e não apenas ao acúmulo informacional. Bernardete Gatti A concepção de educação integral que a associa à for- mação integral traz o sujeito para o centro das indaga- ções e preocupações da educação. Agrega-se à idéia fi- losófica de homem integral, realçando a necessidade de desenvolvimento integrado de suas faculdades cogniti- vas, afetivas, corporais e espirituais, resgatando, como tarefa prioritária da educação, a formação do homem, compreendido em sua totalidade. Na perspectiva de compreensão do homem como ser multidimensional, a educação deve responder a uma mul- tiplicidade de exigências do próprio indivíduo e do contex- to em que vive. Assim, a educação integral deve ter objeti- vos que construam relações na direção do aperfeiçoamen- to humano. Ao colocar o desenvolvimento humano como horizonte, aponta para a necessidade de realização das po- tencialidades de cada indivíduo, para que ele possa evoluir plenamente com a conjugação de suas capacidades, conec- tando as diversas dimensões do sujeito (cognitiva, afetiva, ética, social, lúdica, estética, física, biológica). Esta perspectiva humanística da educação como for- mação integral sinaliza para relações educativas em que também o educador se desenvolva plenamente, para que possa compreender e dar significado ao processo edu- cativo, como condição para a ampliação do desenvolvi- mento humano de seus educandos. Isso poderá favore- cer uma prática pedagógica compreensiva do ser huma- no, em sua integralidade, suas múltiplas relações, di- mensões e saberes, reconhecendo-o em sua singulari- dade e universalidade. A educação, como constituin- te do processo de humanização, que se expressa por meio de mediações, assume papel central na organi- zação da convivência do humano em suas relações e interações, matéria-prima da constituição da vida pes- soal e social. Em seu livro Reconstruir o ninho, Urie Bronfenbrenner estabelece cinco proposições que descrevem os proces- sos que alimentam o desenvolvimento humano. No nú- cleo desses princípios, está a necessidade social, inte- lectual, física e emocional da criança de interação mú- tua e contínua com um adulto cuidadoso, afetivo e esti- mulador, preferivelmente, com muitos adultos. Uma de suas proposições define que: ... para que uma criança ou adolescente se desenvolva inte- lectualmente, emocionalmente, socialmente e moralmente, é preciso que participe progressivamente de atividades re- cíprocas complexas, de modo regular, pelo período de toda sua formação, relacionando-se com uma ou mais pessoas e estabelecendo, com elas, um vínculo emocional, mútuo e forte (Bronfenbrenner, 1990). A idéia da formação integral do homem está presen- te, principalmente, em projetos de educação para a paz, dos direitos humanos e da educação para valores, todos eles fundamentados em princípios éticos e humanistas. [...] a educação deve responder a uma multiplicidade de exigências do próprio indivíduo e do contexto em que vive. 17 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Nesse sentido, a formação integral dos indivíduos não está adstrita ao processo formal e intencional de ensino, pois tem sua base nas esferas da vida cotidiana, como nos lembra Heller (1994). Inicia-se no nascimento e pros- segue com a aprendizagem sobre o universo cultural, du- rante todo o processo de desenvolvimento das pessoas, pois é na vida cotidiana que se objetivam as ações huma- nas e nela se inscrevem os resultados do conhecimento humano, de suas conquistas e desafios. Educação integral como articulação de saberes a partir de projetos integradores A relação escola/comunidade também poderá propiciar o es- tudo dos temas transversais, a integração entre as disciplinas e o trabalho coletivo. Com efeito, quando o aluno aprende a conhecer a comunidade com suas variedades de aspectos e de tipos, passa a preocupar-se com seus problemas e, se bem orientado, passa a querer participar na resolução dos mesmos e, não raro, o aluno evolui quanto: ao respeito às manifestações culturais, à compreensão do lugar público e suas regras, à luta contra o preconceito, ao respeito alheio e a seu direito de ser respeitado enquanto cidadão [Udemo (s/d)]. Algumas concepções sobre a educação integral reme- tem à idéia de projetos que articulam saberes em dife- rentes contextos, ampliando o foco do processo para a rede de espaços de aprendizagem. Isso vale tanto para os projetos de trabalho no âmbito da escola quanto para aqueles desenvolvidos em outros contextos educativos. O centro das preocupações com a aprendizagem está em permitir que as vivências e a ação pedagógica, orga- nizada por projetos, leve a uma integração dos conhe- cimentos e saberes tanto da esfera acadêmica quanto da vida social. Toro define saber social como “o conjunto de conheci- mentos, práticas, habilidades, ritos, mitos e valores que permitem que uma sociedade possa sobreviver conviver, produzir e dar sentido à vida” (Toro, 1998). A educação deve, portanto, considerar esses saberes que garantem aos homens sua sobrevivência, seus relacionamentos pessoais e sociais, seu trabalho produtivo e o sentido para sua vida. Essas são tarefas de toda uma vida. Para dar conta delas, há um conjunto de conhecimentos siste- matizados e organizados no currículo escolar e também há as práticas, habilidades, costumes, crenças e valores que conformam a base da vida cotidiana e que, soma- dos ao saber acadêmico, constituem o currículo neces- sário à vida em sociedade. No sistema educacional escolar, uma das alternativas de integração desses saberes é o método educativo de projetos de trabalho, proposto por Hernandez (1998), que vem sendo colocado como desafio investigativo aos estu- dantes, instigando-os a buscar soluções para as questões emergentes de sua realidade. A perspectiva adotada é a da articulação de conhecimentos que se constroem a partir de proposições e não de disciplinas escolares. Nessa proposta, valorizam-se a imaginação e a cria- tividade também do educador, que deve manter-se em “estado-de-aprender”, desenvolvendo suas competên- cias e habilidades em diferentes abordagens. Já se reco- nhece a necessidade de interlocução com outras institui- ções socializadoras e educadoras, como a família, a igre- ja, as bibliotecas, os museus, os clubes esportivos, as organizações sociais e outros tantos espaços de apren- dizagem que a cidade oferece. Muitas organizações sociais dão ênfase à educação integral a partir de uma área ou tema do conhecimento, como eixo para o desenvolvimento de outras competên- cias, em projetos apoiados em arte, esporte, lazer, meio ambiente, saúde, entre outros. Se, no currículo escolar, eles comparecem como temas transversais, aqui, cons- tituem-se em temas centrais, a partir dos quais, são es- tabelecidas as conexões com outras demandas de co- nhecimento. Os projetos de trabalho na escola, bem como os pro- jetos temáticos nas organizações sociais, têm relação com o trabalho colaborativo em diversos ambientes de aprendizagem e procuram colocar o aluno como centro, desenvolvendo sua autonomia e sua socialização. Nas organizações não-governamentais, o desenvolvimento de projetos é facilitado pela natureza de seu espaço so- ciocultural mais flexível, que oferece suporte para a me- diação entre a família, a escola e a comunidade, visan- do ao desenvolvimento global da criança e sua intera- ção com o meio. Se a dinâmica da socialização e os processos educa- cionais ocorrem em diferentes lugares, e de modos va- riados, a proposta de Educação Integral, como articula- ção de saberes a partir de projetos integradores, também aflui para a demanda de articulação das redes institucio- nais, que devem operar, de modo compartilhado e com- plementar, com os programas e as políticas dirigidas ao mesmo público de um mesmo contexto local. 18 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Educação Integral na perspectiva de tempo integral Quanto à educação em horário integral, ela se configuraria como uma ampliação do tempo escolar diário, porém, não penso que deveria, esse tempo, ser utilizado na forma de horário disciplinar. Esta ampliação comportaria um processo educativo pensado segundo outras premissas, realizado por atividades, oficinas, experiências, onde (sic) os alunos pudessem trabalhar, não só com os saberes, mas com coisas, cultivar artes aplica- das, cultivar elementos artísticos, criar projetos e desenvolvê- los, sob orientação de profissionais diversificados. Bernardete Gatti Educação Integral aparece também na perspectiva de tempo integral de atendimento de crianças e jovens. Di- versas experiências brasileiras de extensão da jornada escolar e de implantação de um período integral nas es- colas públicas apresentam-se como propostas de educa- ção integral. As duas experiências mais conhecidas de esco- la pública de tempo integral, no Brasil, são o projeto Escola- classe e Escola Parque na Bahia, na década de 1950 (e, de- pois, no Distrito Federal), e, nos anos 1980, os Centros Inte- grados de Educação Pública – CIEPs, no Rio de Janeiro, cujo projeto foi repetido posteriormente nos Centros de Atenção Integral à Criança – CAIC, nos anos 1990.2 Em São Paulo, foi realizado o Profic — Programa de For- mação Integral da Criança, entre os anos de 1986 e 1993. O programa conjugava diferentes projetos voltados para a for- mação integral, com a particularidade de se utilizar parcerias com as Prefeituras Municipais e com as organizações sociais locais, como uma estratégia de minimização dos custos e aproveitamento dos recursos existentes. Diferentemente das experiências dos CIEPs e dos CAICs, o Profic, desde sua implantação, substituiu a construção de prédios pelo uso dos espaços da escola e das entidades parceiras. O objetivo dos programas de extensão do horário escolar era o de ministrar um ensino fundamental que abrangia atividades diversificadas, organizando-se a es- cola para dar, ao aluno, a oportunidade de uma escolari- zação formal ampliada por um conjunto de experiências esportivas, artísticas, recreativas ou temáticas, em com- plementação ao currículo escolar formal. A descontinuidade desses programas é indicativa das dificuldades de implantação e até mesmo de aceitação dessas propostas. As críticas referem-se, sobretudo, aos dilemas da universalização, que inclui o tema da susten- tabilidade das propostas em longo prazo, dúvidas sobre a qualidade do atendimento em tempo integral, proble- mas com a freqüência das crianças e questionamentos em relação à demanda de proteção social em contrapon- to à função da escola. É bem verdade que estamos em outro momento histórico, em que há uma disposição de aceitação e até mesmo um desejo social de programas de educação integral, mas é necessário que as questões possam ser colocadas para que as novas propostas en- contrem bases mais seguras de aplicação. Entre os consensos que prevalecem hoje sobre a edu- cação, um dos mais fortes é o de que o tempo dedicado a ela está muito aquém do que seria necessário para dar conta da formação de nossas crianças e jovens para os desafios do século XXI. Há igualmente uma percepção de que as mudanças na família e na vida cotidiana exigem que a educação se amplie para atender a demandas ante- riormente respondidas no âmbito doméstico ou comunitá- rio. Outros países, especialmente os do Primeiro Mundo, já atendem com carga horária de seis ou oito horas. Esco- las privadas brasileiras também começam a oferecer en- sino em período completo, com o ensino regular comple- mentado por atividades de acompanhamento pedagógi- co individualizado, recreação, oficinas e cursos variados, atividades na área esportiva, artística e ensino de línguas, além de passeios a museus, exposições e parques. Se, para crianças e famílias da classe média, esse aces- so, embora tenha um ônus orçamentário, pode ser facili- tado, é justo que, sob o amparo da lei, que indica a obri- gatoriedade da extensão do horário nas escolas públicas, acelerem-se as propostas de educação em tempo integral, em arranjos diferenciados de horários, metodologias e par- cerias que também possam oferecer oportunidades edu- cativas variadas para todas as crianças. Questões em debate na implementação de programas de Educação Integral Na implantação de projetos de Educação Integral, não há modelos prontos nem concepções exclusivas. Há um arco de opções e conjugações possíveis para diferen- tes contextos que permitem tanto a realização de pro- jetos e programas pelo próprio sistema escolar, quanto por diversas áreas públicas atuando no espaço escolar ou, ainda, por diversas agências e organizações locais agindo complementarmente, em cooperação. Podem ter horários e agendas de aprendizagem peculiares, desde que baseadas nos parâmetros legais e em projetos pe- 19 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 dagógicos adequados à sua realidade e às necessidades de suas crianças e jovens. Em todos os tipos e concep- ções de educação integral, há desafios a enfrentar e ze- los que devem ser adotados nos planos e processos de ação. Discutiremos alguns deles. A difícil e necessária arte de integrar Começamos esta reflexão lembrando que a educação integral depende, sobretudo, de relações que visam à inte- gração, seja de conteúdos, seja de projetos, seja de inten- ções. Num mundo cada vez mais complexo, a gestão das ne- cessidades humanas e sociais exige a contribuição de múl- tiplos atores e sujeitos sociais, e uma nova cultura de articu- lação e a abertura dos projetos individuais para a composi- ção com outros conhecimentos, programas e saberes. Uma renovação nas atitudes, para socializar o poder, negociar, reconhecer e valorizar outros saberes, outros es- paços e aceitar a incompletude, supõe mudanças que nem sempre são fáceis, porém produzirão resultados mais du- radouros para os sujeitos envolvidos. Maria do Carmo B. Carvalho assegura que: “Somente a articulação/combina- ção de ações — entre políticas intersetoriais, intergoverna- mentais e entre agentes sociais — potencializa o desem- penho da política pública. Arranca cada ação do seu isola- mento e assegura uma intervenção agregadora, totalizan- te, includente” (Carvalho, 2006). Os novos relacionamentos necessários à integração de programas e ações devem estar impregnados pela idéia de colaboração e cooperação, e não pela de conflito e concorrência. Para superar divergências de opinião, in- teresses políticos setoriais, preconceitos e onipotências, os espíritos devem estar abertos às inovações, flexíveis na aceitação do outro e firmes na definição de metas vol- tadas para o interesse comum, cujo eixo central é o sujei- to — criança e adolescente — em desenvolvimento. A integração de professores, educadores, projetos e instituições tem a vantagem inegável de garantir maior sustentabilidade técnica e política e envolver a todos num compromisso de participação mais ativa e próxi- ma. Considerando os objetivos colimados pelos que se propõem a programar ações públicas de educação inte- gral, todo esforço deve ser empreendido no sentido de sustentar a integração dos projetos, programas, conteú- dos, disciplinas e intenções para que, de fato, se consi- ga assegurar uma política pública regular e permanente que não sucumba às vicissitudes das novas administra- ções. Nesse aspecto, a presença da sociedade civil or- ganizada, como parceira de empreitada, ajuda muito a dar sustentação institucional aos programas. São fatores facilitadores dessa legitimação: a credibi- lidade social que a proposta alcance, o respeito à auto- nomia dos envolvidos, a clara definição de papéis e res- ponsabilidades das organizações ou pessoas participan- 20 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tes, o planejamento e a realização conjunta de ações e a adoção de um processo mais participativo dos benefi- ciários no planejamento do trabalho. Educação Integral e inclusão social Todos podem aprender independentemente de seus pontos de partida, dos saberes que já têm sobre determinado objeto do conhecimento. Todos precisam ter o direito de experimentar aprendizagens bem-sucedidas; aprender a ter prazer em conhe- cer, em saber fazer, em produzir, em viver com os outros. Maria Cristina Zelmanovits Podemos falar de inclusão olhando a partir de seu contrário: a exclusão. Há diversos olhares sobre a exclu- são que a situam como um processo de apartação so- cial e intolerância, como decorrência da discriminação dos sujeitos que apresentam fragilidades ou vulnerabi- lidades pessoais ou sociais, como não-aceitação das di- ferenças de gênero, etnia, religião etc. ou como resulta- do da situação de pobreza. Vamos aqui focalizar nossa atenção nesta ultima visão. A população das escolas públicas que mais deman- dam uma educação integral é constituída, em parte, pela infanto-adolescência, cujas famílias ainda se mantêm em situação de pobreza. Por isso, a educação integral precisa ser conjugada com a proteção social, o que supõe pensar em políticas concertadas que considerem, além da edu- cação, outras demandas dos sujeitos, sendo, a mais bá- sica, a de uma sobrevivência digna e segura. Programas e benefícios sociais como a merenda esco- lar, o “Bolsa-família”, o Programa de Erradicação do Traba- lho Infantil – PETI, entre outros, já associados à educação, podem oferecer condições para que as crianças freqüen- tem e permaneçam na escola, embora sejam insuficientes para assegurar resultados em aprendizagem. Além disso, o aumento do tempo de estudo deve vir acompanhado da ampliação do acesso das crianças e adolescentes aos es- paços múltiplos de apropriação da cidade e de seus sa- beres, para que não se engessem as opções num projeto educativo regulado por oportunidades limitadas. Na linha de prioridades, portanto, o investimento em programas que produzam eqüidade é um requerimento básico. No entanto, considerando a histórica herança as- sistencialista, é preciso que se fique alerta para o risco de diminuição da qualidade desses programas, provo- cada pelo ausente ou insuficiente provimento de recur- sos para os serviços oferecidos, o que inviabiliza a co- laboração de profissionais bem preparados para a tare- fa educativa. Se a população é vulnerável, precisará ain- da mais de programas competentes e bem estruturados, cujo custo é certamente maior. O movimento de inclusão de todas as crianças no mundo do conhecimento supõe, sobretudo, que o edu- cador compreenda que qualquer criança é um ser em de- senvolvimento e que articule ajuda para promover esse desenvolvimento, dispondo-se a aprender ou rever suas estratégias pedagógicas, para acolher, ensinar e estimu- lar a todos a crescer em suas competências e talentos. Educação Integral, obrigação legal e escolhas familiares Podemos pensar a Educação Integral pela ótica dodirei­to, considerando que a Constituição Brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDB indicam a obriga- toriedade da oferta pública de educação para todas as crianças e adolescentes. Assim sendo, a educação inte- gral se assenta na concepção de proteção integral defi- nida legalmente, que reconhece a situação peculiar de desenvolvimento da criança e exige uma forma especí- fica de proteção, traduzida em direitos tanto individuais qunato coletivos, que possam assegurar seu pleno de- senvolvimento. Mais ainda, ao propor um novo sistema articulado e integrado de atenção a todas as necessidades da crian- ça e do adolescente e a garantia de seus direitos, o ECA busca agregar compartimentos estanques de poderes e de saberes em torno de um destinatário especial. Nes- te sentido, procura retotalizar a criança, oferecendo-lhe uma proteção legal como base importante para a inte- gração de políticas e programas de atenção. A educação é um direito público subjetivo — aque- le que o sujeito pode exigir diretamente do Estado —, o que permite garantia de acesso e permanência na esco- la. No que diz respeito ao acesso, o sistema público de educação tem se organizado, não sem muitas dificulda- des, para atender à diversidade da população infanto- juvenil, incluindo grupos especiais, como os portadores de deficiência, as crianças em situação de rua, os ado- lescentes que trabalham e os que moram em locais dis- tantes. Embora o número de matrículas, divulgado pelo governo, bordeje a universalização (97%), sabemos que há hiatos e discrepâncias regionais nesse atendimento. 21 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Quanto ao direito à permanência, a lei deixa subenten- der que o sistema público escolar deve encontrar meto- dologias e ferramentas pedagógicas que promovam con- dições para que o alunado se mantenha na escola e con- clua com sucesso sua formação. Do ponto de vista das famílias, o direito à educação gera uma obrigatoriedade, dos pais, de garantir que a criança freqüente a escola, e, das crianças, de freqüen- tá-la. Pela Constituição Federal — Artigo 208 — e LDB — Artigo 4o —, o ensino fundamental é obrigatório. Libera- ti (2004) considera que: Aos pais estão reservados dois papéis: o de atores de direitos e o de atores de obrigações. Como atores de direitos podem, em nome próprio ou de seus filhos, exigir sua intervenção nos processos pedagógicos, na discussão dos conteúdos curricula- res, na inclusão de seus filhos em programas suplementares de transporte escolar, de material didático-escolar ou de merenda, e mesmo em atividades de gestão escolar [...] Por outro lado, são os pais, de igual modo, atores de obrigações, como [...] o dever de matrícula e de zelo pela freqüência, mas também de acompanhamento do nível de aprendizagem e de sociabilidade de seus filhos [...]. A previsão da LDB — Artigo 34 — de ampliação da per- manência da criança na escola, com a progressiva exten- são do horário escolar, gera, portanto, a mesma obrigato- riedade dos pais em garantir a freqüência dos filhos du- rante todo o período na escola. Entretanto, inúmeras pes- quisas (Maurício, 2004; Cavaliere, 2002; Vandell, 2005) reafirmam a dificuldade de freqüência das crianças na escola para além de um período. A escolha das crianças e adolescentes, estes últimos principalmente, parece ser a de freqüentar diferentes espaços formativos da comu- nidade que ofereçam novas relações sociais e ativida- des mais sintonizadas aos seus interesses de desenvol- vimento pessoal, principalmente aquelas ligadas à arte, línguas, esportes, grupos religiosos etc... Muitos pais, por outro lado, preferem que seus filhos retornem ao lar, seja para assumir deveres domésticos, seja para o convívio em família. O saudosismo dos velhos tempos, da vida urbana mais tranqüila e de uma estrutu- ra social em que o lugar da mulher era no lar, dedicada à educação dos filhos, pode nos levar a crer que seria bom reservar tempo para outras formas de convívio da famí- lia com os filhos, seja na própria casa, na vizinhança ou em atividades não regulares da comunidade. O tempo livre da criança, quando encontra um bom ambiente educativo no círculo familiar, pode ser ocupa- do com vivências prazerosas de brincadeira e lazer que têm importância capital para seu desenvolvimento emo- cional. Parece-nos, entretanto, que, em muitos casos, por diversos motivos, a família nem sempre está presente e o “grande educador” passa a ser o aparelho de televisão ou o computador. Pesquisa realizada pelo Unicef (2001) mos- tra que pré-adolescentes e adolescentes passam de qua- tro a seis horas por dia vendo televisão e que quase 70% desta população não têm hábito regular de leitura. A liberdade de escolha das famílias e dos estudantes, em relação à educação integral, é uma questão que me- rece reflexão e está relacionada a fatores como o tempo de estudo supervisionado e os conteúdos ou atividades oferecidas. Por outro lado, interessa muito, à maioria dos pais, que a criança permaneça sob os cuidados de uma equipe pedagógica. Como nos adverte Mauricio (2002), os pais priorizam a escola de horário integral; esta op- ção é fruto de uma avaliação refletida e não de um inte- resse menor de fazer uso da escola como compensação para as carências familiares. Embora a educação integral apareça no imaginário po- pular como uma alternativa de prevenção ao desamparo das ruas e como programa de proteção social, além da ex- pectativa de cuidado e proteção de seus filhos, há, nas fa- mílias, o desejo de que o tempo maior de estudo seja uma abertura às oportunidades de aprendizagem, que são ne- gadas para grande parte da população infanto-juvenil em situação de pobreza ou de risco pessoal e social. O orçamento da educação Novas pautas de luta pela melhoria da educação se atêm agora na busca de ampliação dos recursos orçamentá- rios, como a que vem sendo coordenada pelo movimen- to da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e pela mobilização pela aprovação do Fundeb, que estenderá os benefícios do financiamento para os grupos pré-es- colares e do ensino médio. E aí se introduzem dois dos [...] há, nas famílias, o desejo de que o tempo maior de estudo seja uma abertura às oportunidades de aprendizagem 22 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 pontos da discussão sobre educação integral: sua sus- tentabilidade e continuidade. Uma das críticas mais habituais às propostas de edu- cação integral é a que se refere aos custos dos programas. Mauricio (2004) nos mostra que o “custo aluno” nas es- colas de período integral no Rio de Janeiro é maior que o da escola convencional, mas salienta que a educação dever ser considerada um investimento e não uma des- pesa. Anísio Teixeira (apud Cordeiro, 2001), falando na inauguração do Centro Popular de Educação Carneiro Ri- beiro, em Salvador, lembrava que o projeto “era custoso e caro, porque eram custosos e caros os objetivos a que visava” e que “não se poderia fazer educação barata”. Na experiência do Profic, em São Paulo, um dos aspectos jus- tificadores da suspensão do programa refere-se aos cus- tos de implementação e manutenção. A questão dos custos esbarra ainda na demanda de universalização. Sendo direito de todos, a educação in- tegral poderá ser requerida igualmente por todos, mas, como sabemos, os limites orçamentários para a cober- tura universal são reais. Em geral, as experiências come- çam com escolas-piloto e não conseguem ser expandi- das a todo o sistema educativo. Esta dificuldade inicial de universalização do atendimento integral não pode prescindir, portanto, de algum nível de negociação com as comunidades sobre os critérios de escolha dos bene- ficiados mais imediatos e do asseguramento da incorpo- ração gradual dos interessados em novas unidades, que atuem na proposta de educação integral. Esse gradualismo poderá levar em conta a escolha das famílias e crianças e, assim, possibilitar a expan- são realista do sistema até que o maior número possí- vel de crianças a ele tenha acesso. Trata-se de pensar a universalização como oportunidade e não como uma im- posição às famílias. Com a previsão de extensão do horário escolar, há custos complementares com a alimentação, além das despesas de manutenção geral e aquelas decorrentes da contratação de um número maior de educadores ou professores. O partilhamento de despesas e responsabi- lidades entre os governos estaduais e municipais, bem como entre secretarias e outros parceiros contribuintes, pode vir a ser uma alternativa de viabilização mais rápi- da dos projetos de educação integral. Integralidade e institucionalização Um outro eixo de reflexão é o que discute a vinculação da educação integral à idéia de institucionalização, alertan- do para o risco de que a escola de tempo integral possa es- corregar para uma proposta de completude, tornando-se o que Foucault denunciou como instituição total (Foucault, 1993). Assim, a tentação de prover, num único espaço, ativi- dades que atendam a todas as necessidades da criança: es- colarização, esporte, artes, religiosidade, assistência, saú- de etc., embora seja, certamente, mais confortável, tende a ancorar uma tendência de carregar, para o ambiente, a dis- ciplinarização entorpecedora do desenvolvimento humano criativo e autônomo. Além disso, o tempo pedagógico regu- lado da escola, ou de um único programa complementar, leva a uma limitação de contatos e alternativas. A submissão dos alunos a práticas espaço-temporais de contenção e massificação, na perspectiva da discipli- narização como estratégia educativa, tem produzido pou- cos resultados em termos de motivação e interesse pela aprendizagem. De igual modo, a ausência de supervisão educativa pode ser sentida, pelos alunos, como abando- no e facilmente levá-los a se evadirem das atividades. Para se evitar o risco da massificação dos programas que propugnam pela extensão do horário escolar ou turno completo, eles devem considerar, em seu currículo, diver- sas possibilidades de composição de atividades que inclu- am sempre a freqüência regular a recursos externos ou, ao menos, a presença, nas escolas, de grupos pertencentes a outras áreas da política social ou especialidades, visan- do oxigenar as estruturas homogêneas do sistema que de- vem permear-se a outras influências e relações. Assim sen- do, cumpre lembrar que a tarefa educativa na escola, ou em consórcio entre a escola e outras organizações sociais na comunidade, precisa buscar a diversificação. Mas essa possibilidade de freqüência a muitos espaços de aprendi- zagem deve ser pautada por um nível de segurança adequa- do para a movimentação das diferentes faixas etárias e gru- pos, entre os espaços educativos oferecidos. Muitos espaços para aprender Consideramos, nas reflexões deste texto, as diferentes- concepções, desafios e possibilidades de uma educa- ção integral. Queremos pensar, finalmente, de modo mais específico, sobre as possibilidades de se oferecer às crianças uma alternativa que conjugue o ensino for- 23 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 lho socioeducativo que vem sendo desenvolvido pelas inú- meras organizações e grupos sociais em todo o Brasil. O contato dos alunos com essas iniciativas diversifi- cadas cresce a cada dia, porque responde a uma deman- da de presença educativa além da escola e oferece canais para que essas crianças e jovens acessem serviços de as- sistência social, saúde, esportes etc., que, de outra forma, não conseguiriam. Com forte vinculação com a comunida- de, as organizações sociais têm possibilidade de respon- der rapidamente às necessidades emergentes de proteção social. Como não têm um compromisso curricular especí- fico e nem a avaliação de performance acadêmica, essas iniciativas podem experimentar inovações metodológicas ou pautas temáticas que atendam aos interesses de gru- pos específicos de modo mais flexível. Apesar da fragilidade e da irregularidade na manutenção das atividades por falta de financiamento adequado, essas organizações sociais conseguem estabelecer, de modo mais personalizado, os elos entre o conteúdo escolar e a vida prá- tica. Certas organizações são discriminadas por alguns crí- ticos devido à sua atuação assistencialista, mas há, atual- mente, uma profissionalização crescente na área, o que as qualifica como interlocutoras legítimas para o estabeleci- mento de parcerias que podem resultar em projetos conjun- tos entre elas e a escola, superando as barreiras setoriais e corporativas e as resistências de parte a parte. Com sua diversidade e sua capacidade de oferecer respostas criativas em muitas áreas, é razoável acreditar que essas organizações e a escola possam realizar diver- sos arranjos na viabilização da educação integral. Pesquisas recentes em projetos de pós-escola nos Es- tados Unidos (Vandell, 2005), com crianças do ensino ele- mentar e médio, apontam descobertas interessantes so- bre esses programas: constatou-se que a opção dos alu- nos tem sido a de construir uma agenda própria que en- volve a vinculação ao programa socioeducativo em uma organização social, complementada pela freqüência a diversos outros lugares em que têm interesse especial, como clubes, agremiações esportivas, aulas de música ou dança, atividades religiosas etc. Esses arranjos são especialmente preferidos pelos adolescentes mais velhos que têm maior segurança em se movimentar na cidade. Para as escolas, o contato com os projetos socioedu- cativos pode significar uma aproximação do currículo ao contexto da vida e provavelmente conduzirá a uma inver- são das prioridades curriculares, trazendo, para o primeiro plano das preocupações educativas, aqueles temas hoje mal regular a outros espaços de aprendizagem, pressu- pondo que qualquer espaço que se pretende educativo só ganha sentido quando recheado pela relação educa- tiva entre crianças e educadores. Estamos falando dos espaços institucionais públicos, existentes nas comunidades, que vão desde as bibliote- cas, os museus, os parques, os centros esportivos, aos cursos diversos de informática ou formação profissional. Este mosaico de ofertas pode se constituir em uma rede de aprendizagem importante e variada, mas, na maioria das comunidades que mais se beneficiariam desses re- cursos, eles, na verdade, não estão disponíveis e/ou não podem ser acessados. As distâncias e o preço do trans- porte para chegar a eles (que, em geral, se localizam nos centros urbanos ou em cidades maiores) dificultam ob- jetivamente a presença das crianças e jovens das esco- las públicas nesses locais. Os equipamentos mais presentes nas pequenas co- munidades e nos bairros mais afastados são as igrejas, os centros comunitários e os núcleos socioeducativos. Existem ainda iniciativas não institucionais que brotam da boa vontade de cidadãos locais que organizam, a seu modo, grupos de dança ou capoeira, teatro ou outra ati- vidade que possa interessar a algumas pessoas. É nesses lugares que as crianças mais vulneráveis e suas famílias conseguem sentir-se acolhidos e desenvolver algu- ma atividade de convivência social ou de aprendizagem. No mapeamento das relações educativas mais significativas, é bem provável que as crianças se refiram a esses lugares como referências básicas em sua trajetória de vida. Na perspectiva da educação integral, são os núcle- os socioeducativos os que apresentam as característi- cas que permitem uma articulação efetiva com as esco- las próximas e que, portanto, podem começar a tecer os fios de uma rede maior de recursos que favoreçam o de- senvolvimento das crianças. Identificamos aqui, como núcleos socioeducativos, aquelas organizações sociais que desenvolvem projetos educativos no contra-turno escolar, atendendo a crianças e adolescentes em ativi- dades diversas e promovendo seu acesso a outros recur- sos e benefícios disponíveis. Há poucos anos, havia uma distância muito grande en- tre o discurso da escola formal e da educação que aconte- ce nos espaços não-escolares. Hoje, há uma proximidade maior nessa conversa, facilitada pela implementação efeti- va de políticas públicas integradas nas áreas de educação e assistência social e pelo reconhecimento público do traba- 24 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 colocados em segundo plano pelas disciplinas clássicas, freqüentando-as complementarmente como eixos trans- versais. Isso não significaria desatender à missão básica da escola, que é a de ensinar os alunos a aprender e ga- rantir plena condição de leitura e compreensão do mun- do, mas que esta situação ganhe um novo sentido pes- soal, social e político para os cidadãos que se educam. Sobretudo, que se possam articular nexos entre a racio- nalidade e a vida cotidiana, por meio de um conjunto de saberes sistematizados e outros ainda inconclusos, em contínua elaboração pelos sujeitos. As mudanças que hoje se insinuam pretendem con- tribuir para a melhoria da qualidade da educação. Sabe- mos que isso depende de fatores como o financiamen- to, o conhecimento científico, os recursos metodológi- cos disponíveis, a formação profissional básica e con- tínua dos educadores, o acompanhamento dos resulta- dos do rendimento escolar, o domínio pleno da leitura e da escrita pelos alunos, a participação dos pais e da comunidade na escola e a criação de um ambiente es- colar desafiador para a aprendizagem e favorecedor de processos de socialização, baseados em valores funda- mentais da convivência humana. Sabemos também que apenas a ampliação do horá- rio escolar não garante a qualidade nem a eficácia ne- cessária, e que será preciso uma mobilização de esfor- ços e de vontades muito mais abrangente para assegu- rar o direito, de todas as crianças e jovens, ao mundo do conhecimento, ao exercício de suas habilidades e ao de- senvolvimento humano e social. Talvez a educação integral precise de novos protago- nistas que sejam capazes de atender a demandas de sa- beres ainda invisíveis, como quer Morin (2000), para se ter uma visão capaz de situar o conjunto, o conhecimento pertinente e transformar o currículo fragmentado em um roteiro de aprendizagens novas e interessantes para a po- pulação infanto-juvenil deste futuro que já chegou. Sinais animadores estão surgindo das ações educa- tivas, revalorizadas pela vinculação da escola com o ter- ritório, com a criação de comunidades de aprendizagem que se ampliam com o conceito de cidade educadora. São possibilidades de inovação temática e metodológi- ca que, aliadas às mudanças político-estratégicas, po- dem ajudar a superar os velhos problemas da educação escolar e do sistema de ensino. Bibliografia ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comuni- tária. Relatório do Projeto Educação Integral, 1999. CORDEIRO, Célia Maria Ferreira. Anísio Teixeira, uma “visão” do futuro. Estudos Avançados, v. 15, n. 42, p. 241-258, maio/ago. 2001. ISSN 0103-4014. DELORS, Jacques. Educação, um tesouro a descobrir. In: Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo: Cortez, 1998. FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 2. ed. São Paulo: Ed. Papirus, 1995. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1993. 277p. FREITAG, Bárbara. O indivíduo em formação: diálogos interdisciplinares sobre educação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1994. GADOTTI, Moacir. Interdisciplinaridade, atitude e método. São Paulo: Instituto Paulo Freire; Universidade de São Paulo, s/d. Disponível em: . HELLER, A. Sociologia de la vida cotidiana. 4. ed. Barcelona: Península, 1994. INSTITUTO PAULO FREIRE. Inter-Transdisciplinaridade e Transversalidade. Progra- ma de Educação Continuada. Disponível em: . MAURÍCIO, Lucia Velloso. Literatura e representações da escola pública de horário in- tegral. Revista Brasileira de Educação, n. 27, 2004. Disponível em: . Acesso em: 22 maio 2006. MORA, Victor R. H. Etica y Educación Integral. Universidad de Santiago de Chile. Disponível em: . MORIN. Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Síntese. Dis- ponível em: . Publicado em: jul. 2000. PIAGET, Jean. Psicologia e epistemologia: por uma teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 1973. PIPITONE, Maria Angélica P. Programa de Formação Integral da Criança – Profic – da proposta teórica à implementação: o caso de Piracicaba-SP. 1991. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, UFSCar, 1991. SAMARTINI, Luci Silva. O programa de formação integral – Profic: um espaço na escola pública. [s.d.]. Dissertação (Mestrado), PUC-SP, São Paulo, [s.d.]. TORO, Bernardo. Educação, conhecimento e mobilização. Palestra realizada no Cenpec, 1998. UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos. 1990. Disponível em: . VANDELL, Deborah Lowe et al. The study of promising after-school programs: examination of intermediate outcomes in year 2. March, 2005. Disponível em:. UDEMO. Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo. Jornal do projeto pedagógico, [s/d]. Disponível em: . Notas 1 Em 1999, o Cenpec — Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária — realizou um levantamento bibliográfico sobre Educação Integral, como estratégia para o planejamento do Seminário de Educação Integral e como uma aproximação teórico-conceitual ao tema. O relatório final deste estudo, elaborado por Marco Antonio Dib, Joana Coutinho e Alice Quadrado, serve de base às reflexões deste texto. 2 Há ampla bibliografia analítica sobre as experiências dos CIEPS, apontando as críticas, desafios e acertos da proposta. Alguns desses textos encontram- se neste CADERNO e outros podem ser pesquisados na bibliografia deste artigo. 25 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 relato de prática No meio rural, alunos, famílias e professores aprendem e ensinam. Abdalaziz de Moura* Onze horas da noite e o senhor Francisco não conseguia dormir! Estava ainda embevecido com o que lhe aconte- cera durante o dia. Até então, pelo fato de não saber ler, julgava-se um analfabeto sem conhecimento. Porém, ti- nha passado a manhã dando uma aula para a professo- ra e seus alunos sobre medição de terra na sua roça. A professora, tanto quanto os alunos, ficaram surpresos com seu desempenho ao ensinar matemática e geome- tria. Nunca pensou que pudesse ter uma oportunidade dessa. A professora, tão estudada, o procurou para re- ceber uma aula dele! – Como é possível, eu, analfabeto, ela, formada, e ela aprender comigo! Quer dizer, então, que eu não sou tão burro assim, eu sei alguma coisa, até a ponto de ensinar a uma professora! Até que adormeceu acalentado por essa sensação gos- tosa, agradável, de se descobrir sabedor das coisas. No outro cômodo, na rede, seu filho Júnior também estava com a cabeça remexida. Sua professora e os co- legas elogiaram muito seu pai, o jeito que ele ensinou a medir o terreno, a propriedade com que ele falava das unidades de medida, metro, palmo, braça, conta! Júnior desconhecia que seu pai tinha tanto conhecimento e ex- periência. Pensava que era um analfabeto, pois não sabia ler. E, de repente, topou com ele dando uma aula para os colegas da quarta série e a professora. – Como é que pode, a professora receber uma aula de meu pai? A professora, por sua vez, não dormia, e o marido, incomodado, perguntou: – O que é que tu tens Rosa, que não consegues dormir? – Foi um caso que aconteceu hoje na escola. – Como assim? – Uma aula que o Seu Senhor Francisco, pai de Júnior, deu para meus alunos da quarta série. – Como, se Seu Francisco não sabe nem ler? – Pois é nisso mesmo que estou pensando! Eu achava que ele era analfabeto. Mas pense... uma aula ma- ravilhosa que ele deu. Encantou os alunos. E eu que pensava que sabia de tudo, descobri-me aprenden- do matemática e geometria com um analfabeto! – Pois é, de vez em quando, tu não estás pedindo para eu fazer contas que tu não consegues fazer? Assim é com Seu Francisco. De medição de terra, todo agri- cultor daqui entende um pouco. A conversa entre os dois prolongou-se até tarde, a pro- fessora Rosa estava feliz demais com a descoberta. Escola, família, território. Situações como essas acontecem freqüentemente com as professoras que aplicam a Peads – Proposta Educacio- nal de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável. A Peads nasceu de um grupo que atuava com os agricultores fa- miliares e percebia que os alunos não tinham auto-esti- ma elevada em relação a sua família e ao trabalho que ela realizava. Os alunos não gostavam da sua identida- de de filho ou filha de agricultor. Escutavam a professo- ra repetir na classe, quando um aluno ou aluna não se saia bem nas avaliações: – Estuda, fulano, porque, senão, tu vais ficar feito teu pai, no cabo da enxada! Os alunos sentiam-se estigmatizados e queriam outro estilo de vida, outra forma de trabalho, outro lugar para morar. Tinham vergonha do lugar que viviam e de serem filhos de agricultores. Haveria alguma maneira de fazer diferente? A escola poderia dialogar com o campo? Envolver os pais com os seus saberes na educação das crianças? Ensinar a me- lhorar a vida das famílias e suas propriedades? Os alu- * Abdalaziz de Moura é educador do Serviço de Tecnologia Alternativa – SERTA, Pernambuco. 26 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 nos poderiam ter outra auto-estima, gostar do seu lugar, da família na qual nasceram? A família poderia sentir- se mais envolvida com a escola? Haveria alguma tarefa com a qual os pais e as mães poderiam contribuir para a aprendizagem do aluno? A realidade da vida do cam- po poderia ser conhecida a partir da escola? Em outras palavras, a matemática ensinada na escola poderia ser a matemática vivida, conhecida e experimen- tada na vida cotidiana dos agricultores? Os textos selecio- nados e os escritos poderiam tratar da vida real do lugar? A História poderia ser ensinada por meio da história des- sas famílias, do estudo de suas origens, de onde vieram e por que vieram para esse lugar? A geografia poderia dar conta dos acidentes geográficos daquele espaço? Todas essas perguntas atormentavam o grupo que criou a Peads. Representavam desafios epistemológicos, éticos, práticos: o que seria essa possibilidade, o que temos a ver com ela, como seria possível operacionalizá-la? Ligar a vida da escola à vida do campo era uma dificuldade colocada pelas professoras, pois a maioria delas é concursada, mora hoje nas sedes municipais ou distritos e, mesmo morando no meio rural, não se preocupavam com essas questões. O grupo convocou jovens estudantes do meio rural de cinco municípios para um encontro de final de sema- na, em abril de 1992, e pediu que trouxessem todos os livros didáticos que conseguissem. Nesse encontro com 55 participantes jovens e cinco adultos, pesquisaram a relação que os livros tinham com a vida das famílias, com a agricultura e com o município. A conclusão foi trágica: os presentes não acharam uma relação que pudesse ser cultivada. No grupo, havia nove professoras municipais e elas desafiaram o grupo a ajudá-las a fazer a ponte en- tre a escola e a realidade rural. O grupo aceitou o desa- fio e, a partir de então, começou a pensar a relação da escola com a família e o território. Aos poucos, foi nascendo a Peads, com um metodo- logia dividida em quatro etapas fundamentais e uma sé- rie de princípios. Primeira etapa: a professora transforma o dever de casa em pesquisa sobre a vida do lugar. Os alunos passam a construir censos ou inventário da realidade local. Pode ser um censo agropecuário, am- biental, populacional, de serviços públicos, da cultu- ra e, à medida que os alunos e alunas vão aplicando as pesquisas, a professora vai computando os dados e in- formações com eles. Assim, os pais vão sentindo que a 27 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 escola está estudando a realidade da família. A família que quase sempre acha que sua realidade é pobre, es- quecida, agrícola, espanta-se, no início, em ver a esco- la tratando desses assuntos. Começa a se interrogar a respeito do papel da escola: “Mudou? Está se interes- sando por nós!” Alguns acham que está se intrometen- do onde não deve. Segunda etapa: a professora vai desdobrando as informações no ensino da matemática. Como os dados trazidos pela pesquisa são quantitati- vos, todos podem ser explorados nas quatro operações, em fração, porcentagem e em toda série de problemas. Os números da matemática passam a ser os números reais da vida familiar, identificados pelos alunos. É assim também com o português. Todo o debate a partir das informações e dados pode gerar textos, os mais diversos. E todo texto pode gerar ensino de gramática, de leitura, de escrita. E as- sim com as demais matérias. Nessa etapa, a professora con- duz o conhecimento produzido pelos alunos a um patamar mais elevado, mais sistematizado, escolar, técnico e cientí- fico. A professora com os alunos preparam os produtos de conhecimento construídos pelos próprios estudantes. Eles sentem-se autores da sua aprendizagem. Preparam textos, poesias, paródias, gráficos, planilhas, desenhos. Terceira etapa: os produtos dos alunos são mostrados em um evento que a escola promove. É a chamada devolução para a comunidade, para as famílias, do que a escola foi capaz de construir com os alunos. É uma comprovação dos alunos para os familia- res que deram as primeiras informações. É como se a escola falasse: – Vejam como foi importante o que os senhores e as se- nhoras passaram para nós. Nós produzimos isto aqui, juntamos a informação de cada família, de cada pro- priedade e agora temos um retrato da comunidade! A escola faz essa devolução sempre impregnada de elementos artísticos e culturais: usa poesia, canto, pa- ródia, teatro, gráficos, planilhas, contos, histórias, ma- quetes, dependendo do assunto. Nessa primeira opor- tunidade, o pai ou mãe, que estranhou no início, reco- nhece o valor da metodologia e passa a enxergar o pro- cesso formativo como outro paradigma e sente a escola exercendo um novo papel. Quarta etapa: avaliação. As etapas são muito articuladas, mas não seguem uma cronologia rígida. Cada uma tem elementos avaliativos e vai reunindo uma grande quantidade de informação. No final de cada temática que serviu de eixo, ou de um cen- so, a professora organiza a quarta etapa, que é a avalia- ção na qual cada ator – professora, aluno ou família – se auto-avalia e avalia os demais, uma vez que todos são aprendentes e ensinantes. Para a avaliação, a professo- ra dispõe de inúmeras formas, roteiros e de muitos conte- údos: os conhecimentos, as crenças e valores que as pes- soas cultivam, a metodologia, o processo. Um começo no agreste pernambucano O grupo que criou a Peads é o Serviço de Tecnologia Alternativa – Serta, fundado em 1989, no Agreste de Per- nambuco. Inicialmente ONG, atualmente Oscip, ele coor- dena o Centro Tecnológico de Agricultura Familiar, o CTAF, em Glória do Goitá e Ibimirim-Pernambuco. A Peads era uma proposta alternativa, negociada com poucos municípios. Porém, com a publicação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Cam- po, passou a ser divulgada e hoje é implantada nas redes públicas municipais de ensino. Os municípios de Pernam- buco aplicam a Peads sob a orientação do Serta. Na Bahia, têm o apoio do MOC – Movimento de Organização Comuni- tária e, em Alagoas, os municípios estão implantando-a a partir da experiência do município Estrela de Alagoas. Os resultados da Peads, quando incorporados às es- colas, são gratificantes para as profissionais da educa- ção, para os alunos e para as famílias. A professora, de transmissora de saber, passa a sentir-se autora e cons- trutora de conhecimentos e valores. As famílias tornam- se parceiras na educação de seus filhos, sentem a es- cola não só como um espaço para aprender a ler, escre- ver e contar, como também um ambiente, uma comuni- dade de aprendizagem. Notas 1 Para saber mais, as pessoas podem ler o livro, já na segunda edição, pu- blicado pelo Serta: Princípios e fundamentos de uma proposta educacional de apoio ao desenvolvimento sustentável. Serta, 2005. Ou acessando o site www.serta.org.br. 2 Está em preparação uma outra publicação sobre a sistematização dessa experiência em 18 escolas de três municípios pernambucanos e uma terceira sobre a mesma experiência aplicada na formação profissional de jovens Agentes de Desenvolvimento Local – ADL, em Glória do Goitá. 28 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 29 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Gil G. Noam, professor da Universidade de Harvard, também atua como psicólogo clínico e de desenvolvimento no Hospital Mclean em Boston. Ele relata, com detalhes, experiências nor- te-americanas de educação pós-escola. Analisa a integração entre a escola e o programa pós-escola, criando uma tipologia dos diversos modos de conexão entre os dois. É um excelente material para o planejamento das atividades de educação em período integral no Brasil. A melhor forma de aprender por projetos a cidade de Nova Iorque, num dia frio e ensolarado de 2001, visitei um programa pós-escola numa escola pri- mária não muito longe do Museu de História Natural. Em- bora seja da escola, esse programa é administrado pelo Museu, com patrocínio da Corporação Pós-Escola (The After-School Corporation – TASC). O meu objetivo era conhecer o trabalho de nossa equipe colaboradora — o Programa em Pesquisa e Edu- cação pós-escola e Projeto Zero, na Universidade de Harvard — que criava estratégias de aprendizagem por meio de projetos em programas pós-escola. O que eu presenciei lá foi extraordinário. Vi um grupo de crian- ças de 3a e 4a séries vendendo biscoitos e trabalhos ar- tesanais feitos por elas mesmas. Elas gostaram de sa- ber que eu estava menos interessado em seus quitutes do que num mosaico colorido que haviam criado para ARTIGO Aprendendo com entusiasmo: conectando o mundo da escola ao pós-escola por meio da aprendizagem Gil G. Noam * por projetos. ** N* Gil G. Noam é psicólogo clínico e de desenvolvimento na Univer- sidade de Harvard e no Hospital Mclean. Com sua equipe, cria comunidades de aprendizagem e programas de prevenção em ambientes escolares e pós-escola. Tradução de Renata Moraes Abreu, consultoria de Lúcia Williams. 30 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 as caixas de charutos, cujo preço era de 2,80 dólares cada uma. Não se sabe como elas chegaram a esse va- lor de mercado, mas não me importei, seu entusiasmo era tão contagiante que não tive dúvidas de que deve- ria comprar a caixa. Em razão de seu entusiasmo, a pequena vendedo- ra que me atendia deve ter feito alguma confusão com a nota de três dólares que eu lhe havia dado e me devol- veu a mesma nota e mais 20 centavos. A menina mais ve- lha, mais preparada para os negócios e talvez com mais conhecimento de matemática, rapidamente, recolheu o dinheiro e me entregou, corretamente, dois centavos de troco. Enquanto eu as observava, em sua tímida, mas bem-sucedida incursão no mundo dos negócios (elas já estavam atendendo ao próximo cliente), decidi recriar, com minha equipe, os passos que elas deram para al- cançar esse sucesso. Essas alunas decidiram qual seria o projeto, após mui- tas semanas de conversa com dois profissionais do pro- grama. Juntos, os membros do grupo decidiram realizar um empreendimento que rendesse dinheiro para a So- ciedade Americana do Câncer, porque estavam preocu- pados com a alta incidência dessa doença em suas fa- mílias. Quase todos haviam perdido um parente. Que- riam fazer algo contra essa doença amedrontadora e decidiram pela doação para a Sociedade Americana do Câncer. Para arrecadar dinheiro, foram encorajadas, pe- los educadores, a escrever um plano de negócios, com um cronograma. Depois de reescrever o plano e acertar os detalhes, passaram seis semanas produzindo seus trabalhos de artesanato. Foi muito estimulante observar não só o âni- mo e a determinação dessas crianças, como também a maneira como elas se criticavam e se apoiavam mutua- mente. Também treinaram adição e subtração e se pre- pararam para vender para seus pais, a outros alunos, professores e administradores. Esses jovens alunos juntaram mais de 300 dólares e, num evento emocionante, doaram um enorme cheque para a Sociedade Americana do Câncer. Isso é aprender por projetos em sua melhor forma. Aqui, um grupo de alunos, no período pós-escola, con- ceitualiza democraticamente seus objetivos, aprende a escrever e a revisar um plano, trabalha conjuntamente para produzir produtos criativos e estuda competências que os capacitarão a desempenhar essas tarefas. Mate- mática não é mais só matemática, e sim um jeito de se preparar para vender. Assim, elaboraram a tristeza pela perda de seus entes queridos e, ao realizar um trabalho coletivo, transformaram o que seria passivamente vivi- do em uma empreitada ativa. Essas crianças colheram os benefícios de terem alcançado seus objetivos, rece- beram apoio dos educadores, professores e pais, en- quanto aprendiam sobre generosidade e como doar de maneira organizada. Poucos negarão que essa significativa maneira de aprender e ensinar os leva ao engajamento, a assumirem compromissos e a construírem habilidades e um sentimen- to comunitário. É o tipo de aprendizagem que tem aconte- cido em muitos programas pós-escola nos Estados Unidos, e é também uma forma de ensinar que, além de difícil, de- manda muito tempo, como temos depreendido de nosso trabalho em Nova Iorque. Esse trabalho requer muito trei- namento, apoio da equipe e um tipo de ensino que muitos professores evitam, por causa das complexidades organi- zacionais e habilidades de coordenação necessárias. Ironicamente, alguns dos melhores métodos pedagó- gicos – que, geralmente, nos ambientes pós-escola, são implantados com um número insuficiente de trabalhado- res – raramente acontecem nas escolas que dispõem de uma equipe mais qualificada. E aí está o principal dile- ma: embora a informalidade dos ambientes pós-escola se preste à realização de projetos, à intervenção e à apren- dizagem na comunidade, e a outras abordagens partici- pativas de exploração e descoberta — além de ser praze- rosa, de ser percebida pelas crianças como diferente da escola e de permitir às crianças desenvolver sua própria opinião —, nossa pesquisa tem mostrado que os progra- mas pós-escola freqüentemente não têm capacidade para embarcar nessa pedagogia complexa. Escola, família e comunidade Muitos coordenadores de programas pós-escola, pro- fissionais que trabalham com jovens e formuladores de políticas públicas, preocupam-se com uma conexão ou integração demasiadamente forte com a escola, porque eles a vêem como uma instituição muito poderosa, per- meada por burocracias que poderiam dominar a estru- tura e a programação pós-escola. Em função disso, um aliado potencial na aprendizagem, um reservatório de re- cursos e know-how, permanece sem ser utilizado. O pro- jeto da venda de produtos para a Sociedade do Câncer poderia se tornar uma ponte entre o cotidiano escolar e 31 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 o programa pós-escola, até mesmo estar relacionado a metas curriculares — como matemática, leitura e escri- ta — e ser enriquecido por visitas de campo, tomada de decisão pelos alunos e pela integração de objetivos aca- dêmicos e não acadêmicos. Entre os coordenadores dos programas pós-escola, existe a esperança oculta, e, às vezes, não tão oculta, de que a pedagogia inovadora pós-escola eventualmen- te penetre nas escolas. O objetivo desses coordenadores não é só preencher o tempo dos alunos depois da escola de maneira produtiva, como também de melhorar a ex- periência educacional integral da criança: antes, duran- te e depois da escola. A maioria dos educadores pós-es- cola acredita que seus programas deveriam ser, parecer e ser percebidos pelas crianças como diferentes dos es- colares, mas, ao mesmo tempo, ativamente articulados à escola e à equipe escolar. Há um jeito, perguntam os coordenadores, de ligar a informalidade e a facilidade para lidar com pequenos gru- pos dos programas pós-escola com os objetivos mais es- truturados do período escolar? Será que a lição de casa pode se tornar mais significativa se for integrada aos pro- jetos iniciados nas horas pós-escola? Já temos uma certeza: inovações acontecem quando as escolas e programas pós-escola são revigorados pelo serviço comunitário, envolvimento da família e aprendi- zagem na comunidade. Para transformar objetivos tão ambiciosos em uma re- alidade para muitos alunos, em todos os lugares, deve ha- ver uma conexão organizacional produtiva entre escolas e programas pós-escola, envolvendo famílias e comuni- dades. As relações interpessoais entre os professores e a equipe pós-escola devem ser respeitosas. E, finalmen- te, um grupo deve ter algum conhecimento dos objetivos educacionais do outro grupo. Seria isso mais uma utopia educacional? Até recentemente sim, mas há atualmente muitos experimentos e modelos que podem ajudar a dar forma ao campo da educação pós-escola criativa. Fazer a ponte entre o programa escolar e o pós-esco- la não significa que todos os programas têm que acon- tecer na escola ou que eles devam se tornar “escolares”. O que importa é que os programas procurem criar opor- tunidades de aprendizagens transversais, consigam in- tegrar alguns objetivos de aprendizagem com sucesso e aprofundem a aquisição e a exploração de habilidades da criança, sem deixar de respeitar as muitas maneiras de se aprender e de se proteger da diversidade de am- bientes educacionais. Cada vez mais os programas pós- escola dividem seu tempo entre as atividades não-aca- dêmicas, como esportes e trabalhos manuais, e ativida- des acadêmicas, como currículo estruturado ou ativida- des para o “enriquecimento” da linguagem, ciência e ma- temática, e apoio para a lição de casa. A fim de explorar quais são as questões que susten- tam a conexão entre escolas e ambientes pós-escola, or- ganizei um projeto de pesquisa com Gina Biancarosa e Nadine Dechaussay, membros da equipe do Programa em Pesquisa e Educação Pós-Escola, na Universidade de Harvard. Reconhecemos, com muitos outros trabalhado- res da educação pós-escola, que, sem a evidência em- pírica na forma de análises quantitativas, de investiga- ções qualitativas ou mesmo de compêndio de melhores práticas, este campo emergente da educação pós-esco- la fará um progresso apenas marginal. Entrevistamos líderes nessa área, visitamos muitos programas e revisamos a literatura existente para criar uma tipologia de aprendizagem e de integração. O mo- delo e os resultados estão descritos no livro Educação pós-escola: abordagens para um campo emergente, e no relatório [Programas] Pós-escola de Boston por todas as parcerias, 1 no prelo. O que segue é uma sinopse da nossa tipologia e considerações para uma aprendizagem cria- tiva. Também explorei as implicações para a aprendiza- gem por projetos para cada tipo de integração. Qualquer abordagem de projeto pode existir com qualquer tipo de estabelecimento de conexão, mas a natureza da missão, os objetivos acadêmicos e não-acadêmicos, e a ideologia em torno da participação juvenil se combinam para criar diferentes formas de projetos. Fazer a ponte: integrar Ao conectar os diversos mundos da criança, os pro­gra- mas pós-escola atuam como “espaços intermediários”.2 Tipicamente, eles são produto de colaborações vibran- [...] inovações acontecem quando as escolas e programas pós-escola são revigorados pelo serviço comunitário, envolvimento da família e aprendizagem na comunidade. 32 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tes entre diferentes instituições e forças — como esco- las, famílias, organizações comunitárias, instituições cul- turais e programas universitários. Pelo fato de geralmen- te não pertencerem a qualquer espaço organizado, eles servem como um intermediário natural para as crianças. O espaço pós-escola se conecta ao trabalho acadêmico sem funcionar como escola e assume aspectos da vida familiar — como conforto, segurança e recreação — sem se tornar uma família. Apoiar a aprendizagem da crian- ça requer mais do que a simples introdução dos objeti- vos e métodos escolares no contexto pós-escola. O que é preciso é um esforço harmonioso para conectar os mun- dos divergentes da criança, de modo que sua aprendiza- gem se torne mais significativa e relevante para sua ex- periência de vida. Em nossas pesquisas e estudos de intervenção, te- mos usado o termo “fazer a ponte entre os mundos ado- lescentes” para expressar a tentativa de incentivar um sentido de continuidade para os jovens em sua traves- sia por diversos contextos culturais.3 Programas pós-es- cola, devido a sua informalidade, permitem o desenvol- vimento de relações profundas e flexíveis entre a crian- ça e o adulto, podem convidar as famílias e a comunida- de para participar da programação e têm a capacidade de estabelecer a conexão com a escola. Logo, eles têm o potencial para funcionar como um ambiente essencial, interligando os múltiplos mundos das crianças.4 Âmbitos e tipos de integração Em nosso esforço inicial para compreender a integração- entre as escolas e os programas pós-escola, ficamos sur- presos com a falta de conceituação teórica desse tópi- co. Por essa razão, começamos, simultaneamente, a co- letar dados e a desenvolver uma tipologia produtiva de “ponte”, usando a abordagem de Max Weber para a ti- pologia ideal. Nossa tipologia descreve a intensidade da integração nos programas e permanece neutra em rela- ção a que grau de intensidade é melhor, porque o tipo apropriado de integração depende da missão e dos ob- jetivos de cada programa. Os programas fazem a integração dentro de três âm- bitos: interpessoal, curricular e sistêmico. Eles não são mutuamente excludentes, ao contrário, muitas vezes ocorrem simultaneamente (Figura 1). De acordo com as pesquisas, o âmbito mais comum de integração é o interpessoal, que compreende desde encontros fortuitos entre as equipes da escola e dos pro- gramas até contatos regulares por telefone, e-mail e ou- tros meios. A produtividade dos encontros também va- ria se o fluxo de informação é recíproco ou somente de “mão única”. Muitas de nossas entrevistadas revelaram o descontentamento do pessoal dos programas pós-escola devido à dificuldade de estabelecer contatos com os pro- fissionais das escolas, geralmente muito ocupados. A integração curricular consiste em tentativas de ali- nhamento entre os currículos escolares e os de progra- mas. Se comparada à integração interpessoal, o impac- to positivo da integração curricular depende menos da reciprocidade e mais de uma clara articulação de objeti- vos e desenvolvimento de currículos que motivem e de- safiem as crianças. A integração sistêmica envolve o compartilhamento da governança, recursos financeiros, transporte e sistemas. Por exemplo, grupos de tomadores de decisões das duas insti- tuições (escola e pós-escola) podem incorporar membros uma da outra para garantir um certo nível de colaboração. Os encontros das duas equipes poderiam ampliar sua es- fera de influência em relação à discussão de necessidades de uma criança, para o estabelecimento de futuras diretri- zes, tanto para a escola quanto para o programa. Considerar tanto o âmbito quanto as dimensões da integração torna possível categorizar programas de acor- do com a intensidade de sua relação com as escolas. A tipologia a seguir oferece uma escala de intensidade que vai de Autocontidos — programas e escolas que não inte- ragem interpessoalmente ou organizacionalmente — até Unificados — programas e escolas concebidos juntos, de modo que não há distinção entre as duas instituições. Entre esses dois pólos, distinguimos três outros ti- pos: Associados, Coordenados e Integrados — cada um representando um aumento gradual em direção a um FIGURA 1 ÂMBITOS DE INTEGRAÇÃO ENTRE A ESCOLA E OS PROGRAMAS pós- ESCOLA 33 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 pólo ou outro (Figura 2). Identificamos exemplos desses tipos por meio de nossa pesquisa em Boston, Cambrid- ge (Massachussets) e por todo os Estados Unidos. Op- tamos por fazer o perfil desses programas porque eles eram particularmente adequados às distinções que pre- tendíamos elaborar.5 Programas autocontidos São os que fazem pouco ou nenhum esforço para colabo- rar com as escolas. Geralmente, têm uma missão tão cla- ramente definida que uma conexão forte com a escola é percebida como potencialmente ameaçadora, dominado- ra ou simplesmente desnecessária. Como resultado, os jo- vens que participam do programa constituem efetivamen- te a única conexão entre a escola e o programa pós-escola. Mesmo que alguns programas autocontidos reservem um tempo determinado para a realização da lição de casa, em que os jovens têm a responsabilidade de utilizá-lo produti- vamente, essa atividade não faz parte do verdadeiro obje- tivo do programa. A falta de integração nesses programas parece ser resultado mais de sua filosofia do que da loca- lização geográfica ou capacidade organizacional. Os programas autocontidos tendem a se encaixar em duas categorias: aqueles que têm um currículo for- te e elaborado por eles mesmos e aqueles em que pre- domina o foco nas artes, nos esportes ou na aprendiza- gem por meio de expedições ou passeios. Foi interessan- te encontrar muitos programas que pretendiam promo- ver o aprendizado acadêmico, apesar da falta de cone- xão com a escola. Esses programas se vêem como “se- gundas escolas”, que oferecem programas intensivos de estudos acadêmicos para compensar a falha da es- cola ao não atingir alguns alunos. Eles geralmente con- sideram a escola como disfuncional ou que as crianças necessitam de mais conteúdo do que o currículo esco- lar pode oferecer e, por essa razão, desenham métodos para compensar as lacunas deixadas por ela. Incluímos um desses programas do tipo “segunda es- cola” em nossa pesquisa. Embora implementado na es- cola pública, faz parte de sua filosofia reduzir a integra- ção a um nível mínimo. Para operar, apóia-se na premis- sa de que um ambiente “focalizado, exigente e orienta- do para resultados” incentiva a criança a ter sucesso na escola, de uma maneira que o currículo escolar padrão é incapaz de fazer.6 Seu objetivo é que os bolsistas se inscrevam, sejam aceitos e bem-sucedidos nos exames para as escolas públicas e particulares. O fato de essas escolas exigirem mais do que simplesmente atingir os níveis médios do Estado significa que o currículo deve ir além do tradicional currículo escolar. O programa é rigo- roso e requer que as crianças assumam um compromis- so com duração de 14 meses, com resultados impressio- nantes, mesmo descontando-se o viés da sua seleção (por exemplo, motivação acadêmica e apoio dos pais): 87%, dos 2.001 estudantes, foram aceitos em escolas que exigem ingresso apenas por meio de exames de se- leção e 90%, dos 1.995 estudantes, foram admitidos na faculdade em 2001. Alguns programas autocontidos podem comprome- ter sua eficiência quando se tornam tão alienados da escola que não trocam informações com os professores e orientadores sobre o bem-estar de alunos a quem am- bos servem. Mesmo assim, fica claro que pode ocorrer muita aprendizagem de boa qualidade se o programa ti- ver objetivos bem articulados, currículo ou projetos dese- FIGURA 2 CINCO TIPOS DE INTEGRAÇÃO ENTRE A ESCOLA E OS PROGRAMAS PÓS-ESCOLA 34 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 nhados para atingir tais objetivos e uma equipe capaz de possibilitar essa aprendizagem. Muitos programas auto- contidos não se baseiam em projetos e têm uma aborda- gem “escola fora da escola” que prioriza o treinamento de competências/habilidades. Já aqueles que são forte- mente ancorados na comunidade usam, freqüentemente, a metodologia de projetos, mas o projeto reflete a priori- dade dos programas: ser produtivo em relação à comu- nidade, e não em termos acadêmicos. Programas associados São os que reservam um espaço para o engajamento com a escola em sua missão, mas não têm forte cone- xão com ela. Achamos que um motivo para a conexão in- suficiente é que nem a escola e nem os programas pós- escola têm respondido às tentativas de contato, tanto de uma, quanto de outra instituição. A filosofia dos pro- gramas e a capacidade organizacional também influen- ciaram as características do tipo de integração. A maio- ria dos programas que observamos ou conhecemos por meio de entrevistas se enquadra na categoria de progra- mas associados. Os programas baseados na comunida- de, em particular, geralmente se enquadram aí por cau- sa do desafio adicional que sua localização representa para os esforços de integração. A técnica específica de fazer contato com as escolas divergiu bastante de programa para programa, mas pre- valeceu a de integração interpessoal. Por meio do en- vio de questionários ou formulários para os professo- res das crianças – uma forma popular de buscar conta- to – foram feitas perguntas sobre os pontos fortes e fra- cos delas no âmbito acadêmico. Jenny Atkinson, direto- ra sênior de educação e artes para o Clube de Meninos e Meninas da América,7 descreveu a sua forma de traba- lho no clube. Sua mensagem era assim: “Essa criança recebe atenção individual por meio de aulas de reforço [tutoria] uma vez por semana. Qual área você acha que deveríamos focalizar para tornar esse tem- po mais eficaz?” A persistência com que os programas associados ten- tam se comunicar com a equipe escolar varia de acordo com sua filosofia e capacidade organizacional. Os mais eficazes, nessa categoria, conseguiram um grande núme- ro de respostas combinando métodos de integração. Por exemplo, alguém do programa respondia a um contato escrito com um contato informal, em que o coordenador do programa se apresentava ao diretor da escola ou bus- cava se relacionar também com os professores. Nossas entrevistas com os responsáveis pelos pro- gramas mostraram que a intensidade da integração era limitada nos programas associados porque o ônus ten- dia a cair inteiramente sobre a equipe do programa pós- escola. Muitas escolas não têm uma pessoa designada para servir de elo com esses programas. Assim, a responsa- bilidade pela integração fica a cargo dos programas e da capacidade de sua equipe de convencer diretores e pro- fessores que a colaboração entre eles é importante. Por exemplo, em muitos programas comunitários da ACM (Associação Cristã de Moços), os coordenadores são responsáveis pela integração, ao lado de uma mul- tidão de outras atribuições, geralmente mais urgentes, que envolvem direta e imediatamente as crianças. Em suma, embora haja uma familiaridade básica entre pro- gramas associados e escolas, ela não se traduz necessa- riamente no compartilhamento de informações, nem em um relacionamento entre as aprendizagens, não mais do que seria possível em clubes de lição de casa. Nos programas associados, existe algum reconheci- mento das experiências acadêmicas das crianças, mas não o suficiente para ligar os programas pós-escola aos objetivos acadêmicos. Esses programas tendem a focar mais sua atenção no reforço escolar e na realização da lição de casa e menos no aprofundamento do que está sendo aprendido durante o período escolar. Programas Coordenados São os programas que mantêm uma comunicação con- sistente com a escola e os objetivos de aprendizagem são compartilhados com ela. A diferença entre um programa coordenado e um associado está, primariamente, em sua capacidade organizacional. Ambos adotam uma filosofia que considera importante o engajamento com as esco- las. Entretanto, os programas coordenados dão um pas- so além, ao dedicar um tempo significativo de sua equi- pe — 50% ou mais, freqüentemente no nível de diretor — para criar uma conexão com a escola. Esses esforços da equipe de trabalho possibilitam o desenvolvimento de estratégias de integração mais elaboradas, que ge- ralmente incluem ligações interpessoais e curriculares. Nossos dados indicaram que ainda não existe consen- so quanto ao título e grau de experiência da pessoa que 35 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 realiza os contatos de integração. Num relatório recente, recomendamos a criação de uma função de “coordena- dor educacional” nos programas pós-escola. Um exemplo de integração interpessoal e curricular bem-sucedida, realizada por uma coordenadora educa- cional, é um programa altamente reconhecido em Bos- ton. Essa coordenadora educacional está sempre pre- sente na escola. Com a aprovação do diretor, ela cum- primenta os professores informalmente, enquanto anda pelos corredores ou pega as crianças no fim do dia. Dis- tribui um breve questionário no começo do ano aos pro- fessores, solicitando informações sobre os pontos for- tes e os desafios das crianças e, depois, dá seguimento a esse procedimento por meio do contato pessoal com os professores para discutir casos específicos. Devido a seu relacionamento com os professores, a taxa de re- torno dos formulários chega a 90%. Ela usa as informa- ções sobre cada criança para orientar o trabalho dos tu- tores universitários voluntários que trabalham individu- almente com as crianças, supervisionados por ela, e para orientar a compra de material educacional e jogos para o programa. Além disso, ela também tem acesso às no- tas das crianças, informação usada como ferramenta in- formacional e avaliativa. Outro programa pós-escola significativo que ofere- ce programas pós-escola para as séries finais do Ensino Fundamental, em Boston, apresenta duas abordagens curriculares para a integração. Uma é o modelo de es- tágio, que une adolescentes em situação de vulnerabi- lidade social e profissionais locais para realizar um pro- jeto. Exemplos de estágios anteriores vão da simulação de um julgamento no Fórum da cidade, com a participa- ção de advogados e de um juiz, até a elaboração de um livro de receitas, com ajuda de um chef. As competên- cias acadêmicas são ensinadas conforme vão se relacio- nando ao projeto. Além disso, a organização implemen- ta um currículo literário em todos os seus locais, alinha- do aos padrões do sistema escolar. Um desafio comum que os programas coordenados costumam encontrar é que, embora exista um desejo bas- tante intenso de apoiar o currículo escolar, as duas insti- tuições permanecem separadas. Elas têm uma interface realizada por pessoas designadas ou pelo alinhamento de parte do currículo pós-escola com os currículos-pa- drão do Estado. Mesmo assim, a maioria dos profissio- nais do programa pós-escola não se envolve diretamen- te com os esforços de integração. Isso não é necessaria- mente uma desvantagem, porque libera a equipe de um esforço considerável e sempre necessário quando se tra- balha com escolas. Ao mesmo tempo, a falta de envolvi- mento afeta o grau com que os profissionais podem re- forçar ou complementar o período escolar. Programas coordenados têm uma missão que faz com que a realização de projetos para desenvolver habilida- des, e até mesmo os de conteúdo acadêmico, seja de- sejável, porque permite um reconhecimento da apren- dizagem da criança durante o período escolar e além dele. Programas de estágio com especialistas voluntá- rios são um bom exemplo disso. Além de possibilitarem a profissionalização dos projetos, a liderança é transfe- rida a profissionais não-professores, sempre manten- do o foco no aspecto educacional. Esses programas não são tão orientados para a participação juvenil, como os programas isolados ou associados, e tendem a se con- centrar no conhecimento de especialistas. Essa abor- dagem ajuda a lidar com uma das barreiras da educa- ção pós-escola: um número muito grande de profissio- nais fica “imobilizado” pela complexidade da aprendi- zagem por projetos. 36 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Programas Integrados São os que se engajam numa relação sistêmica ou ins- ti­­tu­cional com as escolas. Nessa intensidade de integra- ção, tanto o programa quanto a escola identificaram o ou- tro como parceiro importante para a consecução dos obje- tivos de aprendizagem e de desenvolvimento. Além disso, os programas desenvolvem uma estrutura organizacional que lhes permite dedicar um tempo da equipe de educa- dores e dos recursos para a integração interpessoal, curri- cular e sistêmica — investimento que é retribuído pela es- cola. Nesse tipo de associação, programa e escola compar- tilham espaço, pessoal e procedimentos. Existem continui- dades curriculares claras. O coordenador do programa pode conseguir uma verba para computadores que beneficiarão também a escola, ou as duas instituições poderão solicitar verbas em conjunto. As estruturas administrativas supor- tam o compartilhamento de objetivos e o fluxo corrente de informações de ambas as partes. Há dois indicadores im- portantes que mostram se um programa é integrado: o co- ordenador do programa faz parte da liderança da escola e a equipe escolar, do Conselho do programa. Um programa acadêmico de intervenção e de saúde mental, realizado durante o período escolar — e, depois dele, desenvolvido por professores da Universidade de Harvard em Boston, Cleveland e São Francisco — exem- plifica o tipo de integração “integrada” ideal. O progra- ma desenvolveu uma nova função profissional: “técni- cos de prevenção”, especialistas em jovens que reúnem conhecimentos de educação, desenvolvimento comuni- tário e práticas de saúde mental. Eles trabalham em sala de aula, duas vezes por se- mana, dando apoio acadêmico e comportamental para a classe toda e fazem serviços extras para crianças consi- deradas em situação de risco. Participam ainda da equipe dos programas pós-escola, atendendo aos alunos com os quais trabalharam no período escolar, o que reforça o foco do programa na resiliência acadêmica e de saúde mental, por meio de diferentes métodos. Os professores da escola também se envolvem com o programa pós-escola. Tanto o ambiente de sala de aula quanto os programas reque- rem colaboração estreita entre os professores e os técni- cos do programa. O programa é parte do apoio escolar e das equipes de liderança. Esse tipo de relacionamento in- tegrado oferece situações de continuidade para a criança “inteira”, para todas as crianças da sala de aula e rende muitos benefícios para a aprendizagem. Nos programas integrados, os projetos podem se tor- nar muito orientados para a escola. Como os profissio- nais que trabalham com os jovens ou os professores de período integral também trabalham na sala de aula, as atividades escolares podem ser conectadas significati- vamente com as do pós-escola. Essa característica pode levar a projetos que enriquecem o aprendizado escolar, sem se tornar outra escola. A ligação não se faz somen- te pelo currículo, como também por pessoas que têm fa- miliaridade com os objetivos de aprendizagem da esco- la. Conseqüentemente, os projetos podem enriquecer a aprendizagem no período escolar, por meio da explora- ção de atividades práticas, e até mesmo o desenvolvi- mento de projetos conjuntos entre a escola e o progra- ma pós-escola. Programas unificados Esses programas quase não se distinguem da escola porque é nela que acontecem e são parte de um período escolar verdadeiramente expandido. Nessa intensidade de integração, o período expandido não quer dizer que a escola se infiltrou inteiramente no pós-escola. Ao contrá- rio, o período integral incorpora o melhor dos dois mun- dos e os integra de forma harmônica. Poucos programas se enquadram verdadeiramente nessa categoria.8 Há al- gumas escolas privadas que aspiram a esse objetivo. É grande a expectativa em relação ao que esses pro- gramas podem realizar. De Kanter, Huff e Chung afir- mam que o modelo que chamamos de unificado permi- tiria que as escolas lidassem com questões que cada vez mais têm sido consideradas periféricas ou suplementa- res aos seus objetivos acadêmicos.9 Não há projetos que acontecem somente em um ou outro período. Eles ten- dem a permear toda a experiência educativa da criança. Resta comprovar se essa visão pode ser adotada pelas escolas públicas, se terá sucesso em fertilizar propósi- tos e métodos da escola e dos programas, e que práti- cas são mais eficazes. [...] avaliar toda atividade em termos de resultados acadêmicos é [...] uma forma de se render a princípios que retiram a identidade e os objetivos dos programas pós-escola 37 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Sumário da tipologia de integração A tipologia que oferecemos descreve a grande diver- sidade dos meios e fins da integração entre programas pós-escola e escolas. Essa discussão é importante para as escolas, financiadores e pais, mas entendemos que ela seja especialmente relevante para os que implemen- tam os programas pós-escola, que podem usar a tipolo- gia para se localizar nessa graduação e determinar se es- tão realizando a integração de maneira consoante com os objetivos do programa. Cada tipo tem características levemente diferentes, em relação, por exemplo, à capacidade organizacional entre programas coordenados e associados ou à crescen- te integração institucional entre programas integrados e unificados. Coordenadores de programas que quiserem efetuar mudanças deveriam usar esses aspectos como pistas quando estiverem pensando em como se mover de uma categoria para outra.10 Conclusão Nossos estudos mostraram que uma integração essencial já está ocorrendo na maioria dos programas, em clubes de lição de casa e na ajuda para a lição de casa. Chama- mos esse tipo de aprendizagem de “expandido”, porque é inteiramente dominado pela escola, geralmente invo- luntariamente, já que os professores cobram a realiza- ção do dever de casa das crianças, e os pais querem que a lição seja feita antes que eles voltem para casa. A lição de casa é um tipo de aprendizado que oferece pouco es- paço para os educadores do programa ou para os jovens agirem independente e criativamente. Poucas pessoas questionam essa forma de integração, no entanto, pre- cisamos expandir consideravelmente nossas noções de integração. O tempo depois da escola não deveria ser preenchido somente com mais atividades escolares, e sim, deveria oportunizar para crianças e jovens espaços e experiências diferentes. Não é a localização do programa que definirá ou pre- determinará os esforços de integração. Alguns programas localizados na escola permanecem hostis ou indiferentes ao período escolar, enquanto outros que estão isolados estão envolvidos com o conteúdo da aprendizagem esco- lar e consideram que sua missão é apoiar o sucesso aca- dêmico da criança. Muitas formas produtivas e criativas de integração estão surgindo e proliferando nos Estados Unidos. Algumas das melhores englobam alguns dos obje- tivos curriculares do período escolar — incluindo ciências, linguagem, estudos sociais — e constroem projetos enri- quecedores focados na comunidade, que incitam a parti- cipação dos jovens. O exemplo do Museu de História Na- tural é excelente e demonstra como a integração pode ser útil: as crianças escolheram um tema que as ligava a suas famílias, receberam seu apoio e, ainda, elaboraram a do- ença e a perda. O esforço também requeria recursos es- colares, um público escolar para angariar dinheiro e uma equipe de educadores com conhecimentos sobre a escri- ta, habilidades conceituais e matemáticas, competências que as crianças trouxeram para a tarefa. Muitos programas proclamam com orgulho que têm obtido sucesso acadêmico, mas a análise do componente acadêmico mostra que o sucesso é marginal. Uma aula de culinária não deveria ser considerada equivalente a uma aula de matemática, mesmo que cozinhar envolva medi- das. A aprendizagem acadêmica requer algum nível de treinamento explícito de habilidades. Para as crianças, é muito bom cozinhar e desfrutar do sucesso de aprender essas habilidades. Os programas não são válidos somen- te se estão ligados a resultados acadêmicos. Na verdade, traduzir e avaliar toda a atividade em termos de resulta- dos acadêmicos é um sinal de integração exagerada, uma forma de se render a princípios que retiram a identidade e os objetivos dos programas pós-escola. Mas, se certas tarefas, como subtrair e adicionar, estão ligadas ao currí- culo da escola — como aconteceu no projeto da Socieda- de do Câncer — e as habilidades são treinadas e aperfei- çoadas, há um ganho significativo. E mais, esses resulta- dos serão potencializados pelo entusiasmo das crianças em aprendê-los para serem capazes de realizar as tarefas mais motivadoras demandadas pelos projetos. Como os projetos pós-escola são trabalhosos, caros e requerem muito tempo, fazer conexão com o que é apren- dido na escola e ser capaz de acessar recursos do período escolar pode ser muito produtivo. O que temos que evi- tar é que as crianças e educadores vivenciem os projetos como se eles fossem mais uma atividade da escola, em vez de uma extensão criativa da aprendizagem de caráter mais prático, participativo e focado na comunidade. Mes- mo esses tipos de atividades de aprendizagem não deve- riam tomar todo o tempo do programa; deve ser reservado um tempo para a brincadeira, recreação e artes. Além dis- so, uma aprendizagem expandida e enriquecida pode ser considerada uma ajuda alternativa para a lição de casa, 38 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 porque é uma forma criativa de aprofundar a aprendiza- gem em sala de aula. Finalmente, esse esforço tem o po- tencial de produzir uma ponte de mão dupla que também vai do programa em direção à escola. Ligar diferentes abordagens de aprendizagem para as- segurar o sucesso de crianças pode levar a uma formação profissional conjunta, a um planejamento conjunto e até à administração integrada de alguns programas. Certa- mente, há perigos, especialmente se esse esforço se tor- nar um pretexto para que escolas e secretarias controlem o orçamento dos programas pós-escola. Mas a visão de uma integração crescente implica conectar as diferentes identidades das escolas, famílias e programas. Deveríamos nos comprometer com o desenvolvimen- to de estratégias que beneficiem todas as organizações envolvidas, sobretudo as crianças e as famílias atendi- das. De que outro jeito conseguiríamos que as crianças do projeto da Sociedade do Câncer aprendessem con- teúdos acadêmicos, produzissem arte, aprendessem a comprar, vender, fazer um orçamento e, generosamente, doar o dinheiro arrecadado por elas e suas famílias para uma organização que combate doenças? Não é isso que é aprendizagem para todos os parcei- ros envolvidos? Certamente que sim, se nosso objetivo é produzir ambientes nos quais combinemos aprendiza- gem com responsabilidade e entusiasmo. Notas 1 NOAM, G.; BIANCAROSA, G. e DECHAUSAY, N. Learning beyond school: developing the field of after-school education. Cambridge, MA: Program in Afterschool Education and Research, 2002. 2 NOAM, G. After-school time: toward a theory of collaboration. Trabalho apresentado na série de Seminários urbanos sobre saúde mental da crian- ça e segurança: o período pós-escola, Cambridge, MA: Kennedy School of Government, May 10-11, 2001. 3 NOAM, G.; WINNER, K.; RHEIN, A. e MOLAD, B. The Harvard Rally Program and the prevention practiotioner: comprehensive, school-based intervention to support resiliency in at-risk adolescents. Journal of Child and Youth Care Work, 11, 1996, p. 32-47. 4 NOAM, G.; PUCCI, K.; RHEIN e FOSTER, E. Development, resilience, and school success in youth: the prevention practitioner and the Harvard Rally Program. In: CICCHETTI, D. e TOTH, S. (Ed.). Developmental approaches to prevention and intervention. Rochester, NY: University of Rochester Press, 1999. 5 É importante notar que alguns dos programas relatados aqui — incluindo a ACM, Clube de Meninos e Meninas da América, Fundação B.E.L.L. e Escolas Cidadãs — têm muitos pontos de atuação distribuídos em muitos lugares. Nesse caso, podemos falar com relativa certeza apenas dos locais visitados, em que fizemos entrevistas. 6 BLYTHE, T.; WILSON, D.; NOAM, G.; BOYD, J.; GRIFFIN, P. e GREENEBAUM, S. Fun learning matters. Cambridge, MA: Harvard University and the Afterschool Corporation, 2003. 7 N.T.: O Boys and Girls Club of América é uma organização que existe desde o século retrasado, mantida pelo setor privado, e tem, como presidente- honorário, o Presidente e a primeira-dama dos EUA. Por meio de dezenas de programas educacionais, procura maximizar oportunidades para crianças, principalmente àquelas em situação de vulnerabilidade. 8 Embora um dos objetivos fundamentais do [programa] Boston Excede seja garantir “que toda a parceria com a escola contribua para se alcançar os objetivos escolares”, promovendo, portanto, um forte alinhamento entre a escola e o programa pós-escola, esse alinhamento não atinge o nível máxi- mo de intensidade porque, para isso ocorrer, deveria haver um dia escolar estendido para todos os alunos. Ainda neste nível máximo, a escola e o programa pós-escola seriam essencialmente indistinguíveis um do outro. 9 DE KANTER, A.; HUFF, M. e CHUNG, A. M. Supplementation vs. supplantation: What is the core of schooling and what is supplemental? Paper presented at the Afterschool Programs and Supplementary Education Conference, New York. 10 Para aprofundamento, ver CAPLAN, J.e CALFEE, C. S. (2000). Strengthening connections between schools and after-school programs. Naperville, IL: North Central Regional Educational Laboratory. Available on-line: http://www.ncrel. org/21stcclc/connect/index.html. ** Título original: Learning with excitement: Bridging school and after- school worlds and project-based learning. © WILEY PERIODICALS, INC. Reimpresso com permissão de John Wiley & Sons. In: NOAM, Gil G. (Ed.). When, Where, what, and how youth learn: blurring school and community boundaries (Quando, onde, o que e como os jovens aprendem: diluindo as fronteiras entre a escola e a comunidade). Journal New Directions for Youth Development: theory, practice, research [Novas direções para o desenvolvimento juvenil: teoria, prática e pesquisa], n. 97, spring 2003, The Jossy-Bass Psychology Series (quarterly) [trimestral]. Editores dessa edição: Karen J. Pittman, Nicole Yohalem e Joel Toalman. 39 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 A escola A EMEF Comandante Garcia D’ Ávila foi criada em 30 de agosto de 1956 como Escola Mista do Imirim. Em 1958, foi rebatizada para II Escolas Agrupadas do Imirim. A par- tir de 1o de abril de 1969, passou a ser denominada Esco- la Municipal de Ensino Fundamental Comandante Garcia D’Ávila e, desde então, está localizada na Rua Armando Coelho Silva, 859 – Parque do Peruche, em São Paulo, capital. Na década de 1950, a região ainda era área rural. A área onde hoje é o bairro Parque Peruche teve origem no loteamento da fazenda da família Peruche. O bairro A origem do bairro remonta ao século XVII. Há registros de que, em 1616, onde hoje é a Escola Estadual Ary Bar- roso, Amador Bueno da Veiga mandou construir um ca- sarão colonial e um moinho de trigo, evidentemente com mão-de-obra escrava, marcando a presença de negros e portugueses na região desde aquela época. Antigos mo- radores relatam que, nessa mesma edificação, foram en- contrados utensílios de dominação dos escravos, como correntes, braceletes e outros (Marcelino, 2003). Oficialmente, em 3 de abril de 1935, um médico, Dou- tor Francisco de Paula Peruche, adquiriu uma área de 929.330m2, do antigo Sítio Mandaqui, que foi denominada Parque do Peruche, a partir dessa data. O bairro tem uma forma geométrica bem definida, resultado de um apro- veitamento melhor do espaço para o loteamento. Assim, predominando a lógica da máxima valorização mercanti- lista do espaço, não foi criada nenhuma praça ou área de lazer. Além disso, muitos terrenos vendidos localizavam- se em áreas baixas, sujeitas a alagamentos. Foi nesse espaço que assentou moradia uma grande população de negros, vindos da região do Córrego do Sa- racura, onde hoje é a Av. 9 de Julho, na região do Bexi- ga, zona central da cidade de São Paulo. Os negros res- gataram suas tradições e imprimiram sua cultura, des- de as origens do Parque Peruche, daí a forte presença do samba no bairro. Mais tarde, vieram muitos migrantes mineiros e do in- terior de São Paulo, além de portugueses, espanhóis e, em menor número, alemães, poloneses e iugoslavos. Posterior- mente, a comunidade registrou uma chegada significativa de japoneses, especificamente da Ilha de Okinawa. Nos úl- timos anos, a solidariedade do bairro tem acolhido imigran- tes vindos da América do Sul — bolivianos têm uma presen- ça marcante nos espaços públicos. Nas escolas, escutamos o “portunhol” das conversas entre os alunos. Como tudo acabou em samba Há 11 anos, Waldir Romero é diretor da EMEF Coman- dante Garcia D’ Ávila, no Parque do Peruche. Waldir lem- bra que, quando chegou à escola, deparou-se com o que ele chamou de “berçário de segurança máxima”: muitas grades, cadeados... Naquele tempo, a escola era conhe- cida como “maloquinha”.1 A EMEF Comandante Garcia D’ Ávila apresentava to- dos os índices negativos de aproveitamento escolar — alto índice de evasão, absenteísmo, repetência. Além do uso de drogas dentro da escola, havia também muitos problemas relacionados à indisciplina, divisão em gru- pos, muitas brigas entre os alunos, desrespeito com os professores e funcionários, depredação, pichação nas paredes das salas e muros, móveis quebrados. A escola era desrespeitada e invadida. Os profissionais também desistiram da batalha. Não havia processo de construção coletiva, quase nenhum recurso pedagógico e a infra-es- trutura era precária: o quadro era assustador. relato de prática Um caso de amor entre uma escola formal e uma escola de samba Cristina Fernandes de Souza* * Cristina Fernandes de Souza é comunicadora, da equipe Educação e Comunidade do Cenpec. Relato com base em entrevista com Waldir Romero, Diretor da EMEF Comandante Garcia D’ Ávila. 40 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Foi longo o caminho percorrido de lá até o carnaval paulistano de 2006, no qual alunos da EMEF Comandan- te Garcia D’ Ávila foram os responsáveis por pesquisar a vida de Santos Dumont, tema do samba-enredo da cin- qüentenária Escola de Samba Unidos do Peruche. Além de participar da criação do samba-enredo, alunos, pro- fessores e funcionários da escola formaram uma ala com 112 participantes e desfilaram no sambódromo paulista- no na noite de 25 de fevereiro de 2006. Várias situações contribuíram para que o diretor Wal- dir se aproximasse das inúmeras escolas de samba do Parque do Peruche. Vindo de um outro bairro, o novo di- retor não foi muito bem acolhido pela escola e seus alu- nos. Ao tentar equacionar os problemas de disciplina, es- tabelecendo canais de conversa para uma melhor convi- vência coletiva, Waldir escutou muitas vezes um: “Você não passa de um branco racista!” — rancoroso, enrai- vecido e seguido de uma expressão mista de desdém e desconfiança. Ao constatar a influência das inúmeras escolas de samba existentes no bairro, Waldir decidiu se aproximar delas, buscando se envolver mais na comunidade. Come- çou a freqüentar os grêmios recreativos, estabelecer rela- ções com os líderes desses espaços, que também eram líderes comunitários naturais, dada a influência das es- colas de samba na comunidade. Assim, Waldir foi se en- volvendo, conhecendo a liturgia das escolas de samba, a linguagem do samba e, em suas palavras, “descobrin- do as páginas ocultas da comunidade”. Essa sua postu- ra de se abrir para a comunidade resultou na conquis- ta da confiança dos alunos da escola. Eles começaram a tratá-lo com mais respeito e empatia, depois de vê-lo “comemorando” com seus pais, tios, enfim, seus fami- liares que freqüentavam a escola de samba nos horários de lazer. Waldir já não era mais “um branco racista”, era “um dos nossos”. Outra situação que favoreceu a aproximação com as escolas de samba do bairro foi um momento em que a agremiação precisou passar por uma grande reforma. Era 1997. Waldir percebeu a necessidade de buscar alterna- tivas de espaços de aprendizagem para que as crianças não fossem dispensadas das aulas. Ao explorar o bair- ro do Peruche, o diretor reconheceu a presença e a força que as várias escolas de samba tinham na comunidade e estabeleceu parcerias para utilizar estes e outros espa- ços — ruas, praças e cinemas — para o desenvolvimento 41 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 de atividades educativas. Essa atitude não foi somente a procura por uma solução prática para um problema cir- cunstancial, foi o reconhecimento de que a aprendiza- gem acontece em muitos espaços, e o processo educa- tivo deve levar em conta as vivências, os valores, os sa- beres e os fazeres da comunidade local. Waldir percebeu que deveria instigar, nos alunos, o sentimento de pertencimento à comunidade: “Tenho um bairro, um signo, um símbolo, uma história”. A escola era um excelente caminho, na medida em que oferecia seu espaço para eventos culturais próprios e de terceiros e atividades educativas. Nesse processo, Waldir resgatou as personalidades do bairro — muitos sambistas e es- portistas, como Adhemar Ferreira da Silva, Éder Jofre e Basílio “Pé de Anjo”. O samba é tratado como tema transversal no currí- culo escolar. Os alunos da escola desenvolvem e con- feccionam as fantasias nas aulas de Educação Artística e aprendem música com os compositores da escola de samba Unidos do Peruche. As aprendizagens são múlti- plas e circulam em vários espaços. O carnaval é tratado como a festa de formatura. O diretor reconhece que o samba é a vocação do bair- ro, e que os meninos e meninas da comunidade alimen- tam o desejo de trabalhar com samba, construir uma car- reira no carnaval. Daí a necessidade de gerar renda e em- prego dentro dessa vocação, aproveitando as oportunida- des existentes na comunidade. “Precisamos formar esses meninos para esse desafio”, vislumbra Waldir. Ele proje- ta um engajamento comunitário dos meninos e meninas, por meio da possibilidade de geração de renda. “Na escola, alfabetiza-se pelo samba e pela arte”, sintetiza Waldir, reconhecendo as aprendizagens além do currículo formal. A linguagem do samba é levada tão a sério que, em um encontro nacional de estudantes de me- dicina, sediado na escola em 2003, o Hino Nacional foi to- cado pelos alunos em ritmo de samba, com muito orgulho e respeito, perante as autoridades do poder público, reno- mados acadêmicos e lideranças da comunidade. A partir do estreitamento das relações com as esco- las de samba da região — Unidos do Peruche, Morro da Casa Verde e Império da Casa Verde — outras parcerias foram construídas. Atualmente, a EMEF Comandante Gar- cia D’ Ávila conta com valiosos voluntários, parcerias e apoios diversos.2 A escola criou um campo de relacionamento muito rico, uma verdadeira rede na comunidade. Alunos, pro- fessores e funcionários fazem parte desta trajetória e co- lhem agora os frutos dessa conquista. Ao conversar com os profissionais e os meninos e meninas que estudam lá, nota-se o sentimento de pertencimento e acolhida e, sobretudo, o orgulho de fazer parte disso. A visibilidade que a escola atingiu é constatada nas várias parcerias es- tabelecidas e pela repercussão na mídia — o jornalista Gilberto Dimenstein escreveu recentemente uma crôni- ca, na Folha de S.Paulo, citando a EMEF Garcia D’ Ávila e comentando sua presença no carnaval paulistano. Hoje, a escola está muito bem cuidada, por todos — alunos, professores e funcionários. Os funcionários lim- pam a escola com esmero, e as crianças aproveitam essa limpeza — brincando à vontade no chão dos corredores, ao mesmo tempo que a conservam. Não se vêem mais os muros pichados. O diretor Waldir até reservou um espa- ço em uma parede interna no pátio para a livre expres- são artística por meio da linguagem do grafite, mas os alunos abriram mão desse exercício. A escola abriu as portas para a comunidade. Seu am- plo refeitório é reservado para a feijoada comunitária e se transforma em salão de festas para aniversários, ca- samentos e batizados. Em 2004, a população do bairro fez um delicioso bolo de 69 metros para comemorar os 69 anos do Parque Peruche; tudo foi feito na escola, des- de os preparativos até os festejos. A EMEF Comandan- te Garcia D’ Ávila participa do programa Escola Aberta, vibrando, nos finais de semana, com várias atividades esportivas, culturais e sociais, organizadas pela comu- nidade e para a comunidade. É uma relação simbiótica, na qual os relacionamentos se aprofundam, ampliam-se territórios e todos saem ganhando. Bibliografia MARCELINO, Márcio Michalczuk. A evolução urbana do Parque Peruche e sua gente. São Paulo: Editora Carthago, 2003. Notas 1. Maloca: extraído do Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss: a)conjunto de habitações de indígenas; aldeia. b) (1899) grande choça coberta de palmas secas, us. como habitação por várias famílias índias, esp. sul-americanas. c) Derivação: por extensão de sentido. Regionalismo: Brasil. Casa muito pobre, bastante rústica; choupana, rancho, barracão. 2. Universidades Mackenzie e FAAP, jornalista Gilberto Dimenstein, Amanakay, Projeto Sociedade das Crianças, APAE-PIPA, Labor, Prof. Mario Sergio Cortella, Profa. Lisete Arelaro, Senac, Futura Informática, Rotary de Bela Vista, Instituto Ives Otta, entre outros. 42 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 43 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 I. Complexidade humana, ideologia e economia. uitas das dificuldades que nossa organização e vida social enfrentam hoje são decorrentes do papel que as ideologias desempenharam no século XX. Elas não nos forneceram apenas os parâmetros para a definição, a implantação e a avaliação das ações públicas, governa- mentais, paralelas ou complementares, de qualquer na- tureza – educação, proteção social, ambientais, saúde, econômicas, religiosas, culturais e, estrito senso, políti- cas.... As ideologias também adentraram o coração da vida humana e se estabeleceram como sua ética funda- mental. E são exatamente as questões éticas que hoje têm se posto como nossos problemas mais cruciais e elementares. Não falamos de moral, de questões relativas aos cos- tumes de uma comunidade, mas das que afetam a con- dição humana como tal e sua morada no mundo. A complexidade dos problemas éticos tem uma ori- gem e uma feição que as ideologias são incapazes de compreender e, portanto, de tratar e de superar, porque também são problemas gerados por elas. As ideologias têm uma lógica peculiar: a manutenção e a salvaguarda de seu corpo de idéias originais. É sem- pre um ideário que ilumina e que fundamenta uma ide- ologia. Todo valor humano, toda compreensão do huma- no emana desse ideário e nada que venha de fora dele tem estatuto de verdade. As demandas e necessidades humanas só serão con- sideradas demandas e necessidades quando puderem ser equacionadas ou já tiverem sido validadas pelos ide- artigo A condição humana como valor e princípio Dulce Critelli* para a educação M * Dulce Critelli é titular de Filosofia da PUC-SP,onde obteve os títulos de Mestra em Filosofia da Educação e Doutora em Psicologia da Educação, Articulista do “Caderno Equilíbrio”da Folha de S.Paulo, Terapeuta Existencial e Coordenadora do Existentia entro de Orientação e Estudos da Condição Humana. 44 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 ários das ideologias. Perdê-los, portanto, ou maculá-los é comprometer e arruinar todo processo e todo princípio, toda justificação e motivo de uma ideologia. Daí que as ideologias precisam da criação de sistemas políticos ex- clusivos que, para se manterem, acabam por gerar suas inúmeras e próprias demandas e, assim, canalizam para si a atenção e o fôlego das ações. No caso das ideologias econômicas mais determinan- tes e vigentes no cenário ocidental – o socialismo e o capi- talismo –, os ideários que as alimentam têm, na produção de bens e serviços e no mercado, seu eixo fundamental. Sua preocupação básica é com a produção e distribuição da riqueza, que entendem ser a origem de todo problema histórico e social, e das quais as questões éticas deriva- riam. As ações públicas, portanto, voltam-se ou para seu incremento, para sua superação, ou, ainda, para a reali- zação de programas cujo fim é a correção e/ou a compen- sação das distorções e falhas da produção econômica. A complexidade humana é limitada pela economia. À parte o mérito de se buscar a superação dos graves problemas humanos decorrentes de um sistema certamen- te perverso de produção e de distribuição da riqueza, é im- portante compreender que as ideologias são fonte de ou- tras perversidades, como a instauração de sistemas políti- cos totalitários que, à força da concretização dos seus prin- cípios e valores, cometeram os crimes mais atrozes contra a humanidade. É o caso do nazismo, do stalinismo e dos fundamentalismos religiosos, por exemplo. Precisamos buscar, fora dos cânones ideológicos, no- vas lentes, novos parâmetros e interpretações que nos permitam transcender os entraves que eles nos impuse- ram. Precisamos encontrar princípios e valores que nos orientem na construção de uma nova e necessária éti- ca fundamental. II. Valores e princípios Para levar adiante esta discussão, precisamos desfazer a confusão corriqueira entre valores e princípios. A con- fusão é possível uma vez que ambos – mesmo que cada um, a seu modo – orientam e iluminam nossa vida coti- diana e pública. Mas eles têm finalidades diferentes. Princípios são sempre possibilidades que brilham e acenam de fora da nossa realidade, fazendo-nos uma convocação. Eles nos lembram e chamam a atenção para aquilo que ainda está por ser realizado, posto em práti- ca e que o nosso modo de ser, não contempla ou jamais poderá deixar de contemplar, como a fraternidade, a li- berdade, a igualdade, a honra... É da natureza dos princípios serem muito pouco defi- nidos, diferente do que chamamos de metas, por exem- plo, que são necessariamente precisas e objetivas. O que significa propriamente fraternidade e igualdade? É precisamente na sua pouca definição que os prin- cípios são inspiradores de nossas ações, de nossas me- tas, das normas sociais, mas não se esgotam em qual- quer uma delas. Sua principal característica é a de con- ferirem aos nossos atos um sentido, uma “razão de ser”. São demasiadamente gerais para se converterem em metas particulares, porém, suficientes para servir como critérios para o julgamento dos atos humanos. Os prin- cípios nos oferecem os critérios para julgamento e esco- lha de nossas ações, e só se aplicam mesmo às ações humanas, nunca a coisas ou objetos. Toda questão éti- ca é sempre uma questão de princípios. Os princípios, portanto, nunca são “realidades”; são sempre “possibilidades”. Já os valores não têm, por constituição, qualquer fun- ção inspiradora. Sua natureza é a de promover uma or- denação da nossa vida pública e, por conseqüência, da nossa vida privada. Definem o que devemos querer al- cançar, banir do nosso meio ou conservar entre nós, uma vez que sempre se fazem acompanhar de juízos sobre o que é positivo ou negativo, bom ou mau, certo ou erra- do, desejável ou indesejável, permitido ou proibido. Os valores, portanto, têm a função de congregar e organi- zar uma sociedade; de manter a coesão e a coerência de uma comunidade. Metas, objetivos, interesses de clas- se, grupos... são derivações dos valores. Os valores conferem e atestam a relevância de um comportamento, de um objetivo, de uma aspiração. Po- dem tanto ser aplicados às condutas humanas, quanto às coisas, conferindo-lhes sua validade e/ou qualidade – valor financeiro, de sacralidade.... Embora sempre tenham uma ética que lhes dá fun- damento, os valores voltam-se mais para os usos e cos- tumes de uma comunidade, organizando e classificando mais a conduta do que os nossos ideais; mais o compor- tamento humano do que a condição humana. Valores sempre se fundam em princípios e são cons- tituídos para concretizar princípios. Por exemplo, se ti- vermos a fraternidade por princípio, ajudar o próximo em 45 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 suas necessidades pode ser um valor correspondente. Mas essa vinculação entre valores e princípios pode ser rompida. Por exemplo, quando o princípio ganhar um novo sentido ou significado. No caso, quando fraterni- dade adquirir um sentido que os valores vigentes não contemplam, ou quando as normas e leis deles deriva- das se tornarem insuficientes. Ou, ainda, quando outros e novos princípios acenarem desde outro horizonte, es- vaziando os valores atuais. Toda vez que novos princí- pios convocam uma sociedade, os valores vigentes per- dem sua vigência, sua força, sua capacidade de organi- zação, qualificação e julgamento. Os princípios, então, podem desorganizar uma socie- dade que antes era organizada por valores. Quando a vin- culação entre valores e princípios é perdida, a única coi- sa que pode fazer valer e sustentar um valor é a violên- cia. Ou o terror, que tem sido o recurso mais banal em nossa contemporaneidade. A violência subjuga e obriga as pessoas a realizarem e a viverem sob valores e princípios que lhe são alheios. Quando os indivíduos de uma comunidade não têm iden- tidade com os valores e princípios em questão, só se comportarão de acordo com eles se sob vigilância, sob punição ou castigo. De qualquer forma, o que subjaz a valores e princí- pios são as concepções de homem, de mundo, de vida, de morte, de bem, de mal... vigentes em uma socieda- de. Em outras palavras, sua ética fundamental. É dessa ética que princípios e valores brotam e se manifestam como valores e princípios. Dela retiram seu corpo e sua autenticidade, são autenticados por ela. Concepções éticas, princípios e valores nunca são tangíveis neles mesmos. Tangíveis são as condutas e as coisas que os manifestam. Mas mesmo sendo intangí- veis não podem ser classificados como “idéias”. Valores e princípios não se sustentam como idéias, embora se possa pensá-los e se falar deles. São atos. Só na conduta humana, valores e princípios podem existir como tais. Jamais, no entanto, princípios e valores dizem respei- to apenas a condutas individuais. Sempre se referem a questões públicas, mesmo que o que esteja em questão seja a conduta de um só indivíduo e nas ocorrências da vida privada. Sua natureza é política, no sentido mais am- plo e simples da palavra. Dizem respeito ao “agir em con- junto” que, como nos lembra Hannah Arendt, é o modo mais primordial e característico do ser humano. III. Aprendemos valores e humanidade Embora os valores sejam matéria de nossos pensamen- tos e de nossas palavras, não é neles que há vida. No cor- po da letra, na voz do conselho, na veemência do discur- so..., um valor é apenas indiciado, não mais que isso. Os valores vivem nas nossas ações, nas nossas condutas. Nelas e por elas é que um valor se manifesta e se reali- za. Os valores são os motores do nosso agir. O agir humano não acontece por acaso, nem por obra e graça da natureza. Se fôssemos abelhas, pássaros ou plantas, seria simples. Já nasceríamos sabendo voar, pro- duzir cera e mel, frutificar, acasalar, enfrentar o frio e o sol, morrer... Mas somos humanos, e é da nossa natureza não nascermos sabendo ser ou agir como humanos. Temos que aprender a viver como seres humanos e tam- bém aprender a ser o ser humano peculiar, o indivíduo ex- clusivo que cada um de nós é e pode vir a ser. Nossa huma- nidade não paira em qualquer definição, idéia, teoria ou ide- ologia. Ela está no nosso agir cotidiano, além de ser o pro- cesso e o produto de uma contínua aprendizagem. Nossa humanidade é conquistada e aprendida em meio a outros seres humanos. Em meio às formas que as outras pessoas já moldaram para a sua (e nossa) huma- nidade e para a sua (e nossa) individualidade. Em meio aos princípios e valores em nome dos quais erigiram a sua (e a nossa) humanidade. Os valores da sociedade ou comunidade no seio a qual nascemos são, portanto, aprendidos por nós en- quanto aprendemos a ser humanos. A aprendizagem de valores e a aprendizagem de nossa humanidade são, deste ponto de vista, uma e a mesma coisa. 46 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Essa aprendizagem ocorre de duas maneiras princi- pais. Há a aprendizagem decorrente de processos inten- cionais, como a que ocorre nas escolas, e há a aprendi- zagem que acontece distraída, como a do dia-a-dia, nos mais diversos cenários e nas mais diferentes situações, a qualquer instante, sem qualquer propósito. Por isso mesmo, ela é a mais profunda, a mais radical, a mais constitutiva. O processo educativo intencional é sempre escolhido, dirigido, planejado, avaliável. E, de modo geral, a edu- cação intencional – formal e informal, oficial ou comple- mentar – tem por alvo os saberes instituídos, o desen- volvimento de habilidades e comportamentos, questões técnicas e operativas, o treinamento do raciocínio lógi- co, da habilidade argumentativa, da memória. Em ou- tras palavras, o repasse, o desenvolvimento e a prote- ção do patrimônio cultural. A escola e a mídia são seus veículos principais. Por elas, esse patrimônio se torna comum e lícito. Já a educação distraída, mesmo que envolva os bens do patrimônio cultural – dos hábitos de higiene às cren- ças religiosas –, avança também para além dele e da cul- tura propriamente dita e se endereça para o que há de mais comum em todos os homens de qualquer cultura e tempo: sua humanidade. Ela roça o cuidado da condi- ção humana, porque nos ensina, sem que nos atentemos e pelo exemplo daqueles com quem convivemos, como dar conta de sermos tanto humanos, quanto os indivídu- os exclusivos que somos, queiramos ou não. A educação distraída ocorre por meio da simples convi- vência e, na sua quase integralidade, é inconsciente de si mesma. Somos, simplesmente, não aprendemos ou ensi- namos a ser. Os outros são, simplesmente, não estão nos ensinando a ser. Apreende-se e se aprende o que está no ar, o não dito, e até mesmo o que se disfarça e oculta. Todo processo educativo intencional tem a condição humana como pano de fundo, mas, muitas vezes sepa- ra-o e o exclui. Pensa-se, por exemplo, que questões ma- temáticas não têm a ver com questões existenciais, pois o que interessa é a transmissão e o desenvolvimento da ciência matemática. Todavia, a educação intencional de- veria ter olhos e ouvidos para perceber e compreender 47 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 O século XX foi o tempo em que a “idéia de mundo” valeu mais que o mundo mesmo. Em que a “idéia de homem” valeu mais do que o próprio. tudo o que vem da aprendizagem distraída, em espe- cial, ao que diz da condição humana – seus modos, seu valor... Pois, mediante essa atenção, esse prestar ouvi- dos, a educação intencional poderia exercer uma fun- ção extremamente essencial de corrigir, reforçar, reo- rientar o curso de nossa humanidade, seja no que se re- fere à cultura estrito senso, seja no que toca nossa pró- pria condição humana. E aqui entramos, propriamente, no que todo o discur- so anterior visou preparar e que retoma o princípio des- ta conversa. Foram as ideologias, e não a compreensão efetiva e a valorização da condição humana, que deter- minaram as ações públicas do século XX. É o que rece- bemos por herança neste século e o que precisamos vol- tar a questionar. Repensar as verdades, os fins, os axio- mas pelos quais nos temos pautado. O século XX foi o tempo em que a “idéia de mundo” valeu mais que o mundo mesmo. Em que a “idéia de homem” valeu mais do que o próprio. Foi um tempo em que todo valor foi dado à “representação”. Nesse valor, as ideologias se basearam e dele retiraram sua força e prevalência. • Mas o que orientaria nossas ações públicas se não for uma ideologia? De onde traríamos os critérios e parâmetros para nossas condutas e nossos fins? • Da própria condição humana. Em Hannah Arendt, busco a inspiração fundamental para os comentários a seguir. Tocada por suas reflexões, comecei a pensar em como elas poderiam nos ajudar a encontrar os rumos novos e necessários para a nossa vida cotidiana e histórica. Entendi, ao longo de anos de estu- do do seu pensamento, que a compreensão que ela ar- ticula sobre o humano, sobre as capacidades humanas de dar conta da vida, poderia se oferecer para nós como um novo fundamento sobre o qual reconstruir uma ética fundamental e, conseqüentemente, encontrar valores condizentes com esse passo adiante na nossa humani- dade, de que parecemos carecer tanto. IV. Condição e condições humanas Arendt1 chama de condição humana, as condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra. Espécies de ferra- mentas por meio das quais os homens arcam e dão con- ta do viver. Ferramentas que não podemos recusar nem adquirir ao longo do tempo, pois se trata de diferenciais que nos distinguem de todas as demais criaturas, pos- sibilidades com as quais nascemos dotados. Cada uma dessas condições humanas gera e exige atividades próprias que, por sua vez, têm suas próprias finalidades e produtos. Resumindo, as condições humanas são: 1. A vida biológica, na totalidade de seu ciclo: nascimen- to, crescimento, metabolização da natureza, declínio e morte. A vida biológica provoca a atividade humana do labor, cuja finalidade é a de preservar a vida indivi- dual e da espécie e de satisfazer as necessidades vi- tais na tentativa de evitar e de afastar a própria mor- talidade. Os produtos dessa atividade são os bens de consumo, coisas cujo consumo garante a vida e sa- tisfaz suas necessidades. 2. A mundanidade, essa capacidade que os seres huma- nos têm de reconstruir sobre o habitat natural um outro artificial, de artefatos. Uma necessidade que ultrapassa a atenção com a mortalidade e se expõe como as fron- teiras unicamente dentro das quais os humanos conse- guem viver. O mundo natural não é o mundo humano. A atividade que responde pela finalidade de construir o mundo é o trabalho, e seus produtos são tanto os obje- tos de uso, quanto as obras de arte, que povoam o ter- ritório da vida para além da vida mesma. 3. A pluralidade, o fato de que os seres humanos, e não o ser humano, vivem na Terra e habitam o mundo. A ati- vidade que corresponde a ela é a ação, atividade que se exerce diretamente entre os homens. Seus produ- tos são os próprios negócios humanos ou a política. Diz respeito ao fato de os homens só poderem agir em conjunto e terem como instrumento fundamental des- sa ação os gestos e as palavras. A pluralidade supõe a singularidade. Cada ser humano é um indivíduo exclu- sivo que ninguém antes, nem depois dele, reproduz. A pluralidade é constituída de singularidades, mas não como somatória. Pluralidade e singularidade não são de natureza quantitativa, mas qualitativa, referindo-se aos modos básicos nos quais os homens são no mun- do: em conjunto e como si mesmos. 48 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 As três condições básicas anteriores são correlatas e fundamentadas por outras condições mais gerais: 4. A natalidade, que tem, na liberdade ou no dom de iniciar sempre uma nova ordem para o que quer que seja, sua representação mais elementar. Trata-se da condição de não apenas nascer para a vida, mas de nascer e poder apresentar-se aos outros homens como um homem singular. 5. A mortalidade, por meio da qual se encerra a presen- ça de uma singularidade no mundo e sua atuação na História. 6. O condicionamento: o fato de os seres humanos torna- rem as coisas com que entram em contato e perduram entre eles uma nova condição para sua existência. Coi- sas que são trazidas para o meio dos humanos por es- forço deles mesmos, como a tecnologia, que não é ape- nas um novo instrumental para o homem, e sim, a for- ma pela qual ele hoje pode entrar em contato com seu corpo, seus semelhantes..., dar conta da vida. A essas condições humanas, acrescento uma outra, ti- rada de Heidegger, e que está subjacente a todas elas: 7. O cuidar. Trata-se do fato de que a vida e cada uma das condições humanas serem dadas ao homem sob seu cuidado. As condições humanas anteriores não são apenas ferramentas pelas quais arcamos com a vida, elas também nos são dadas como possibilida- des – que precisam ser desenvolvidas. Cuidamos não só de nos mantermos vivos, como ainda da condição humana de cuidar da vida. Cuidamos de construir o mundo, e também cuidamos da condição humana de mundanizar... Estão sob nossos cuidados tanto aqui- lo de que cuida de cada uma das condições huma- nas, quanto a própria condição humana. Cuidamos de algo e cuidamos do cuidar de algo. Cuidar é pôr sob responsabilidade, arcar com... e in- clui todas as formas negativas ou positivas de se tra- tar de ser: de construir ou de destruir, de plantar ou dizimar, de desenvolver ou de reprimir... Cuidar e des- cuidar são uma e só condição. Diz do lidar com algo, com os outros, conosco mesmos, de como responde- mos a tudo que nos chega e se apresenta a nós. Até mesmo a omissão, o dar as costas, o recusar são for- mas de cuidar de ser. Uma nova ética deveria tomar a condição humana como seu eixo fundamental, sua fonte, sua origem e sua finalidade. O respeito à condição ou às condições humanas de- veria se impor como um princípio para nosso existir e inspirar uma nova ordem do mundo, portanto, a elabo- ração de novos valores. O que implica constituir as pró- prias condições humanas em valores que ordenam, ilu- minam, qualificam nosso agir. Desses novos valores, deveriam emergir condutas, comportamentos, atitudes que as garantissem e efeti- vassem. As condições humanas, tornadas valores, deveriam servir, então, como critérios que parametrizassem a de- limitação das ações públicas necessárias e, ao mesmo tempo, servissem de instrumentos para sua avaliação. É óbvio que as condições humanas só poderiam servir como parâmetros para o estabelecimento e avaliação das ações públicas, não isoladamente e, sim, no seu conjun- to. Para que o respeito a uma delas implique, necessaria- mente, o respeito e o atendimento a todas as outras. Tomar a condição humana como princípio e valor dis- ta muito de se instituir uma nova ideologia. Enquanto as ideologias obrigam ao cumprimento de um fim ou ideal antecipadamente definido, pontuado desde o futuro em direção ao presente, tomar a condição humana como va- lor e princípio seria ter nela um ponto de partida. Eleger a condição humana como princípio e valor é a única maneira que temos de suplantar a determinação das ideologias. É dar às ações humanas e públicas a sua própria humanidade como razão de ser. Notas 1 Leia-se, especialmente sobre o assunto, Arendt, Hanna. A Condição Humana, Forense Universitária, SP, 2002; trad. Roberto Raposo, 10a ed. 49 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 RELATO DE PROJETO Em Parati foi assim... Maria Cristina S. Zelmanovits Se o leitor está pensando que a seguir aparecerá o relato de uma experiência com começo, meio e fim, avi- so logo: não é isso. O que será apresentado então? Ape- nas um começo... O projeto que envolve escolas e comu- nidades de Parati está em andamento e para se iniciar, precisará, no mínimo, de mais um ano. Mas por que jogar luz em seu início? Porque inícios são marcas de batismo que podem sinalizar questões fundamentais para o desenvolvimento de uma história. O Projeto de Educação na Escola e na Comunidade nasceu no segundo semestre de 2005, por iniciativa da Associação Cairuçu ( www.cairucu.org ), em parceria com o Cenpec. Tem como objetivo principal o aumento dos ní- veis de aprendizagem de crianças e adolescentes de cin- co comunidades periféricas do município de Paraty, no Rio de Janeiro: Patrimônio, Ponta Negra, Quilombo Cam- pinho da Independência, Sono e Laranjeiras. Essas comunidades da região-meta caracterizam-se pela pobreza de seus habitantes, por um precário acesso aos serviços das políticas públicas, isolamento, cultura es- sencialmente oral e pouca valorização da escola e do letra- mento, exigência maior da sociedade contemporânea. Muitas das escolas instaladas nessas comunidades são multisseriadas, limitando-se ao ensino de 1a a 4a sé- ries. O ensino fundamental completo precisa se deslocar – o fato de estar no centro do município representa um grande obstáculo para a maioria prosseguir os estudos em virtude de inúmeras dificuldades, dentre elas, a de loco- moção – em alguns lugares, apenas possível por meio de barcos ou trilhas, quando o tempo está favorável. Os professores dessas escolas possuem uma forma- ção ainda bastante incipiente. Nesse contexto, as taxas Maria Cristina S. Zelmanovits é pedagoga, assessora da coorde- nação do Cenpec e já assessorou vários projetos de literatura e artes em escolas, museus e outras instituições. de evasão e reprovação acabam sendo superiores às da própria média do município. Levando em conta as condições apontadas, foi pro- posto um projeto de ação que intervenha simultaneamen- te na escola – sobretudo na formação dos professores – e na própria comunidade, principalmente pela ação de seus jovens que, ao mesmo tempo, ampliam seu univer- so informacional e cultural, promovendo oportunidades de aprendizagem em suas comunidades. As concepções que fundamentam o projeto Educação na Escola e na Comunidade partem do pressuposto de que não basta agir na escola para se alcançar efetivida- de no aumento dos níveis de aprendizagem de crianças e adolescentes; a própria comunidade precisa valorizar o conhecimento letrado ganhando, ela mesma, aprendi- zagens novas que permitam a maior circulação e inclu- são social nesta sociedade da informação e do conheci- mento que nos toca viver. A parceria entre Associação Cairuçu e Cenpec Entre 2005 e 2006, o Cenpec esteve em Parati por qua- tro vezes para: • conhecer as comunidades da região-meta; • conversar com secretários municipais (da Educação, do Turismo e Cultura e da Promoção Social) e com al- gumas ONGs locais; • realizar diagnósticos a respeito do ensino e da apren- dizagem nas escolas, principalmente no que se refe- re ao trabalho com Língua Portuguesa; • iniciar a formação dos jovens para a primeira experiên- cia junto ao público infanto-juvenil – Programação de férias; • iniciar a formação de professores que trabalham com as classes iniciais de alfabetização – crianças de cinco- e seis anos – até a 2a série. 50 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Essas ações foram gerando, ao longo do tempo, ava- liações que permitiram conhecer com mais profundida- de as características, dificuldades, possibilidades, de- mandas e necessidades de cada lugar. Escolas As escolas da Ponta Negra e do Sono são multisseria- das e só oferecem aos alunos ensino até a 4a série. Além disso, localizam-se em lugares que não se constituem em ambientes letrados – constata-se a ausência de no- mes nas poucas barracas que atendem aos turistas, de placas indicando caminhos das trilhas e outras sinaliza- ções, enfim, as crianças dessas comunidades não con- vivem com a escrita em seu cotidiano. Assim, faz-se necessário realizar um trabalho que, aos poucos, inclua as comunidades na cultura escrita e, ao mesmo tempo, respeite a estética desses ambientes tão belos. Um ambiente letrado promove um conjunto de situações de usos reais de leitura e escrita, nas quais as crianças têm a oportunidade de participar. Se o contex- to e os adultos com quem as crianças convivem lhes ofe- recem oportunidade de presenciar, observar e atuar em diversos atos de leitura e de escrita, elas podem, des- de cedo, pensar sobre a língua e seus usos, construindo idéias sobre como se lê e como se escreve. Justamente porque pouquíssimas são as chances de convivência dessas crianças com a escrita, precisamos tra- balhar com atividades de leitura que podem ocorrer tanto na escola quanto na comunidade. O universo de aprendi- zagens que compõe a leitura só se torna possível quando se elege o texto – ao contrário das palavras ou frases sol- tas – como unidade mínima de sentido para as crianças. É por meio de textos de uso real – ou seja, de textos que existem à nossa disposição, como receitas, cartas, listas, cardápios, outdoors, gibis, livros, revistas, placas, folders etc. – que podemos apresentar a elas os diferentes propó- sitos, a diversidade literária e a riqueza da linguagem que criam condições para que também se escreva melhor. Em todas as escolas, incluindo as de Laranjeiras, Qui- lombo Campinho da Independência e Patrimônio, obser- va-se a necessidade de ampliar a formação dos professo- res e de organizar com eles uma rotina de trabalho que dê conta das aprendizagens fundamentais em leitura e escri- ta – o domínio da língua é fator de inclusão social e, ao mesmo tempo, base para a aprendizagem de outras áreas do conhecimento. Para se resolver um problema de Mate- mática, por exemplo, não basta saber as operações, é in- dispensável interpretar enunciados; para se compreender um texto de História ou Geografia, é preciso saber ler, re- lacionando dados e informações, saber diferenciar o que é informação geral e informação específica. PROBLEMAS DA REGIÃO Dados do IBGE (2000) e do INEP (2003) nos per- mitem ter uma vista aérea, em que três problemas saltam aos olhos: 1. A oferta para a educação infantil não atende à demanda. As matrículas nas pré-escolas, tanto rurais quanto urbanas, atingem apenas 30% da população infan- til. A formação dos professores chega, no máximo, ao Ensino Médio completo. Se cruzarmos essas informações com as do item dois, podemos inferir que meninos e meninas têm entrado na 1a série sem condições de enfrentar o ensino formal de modo a obterem sucesso em suas aprendizagens. 2. As taxas de repetição na 1a e 2a séries são muito preocupantes. A taxa de distorção idade-série no ensino funda- mental é bastante alta. A formação dos professo- res que trabalham no município de 1a a 4a série não chega ao ensino universitário; entre os pro- fessores de 5a a 8a série, aproximadamente, 47% têm ensino médio completo; e aproximadamente 53% têm universitário completo sem licenciatura. Como decorrência do comentário 1, temos aqui o efeito dominó do fracasso escolar nas séries posteriores. 3. O EJA precisa receber mais investimento. A disparidade de oferta de ensino deste segmen- to para a área urbana e rural é enorme. Não há escolas na área rural que atendem aos alunos de 6a, 7a e 8a séries. O número total de matrículas, nesse segmento do ensino, é muito baixo e a formação dos professores de EJA, a seguinte: mais da metade tem ensino médio completo e um pouco menos da metade tem universitário completo, sem licenciatura. Muitos dos alunos e alunas que conseguem terminar a 4a ou 5a séries não têm como continuar seus estudos. 51 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Comunidades Nas comunidades da Ponta Negra e do Sono, os mora- dores sobrevivem da pesca artesanal, da agricultura de subsistência, da exploração do turismo na alta tempo- rada e do aluguel ou alojamento de turistas em suas ca- sas e quintais. Entre as crianças e adolescentes que aju- dam seus pais na lavoura e na pesca, muitos têm seus aprendizados escolares comprometidos ou até interrom- pidos por abandono. A maior parte das famílias dessas comunidades vive em extrema pobreza, com dificuldades de acesso ao sa- neamento básico, à energia elétrica, ao transporte para Parati, aos equipamentos públicos de saúde, lazer, cul- tura, esportes. Há, portanto, fragilidades com relação à escola, à continuidade de ações propostas por organi- zações da sociedade civil e ao acesso aos bens cultu- rais de Parati. Na comunidade quilombola, que é inclusive Ponto de Cultura, observa-se uma identidade mais fortaleci- da. Existe a valorização da cultura negra e sua tradição no campo das artes, do artesanato, da culinária, do uso plantas medicinais. Mas, apesar da maior organização, há dificuldades para se integrarem ações da escola com ações já desenvolvidas na comunidade – oficinas de ar- tesanato, pintura, cerâmica, vídeo, turismo étnico e ou- tros. Embora a escola abra sua biblioteca e ofereça au- las de informática, parece não sair de si mesma e elabo- rar propostas coletivamente. No Patrimônio e em Laranjeiras, muitos moradores trabalham como caseiros no Condomínio Laranjeiras e tem uma renda superior à das pessoas dos outros ter- ritórios investigados. Além disso, há a possibilidade de participação do universo informacional – o acesso à In- ternet mais facilitado, a convivência em ambiente letra- do e a valorização da estética e da arte. As lideranças comunitárias lutam pela implementa- ção da educação para jovens e adultos, por espaços de sociabilidade e apreciam as conquistas da escola muni- cipal e da associação de moradores. Garantir o direito à educação básica em todas essas co- munidades é um desafio possível, mas, para isso, são fun- damentais a iniciativa e o envolvimento das pessoas que moram na comunidade. A compreensão dos pais, dos avós, das lideranças, das comunidades vizinhas e de toda a cida- de sobre a importância de todas as crianças e adolescentes terem acesso à escola aponta rumos para o trabalho. Contar com as potencialidades locais e criar espaços para as crianças, adolescentes e jovens desenvolverem atividades lúdicas, esportivas e culturais no contraturno escolar é uma estratégia que pode dar certo. O “dar cer- to” também depende de as comunidades assumirem a autoria e organização das atividades, identificando a im- portância desses espaços no desenvolvimento das crian- ças e formação dos jovens. Os agentes de saúde e a ju- ventude das comunidades mostraram ser um caminho para mobilização e construção de projetos que produzam melhoria da qualidade de vida, assim como melhoria na aprendizagem de crianças e adolescentes. Primeiras ações O primeiro relatório elaborado pelo Cenpec determinou e priorizou as ações aprovadas pela diretoria e conselho da Associação Cairuçu. As primeiras sugestões acorda- das e já realizadas foram: • Construção de uma ponte na comunidade da Ponta Negra. Essa pequena ação, que contou com a participação dos moradores, possibilitou a resolução de um pro- blema que há anos vinha se estendendo e impossi- bilitava a ida de várias crianças à escola em dias de chuva forte. Quando queremos aumentar a freqüên- cia e assiduidade escolar dos meninos e meninas, te- mos que pensar em diferentes estratégias — das mais simples às mais complexas. • Capacitação de professores de crianças de cinco e seis anos e de 1a e 2a séries. A capacitação contemplou todos os professores e co- ordenadores da região-meta e também foi aberta aos professores e coordenadores da rede municipal, cons- tituindo um grupo de 35 profissionais. • Capacitação de jovens das comunidades. 47 jovens das cinco comunidades da região-meta, mais a comunidade de Trindade, que acabou se agre- gando, elaboraram uma agenda de atividades para o mês de janeiro de 2006 — programação de férias; • Programação de férias. Realizada em janeiro de 2006, serviu como um projeto- piloto para o conhecimento mais denso das comunida- des e o estabelecimento de relações de confiança. Durante a programação, foram propostas atividades às crianças e aos adolescentes das comunidades, visan- do aprofundar aprendizagens ligadas ao letramento – lei- 52 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tura e produção de texto –, arte, ampliação do repertório cultural, esporte, comunicação comunitária, questões do meio ambiente e ao protagonismo juvenil. Os resultados do programa de férias, liderado pelos jovens das comunidades, permitiram-nos sistematizar, com eles, as aprendizagens: Aprendizagens Relativas às crianças e aos adolescentes que participaram das atividades Questões ligadas a atitudes/convivência: • socialização dos saberes (conversa sobre os peixes, narrati- vas de histórias conhecidas e outros), ou seja, crianças e um adolescentes também podem assumir o lugar de informantes, podem se ensinar mutuamente, são capazes; • organização de materiais e de diferentes funções nas atividades (trabalhar coletivamente); • construção de vínculos afetivos; • prestar atenção – acompanhar e compreender consignas das atividades –, olhar no olho, olhar para o outro. Questões ligadas à ampliação de repertório cultural: • conhecer elementos do lugar em que se vive (nomes de plantas, animais, cultura caiçara, cultura indígena, cultura africana, história de Parati etc.) e conhecer outras comunidades; • narrativas – ouvir e contar histórias – ampliação do repertório literário. Questões ligadas à Ciência/Tecnologia: • meio ambiente, cadeia alimentar, animais e seus habitats/com- portamentos, plantas, reciclagem etc.; • procedimentos de pesquisa em diferentes fontes de informa- ção (pessoas da comunidade, livros, vídeos, Internet, visita a museus etc.); • uso de recursos tecnológicos (manuseio do gravador, máquina fotográfica, filmadora, computador); • produção de vídeo com a história da comunidade. Questões ligadas à Arte: • técnicas de artesanato, desenho/pintura e reconhecimento desse tipo de linguagem como outra possibilidade, para além da escrita, de representação de pensamentos, idéias, sentimentos etc. Questões ligadas ao trabalho corporal: • esportes: capoeira, futebol e surfe; • ampliação de repertório de jogos e brincadeiras tradicionais. Questões ligadas à Língua Portuguesa: • realização de entrevistas (elaboração e registro de perguntas); • produção de placas (elaboração de projeto, escrita com função social real – informar – e com destinatários reais); • confecção de livro e produção de textos orais e escritos. Relativas aos jovens que coordenaram as atividades Questões ligadas a atitudes/convivência: • fortalecimento de laços de amizades entre os monitores da comunidade; • ter paciência, respeitar os diferentes ritmos/saberes/jeitos das crianças e dos adolescentes de forma a trabalhar com a inclusão; • reconhecimento da imensa capacidade das crianças/adoles- centes quando se propõe algo verdadeiramente significativo para eles; • reconhecimento das próprias limitações e habilidades/talentos. Questões ligadas à ampliação de repertório cultural: • conhecer outras comunidades, histórias, pessoas e lugares importantes de Parati; • reconhecimento das riquezas e das potencialidades do lugar em que se vive e de seus entornos. Questões ligadas ao trabalho: • dar aula; • atividades que mais interessam as crianças e os adolescentes; • assumir responsabilidades; • resolução de problemas: replanejar em função do inesperado; • modelos de iniciativa e convocação para o trabalho; • usar recursos tecnológicos para poder ensinar; • trabalho com grupos heterogêneos; • planejamento dos tempos/espaços de uma atividade mais específica (começo, meio e fim)/ lugar muito aberto não serve a determinadas propostas e vice-versa; • antecipar questões relativas aos produtos finais (resolução de problemas relativos a capas, transcrições, edição etc.). 53 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Retratos da Programação de férias – breves sobrevôos Patrimônio Além das aulas de desenho e capoeira, crianças e ado- lescentes participaram do projeto “Trilhas e Plantas”. Ocorrendo três vezes por semana, no período da manhã, apresentou uma seqüência em que uma atividade cria- va condições para a seguinte. PROGRAMAÇÃO DE FÉRIAS Semana 1 1° Encontro Atividade Estudo a partir de vídeos com informações sobre árvores nativas do Brasil Programa Um pé de quê?, TV Futura, apresentado por Regina Casé. 2° Encontro Atividade Continuação das pesquisas sobre árvores em livros e na Internet. 3° Encontro Atividade Criação de um viveiro para diferentes mudas de Árvores – preparo do solo (compostagem) e dos vasos para plantio. Semana 2 4° e 5O Encontros Atividades Trilha margeando o rio Guarapitanga e piquenique, com crianças e adolescentes da comunidade do Quilombo Campinho da Independência, pela qual passa o mesmo rio; coleta do lixo inorgânico encontrado e de amostras de água para análise. 6° Encontro Atividade Oficina de reciclagem; artes plásticas com lixo inorgânico e sementes. Semana 3 7° Encontro Atividade Plantio de mudas de árvores nativas – conhecimento dos estágios de crescimento das árvores e noções de Identificação de plantas. 8° Encontro Atividade Confecção de placas de identificação para as mudas plantadas. Observação: Placas feitas a partir de materiais reciclados, contendo informações pesquisadas: nome popular e científico, propriedades medicinais e curiosidades. 9° Encontro Atividade Confecção de placas para a conservação de outra trilha – a que vai do Patrimônio até a aldeia indígena. Semana 4 10° Encontro Atividade Trilha para a aldeia indígena – explorá-la (conhecer suas árvores, plantas medicinais e cachoeiras) e colocar as placas confeccionadas. 11° Encontro Atividade Visita à aldeia indígena Araponga – conhecimento da cultura indígena e almoço com os índios Tupi- guaranis. 12° Encontro Atividade Trilha para a aldeia indígena Araponga – plantio de mudas na Aldeia. Vejamos essa questão no projeto elaborado e coor- denado pela jovem Thamis. 54 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Ponta Negra Em Ponta Negra, crianças e adolescentes puderam, dentre outras atividades, ouvir “causos”, registrar as his- tórias contadas (desenho, gravação e escrita) e redigir perguntas para entrevistas com moradores. A importância de conhecer “causos” da comunidade se explica especialmente pelo resgate da cultura local: ao entrar em contato com esses textos, crianças e ado- lescentes têm a oportunidade de se apropriar da diver- sidade de temas e valores reconhecidos por seu povo e aprendem o valor da tradição oral. Ao registrar os “causos” em gravadores ou por escrito, além de preservarem os textos da tradição oral (pois de outra forma correm o risco de se perder, já que, no mun- do contemporâneo, a prática de contar histórias, infeliz- mente, é cada vez mais rara), crianças e adolescentes tam- bém têm a possibilidade de manter viva a enorme riqueza da cultura local, atualizando as preocupações, os valores morais, os desejos e, acima de tudo, a complexidade nar- rativa que organiza o imaginário de um povo. Convidar pessoas reconhecidas como boas “contado- ras de causos” para compartilhar suas histórias é uma experiência valiosa, pois, por meio dela, acolhem-se e se valorizam as manifestações populares e os próprios membros da comunidade. Isso também contribui para que crianças e adolescentes se sintam acolhidos e valo- rizados, na medida em que são parte dessa cultura. Ouvindo “causos”, tem-se a possibilidade de obser- var as condições necessárias para que uma história fique bem contada – tom de voz, relação com os ouvintes, uti- lização de recursos para criar climas de mistério ou para contar um trecho engraçado – e a emoção do contador contribua para dar mais vida à história. Quilombo Campinho da Independência A coleta de subsídios – entrevistas, filmagens, regis- tros escritos e outros – realizada durante as quatro sema- nas da programação permitiu a elaboração de um vídeo como produto final. A confecção do vídeo envolveu diver- sas aprendizagens significativas: o mergulho na história da comunidade para seu resgate e valorização; a integra- ção entre crianças, adolescentes, jovens e adultos; a de- cisão compartilhada a respeito do que mostrar – e em que ordem – a partir de todo o material coletado etc. Por que é importante conhecer a história do lugar em que se vive? A partir do projeto, crianças e adolescentes tiveram oportunidade de aprofundar seus conhecimentos sobre sua comunidade e ressignificar seu vínculo com o espa- ço e com as pessoas: à medida que aprendem mais, co- nhecem sua história, apreciam sua beleza e se orgulham de pertencer ao grupo. A abordagem concomitante dos principais problemas da comunidade – a ocupação do espaço, as questões de saneamento básico, a preservação do patrimônio biológico e tantos outros – também é uma forma de vinculação, pois, ao trazer à tona os principais problemas vividos pela popu- lação, incluem-se crianças e adolescentes na discussão da busca de alternativas para viabilizar um lugar melhor. Sono Embora nesta comunidade também se coloque em destaque a produção de placas para a comunicação vi- sual das trilhas, vale contar que muitas crianças e ado- lescentes tiveram, por meio da programação, oportuni- dade de conhecer parte do patrimônio histórico de Pa- rati pela primeira vez. Uma cidade com essa riqueza cultural e arquitetôni- ca, que luta para ter seu valor reconhecido pela huma- nidade, deve ser dada a conhecer aos seus próprios fi- lhos, para que também possam assumir seu papel na ta- refa de preservação. Conhecer uma cidade inclui o olhar sobre os diferen- tes grupos étnicos e culturais que compõem a população, bem como explorar suas diversas manifestações – na ar- 55 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 quitetura, nas festas comemoradas, nas histórias conta- das pelo povo, no artesanato e principais motivos artís- ticos, na culinária local. Dessa forma, se favorece que a cidade não seja vista somente como espaço físico: ela é espaço humano, que abriga pessoas pertencentes a di- ferentes culturas, o que contribui para que se constitua de uma ou outra maneira. Em Parati, por meio de passeios pelas ruas e de visitas a determinados locais, podemos encontrar: representantes de algumas nações indígenas, os europeus que se encanta- ram e ali fixaram moradia, os caiçaras das vilas de pescado- res, a presença dos portugueses e sua importância na fun- dação da cidade, os quilombolas. Tais presenças são evi- dentes nas marcas arquitetônicas, nos edifícios pertencen- tes a diferentes momentos históricos, nas mais diversas ma- nifestações populares ainda vivas pelas ruas da cidade. Trindade O tema “peixes da região” foi explorado de diversas maneiras e acabou virando livro. Na produção final, en- contramos as características das diferentes espécies, de- senhos, receitas de pratos que levam esse ingrediente e “causos” de pescadores registrados pelas crianças e adolescentes – tanto as receitas quanto os “causos” fo- ram pesquisados na comunidade. Para a confecção dos livros, crianças e adolescentes aprenderam técnicas de encadernação a partir de mate- riais recicláveis – a capa, por exemplo, foi feita com cai- xa de leite e rede de pesca. Laranjeiras Em destaque as atividades esportivas (surfe e fute- bol), a gincana da coleta de lixo e a recuperação da horta da escola por meio da limpeza, preparo da terra e plan- tio de mudas. O que podemos dizer sobre o trajeto já percorrido Uma primeira idéia que ajuda a responder à questão levantada no início deste texto – por que relatar apenas o começo de um projeto? –, e que é fundamental para a continuidade de uma história, se refere ao fato de, hoje em dia, já sabermos que um projeto socioeducacional é verdadeiramente eficaz quando apresenta co-autoria dos envolvidos na ação. É preciso que as comunidades queiram, valorizem e reconheçam, como factíveis, o acesso ao conhecimento em geral e ao conhecimento escolar – daí a importância de projetos na comunidade e não apenas na escola. Nossas primeiras ações partiram do pressuposto de que comunidades com baixa escolaridade e forte tradição oral exigem ações educacionais fora e dentro da escola. Essas ações envolvem articulação e negociação contínua e, por isso mesmo, não são uma camisa de força; comportam-se mais como uma pauta de prioridades e resultados. No primeiro semestre de 2006, já faremos a aplica- ção de pesquisa avaliativa de pequenos impactos, le- vando em conta as crianças e adolescentes que parti- ciparam da programação de férias. A avaliação será fei- ta nas escolas mediante entrevista com os professores, análise da ficha escolar dos alunos e um teste de apren- dizagem. Os indicadores avaliativos de impacto referem- se a: leitura, escrita, comunicação, expressão, argumen- tação; participação, cooperação e freqüência escolar. A idéia é envolver o grupo de jovens na aplicação e análi- se dos dados como oportunidade de desenvolvimento de capacidades. Dar vez e voz para crianças, adolescentes e jovens das comunidades tem nos ajudado a desenhar e redesenhar propostas cada vez mais ajustadas às necessidades, po- tencialidades e aos desejos de cada lugar. Não estaría- mos conseguindo isso apenas contando com métodos mais tradicionais – pesquisa e coleta de dados, visitas, conversas e entrevistas com adultos das comunidades, do poder público, das escolas –, levantamento de prin- cipais necessidades/problemas e, em função deles, pro- postas unilaterais de encaminhamento. Faz parte de nossa metodologia para o desenvolvimen- to comunitário, a reconstrução das prioridades e dos sen- tidos do que estamos fazendo, com os próprios beneficiá- rios da ação. Do contrário, a ação social corre o risco de se esvaziar e não ser apropriada pelas comunidades. As comunidades e escolas precisam compreender tais prioridades e acompanhar seu desempenho e resultados. Esse é o berço que estamos procurando construir juntos para ancorar a continuidade desta história! 57 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 produção escrita sobre a escola pública de horário inte- gral pode ser vista em dois ciclos delimitados no tempo. As críticas desfavoráveis, concentradas essencialmente no período de 1987 a 1991, baseiam-se nos dados do I Programa Especial de Educação – PEE. As apreciações fa- voráveis começaram a surgir em 1990 e tiveram continui- dade com dados do II PEE. Os críticos divulgaram suas idéias em revistas ou editoras de maior circulação que os defensores da escola de horário integral, cujas teses ou dissertações permaneceram, praticamente, restritas às universidades. Antes de relacionar os aspectos positivos e negati- vos apontados por diversos autores a respeito do pro- jeto dos CIEPs, é esclarecedor ilustrar o cenário da épo- ca. No artigo “A escola de 1o grau em tempo integral: as lições da prática”, Zaia Brandão (1989) expõe sua relu- tância em participar do seminário promovido pela Fun- dação Carlos Chagas, em 1987, tal o clima “emocional” em relação ao PEE. Depois de relatar os encontros que teve com Darcy Ribeiro, que deram origem ao seu criti- cismo em relação aos CIEPs, reconhece que sua reação reflete preconceitos e vícios da academia. Afirma que o impacto nacional causado pelo programa dos CIEPs co- locou em discussão não as escolas, e sim a disputa po- lítico-partidária representada por Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer. A autora, a despeito de reconhecer o boicote da im- prensa ao Governo Brizola, considera que as críticas vei- culadas expressam a polêmica levantada pelos CIEPs: • constituição de uma rede paralela; • escola como outdoor; artigo O que se diz sobre a escola pública de Lúcia Velloso Maurício* horário integral A * Lúcia Velloso Maurício é Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professora adjunta do mestrado em Educação da Universidade Estácio de Sá; Professora adjunta da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Consultora da Fundação Darcy Ribeiro. 58 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 • prioridade ao tempo integral, em detrimento do ter- ceiro turno; • ausência de proposta pedagógica; • custo muito alto. Zaia Brandão conclui que o CIEP representou ousa- dia para romper com a tradição, apesar das mazelas en- frentadas por causa da urgência da implantação. O Pro- grama deixou questões para reflexão: • crianças que completam a renda familiar; • espaço/tempo ampliado atende à demanda das ca- madas populares; • estigma desenvolvido pelos próprios idealizadores dos CIEPs. Destacou como positivo: • prédio e horário novos trazem motivação; • o projeto de horário integral criou condições para for- mação em serviço; • a figura das professoras-orientadoras; e • a proposta da língua como eixo interdisciplinar. As críticas desfavoráveis Populismo Entre as críticas desfavoráveis, era lugar comum abor- dar o populismo. Os argumentos (Mignot, 1988) focali- zavam ausência de transparência em relação a custos, a critério de localização, a número de escolas concluídas e de alunos atendidos. A tese de Leal (1991) sistematizou a literatura sobre clientelismo, definindo-o como a dis- tribuição de benefícios oriundos de recursos públicos, efetivada por indivíduos ou grupos no poder, para aten- der interesses particulares em troca de lealdade, apoio político e até vantagens econômicas, resultando em alto grau de ineficiência social. O estudo mapeou as práticas clientelistas na educação de 1o e 2o Graus no Brasil, por meio de aquisição e distribuição de livros didáticos, me- renda e bolsas de estudo; construção de escolas; recru- tamento e lotação de professores. A questão da construção dos CIEPs mereceu desta- que porque revelou a contradição entre o planejamento do PEE e seu resultado. Segundo a autora, o diagnósti- co que deu origem ao Programa foi coerente com o pro- blema educacional quando criticou o funcionamento e a estrutura da escola pública e enfatizou a necessidade de se repensarem aspectos do ensino-aprendizagem. Entretanto, a implantação afastou-se do diagnóstico na medida em que se concentrou na construção dos CIEPs. Cunha (1991) considerou que a localização inadequada dos escolões não eliminou o terceiro turno, que a pres- sa nas construções para fins eleitorais deixou vazamen- tos e que obras monumentais como o CIEP têm objeti- vo de aumentar os valores simbólicos dos governantes e engordar as “caixinhas”. Inviabilidade O segundo tema das críticas, a inviabilidade de uni- versalização da escola de horário integral, foi primeira- mente abordado por Paro et al. (1988b e 1988c) como resultado de estudo promovido pela Fundação Carlos Chagas, alegando que a simples extensão da escolari- dade diária não garantia o funcionamento ótimo da es- cola. Consideram que o pequeno tempo de permanên- cia do aluno na escola é um grave problema, mas há ou- tros do mesmo porte: a superlotação das salas de aula, que pode ser solucionada sem extensão da escolarida- de; o salário do professor, que tem que trabalhar em vá- rios lugares; a precariedade de instalações; a escassez de material didático etc. Para os autores, a proposta de horário integral ignorava que o mínimo estabelecido por lei de quatro horas diárias ainda estava para ser atingi- do. Assim, o custo muito alto com incerteza de benefí- cio inviabilizava a universalização da escola de horário integral no Ensino Fundamental. Custo Oliveira (1991) distinguiu dois tipos de críticas ao cus- to dos CIEPs: de um lado, as que discordavam da oportu- nidade de implantar uma escola como essa; de outro, as que incidiam sobre a análise dos gastos dessa implan- tação. Rebate a impossibilidade de universalização do atendimento em tempo integral quando não se garantia ainda ensino de boa qualidade em tempo parcial, ale- gando que a escola unitária tem sido confundida com uniformidade de atendimento. No mesmo sentido, Co- elho (1996) afirmou que qualidade emancipatória a ser desenvolvida no ensino público fundamental requer de- mocracia que se lê, minimamente, como acesso e per- manência na escola, mesmo que seja necessário facul- tar condições desiguais para que as crianças das clas- ses desprivilegiadas possam se tornar iguais. Concluiu que a extensão da quantidade de horas na escola é con- 59 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 dição para desenvolver a qualidade emancipatória, inse- rindo conteúdo político na qualidade de ensino. Um artigo específico sobre o tema (Costa, 1991) com- parou os custos de uma escola convencional e de um CIEP de 1a à 4a série, assim como os custos de outro par de 5a à 8a série. A autora dividiu os custos em pessoal, mate- rial e capital (prédio). Exemplificando com os dados do primeiro segmento, o CIEP apresentou custo aluno/ano três vezes maior que o da escola convencional nos as- pectos pessoal e material, e duas vezes maior no tocan- te ao prédio. Concluiu que as despesas assistenciais não eram relevantes. Como tanto no CIEP quanto na outra es- cola, a maior parte do custo aluno (60%) está na despe- sa com pessoal, este se mostrou realmente o fator sig- nificativo. Ou seja, o CIEP, com sua capacidade completa, apresentaria resultado diferente, pois a comparação foi fei- ta entre taxas, e não entre valores absolutos. Função da escola A quarta vertente da crítica discutiu a função da es- cola. Paro et al. (1988 a) reafirmaram a função de instru- ção da escola, sem desconhecer a de socialização, mais importante para as crianças das camadas populares que não contam com alternativas de lazer em ambientes co- letivos diversificados. Entretanto, consideraram que, na escola real, a instrução tem sido reduzida a mínimos in- significantes e a socialização tem consistido de práticas autoritárias que recalcam a cultura do dominado, até que essas crianças sejam expulsas da escola sem aprender o mínimo necessário. O que se divisava por trás do caráter formador da es- cola voltada para as classes trabalhadoras era a concep- ção de pobreza como problema moral, que devia ser eli- minado por meio da educação integral. Argumentaram que as propostas de horário integral daquele momento se apresentavam como alternativas à FEBEM, que obte- ve êxito na segregação e fracassou na “ressocialização das crianças das classes populares. Arroyo (1988), ao discorrer sobre as funções que as escolas de tempo integral assumiram ao longo da histó- ria, destacou seu caráter de instituição total, em que se valorizava mais a socialização do que a instrução. Aler- tou para a percepção negativa da pobreza que essas ins- tituições, destinadas a salvar os filhos dos trabalhadores pobres, têm, mostrando quão violenta pode ser a relação pedagógica. A escola pública de horário integral poderia servir para o fortalecimento político cultural dos traba- lhadores. Cavalieri (1996) considera que há, atualmente, ampliação das funções da escola por modificação da na- tureza da instrução escolar. O tempo de permanência di- ária passou a ser condição para que a escola possa de- sempenhar essas novas atribuições. A comparação feita por Leonardos em três pesqui- sas (1990, 1991 b e 1992), entre um CIEP e uma escola convencional situados na mesma comunidade, Cidade de Deus, ambos de 1a à 4a série, trouxe informações no- vas para a discussão sobre a função da escola de horá- rio integral. O estudo, que considerou pensamento crí- tico como capacidade de avaliar uma idéia, tomar uma posição e argumentar, investigou a fala, a leitura e a es- crita em turmas de 4a série. O levantamento socioeconômico indicou que os alu- nos do CIEP eram mais pobres, ainda que apresentas- sem histórico escolar – número de séries já repetidas – semelhante. Os resultados apontaram que os alunos do CIEP revelavam domínio superior significativo na habi- lidade da fala em relação aos alunos da outra escola e desempenho homogêneo nas três habilidades, embora fosse baixo, pois nenhum índice ultrapassou 65,6%. Os da escola tradicional mostraram grande oscilação nas três habilidades, com índice pouco maior na habilidade escrita que o do CIEP, porém não significativo. A análi- se da freqüência dos temas escolhidos pelos alunos das duas escolas sugeriu que existiam diferenças entre eles no campo ideológico. Na pesquisa realizada em 1992, Leonardos submete as redações argumentativas dos alunos à análise de con- teúdo, confirmando que os alunos do CIEP apresentavam maior capacidade de pensamento crítico em sua dimen- são ideológica. O estudo concluiu que a postura dos alu- nos do CIEP foi considerada não-repetidora do senso co- mum, enquanto o discurso dos alunos da escola conven- cional enquadrava-se mais na repetição da palavra au- torizada. De acordo com a autora, não há como negar o impacto dos programas educacionais – progressista ou [...] na escola real, a socialização tem consistido de práticas autoritárias que recalcam a cultura do dominado, até que essas crianças sejam expulsas da escola sem aprender o mínimo necessário. 60 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tradicional – na diferença verificada, apesar de não se poder afirmar que este fosse o único fator determinante. Os alunos da escola convencional se reconheciam como classe média “de fora” da Cidade de Deus. No CIEP, ao contrário, manifesta-se uma postura de assumir sua per- tinência a todos os espaços daquela comunidade. A implantação do programa questionou a pertinên- cia do horário integral, tendo em vista a necessidade de a criança colaborar com a renda familiar (Paro et al., 1988 a; Cunha, 1991). Perissé (1994), analisando a evasão de alu- nos de um CIEP, concluiu que, diferentemente do que se su- punha, o motivo principal para o abandono do horário inte- gral não era a necessidade de complementar a renda fami- liar, e sim a não implementação da proposta original, tan- to por responsabilidade do governo da época quanto pela dos profissionais que trabalhavam naquele CIEP, deixando os alunos na ociosidade por longo período do dia. Outra crítica à implantação foi a contradição observa- da entre o discurso da equipe central do PEE e a prática das escolas (Lima, 1988), ou entre o discurso e a prática dos próprios professores (Aguiar, 1991). Oliveira (1991) atribuiu ao discurso salvacionista de Brizola, que justifi- cava o programa, a origem do estigma do CIEP como es- cola para pobre. Os acertos Satisfação dos pais Três aspectos positivos mereceram destaque por te- rem sido citados, em contextos diversos, tanto por crí- ticos quanto por defensores da implantação da escola de horário integral. O primeiro e mais significativo para a permanência da demanda por essa escola é a satisfa- ção dos pais. Paro et al. (1988 a) reconheceram que, à primeira vista, a população desejava esses projetos que estavam sendo oferecidos. Lobo Jr. (1988) atribuiu o en- tusiasmo das comunidades e das equipes internas em torno do CIEP a uma estreita ligação entre a proposta po- pulista do CIEP e um certo consenso vulgar do que seja escola de qualidade. Lima (1988) registrou que, apesar da omissão da escola em discutir a disciplina, diante de tantos casos de violên- cia, a visão dos pais era positiva, um descanso saber que os filhos estavam na escola. Leonardos (1991a) comparti- lhou esta percepção ao afirmar que o conceito de CIEP da comunidade em geral era de um prédio em que funciona- va uma escola de horário integral, o que lhes dava tran- qüilidade para trabalhar, e que mantinha as crianças ali- mentadas. Oliveira (1991) mencionou a expectativa favo- rável da população, que foi confirmada em avaliação ex- terna realizada em 1994 (Maurício e Silva, 1995), segundo a qual o índice de aprovação da comunidade em relação ao horário integral, ao prédio escolar, à integração crian- ça-escola e à qualidade de vida da comunidade após a implantação da escola ficou acima de 80%. 61 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Horário do professor O segundo aspecto positivo enfocou o horário integral do professor que, segundo Paro et al. (1988 b) e Bran- dão (1989), permitia intervalos para planejamento, pre- paração de material didático e aperfeiçoamento profis- sional, indispensáveis diante do baixo padrão de quali- dade do professor, resultante do desprestígio da profis- são e dos baixos salários. Arroyo (1988) e Costa (1995) abordaram outro aspecto, considerando que o horário mais extenso do professor contribui para seu maior en- volvimento com o projeto da escola, consolidando um sistema de ensino mais definido, com um corpo profis- sional que poderia constituir-se em interlocutor para a classe trabalhadora. Debate sobre escola pública O último aspecto compartilhado por vários autores foi a discussão sobre a escola pública suscitada pela proposta dos CIEPs. O debate contribuiu para o avanço do processo de democratização da escola pública, tan- to que, nas campanhas eleitorais, apesar de ressalvas, figurou como plataforma política (Mignot, 1988) de to- dos os candidatos ao governo do Estado. Para Brandão (1989), CIEP tornou-se “nome próprio” para escola de tempo integral; entrou na vida dos usuários, nos deba- tes de educação, dos intelectuais e dos políticos. Para Oliveira (1991), a discussão sobre a inadequação da es- cola pública decorrente da introdução do projeto teve como conseqüência a incorporação do direito à educa- ção de boa qualidade, em jornada ampliada, às reivin- dicações das classes trabalhadoras na Constituição do Estado e na Lei Orgânica do Município do Rio de Janei- ro. Garcia (1992) resume tudo dizendo que o CIEP colo- cou a discussão sobre a escola na rua. Os usuários Foi desenvolvida pesquisa de campo com a finalida- de de identificar a representação social que professo- res, funcionários, alunos e seus pais tinham da escola de horário integral que freqüentavam. Por meio da repre- sentação social, seria possível dimensionar a demanda subjetiva potencial por esta escola. A representação so- cial constitui uma forma de conhecimento, um saber prá- tico que se refere exatamente à experiência a partir da qual ele se produz, e que serve para agir sobre o mun- do (Jodelet, 1989). Para Alves-Mazzotti (1994), as intera- ções sociais vão criando consensos que constituem ver- dadeiras “teorias” do senso comum. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constitu- ído. Para caracterizá-las, procurou-se observar: a atitu- de, as informações e o campo de representação do ob- jeto. Por outro, estudam-se os processos formadores da representação social, chamados por Moscovici de obje- tivação e de ancoragem (Alves-Mazzotti, 1994). A pesquisa se desenvolveu em quatro escolas de ho- rário integral de primeiro segmento do Ensino Funda- mental no Rio de Janeiro, duas sob administração mu- nicipal e duas, estadual. Para a seleção das escolas, fo- ram seguidas diretrizes comuns: as quatro eram CIEPs, com marca de horário integral impressa nos prédios; fo- ram priorizados indicadores de bom desempenho; as es- colas estavam localizadas em áreas populares de peri- feria, com grande densidade urbana. Foram feitas 30 vi- sitas às escolas e aplicados 568 questionários (312 alu- nos, 60 pais, 142 professores e 54 funcionários), no 2o semestre de 2000. Para identificar os elementos constitutivos do núcleo central da representação social, foi pedido aos profes- sores que fizessem uma associação livre de idéias a res- peito de cinco temas: escola pública; escola pública de horário integral; CIEP; Brizolão; escola para pobre. Pos- teriormente, foi pedido aos professores que fizessem uma hierarquização semântica, priorizando cinco atri- butos para cada tema, a partir do repertório levantado com as associações livres. Tabulado o resultado, foram feitos dois conjuntos idênticos de dezessete afirmativas para que alunos, pais, professores e funcionários atribuíssem falso ou verdadei- ro a cinco afirmativas para a escola de horário integral ideal e cinco, para a escola de horário integral que fre- qüentavam. O confronto entre ideal/real e falso/verda- deiro permitiu configurar as representações sociais cons- truídas. Seus traços ganharam nitidez ao serem expos- tos aos resultados dos questionários (sim/não) a respei- to dos motivos que levam à procura ou abandono da es- cola pública de horário integral. O que ressaltou no confronto de pontos de vista foi o enfoque oposto de pais e alunos, de um lado, e pro- fessores e funcionários, de outro. Se categorizarmos as respostas dadas à demanda pela escola de horário inte- gral pelos verbos preferir (implica comparação), gostar, 62 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 convir (implica praticidade) e precisar (uma gradação da opção à falta de opção), veremos que pais e alunos que usufruem os serviços da escola procuram o horário in- tegral por preferir e gostar, prioritariamente no caso dos pais e exclusivamente no caso dos alunos. O que eles preferem – estudar mais – é que a escola cumpra a sua função com qualidade – bons professores – e que eles gostem – mãe e aluno – do serviço prestado. Os pais não desconhecem a necessidade – não deixar a criança na rua e precisar trabalhar –, mas colocam-na num patamar inferior. As crianças ainda não se preocupam com a necessidade. Reforçando a interpretação de que é o gostar que leva ao horário integral, os fatores relaciona- dos como não-significativos para a demanda do horário integral excluíram o verbo necessitar. Os aspectos de con- veniência – “ficar sem criança” e “irmão estudar nesta es- cola” – e de falta de opção – “só há vaga aí” – foram con- siderados sem relevância. Tanto alunos quanto pais não elegeram qualquer razão para abandonar o horário inte- gral. Ao relacionarem os motivos que não levam ao aban- dono, colocaram, em visão comum, o fato de ser escola para pobre, ou seja, esse atributo não diminui ou muda a função da escola, que continua sendo necessária; num segundo plano, pais e alunos apontaram que a necessi- dade – “precisar trabalhar” ou “ajudar em casa” – não é suficiente para fazê-los abandonar a escola. Ambos reconheceram que criança tem que estudar, que o fato de não gostar não leva ao afastamento da es- cola. Os alunos ainda vão mais longe, afirmando que mesmo se a escola tiver aspectos negativos – excesso de reprovação, falta de professor ou dificuldade na rela- ção professor/aluno – eles não são pretexto para a saí- da da escola de horário integral. Em síntese, o discurso dos pais e dos alunos, além de gostar e preferir, deixou claro o reconhecimento da função e da necessidade da escola e, implicitamente, que há diferentes padrões de qualidade entre as escolas. Professores e funcionários, com ponto de vista do servidor, construíram um discurso, em primeiro pla- no, comum aos dois, de necessidade – “criança não fi- car na rua” e “mãe precisar trabalhar” – e, num segun- do plano, de conveniência – “irmão já estuda aí” e “es- cola é mais próxima”. A necessidade que leva ao horá- rio integral também afasta dessa escola fatores aponta- dos com ênfase pelos professores – “aluno precisa tra- balhar” ou “ajudar em casa” – e, secundariamente, pe- los funcionários. Os funcionários tiveram em comum com pais e alunos a idéia de que escola para pobre não dei- xa de ser escola. Destaca-se, do ponto de vista de professores e fun- cionários, que a escola de horário integral só se justifi- ca como necessidade e conveniência. O fato de não re- conhecerem o gostar e o preferir como motivação para esta escola desqualifica o usuário, como se ele fosse ob- jeto exclusivo de necessidade, portanto, desprovido de atributos que caracterizam o ser humano. Indiretamen- te, desqualificam o próprio trabalho, porque, se aten- dem apenas a necessidade, não podem ter reconheci- mento de qualidade, não podem ser preferidos, queixa tão presente no discurso dos professores: “não reconhe- cem nosso trabalho”, “não vêm à reunião”. Sintetizando, a representação dos professores, cor- porificada na palavra Brizolão, tem no seu núcleo a idéia de escola para pobre e depósito de criança, e está asso- ciada à noção de descaso, assistencialismo e qualidade ruim. A representação social dos pais, partilhada pelos alunos, está centrada na satisfação/prazer, sem despre- zar a necessidade; tem como núcleo a idéia de lazer que se relaciona com futuro e educação; a função da esco- la – estudar – e seu instrumento – bom professor – es- tão contemplados. Demanda pela escola pública de horário integral Necessidade x satisfação Nem todas as questões levantadas pela literatura fo- ram iluminadas pelas representações colhidas no cam- po. No entanto, as diferentes óticas sobre a função so- cial da escola de horário integral e sobre os fatores que mobilizam para a demanda dessa escola, por parte dos pais e dos professores, trouxe contribuição relevante para a discussão dessa escola, que, segundo a Lei 9394/96, é meta a ser alcançada. Fez-se notar a diferença entre escola para pobre, que a princípio não suscita rejeição ou constrangimento, e escola pobre, relegada, descuidada, suja, bagunçada, pichada, que é até freqüentada por marginal. 63 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Necessidade O discurso salvacionista de Leonel Brizola a respei- to do CIEP, que passou a ser conhecido como Brizolão, suscitou a idéia de escola de marginal. Nas quatro es- colas estudadas, o estigma de escola para pobre não foi considerado fator de rejeição por pais, alunos e funcio- nários. Não se fez associação entre concepção de edu- cação integral e a noção da pobreza como problema so- cial a ser segregada, função levantada na literatura para instituições totais. Assim, o CIEP não desempenhou o pa- pel de salvaguardar a sociedade da pobreza, como tam- bém não ficou reconhecida a função de ser uma escola para salvar as crianças carentes da marginalidade. Con- cluiu-se que ou esta escola não é considerada de pobre ou o fato de ser assim considerada não interfere na de- manda por ela. A totalidade dos pais pesquisados e cer- ca de 90% de alunos e funcionários das quatro escolas responderam que ser uma escola para pobre não conduz ao abandono do horário integral. A associação entre depósito de criança e Brizolão foi feita exclusivamente por professores nas várias esco- las e também no fórum pesquisado. Pelo ponto de vis- ta dos alunos, Brizolão adquiriu um significado bastan- te diferente. A concepção de escola que construíram foi que ela devia ser organizada, em primeiro plano, e ter la- zer, em segundo. Ao analisarem as escolas que freqüen- tam, os alunos das quatro escolas disseram que ela pro- movia educação, em primeiro plano, e que tinha lazer, em segundo. Está descrita a escola deles, mas eles dão nome a ela: num mesmo patamar, dizem que é Brizo- lão e que é CIEP. Assim, para os alunos, não há distin- ção entre CIEP e Brizolão; além disso, ambos estão as- sociados a lazer. Fez-se notar a diferença entre escola para pobre, que a princípio não suscita rejeição ou constrangimento, e es- cola pobre, relegada, descuidada, suja, bagunçada, pi- chada, que é até freqüentada por marginal. Essa é a es- cola rejeitada, que, na associação de idéias, é a escola da carência, da comida, do descaso, do descrédito, da discriminação, da desvalorização, do estigma, do fra- casso, do paternalismo, da qualidade ruim. Essa esco- la os professores chamam de Brizolão, mas também re- conhecem esses atributos na escola pública comum. Os pais percebem diferentes graus de qualidade nas esco- las, mas não denominam, como os professores, as con- sideradas ruins de Brizolão ou escola para pobre. Os quatro grupos pesquisados afirmaram, com índices al- tos, que a escola que vivenciam não é uma bagunça. As mães se informam, observam, tomam conta. Os alunos não estão lá por acaso. Satisfação O segundo aspecto significativo para a demanda pela escola de horário integral é a satisfação dos pais, mencio- nada por vários autores citados. Essa avaliação positiva que os pais têm da função social desempenhada pela es- cola pública de horário integral confirmou-se. Os pais con- cebem a escola como uma instituição que prepara o fu- turo e, para isso, deve ter lazer e ser organizada. A escola freqüentada pelo filho preenche essa função, tornando-a uma necessidade: oferece lazer ainda que aquém do de- sejável; não é uma bagunça; e, além de suas expectativas, tem participação. A visão dos pais é construída a partir de vários fatores, entre os quais a satisfação dos filhos. As crianças tinham expectativa de que a escola tivesse lazer e os pais registram que essa expectativa é atendida. Os argumentos usados pelos pais para explicar por que seus filhos estudam nessa escola priorizaram o gos- tar em detrimento da necessidade. Quando destacam, em primeiro plano, a avaliação subjetiva – a mãe e o alu- no gostam –, os pais atribuem a si o papel de sujeitos, com direito a opção, e não meros objetos da necessidade. Também reconhecem nos filhos, apesar de serem crian- ças, o papel de sujeitos com capacidade de avaliação e de escolha. O terceiro argumento – os professores são bons –, além de manter a capacidade de avaliar, outorga a eles o julgamento do que simboliza, por excelência, a qualidade da escola – o desempenho do professor. Só num segundo patamar os pais vão se preocupar com os aspectos materiais: a segurança da criança, seu bem-estar físico, deixando evidenciar sua responsabili- dade como pais. Essa responsabilidade permanece quan- do enfocam a finalidade da escola – estudar mais – mes- mo antes de chegar ao último argumento: a criança vai para a escola de horário integral porque a mãe precisa trabalhar. Finalmente, a satisfação dos pais também é contemplada quando não conseguem consolidar qual- quer argumento que justifique a saída da escola de ho- rário integral, nem mesmo a necessidade. Perguntados diretamente se tirariam seus filhos dessa escola, a res- posta negativa ficou num patamar de 90% nas escolas estaduais e 70% nas escolas municipais. 64 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Equipe central e equipe da escola Uma terceira temática foi tangenciada por alguns au- tores. A dissertação de Lima (1988) apontou o abismo en- tre o que a equipe central pensava da carência da crian- ça popular e a carência real, e a incapacidade de a equi- pe da escola propor adaptações à proposta do PEE para atender a essa criança, redundando em contradição entre o discurso e a prática dos professores. O entendimento do professor de necessidade/carência, oposto ao do pai de satisfação/prazer, a respeito da motivação para o ho- rário integral, mostra que professor e pai têm compreen- sões conflitantes de como vive, como se comporta, o que pensa o segmento social do qual o aluno faz parte. As visões detectadas no decorrer desta pesquisa leva- ram a supor que o abismo não está entre os formulado- res da proposta e os beneficiários dela. Parece estar en- tre os formuladores (equipe central) e os executores (pro- fessores) na escola, de um lado, e os beneficiários (pais 64 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 e alunos), de outro. Ou seja, formuladores, professores e, inclusive, analistas da escola de horário integral têm visão comum a respeito das necessidades do aluno que busca esta escola em oposição àquela dos pais. Os professores das quatro escolas e os do Fórum só reconhecem no aluno necessidade, carência, falta. O alu- no vai para a escola de horário integral porque a mãe tra- balha, porque ela não tem alternativa. Assim, a escola é reduzida à última hipótese, à falta de opção. Num se- gundo patamar, o aluno vai para a escola de horário in- tegral para não ficar na rua, exposto a todos os males que podem transformá-lo num marginal. Essa concep- ção implica o reconhecimento da escola como um depó- sito, onde a criança fica guardada enquanto a mãe vai trabalhar, para suprir a carência de necessidades obje- tivas e primárias. Assim, o professor, de um lado, afir- ma que a escola não deve ser um depósito de crianças, 65 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 que chama de Brizolão; de outro, atribui a ela a função de depósito de crianças. Além disso, dos quatro grupos, o professor foi o único a afirmar que o aluno abandona a escola porque precisa trabalhar ou porque precisa aju- dar em casa para os pais poderem trabalhar, indicando mais uma vez o aluno como objeto da determinação da necessidade/carência. Os pais priorizam a escolha, eles preferem ou gos- tam, mostram que os motivos que os levam a colocar seus filhos na escola de horário integral é a opção fruto de uma avaliação feita por alguém capaz disso, um su- jeito, e não um objeto de carências. Os pais, quando não consolidam qualquer motivo para o abandono da esco- la de horário integral, desfazem a compreensão da falta de pertinência do horário integral escolar tendo em vis- ta a necessidade da criança colaborar com a renda fami- liar (Paro et al., 1988 a; Cunha, 1991; Mignot, 1988) e cor- roboram os resultados da pesquisa de Perissé (1994): a evasão se dá pelo não cumprimento da proposta para a escola de horário integral. Alguns autores citados deram pistas a respeito dessas leituras tão destoantes. Leonardos (1991b) afirmou que a manutenção das características básicas deste programa estaria ameaçada num momento de falta de apoio polí- tico e financeiro, pois a proposta do CIEP fora feita para a comunidade; não com a comunidade do aluno de bai- xa renda. Essa percepção tem por base a mesma com- preensão de que a comunidade não é capaz de projetar para si mesma uma escola dessa qualidade. Passados dez anos, o projeto só se sustentou em escolas onde a liderança do diretor e a coesão da equipe foram capa- zes de estabelecer vínculos com a comunidade ou com a administração que permitissem a continuidade, não do projeto como um todo, mas do horário integral. Guima- rães (1992) indicou que os professores não conseguiam incorporar, à sua prática, procedimentos mais coerentes com uma visão transformadora, por causa de preconcei- [...] dois temas inter- relacionados: a integração da escola à comunidade e o reconhecimento de que existe uma cultura local que é condição para que o processo de educação se desenvolva. to de classe e de desconhecimento das causas sociais do fracasso escolar. A relação entre classe social e diferentes interpre- tações das funções a serem desempenhadas pela es- cola já havia sido apontada por alguns autores. Coelho (1996) afirmava que a qualidade emancipatória a ser desenvolvida no ensino público fundamental seria fru- to da produção de conhecimentos resultante do confli- to de diferentes culturas (a do aluno e a do professor) e que o tempo de permanência do professor no ambien- te escolar era indispensável para que esse processo pu- desse deslanchar. Sintetizando, a pesquisa realizada nessas quatro esco- las situadas em regiões carentes levou ao reconhecimento de duas representações sociais diversas, e mesmo antagô- nicas, da escola pública de horário integral. A primeira, centrada na necessidade/carência do alu- no para justificar a existência desta escola, é partilhada por professores, tanto das escolas quanto do Fórum, e coincide com a análise de autores que escreveram a res- peito dos CIEPs. Essa representação, corporificada na pa- lavra Brizolão, tem no seu núcleo a idéia de escola para pobre e depósito de crianças e está associada à noção de descaso, assistencialismo e qualidade ruim. A representação dos pais, partilhada pelos alunos, está centrada na satisfação/prazer, sem desprezar a ne- cessidade. Tem como núcleo a idéia de lazer que se re- laciona com futuro e educação. A função da escola – es- tudar – e seu instrumento – bom professor – estão con- templados. A constatação dessas representações diferentes a res- peito da escola, da expectativa que se tem dela e, por- tanto, das atribuições que deve atender, naturalmente fruto de culturas diferentes, oriundas, entre outros fato- res, de posicionamento de classe diferenciados, traz à discussão dois temas inter-relacionados: a integração da escola à comunidade e o reconhecimento de que exis- te uma cultura local que é condição para que o proces- so de educação se desenvolva. Assim, para a aproximação entre as duas concep- ções de função de escola delineadas neste trabalho – a de local de convivência e a de utilidade econômico-so- cial – faz-se necessário desenvolver a interação entre escola e comunidade, instâncias de participação e de- cisão dos pais, e todos os espaços cotidianos que favo- reçam a inclusão da expectativa dos pais no projeto pe- dagógico da escola. 66 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Da Escola-Parque aos Centros Integrados de Educação Pública onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Para o projeto dos CIEPs, foram significativas as experiências desenvolvidas, a partir do início dos anos de 1950, no Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, em cinco escolas públicas de 1a a 4a série. Sob coordenação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), presidido na época por Anísio Teixeira, esse projeto experimental constituiu campo de pesquisa aplicada segundo orientações curricu- lares diversas. Mas a fundamentação do projeto de educação integral nos CIEPs, de fato, origina-se nos mesmos argumentos que levaram Anísio Teixeira, com quem Darcy Ribeiro trabalhou longos anos, a inaugurar, em 1950, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, em Salvador, quando era secretário de edu- cação do Estado da Bahia. O centro, chamado de Escola-Parque, contava com quatro escolas-classe, de nível primário, com funcionamento em dois turnos, projetadas para mil alunos cada, e uma escola-parque, com sete pavi- lhões, destinados às chamadas práticas educativas, freqüentadas pelos alunos em horário diverso ao da escola-classe, de forma que as crianças permane- cessem o dia completo em ambiente educativo. A proposta era que esse conjunto funcionasse como centro de demonstração para a instalação de outros semelhantes no futuro. O projeto dos CIEPs no contexto da redemocratização do país Os governos estaduais empossados em março de 1983 tiveram seus programas influenciados pelos debates que se travaram nos anos de 1978 a 1982. Todos os partidos, recém-criados, tentavam conso- lidar sua linha política em diversas áreas, e também na de educação. Leonel Brizola, eleito governador do Estado do Rio de Janeiro, nomeou Darcy Ribeiro para presidir a Comissão Coordenadora de Educação e Cultura. Em 1984, foi publicado o orçamento para a construção dos Centros Integrados de Educação Pú- blica. Em maio de 1985, o primeiro CIEP foi inaugura- do, recebendo o nome de Tancredo Neves, presidente Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram cons- truídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a um quinto do conjunto de alunos do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigual- dade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pu- desse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são cha- madas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1a a 4a série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instru- mentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus es- tudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do alu- no no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crian- ças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente 66 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 67 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 67 da República recém-falecido. Outras inaugurações colocaram os CIEPs no centro da campanha para pre- feito do Rio de Janeiro. A vitória do PDT possibilitou a continuidade da política em vigor, apesar da intensa campanha contrária efetivada pela mídia. Em 1986, a campanha para governador e para a Assembléia Nacional Constituinte começou com o Plano Cruzado. Novamente, o CIEP esteve presente, tanto no debate dos candidatos quanto na imprensa ou na greve dos professores da rede pública. Os CIEPs foram lidos como plataforma política para a iminente candidatura de Leonel Brizola à presidência da Repú- blica. O PMDB venceu a eleição para governador em 22 estados, inclusive no Rio de Janeiro, onde Darcy Ribeiro, idealizador dos CIEPs, perdeu. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. Vá- rios prédios de CIEPs foram utilizados para outras finalidades, inclusive para acolher desabrigados das enchentes. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 1991, Darcy Ribeiro foi eleito para o Senado e Leonel Brizola, para o segundo mandato de gover- nador, pelo PDT. A partir de então, uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado do Rio de Janeiro, para que os CIEPs antigos fossem re- cuperados e novos fossem implantados; todos foram equipados e lotados com profissionais, de forma que pudessem oferecer horário integral com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, am- pliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Ainda nesse ano, além de ter sido realizado o primeiro concurso do Estado para selecionar professores em regime de 40 horas, para trabalharem nos CIEPs, foi implantado, em prédios de CIEPs adaptados para esta finalidade, no Município do Rio de Janeiro, o projeto experimental chamado Ginásio Público, com currículo integrando os pro- gramas de 5a a 8a série do Ensino Fundamental com os do Ensino Médio, em seis anos, com opção entre horário integral ou parcial. Referências Bibliográficas AGUIAR, Maria de Fátima. Inovações metodológicas: seus caminhos e descami- nhos. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1991. ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e apli- cações à educação. Em Aberto, v. 14, n. 61, 1994, p.60-78. ARROYO, Miguel Gonzales. O direito ao tempo de escola. Cadernos de Pesquisa, n. 65, 1988, p. 3-10. BRANDÃO, Zaia. A escola de 1o grau em tempo integral: as lições da prática. 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O relato que se vai ler, então, tem esse caráter de quase clandestinidade também: no mesmo barco, mas por ali, sem função específica alguma, sem responsabilidade (quase) nenhuma. Portanto, é bom, desde aqui, deixar claro o que não se deve esperar deste pequeno relato: objetividade; análise crítica; isenção; imparcialidade. Um relato pessoal, somente. Mas existe outra forma de se falar de uma experiência fundante? Conheci um lugar A primeira vez que entrei na Escola foi em abril de 2004. Ana Elisa Siqueira2 caminhou comigo pelo pátio, pelas salas, foi me mostrando as paredes que já tinha derru- bado. Claro que, de cara, simpatizei: no meio de tanta arrogância teorizada, de tanta hegemonia do pedago- gês, não é brinquedo encontrar, assim, sem mais nem menos, uma adepta do demolicionismo. Então, Ana Eli- sa me contou do tempo ainda em que derrubava grades, assim: “A escola precisa ser bonita, precisa ser aberta, precisa mostrar que confia”. Fui pra casa contagiado, feliz da vida: daqui não saio, daqui ninguém me tira. Puxa, eu pensava, como são raros hoje os lugares que nos infundem leveza, essa sensação assim de êxtase jubiloso... Em casa, os meninos se es- pantavam: “Como assim, uma escola totalmente sem pa- redes? Nem telhado tem?” Não, vejam bem, derrubaram as paredes de algumas salas, que se juntaram, cresce- ram, claro que tem telhado, e algumas paredes também... O mais novo, cinco anos (na época), entre duas garfadas e desde o alto de sua simplicidade: “Mas isso não tem nada de mais, é assim mesmo que toda escola deveria ser, é assim mesmo que a minha escola é”. 3 E eu pensava, mas não dizia (repare-se que estamos jantando, e eu temia fazê-lo engasgar com um tamanho excesso de realidade): “Tudo bem, meu chapinha, mas logo logo você vai ver o moedor de carne em que vai ser gentilmente inserido”. Aos amigos doutos, eu punha uma pitadinha de erudição: “Aquilo é um platô, verda- deiro território desejante, essa Ana Elisa é a esquizoana- lista dos sonhos de qualquer Deleuze e Guattari (mesmo que a dupla nem sonhasse), a paranóia ali é zero, uma profunda esquizoidice produtiva”. E sarava. Fosse como fosse, era só uma justificativa, que a decisão já me tinha tomado: preparei minha trouxinha e fui pôr meu desejo ao abrigo daquele povo. O homem é um ser de necessi- dades que só se satisfazem socialmente, dizia Enrique Pichón-Rivière. Isso vem e não é de hoje Você vê um barco assim, vento em popa, velas estufa- das e, se já fez algum esforço em fazer andar um projeto, percebe que o trabalho não é de ontem, e que a coisa vem de longe. Se a Escola está em pé, mesmo depois de lhe tira- rem as paredes, é porque tem alguma outra coisa sustentan- do. Você decida, mas eu sou de um tempo em que se acre- ditava em sustentações simbólicas. O esforço, hoje, de re- tomar o espaço público para o uso popular e público (Pau- lo Freire) exige caminhar no terreno frágil da utopia: de um lado, o ensino privado, bastante eficaz no ensinamento da realidade que vivemos, mas tristemente sucumbido a ela – em que falar de cidadania virou moda e é, portanto, tema de atenção numa aula por semana; de outro, o espaço pú- blico como espaço da degradação e do abandono consen- tidos (pela sociedade toda) – se o povo tem medo de sair à rua, a rua deixou de ser espaço público. * Luiz Braga é pai do Francisco, aluno da EMEF Desembragador Amorim Lima (luiz@musattiseguros.com.br). depoimento A nau dos insensatos Luiz Braga* 69 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Na Escola (antes que saiam por aí derrubando pare- des), uma pequena história de dez anos de retomada: a. Tirar as grades do pátio, primeiro. Uma corzinha nas paredes (a estética como índice civilizatório); um mu- ral de azulejos pintados (pelos alunos); flores. Na me- dida do possível, a Escola se quer bonita. A professo- ra Adelina e os Vigilantes da Natureza. b. Cultura Brasileira. Conceição Accioly (foi fazer ciranda no céu – vai virar nome da nova sala de artes: presen- ça que engendrou tanta boa mudança e lembrança que sustenta). Graça e o pessoal do Querosene. Mestre Al- cides4 e o pessoal da capoeira. Lydia Hortélio. c. Envolvimento da Comunidade. Grupo de Teatro de Bo- necos de Mães. Voluntariado. Abertura da Escola para atividades extraclasse. Sem o apoio das mães, pais, comunidade, a escola não se transforma. O Conselho de Escola como centro primordial do exercício da de- mocracia e da participação. d. Oficinas. Teatro. Circo. Dança. Artes Plásticas. Rádio. Horta. Capoeira. Cinema. e. Interlocuções: convidar gente pensante, de fora, para vir açodar o acomodamento. Instituto Veredas. Insti- tuto Pichón-Rivière. Yanina Stasevskas. Lenina Pome- ranz. Ana Guerra. Rosely Sayão. f. Festas. A Escola como palco de celebração. Festa Ju- nina. Festa da Cultura Brasileira. Festa do Auto de Na- tal. Festa. A alegria compartilhada como índice civili- zatório. O saber não é cinza. g. Busca de apoios. Institucionais; individuais; estatal. Parcerias. Projeto Crer para Ver (por dois anos). Insti- tuto Camargo Correia (por um ano). Contribuição sem ingerência – para isso existe o Conselho de Escola, para isso existe o Conselho Pedagógico: zelar pelas diretrizes, defender as linhas, entrincheirar cada pal- mo de terreno conquistado.5 Era muito, mas era pouco. O diabo é que essa gente, quando se põe a desejar, desencontra qualquer limite... O Projeto Ou seja: já naquele passado (a escola ainda tinha suas paredes todas) estava bem inscrito o nosso futuro de hoje. Num passado mais recente: em 2003, foi apresentado à Secretaria Municipal de Educação6 um projeto de asses- soria externa. Reformulando profundamente o funciona- mento da Escola, o Projeto foi aprovado pela Secretaria 70 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Municipal de Educação de São Paulo – SME, implemen- tado desde o começo de 2004 e tem como objetivos7 : • proporcionar a formação global de todos os envolvidos; • construir a autonomia moral e intelectual dos estu- dantes; • garantir direitos: educação de qualidade, com perío- do completo de aulas; • incentivar o compromisso com o conhecimento; • estimular e orientar o trabalho em grupo; • promover a convivência com responsabilidade; • assegurar o respeito aos tempos e processos indivi- duais.8 Ou seja: uns bons hectares de terreno frágil da utopia. Escandindo: a. A utopia da construção da autonomia. A rima é pobre, mas o conceito é rico. A história é mais ou menos a seguinte, meu rapaz: você, pequeno aluno da Esco- la, tem, ao entrar, um bom punhado de roteiros espe- rando-o (eles são hoje 115). Encare-os como precio- sos mapas, elaborados por um pesquisador ao mes- mo tempo sonhador e criterioso.9 À diferença dos ma- pas dos piratas, em que no final você encontra um te- souro, nestes, a aventura não tem fim e você, em toda a parte, encontra tesouros cintilantes. Nós estamos falando, meu filho, do Universo da Cul- tura do Homem, um universo fantástico de desco- bertas, aventuras, heroísmo e covardia, acertos e er- ros, alegria e dor. Esse universo nem sempre é boni- to (você é tão jovem, mas já percebe isso, bem sei) e sempre merece o esforço de se tentar compreen- dê-lo. O mapa não é a aventura, assim como o rotei- ro não é a viagem. É tão somente um guia, uma pe- quena mostra das ilhas e praias que você poderá co- nhecer e algumas sugestões de bons caminhos que você pode trilhar para chegar até elas. Nosso esforço (da Escola), vai ser todo no sentido de você não se ater somente ao guia, como o turista pre- guiçoso que somente olha e fotografa fachadas. Não. O convite é para você percorrer o caminho com calma, urgente sem pressa, como João Guimarães Rosa dizia de Deus (você vai poder conhecer Guimarães Rosa, meu rapaz, Manuelzão e Miguelim, Riobaldo Tatarana – há roteiros que te levarão às veredas e aos sertões todos das Gerais, tenha calma). Vai haver tempo para você parar e conhecer as pessoas: aprender sua mú- sica, sua dança, sua comida. Nestes oito, nove anos fundamentais, você vai conhecer um pouco do povo 71 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 que habitava ancestralmente estas terras,10 e dos po- vos que a vieram depois habitar. Como nem tudo são flores, você, muitas vezes, vai ter de atravessar desertos, vai se lanhar em muito espinho agudo e seco. Aprender requer também muito esforço, mas é muito bom ver como esse esforço deixa vocês bem felizes (você diz, muito orgulhoso, que já estava mesmo meio cansado da escola só de brincar). Outro dia, perguntei para o Matheus, seu amigo da 1a série, do que ele mais gostava e do que ele menos gostava na Escola. Sabe o que ele me respondeu? “O que eu mais gosto é de aprender e fazer lição”, com essas palavras, eu juro. O que ele menos gosta, sabe o que respondeu? De quando você, meu chapinha, briga no recreio com o Ian – o outro grande amigo dele (precisamos ter uma boa conversa). Ou seja, bom amigo esse que você tem, muito esperto: com sete anos, colocar o conhe- cimento e a amizade como as coisas importantes da vida, não é mole não – se não atrapalharem muito, o rapazinho vai longe. Porque eu quero lhe dizer mais uma coisa: você vai no- tar que nós, adultos, somos dúbios, ambíguos, dize- mos muito que queremos que você aprenda, mas agi- mos muito no sentido de mantê-lo ignorante e depen- dente (assim os espertos seremos sempre nós). b. A utopia da inclusão. O nome não é bom, bem sei. Falar em inclusão já aventa um universo de exclu- são que, ele sim, precisa ser erradicado. Mas o que se quer é só contar de um certo esforço consciente e que se pretende seja de toda a Escola: alargar os umbrais da convivência à largura de qualquer dife- rença. Claro que isso, sendo um direito, só é passí- vel de acontecer na escola pública, tão infensas es- tão algumas escolas privadas ao reconhecimento de certos direitos bastante elementares11 (e é por isso, acima de tudo, que a boa escola, a melhor escola há de continuar sendo, e voltar a ser, a escola pública). Quatro psicólogas auxiliam a Escola neste esforço.12 c. A utopia da participação da comunidade. Há quem pense que a participação da comunidade (muitas ve- zes voluntária) é um produto dos liberalismos, um es- forço que acaba por incorrer num pretexto de deso- brigação do Estado. Dos vários modos de defesa do imobilismo, esse é o mais canhestro: tem certo apelo ideológico, e é, muitas vezes, defendido por pessoas de bem. Nós vivemos uma guerra – é bom que perce- bamos de uma vez. Já bem o disse o professor Paulo Freire: talvez até possa acontecer que uma mudan- ça da escola não implique uma transformação social – nenhuma transformação social é, no entanto, pos- sível se não passar por uma transformação da esco- la. A Escola é nossa trincheira e, como diz Paulo Le- minski: “En la lucha de classes, todas las armas son buenas: piedras, noches, poemas”. Porque o descaso com a educação não é questão só de Estado, esse ou aquele governo – um milhão de alunos do ensino municipal de São Paulo sem aula é notícia de quarta página do caderno local dos prin- cipais jornais. De tão banal e evidente, a verdade dá vergonha de ser dita: a sociedade (não só a consti- tuída como Estado) não quer, não tem o menor inte- resse em ter uma escola pública de qualidade. Não entra no rol das preocupações das pessoas cujos filhos estão nas escolas privadas que a escola pública seja ruim – isso é da Natureza, isso está posto como o dia que nasce e morre. A escola pública é ruim é verda- de tão aceita e incontestada como: anoitece. A preo- cupação crescerá, aí sim, à medida que tivermos uma escola pública de qualidade. O verdadeiro ato revolu- cionário no Brasil de hoje é termos um ensino público, popular, universal, de qualidade – e isso não se con- segue flanando nas teorias, nem nas ideologias. Tente não pensar a Escola como uma ilha, e sim como uma trincheira – abaixe a cabeça e proteja-se, e ten- te, por favor, não acertar o tiro no próprio pé (inimi- gos não nos faltam). Hoje, vários projetos, já imple- mentados ou em fase de implementação, são coorde- nados total ou parcialmente por pais ou voluntários: • jornal, coordenado por pai de aluno; • portal, coordenado por grupo formado por pais, funcionários, empresa parceira; • Estação Butantã – vasto projeto estudando a história, geografia, ocupação e urbanismo do Bairro do Butan- tã, coordenado por pais e moradora do bairro; • Meus pais leram para mim – projeto de empréstimo de acervo e incentivo aos pais a lerem para seus filhos, coordenado por professora e mãe; • Grupo de preparação das Assembléias de Alunos, coordenado por pai e mãe; • Grupo de Cinema, coordenado por educadora voluntária; • educadora Thereza Pagani, a Therezita, uma vez por semana na Escola; 72 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Além disso, não é só o direito a faltar que faz com que o professor que leciona nas redes pública e privada fal- te naquela e não falte nesta, há também um preconcei- to: a convicção de que ao aluno da rede pública está de bastante bom tamanho o pouco que se lhe dê (pois se é dado...). Não há diálogo: o professor, identifica- do não se sabe exatamente com o quê, trata a clien- tela da escola pública com a empáfia e o descaso com que as elites tratam as classes subalternas: estão con- victas de que não lhes devem explicações. Aos pais, cabe então o aprendizado (também longo e custoso, porque também nós somos vítimas de precon- ceito) de que a escola de qualidade é um direito não nosso, mas, principalmente, dos nossos filhos – é en- tão um dever nosso lutar por um ensino de qualidade, e exigir dos professores compromisso e seriedade.14 Cabe, pois, ao Conselho de Escola, ser o palco da re- qualificação do diálogo, da construção de um discur- so forte de cobrança mútua, constante e implacável – cobrança da ação encarnada, da prática comprometi- da – e de repúdio aos discursos e práticas escamote- adoras, enganatórias, sabotadoras. Cabe ao CE ser o palco de uma tarefa hercúlea, importantíssima, sem a qual malogrará qualquer política que vise melhorar o ensino público: construir pontes sobre o imenso des- vão que se formou entre os pais e os agentes de edu- cação, cuja relação se foi tornando hostil e agressi- va, de ambos os lados. As grandes transformações da Escola foram muitís- simo discutidas no Conselho de Escola, e consolida- das na aprovação do Projeto Político Pedagógico15 e do Regulamento Interno – que cria novos e importan- tes instrumentos de gestão democrática, e dos quais cabe destacar: 1. O Conselho Pedagógico. Formado pela diretora da EMEF, dois coordenadores pedagógicos regimen- tais, três professores escolhidos por seus pares, dois educadores convidados e um representante dos arte-educadores, tendo a participação de • professor José Pacheco – membro do Conselho Pedagógico da Escola; • professora Lenina Pomeranz – auxiliando na for- matação de projetos e na ONG; • forno caipira construído por pais e funcionários (aos sábados e domingos). d. A utopia da construção da cidadania por meio da prá- tica democrática. Em primeiro lugar, é preciso des- tacar o Conselho de Escola. De formação paritária – sete representantes dos professores; sete, dos pais; sete, dos funcionários; e sete, dos alunos – é o pal- co preferencial da construção democrática. É vital por vários motivos: • Ensina-nos a todos – professores, pais, fun- cionários e alunos – a vivência democrática: a necessidade de defender lógica e coerentemente nossos pontos de vista; a necessidade de construir consensos que permitam avançar em meio às divergências. • Ensina-nos a pensar na e a escola que queremos. Aproxima o horizonte do desejo a uma distância tangível, e nos faz sentir agentes de transformação, e não meros objetos de políticas e ações que nos são transcendentes. Por outro lado, depara-nos com os limites sempre presentes (em nós mes- mos e na realidade), exorta-nos para o esforço de superá-los e, finalmente, desarticula o discurso fácil de culpar somente entes externos (mesmo que também culpados). • Principalmente: obriga a nos defrontarmos. Cria- dos que somos no discurso da complacência, da polidez e da subalternidade, desacostumamos de nos dizer verdades. O Conselho de Escola pode, e deve, tornar-se então o instrumento de encarnação e materialização do discurso: por favor, diga-me verdades inscritas em sua própria carne; por favor, ao falar-me, olhe-me nos olhos; por favor, não me venha com o discurso da autoridade do saber (estu- dei e, portanto, sei), da autoridade do poder (aqui mando eu), da autoridade do privilégio travestido em direito (falto porque a lei me permite). Por favor. A escola, como tantos outros lugares, desencontrou e desconstruiu a possibilidade de diálogo (uma conversa entre iguais): o professor, principalmente (como categoria), cerrou fileiras na defesa de seus direitos e somente consegue articular (como cate- goria) o discurso do corporativismo.13 Tarefa hercúlea: construir pontes sobre o imenso desvão que se formou entre os pais e os agentes de educação, cuja relação se foi tornando hostil e agressiva, de ambos os lados. 73 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 duas mães na condição de ouvintes. O Conselho Pedagógico é o responsável pela criação e imple- mentação dos dispositivos e práticas pedagógicos, no sentido da melhor implementação do Projeto. Favorece enormemente que cada segmento venha a ter uma visão mais global e abrangente da Escola, e que se implique, e a seus pares, com o Projeto de forma integral; 2. O Conselho de Gestão Financeira. O coletivo da EMEF aprender a gerir e administrar seus recursos de forma democrática e transparente não é tarefa desimportante. O problema do ensino também é um problema de gestão – financeira, inclusive. O aprendizado e a experiência darão confiança na luta por uma crescente autonomia. e. A utopia do conhecimento solidário. Você já se sen- ta em grupos de cinco alunos, ainda na sala peque- na e ainda com uma única professora, a Cleide (você é um cara de sorte), e uma estagiária – afora, é cla- ro, as oficinas que você faz em outros espaços. Logo que você estiver lendo mais fluentemente, entenden- do melhor como funciona a barafunda toda, vai para o salão grande trabalhar com os tais roteiros (isso é logo, não se preocupe, você cresce bem mais rapida- mente do que imagina...). O grupo, você já sabe para que serve – a Cleide deve fa- lar bastante disso, eu acho – pois outro dia você me fa- lou que ia pedir para o Caio, que já sabe, lhe ensinar le- tra cursiva. Você diz que vai ensinar matemática para ele – “Em matemática, eu sou muito bom”, você falou. En- tão, é bem isso, eu penso que o começo de quase tudo está aí: uma auto-avaliação espantosamente conscien- te (isso eu sei, isso eu não sei), e uma crença no poder da solidariedade (isso eu sei e posso ensinar; isso eu não sei e preciso encontrar quem me ensine). Mas o conhecimento solidário não é só isso. Há tam- bém o que alguns meninos, que estudam e estuda- ram em outras escolas, estão vindo fazer, o que al- guns pais e outros adultos estão vindo fazer.16 E há, ainda, o que o Geraldo Souza chama de Educa- dor Público – a mais importante, e utópica, de nos- sas utopias. f. A utopia do advento do Educador Público. O método de pesquisa em grupos nos salões, que a Es- cola utiliza, é uma prática que não garante, por si, qual- quer melhora do ensino – evidentemente. Poderão al- guns argumentar que o método é, na escola, o que me- 74 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 nos importa – e estarão, sem dúvida, cobertos de razão. Há bons, excelentes professores, com métodos que se poderia chamar antiquados, assim como é comum tra- vestir-se o descompromisso e o desinteresse com rou- pagens ditas modernas – o trabalho em grupo e o incen- tivo à pesquisa sendo algumas delas. Se isso é verda- de, também é bastante verdade que, na Escola, o méto- do não é aleatório, nem bem menos fruto de uma qual- quer inconseqüência, sendo fundamental no processo de construção da escola que queremos. O método de trabalho na Escola favorece o advento do Educador Público das seguintes maneiras: • O professor, hoje, por mais capaz que possa ser, viu sua função distanciar-se a tal ponto do papel de Educador, que já quase não o vislumbra. E isso por vários motivos: 1. em primeiro lugar, pelo advento das especiali- zações psicopedagógicas, não é mais função do professor: • orientar (há um orientador para isso); • falar de questões relativas à subjetividade (há um psicólogo para isso); ou • falar de uma dificuldade qualquer diante do apren- dizado (há a psicopedagoga para isso). 2. em segundo lugar, a própria forma como a escola se organiza obriga o professor a se ater, e se preocupar, com uma turma, uma aula, uma matéria. Está o pro- fessor dando sua aula e pouco se lhe dá se a classe vizinha vagueia no pátio pela falta de um seu colega: isso não lhe diz respeito, absolutamente. O convite que a escola faz ao professor não é para olhar o aluno, para se preocupar com ele, e sim para se ater a um conteúdo e a um compromisso específicos – a escola de hoje é um espelho despedaçado em que o professor, por melhor que seja sua boa vontade, não se pode enxergar, pois não enxerga o aluno em sua totalidade. O professor é hoje um fragmento, e um fragmento nunca vai ser um Educador. 3. o professor trabalha sozinho entre díspares, den- tro de sua sala, e essa é uma função (no sentido teatral mesmo do termo) pobre: os palhaços, que são sábios, só muito raramente atuam sozinhos. A solidão amesquinha a alma mais nobre – perde-se em elã o que se ganha em soberba. 4. então, o professor vai se agarrar à sua moldura e exigir respeito – porque sabe mais, porque pode mais – mas terá com esse fragmento de aluno um diálogo impossível: o aluno que ontem vagava sem aula pelo pátio sabe que esse professor viu e nada fez; o aluno, que está sem aula de outra disciplina, vê que esse professor nada faz: o aluno, que não é bobo (e ainda não aprendeu a ser cínico), sabe que o professor se preocupa com o silêncio na sua aula, com a disciplina na sua aula – o professor não se preocupa com ele – então, por que respeitá-lo? • A diretora, os orientadores pedagógicos, os auxilia- res de período e os agentes escolares têm, na Es- cola, o estatuto de educadores. Isso significa tanto um reconhecimento formal, quanto a imersão em práticas de “ensinança” mesmo – tutoria inclusive. Muitos de nós estranhamos essa posição: tanto mais quanto mais nos prendemos às formalidades. Um agente escolar tem formação para dar oficina de matemática? Um agente escolar que conhece as quatro operações teria? Um que pesquise, ouse aprender, experimente. Essa é a dádiva do processo: você conhece pessoas que sempre são mais (e, às vezes, menos) que suas supostas qualificações. • Nós, pais e mães, zelosos que somos, aprendemos a amar nossos filhos, mas temos naturalmente nossas dificuldades em amar a criança, em sua totalidade. Daí a importância do grupo, e do co- letivo da Escola: há pessoas, nele, com grande sentimento do mundo, com as quais aprender. Cada um tem suas dificuldades específicas, seus pontos cegos, que outros haverão de poder ilumi- nar. O pai ou a mãe, tendo adentrado o espaço da escola, precisa aprender a se tornar Educador, e não de seu filho somente. A amizade e o respeito aos nossos grandes amigos só se materializam quando temos liberdade para dar, nos seus filhos, a bronca que daríamos no nosso; para dar, a seus filhos, o incentivo e o reconhecimento que daría- mos ao nosso. Isso, um dia, na escola – e isso, um dia, fora da escola também. • O aluno, à medida que se torna agente, à medida que se apossa da Escola como sua, torna-se, tam- bém ele, Educador. O aluno cada vez mais aprende- rá que a cidadania é a exigência de respeito: para com sua história, para com seu corpo, para com os seus direitos – a escola entre os mais preciosos. O aluno cada vez mais saberá dizer ao outro aluno: não estrague a minha escola; cada vez mais saberá dizer a nós, adultos: respeite a minha escola. 75 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 E, por que não, um tutor? E aqui caberia destacar o espaço da tutoria como um dos instrumentos fundamentais para o advento do Edu- cador Público integral, e do aluno integral – adventos si- multâneos e inseparáveis, pois não se vai nunca atingir a integralidade na formação do aluno, sem atingir tam- bém a do educador. Atendo-se semanalmente, durante todo um período, a um pequeno grupo de alunos (15, no máximo), o educador pode acurar sua escuta, aprofundar seu olhar, reenquadrar sua conduta. O tutor – como na botânica, em que o tutor apóia e es- teia o novo broto e o novo ramo – vai semanalmente ve- rificar o trabalho realizado, propor reparos e aprofunda- mentos, sugerir os novos passos para a semana que se vai começar. Vão poder estabelecer, tutor e aluno, uma relação que ultrapasse o mero verniz das conveniências e das aparências. Em suma: se a metodologia aplicada na Escola não é a garantia, é uma engenhosa e poderosa contribuição à construção da escola democrática e cidadã que almeja- mos. Se, como bem sabemos, a distância até ela é ain- da bastante longa (...tanto mar, quanto mar...), pois que demos somente umas poucas braçadas, cada vez vai-nos ficando mais claro para onde remar – o que, retomando a alegoria do título, faz da Escola uma nave bastante dis- tinta da stultifera nave medieval, que vagava sem rumo, perdida nos mares. Notas 1 A Escola aqui é a EMEF Desembargador Amorim Lima, no Butantã, em São Paulo. Este depoimento foi escrito em abril de 2006. 2 Ana Elisa é a diretora e a grande responsável pelas transformações na Escola. 3 Ele estudava na Tearte, mas isso é outra história. 4 Numa entrevista que as crianças fizeram com Alcides, foi-lhe justamente perguntado: “Como é que se faz para virar mestre?” Resposta singela, mais ou menos esta: “Propriamente não se faz – começam a lhe chamar mestre, aqui e ali; não é você que escolhe, mas os outros que o elegem...”. Simples assim, como tudo que faz sentido. 5 Não se iluda com o caos: no meio da barafunda toda, o pessoalzinho sabe bastante bem o quer e como quer. Não se iluda: além de agogôs e chocalhos coloridos, também há flechas e lanças no paiol. 6 Maria Aparecida Peres era secretária, à época. 7 Tendo recém-visitado a Escola da Ponte, e notando o entusiasmo da comuni- dade da Amorim Lima pelo Projeto Fazer a Ponte, a psicóloga Rosely Sayão, a pedido do Conselho de Escola, formulou e apresentou, em setembro de 2003, uma proposta de assessoria, no sentido de se ir implantando, na Amorim Lima, dispositivos inspirados naqueles da escola portuguesa (consulte www. eb1-ponte-n1.rcts.pt ). 8 Passados 30 anos desde o advento das “escolas experimentais” dos 1970 e 1980, as que sobreviveram foram enchendo de tal modo o bucho de conceitos e “experiência acumulada” que hoje voam baixo como galinhas. De tudo, talvez se possa acusar esse bando de insensatos – não se poderá, contudo, acusá-los de fazerem baixas suas expectativas. 9 O pesquisador Geraldo Tadeu Souza elaborou os roteiros e trabalha enor- memente em sua implementação. Os Roteiros Temáticos de Pesquisa são concebidos segundo a Teoria Dialógica da Linguagem do Círculo de Bahktin, e se apóiam nos livros didáticos e paradidáticos fornecidos pelo Ministério da Educação, por meio do Programa Nacional do Livro Didático. Uma publicação que conterá o conjunto completo de roteiros, bem como uma explicação mais pormenorizada dos métodos de sua concepção e implementação, de autoria do Prof. Geraldo, e com os direitos autorais gentilmente cedidos à APM da EMEF Desembargador Amorim Lima, está no prelo, e poderá ser conseguida na Escola dentro em breve. 10 Estamos construindo, na Escola, com a supervisão e colaboração dos índios guarani da aldeia Tenondé-Porã, em Parelheiros, São Paulo, uma edificação nos moldes da Opy Guasu (Casa de Reza) desse povo. Sagrada para eles, pois a Opy Guasu é o espaço privilegiado de troca cultural, o local primordial de preservação de suas tradições e de sua cultura, a construção na Escola assume também um estatuto que se poderia chamar sagrado: um local para praticar o respeito a todas as culturas, por meio da música, da dança, da “contação” de histórias. E sagrado também porque demonstra nosso respeito e nosso afeto pelo povo guarani. 11 Para alguns outros direitos, no entanto, a observância é ciosa: o direito de submeter os alunos de seis e sete anos a um exame vestibular, por exemplo. Há escolas em São Paulo em que o estrábico não entra nem com mandado de segurança. Bom, exagero, talvez, quanto ao estrabismo. 12 São elas: Simone de Camargo Silva, Evelyn Madeira, Larissa Patty Gomes de Jesus e Ana Paula Musatti Braga. 13 O mal acomete também enormemente os professores comprometidos, sérios: cumprem valorosamente suas funções, mas lhes pareceria suprema traição levantarem-se contra os ineptos que não a cumprem – como se o descompromisso de alguns não fosse responsabilidade de todos. 14 Em artigo, na Folha de S.Paulo, certa colunista identificou a presença dos pais na escola como um dos obstáculos ao avanço do ensino – fazendo graça, afirmou que na escola de hoje era preciso “des-envolver” os pais. A colunista obviamente confunde envolvimento com o vínculo essencialmente mercadológico que certas escolas estabeleceram com os pais – muito mais por culpa delas do que deles. Como não deixa claro de que escola fala, vamos dar-lhe o benefício da dúvida e imaginar que não seria da escola pública – o que, obviamente, daria à afirmação estatuto de estultice completa. 15 A íntegra do Projeto Político Pedagógico da EMEF Desembargador Amorim Lima pode ser encontrada no endereço www.amorimlima.com.br. 16 Noutro dia o João, (meu filho mais velho, de 11 anos, que não estuda na Escola), ouvindo a mãe entusiasmada contar que a Neiva Brandão, expe- riente professora de educação física, ia à Escola tentar ajudar nos trabalhos corporais, disse: “Mas essa escola parece uma cidade proibida, um lugar de fugitivos; alguém sabe educação física e vai ensinar, outro sabe outra coisa e vai fazer outra coisa...”. Um quilombo de libertos, é uma imagem de que gosto. 77 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 s idéias aqui apresentadas foram tecidas do lado de fora dos muros escolares, considerando os acontecimentos e os desafios que se encontram nessas fronteiras. A aprendizagem se inicia com o nascimento e se es- tende ao longo de toda a vida, antecede e vai além do processo de escolarização, abarcando um amplo con- junto de instituições, modalidades, relações e práticas. A educação, a comunidade educativa e a política edu- cativa são muito mais amplas que a educação escolar, a comunidade escolar e a política escolar. Pretendemos circunscrever a abrangência do tema educação integral e, para tanto, iniciamos com um re- corte histórico que configura a infância como categoria social e público prioritário da educação. Esse histórico considera os aspectos de rupturas e contradições que fizeram a criança e o adolescente pas- sarem “do anonimato para a condição de cidadão, com direitos e deveres aparentemente reconhecidos” (Del Priore, 1999, p. 8), ou seja, desde quando as crianças e os adolescentes eram considerados objetos de pro- priedade dos adultos, sem muita relevância, até os dias atuais,­ em que a Constituição Brasileira de 1988 prevê que as crianças sejam prioridade absoluta. Configurações da infância no mundo ocidental O processo de valorização da infância constituiu-se entre os séculos XVI e XIX, segundo Philippe Ariès. Por um lado, as crianças, por sua ingenuidade, gentileza e gra- ça, tornavam-se uma fonte de distração e de relaxamen- to para o adulto; por outro, transformavam-se em objeto artigo Educação integral com a infância e a Maria Júlia Azevedo Gouveia* juventude A * Maria Júlia Azevedo Gouveia é psicóloga, mestre em Educação e coordenadora da área da Educação e Comunidade do Cenpec. Colaboraram na reflexão e elaboração deste texto: Lúcia Helena Nilson, Ivana Boal, Stela Ferreira, Célia Pecci, Tatiana Bello, Wagner Santos. A 78 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 de estudo da psicologia e de preocupação moral, para que se fizesse, delas, pessoas racionais e cristãs, con- ciliando doçura e razão. A valorização da infância tran- sitou da diversão aos cuidados de higiene e saúde com o corpo infantil; da educação, pela via das confrarias, à vida de rígida disciplina nos colégios. O mesmo autor descreve a família abastada e suas mudanças da vida medieval à vida moderna, destacan- do a relação dos adultos com as crianças. No modo de vida antigo, a criança, assim que completava sete anos, ia morar em outra casa, com outros adultos, que tam- bém haviam transferido seus filhos para outra família. Essa nova moradia cumpria a função de educar as crian- ças pelo trabalho doméstico, quando então aprendiam os saberes do grupo familiar em que estavam inseri- das. Esse tipo de aprendizagem ocorria à medida que realizavam os serviços domésticos e ajudavam na so- brevivência dessa família. O trabalho e a vida domés- tica se confundiam, pois aconteciam no mesmo espa- ço. Nesse período, só freqüentavam a escola as crian- ças destinadas, pelos pais, ao clero. Elas eram, portan- to, uma exceção. Essa forma de relação das crianças com os adultos, na qual as crianças serviam uma família que não era a sua, implicava uma forte convivência entre eles e, dessa maneira, elas aprendiam a viver. A família era uma reali- dade moral e social, mais do que sentimental. A família-casa (medieval) tinha, como traços marcan- tes, a circulação dos filhos e a escolha de apenas um como herdeiro, o primogênito, pois os outros eram en- caminhados ao clero. Os clérigos, por sua vez, passaram a condenar a falta de consideração das famílias em rela- ção à vocação de seus filhos e a valorizar que os pais nu- trissem o sentimento e o tratamento de igualdade entre eles. Na realidade, esta é a prova do início de um senti- mento que resultaria na igualdade entre os filhos no có- digo civil. Assim, configura-se um valor novo: toda a rea- lidade familiar baseia-se na afeição. A família sentimental moderna (séc. XVII) separa-se do mundo e opõe, à sociedade, o grupo solitário dos pais e filhos. Toda a energia do grupo é consumida na promo- ção de cada criança, e não nutre qualquer ambição cole- tiva: as crianças, mais do que a família. Não se pode esquecer que essa transformação da fa- mília medieval em família moderna se limitou, durante muito tempo, aos nobres, burgueses, artesãos e lavra- dores ricos. Até o final do século XIX, uma grande par- te da população, a mais pobre e mais numerosa, vivia como as famílias medievais, com as crianças afastadas da casa dos pais. Nesse mesmo processo em que a família se alterou, ou seja, em que a relação entre os adultos e as crianças se modificou, a escola também passou a ser considerada uma instituição relevante para cuidar e educar as crian- ças e adolescentes. A escola e o colégio — que, na Idade Média, eram re- servados a um pequeno número de clérigos e mistura- vam as diferentes idades dentro de um espírito de liber- dade de costumes — tornaram-se, no início dos tempos modernos, um meio de isolar cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral quanto in- telectual, de adestrá-las graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, afastá-las da sociedade dos adultos. O colégio começou a separar os alunos em di- versas séries escolares, impedindo assim o convívio en- tre as diferentes idades, preocupação que se tornou efe- tiva apenas no século XIX, pois, para a escola medieval, quando ingressava na escola, a criança entrava automa- ticamente no mundo dos adultos. Essa mistura de idades continuava fora da escola. A escola não cerceava o aluno. O mestre único — às vezes assistido por um auxiliar e com uma única sala à sua dis- posição — não estava organizado para controlar a vida quotidiana de seus alunos. Estes, ao terminarem a lição, escapavam à sua autoridade. Vimos desencadear-se uma transição do modelo es- colar medieval — espaço cujo chão era forrado com pa- lha onde todos se sentavam — ao padrão moderno de colégio — espaço complexo, ditado pelas transforma- ções pedagógicas e fundamentalmente pelo controle, constante e rigoroso, do corpo discente. Entre 1550 e 1759, [...] o ensino, nos colégios e seminários, tinha três fases: primária, média e superior. Na fase primária, destinada a alunos [...] de qualquer classe social, excetuando os escravos, aprendia-se a ler e escrever. As outras duas fases eram reservadas aos meninos das famílias proprietárias de terra. 79 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Dois valores fundantes do trabalho educativo são ex- pressos pela pedagogia: de um lado, as noções de ino- cência ou fraqueza da infância e, de outro, o da respon- sabilidade moral dos mestres. Em decorrência desses va- lores, o trabalho educativo apresenta três características principais: a vigilância constante e hierárquica, a dela- ção como princípio de governo e prática institucional e a aplicação ampla de castigos corporais. No trabalho educativo voltado para a infância, é intro- duzida a noção de disciplina que se apóia no tripé vigi- lância-delação-punição. Esta parece ser a principal dife- rença entre as duas modalidades históricas, a medieval e a moderna, de se conceber e efetivar o trabalho educa- cional. E, como se pode notar, enraíza-se, nessa transfor- mação, boa parte das convicções pedagógicas que ain- da hoje são testemunhadas nas salas de aula. Configurações da infância no Brasil No Brasil, a infância ganhou maior visibilidade e inte- resse no final do século XIX, quando a criança passou a ser considerada um ser em desenvolvimento. Esse novo olhar — que avalia a criança como um ser frágil, que de- manda cuidados e proteção no decorrer de seu cresci- mento — constituiu uma estratégia para formar um adulto moldado às exigências de um Estado dito moderno. Esse Estado precisava de uma população civil que in- corporasse os ideais de pátria, de nação moderna (Costa, 1979), e, assim, começou a adotar a família e a escola como instituições de cuidado com a infância. Nesse contexto, o Estado, para alterar os valores e o modo de vida da socie- dade, articulou-se aos médicos higienistas e a outros cien- tistas para produzir a mudança que julgava necessária. A partir de então, a medicina social, como enfatiza Jurandir Freire Costa (1979, p. 33), dirigir-se-á à família, procurando modificar as condutas físicas, intelectuais, morais, sexuais e sociais de seus membros, a fim de pro- piciar a sua adaptação ao sistema econômico e político. Essa perspectiva tem uma característica generalizante, ou seja, dirigia-se a uma classe social específica, pois sua meta era o controle demográfico e político da popu- lação. Exemplo disso são as campanhas de vacinação para reduzir a mortalidade infantil, nas quais o Estado, aliado aos higienistas, mobiliza as famílias para que va- cinem seus membros. O objetivo do governo passa a ser “melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde etc.” (idem, 289). Nesse mesmo registro, a convivência familiar foi um dos aspectos da vida social para o qual os higienistas desenvolveram teorias e técnicas que revelavam a im- portância dos cuidados e da educação das crianças. Fo- ram criadas normas que definiam a maneira adequada de a família educar e proteger a criança, desde o cuida- do com a alimentação até a educação sexual. A ordem médica produzirá uma norma familiar, capaz de formar cidadãos individualizados, domesticados e colocados à disposição da cidade, do Estado e da pátria. Esse novo olhar voltado para a criança (futuro cida- dão) fazia dela o centro do contexto familiar e, em con- seqüência, exigia um rearranjo das rotinas dos adultos. A vida na família ganha um novo caráter. Esta é uma face da mudança da visão de infância, que permitia que o cida- dão estivesse a serviço dos interesses do Estado, e não das relações e da autoridade familiar. No entanto, isso ainda não era suficiente, e a educação das crianças pas- sou a ser delegada a outros. A construção social da ca- tegoria infância só pôde ser consolidada pelas práticas de uma instituição: a escola. Nesta ação transformado- ra, os componentes de antigos dispositivos de controle, como a militarização e a pedagogia jesuítica, serão rea- proveitados e orientados para outros fins. A escola torna-se portadora da tarefa de formação dos homens para a sociedade, sendo responsável pelos aperfeiçoamentos físico, moral e intelectual das crian- ças. Para tanto, criaram-se múltiplas técnicas discipli- nares que pretendiam institucionalizar uma instrução adequada aos alunos, valorizando o culto ao bom há- bito por meio da domesticação do corpo e do espíri- to do indivíduo. Na família e na escola, instruir signifi- cava moralizar, disciplinar, fazer com que filhos e alu- nos pudessem amar e servir à “humanidade”, e, assim, educá-los, ou melhor, transformá-los em adultos a ser- viço da nação. Aqui é necessário pontuar como a educação escolar acontecia em nosso país. Como relata Tobias (1986), en- tre 1550 e 1759, a educação escolar limitava-se à que era ministrada em alguns pontos do país pela Ordem dos Je- suítas: uma educação cristã, associada à catequese. O ensino, nos colégios e seminários, tinha três fases: pri- mária, média e superior. Na fase primária, destinada a alunos — meninos brancos e índios — de qualquer clas- se social, excetuando os escravos, aprendia-se a ler e escrever. As outras duas fases eram reservadas aos me- ninos das famílias proprietárias de terra. 80 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Dessa maneira, por meio da ordem jesuítica, a Igre- ja Católica, segundo Freitag (1980, p. 47), preparava os futuros bacharéis em Belas-Artes, Direito e Medici- na, tanto no Brasil quanto em Portugal. Ela fornecia os quadros dirigentes da administração colonial, formava os teólogos e educadores — tinha hegemonia na so- ciedade civil. Em 1759, os jesuítas foram expulsos do país; porém, as tarefas de educação permaneceram a cargo da Igreja. Apenas a partir da vinda da família real, em 1808, é que outras escolas (técnicas, academias) foram criadas. De- pois da independência do país, foram criadas também escolas militares em diversos pontos do território nacio- nal. Porém, apenas no fim do Império e início do perío- do republicano é que aparecem os primeiros traços de uma política educacional estatal. O Estado brasileiro inicia seu período republicano e urbano sob a égide do Estado Moderno. Assim, no pro- cesso de consolidação dessa nova forma de governo — que não se dá mais pela hereditariedade — fez-se ne- cessário, como mencionado, que ele se associasse às diversas disciplinas do conhecimento para validar suas práticas subjetivas (discurso político-jurídico) e objeti- vas (serviços públicos). Encontramos uma narrativa na literatura que mostra um recorte dessa política educacional operando. Graci- liano Ramos (2002, p. 107-8), em seu livro Infância, nar- ra o episódio de um garoto chegando à escola no início do século XX, numa sala de aula em que o autor (ainda menino) estava presente: Vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resistia, de- batia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos arrancos, e se conseguia soltar-se, tentava ganhar a calçada. Foi difícil subjugar o bicho brabo, sentá-lo, imobilizá-lo. O garoto caiu num choro largo. Examinei-o com espanto, desprezo e inveja. Não me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e selvagem. Tinham-me domado. Na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve (...). Esse relato explicita a dureza da escolarização, exi- gente disciplinamento, para cujo entendimento Fou- cault (1987, p. 199) fornece referências. Com base na hipótese da “sociedade disciplinar”, o autor traz con- tribuições fundamentais para a compreensão do disci- plinamento difuso, indagando se “devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?”. Para ele, as instituições disciplinares teriam se constituído por meio de proce- dimentos de controle bastante minuciosos, dentre os 81 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 quais destaco os que estão voltados à racionalização do espaço, do tempo e dos corpos dos indivíduos sob sua tutela. Retomando o processo de constituição da infância no Brasil, vimos que as funções de educação e socialização do universo infantil são exercidas pela família e pela es- cola. Mantém-se, dessa forma, o objetivo do Estado de formar o cidadão como homem e o homem como cida- dão (Cambi, 1999). No entanto, o acesso à escola, como prática de cuida- do e educação das crianças, não estaria disponível para todos. Vale destacar que a escola não se tornou uma pos- sibilidade viável devido à inexistência de vagas para uma grande parte da população infantil pobre e, ao mesmo tempo, pela exclusão de muitas crianças, por não apren- derem ou não se adaptarem à rígida disciplina. Para as populações pobres — e considerando que seus filhos não tinham acesso aos cuidados e à educa- ção que a escola oferecia — restam o trabalho e as ruas como alternativa para “sua transformação em cidadãos úteis e produtivos” (Del Priore, 1999, p. 10). Ou seja, ou assumiam as responsabilidades do mundo adulto ou fi- cavam à mercê das “forças heterogêneas” do mundo, no dizer de Arendt (1997). A diferença sociocultural que se estabelece no interior do universo da categoria infância, entre os que permane- cem vinculados à escola e os que não têm acesso ou são expulsos dela, é tal que o conceito genérico de infância não poderá abarcá-los. Para García Mendez, “os excluí- dos se converterão em menores” (1998, p. 86). Nesse contexto, a categoria infância já havia sido seg- mentada: de um lado, as crianças que podiam ser filhos e alunos e, de outro, aqueles a quem restava ser aban- donado ou “menor”. Para esses últimos, foi necessária a criação de uma instância de controle sociopenal, em 1927 — o tribunal de menores. Assim, um segmento da infância torna-se figura do Direito, e o universo da lei transforma-se em um dos mais importantes instrumen- tos de modificação da realidade. Essa segmentação ainda tem marcas objetivas e sub- jetivas até os dias de hoje, embora, nas últimas duas dé- cadas do século XX, muitas alterações tenham sido re- alizadas, como: a determinação legal de universaliza- ção do acesso à escolarização e o deslocamento rea- lizado em função dessas crianças e adolescentes, que passaram da condição de objeto de tutela para a de su- jeito de direitos. Caminhos da legislação Para nós, a criança é um tripé: é sujeito de direito, su- jeito de conhecimento e sujeito de desejo. Não nos co- locamos à frente das crianças, fazemos um movimento de rotação para ficarmos ao lado delas, porque elas são o sujeito destas três origens fundamentais da vida (Ce- sare La Rocca). Atualmente, a educação é a área de investimento mais visada em todo o mundo para produzir desenvolvi- mento. Países fazem revoluções econômicas e se deslo- cam no ranking de desenvolvimento por seu investimen- to em educação. Outra questão pertinente diz respeito ao enfrentamento das desigualdades que caracterizam a vida contemporânea no país e no mundo. Esta desigual- dade convoca a todos para a formulação de ações que tenham a eqüidade como foco e, assim, permitam pro- duzir igualdade de resultados. Desde 1990, na Conferência Mundial sobre Educa- ção para todos, realizada em Jomtien, Tailândia, vem sendo ampliado o consenso de que educação para to- dos se faz com todos pela educação. Essa posição, tam- bém adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescen- te – ECA, incluiu, no cenário educacional, outros ato- res, como as organizações não-governamentais, os mo- vimentos sociais, os grupos culturais, a iniciativa pri- vada, a mídia etc. O ECA define as crianças e adolescentes como sujei- tos de direitos demandantes de proteção integral que, para se realizar, exige articulação das políticas sociais e indica a assistência social como operadora da prote- ção social para a infância e juventude em situação de vulnerabilidade. Entendemos vulnerabilidade como uma situação de risco pessoal ou social. Não saber ler e inter- pretartextos após cinco anos de escolarização ca- racteriza uma situação de vulnerabilidade? A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS, 1993) de- fine a proteção social como política pública de Estado e direito do cidadão, um importante avanço no sistema de proteção social brasileira. Desde a aprovação da LOAS, esta política pública vem sendo debatida e está instituin- do uma construção política a partir de princípios explici- tados na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), dos quais podemos destacar: 82 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 • Uma visão social capaz de entender que a popula- ção tem necessidades e também possibilidades ou capacidades que devem e podem ser desenvolvidas. Assim, uma análise de situação não pode conside- rar apenas as ausências (o que falta), deve contem- plar também as presenças (o que existe), até mesmo como desejos de superar a situação atual. • Uma visão social capaz de identificar as forças, e não as fragilidades, que as diversas situações de vida apresentam. Além disso, a Assistência Social — como política pú- blica que compõe o tripé da Seguridade Social e conside- rando as características da população atendida por ela –,- deve fundamentalmente inserir-se na articulação inter- setorial com outras políticas sociais, particularmente, as políticas de Saúde, Educação, Cultura, Esporte, Empre- go, Habitação, entre outras, para que as ações não sejam fragmentadas e se mantenha o acesso e a qualidade dos serviços para todas as famílias e indivíduos. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- cional (LDB) prescreveu o aumento progressivo da jorna- da escolar para o regime de tempo integral, a critério dos sistemas de ensino (art.34 e 87), e ao mesmo tempo in- dica o regime de escolas em tempo integral. Também, re- conhece a existência e valoriza as experiências extra-es- colares (LDB, art. 3, item 10). O Plano Nacional de Educação define, como diretriz e meta, que a ampliação da jornada deve possibilitar a “orientação no cumprimento dos deveres escolares, prá- ticas de esporte, desenvolvimento de atividades artísti- cas e alimentação adequada, no mínimo em duas refei- ções” (PNE, 2000). Além disso, indica a escola de tem- po integral “preferencialmente para as crianças das fa- mílias de menor renda com as atividades descritas aci- ma nos moldes do Programa de Renda Mínima Associa- do a Ações Socioeducativas” (PNE, 2000). A lei permite que cada rede de ensino encontre o seu modo de atuar nesse tempo integral e aponta, como refe- rência, o que se realiza no registro da proteção social (pro- grama Renda Mínima). Portanto, uma interpretação possí- vel é a realização do tempo integral utilizando outros espa- ços, além do escolar, para desenvolver esse trabalho. Destacamos um traço que atravessa todas as referên- cias legais, em maior ou menor intensidade: a perspec- tiva de articulação das políticas, pois a educação con- temporânea precisa se concretizar por meio do entrela- çamento de ações educativas efetivas. Nessa trilha, a educação integral se apresenta como uma oportunidade de agregar qualidade à escolarização e ao enfrentamento da iniqüidade educacional. A educação e seus desafios Como vimos, a escola se manteve destinada a poucos por muito tempo. Passetti (2000) mostra que, no início do século XX, no estado de São Paulo — pela Lei n. 1.070, de 16 de agosto de 1907 — o governo ficava autorizado a destinar 10% das vagas do ginásio para os alunos do primário que mais se distinguissem durante o ano e fos- sem comprovadamente pobres. A escola que experimentamos no Brasil, até a déca- da de 1970, era destinada a formar intelectuais, letrados, eruditos, homens de saber ou de arte, ou seja, atendia a poucos, a um pequeno grupo da elite. Anísio Teixeira chama a atenção para o fato de que a escola não visava formar o cidadão, não visava formar o caráter, não visava formar o trabalhador, e, sim, formar o intelectual, o profissional das grandes profissões sacer- dotais e liberais, o magistério superior e, assim, manter a cultura intelectual distinta da cultura do povo e inde- pendente da cultura econômica e de produção. A escola para todos passa a ter dois objetivos: a for- mação geral e comum de todos os cidadãos e a forma- ção dos quadros de trabalhadores especializados e de especialistas de todas as espécies, exigidos pela socie- dade moderna. A escola, como instituição forjada para educar inte- lectualmente crianças, adolescentes e jovens — e, mais ainda, o sistema escolar como política pública — vem enfrentando uma sucessão de crises, nos mais diversos âmbitos. Destacamos quatro aspectos da ação pedagó- gica que expressam pontos críticos: • Os espaços escolares mantêm a mesma arquitetura e ocupação do início do século XX. • A duração da hora-aula escolar é de 45 ou 50 minu- tos, portanto, todo e qualquer grupo e conjunto de conhecimento devem adaptar-se a esse tempo ou a um múltiplo dele. • Os objetos de conhecimento são definidos a priori em disciplinas e colocados à disposição dos alunos gra- dativamente, segundo a lógica do próprio objeto. • Os sujeitos ocupam lugares bem definidos: o pro- fessor deve saber e deve ensinar, o aluno não sabe e deve aprender, ou o professor, por saber, deve me- 83 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 diar a relação do aluno — não-sabedor — com os ob- jetos de conhecimento. No muro branco do populoso bairro caraquenho de Antímano, no oeste da capital venezuelana, lê-se um significativo grafite: “Agora, nós pobres também vamos à escola, para que não nos rou- bem o futuro”. Desde a década de 1930, críticos, como Freinet, apon- tam que a escola é burocratizada, distante da família, teó- rica e dogmática, além de promover a passividade do alu- no, o intelectualismo excessivo e o caráter desumano, porque, nas condições em que se encontram, os alunos não conseguem desenvolver habilidades de análise crí- tica, de julgamento pessoal, de expressão livre de seus próprios pensamentos e opiniões, de apresentação de propostas novas, de exercício de cooperação, de criati- vidade, de responsabilidade e de afetividade. Com o esforço das últimas duas décadas de democra- tização da escolarização, chegamos a 98% das crianças e adolescentes incluídas no ensino fundamental, ou me- lhor, conseguimos garantir o acesso à matrícula escolar. Ao mesmo tempo, as avaliações indicam que parcela sig- nificativa dos estudantes não compreende textos, com- prometendo, portanto, o restante do aprendizado. Parece que o acesso e a presença não têm produzi- do aprendizagem. Vale aqui lembrar o que ensina Paulo Freire (2001) sobre o diálogo para a transformação: “A relação dialógica implica num falar com, e não num fa- lar por ou num falar para, pois não se trata da conquis- ta de uma pessoa por outra; senão que é uma conquis- ta do mundo pelos sujeitos dialógicos”. Novas práticas educativas Será que estamos falando por e para as nossas crian- ças e adolescentes? Estamos configurando um campo de 84 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 diálogo que permita que o aprendizado se processe? Espaços paralelos à escola vêm circunscrevendo no- vas práticas educativas. Grupos comunitários, culturais, artísticos e de movimentos sociais desenvolvem ativida- des com crianças e adolescentes, objetivando ensinar- lhes a tradição da cultura local, aproximá-las das produ- ções artísticas, conscientizá-las de seus direitos, propor- cionar-lhes práticas esportivas, valorizar as brincadeiras, promover eventos artísticos, acompanhar suas tarefas escolares, propiciar sua circulação pela cidade, experi- mentar a ocupação dos espaços públicos, acessar tec- nologias, participar da vida pública, intervir na localida- de onde vivem etc. Denominamos, a este conjunto de iniciativas, de ações socioeducativas. Socioeducativas porque podem tomar a ética, a estética e a política como fonte de orienta- ção para seus projetos de criação de situações de apren- dizagem. Assim, a convivência, os sentimentos e os in- teresses humanos, portanto coletivos, são o cenário e o roteiro dessa diversidade de práticas desenvolvidas em diferentes localidades do país. As ações socioeducativas, em seu desafio de educar na e para a convivência democrática, têm como pers- pectiva que: • os sujeitos aprendentes e ensinantes ocupem luga- res dinâmicos: o educador é o adulto que tem habi- lidades e competências, e as coloca à disposição da invenção de situações de aprendizagem que levam em consideração quem são os aprendizes interes- sados e possuidores de interesses diversos, com os quais vai empreender a aventura do conhecimento. • os espaços são os lugares disponíveis e potencializa- dores da aprendizagem, lugares onde se encontram os objetos de conhecimento, a cidade, os caminhos etc. Locais que são ocupados pelos sujeitos, produ- zindo uma ambiência educativa. • os tempos são definidos a partir dos sujeitos e obje- tos de conhecimento envolvidos na aprendizagem. • os objetos de conhecimento estão no mundo, defi- nem-se numa equação que coloca em relação as po- tências e as competências dos diversos sujeitos en- volvidos. A apropriação ou reconstrução desses obje- tos pelos envolvidos se dá por meio de projetos que lançam, no futuro, um produto que realiza e comunica- o aprendizado de todos, pois “aprender é conhe- cer e intervir no seu meio” (Cidade Escola Aprendiz, 2006).- Estas ações — em sua capilaridade, respeito e valori- zação das diferenças — vêm realizando, embora desar- ticuladamente, os propósitos de diferentes políticas pú- blicas. Conjugam, em sua ação empírica, a intenção de educação, de cultura e de proteção social. Tornam-se ex- pressão da ação multisetorial. As ações socioeducativas vêm sendo realizadas em todo o país por organizações não-governamentais e por gover- nos municipais, com aporte financeiro federal ou estadu- al. Exemplos dessa prática são: a Jornada Ampliada ligada ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI– e o Programa Agente Jovem, o Programa Segundo Tempo do Ministério dos Esportes e atividades dos Pontos de Cultu- ra do Ministério da Cultura. Em todos esses exemplos, há o fortalecimento da sociabilidade, da convivência, do re- pertório cultural e informacional, da prática esportiva, do acesso e uso da tecnologia, da participação na vida públi- ca e cívica das comunidades em que vivem etc. Enfrentando a iniqüidade Nos últimos anos, a sociedade brasileira começou a en- xergar a educação integral como um caminho para garan- tir uma educação pública de qualidade, capaz de contri- buir para o desenvolvimento individual de cada criança, das comunidades e da sociedade como um todo. Para garantir as aprendizagens necessárias à vida, ao trabalho, à participação e à cidadania plena, é ne- cessário uma combinação de diferentes tempos e espa- ços, sempre definidos pelos objetos de conhecimento, os sujeitos e o contexto em que vivem. Quando se fala de educação integral, alguns aspec- tos e princípios precisam ser considerados: Para trabalhar com a perspectiva da educação integral, a ação pedagógica considera: todas as dimensões humanas; que todos os envolvidos são sujeitos da aprendizagem (adultos e crianças); os campos ético, estético e político como cenário e roteiro da aprendizagem. 85 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 • Dimensões humanas: a Educação Integral pretende captar a complexidade de uma pessoa em sua tota- lidade, com uma proposta de desenvolvimento que, ao mesmo tempo, é cognitivo, emotivo, espiritual e físico. • Ciclo de vida: não se trata mais de pensar que ape- nas a idade escolar é a única em que podemos apren- der. O aprendizado se dá ao longo da vida: crianças e adultos aprendem todo o tempo. • Satisfações humanas: a qualidade de vida das pes- soas é o centro da educação integral e, para isso, é preciso considerar as satisfações humanas: criação, proteção, afeto, compreensão, identidade, lazer-ócio, liberdade e participação. • Garantia dos direitos de educação: é necessário que a proposta educacional seja do conhecimento de to- dos e avaliada por todos (aceitabilidade), que todos possam se incluir num processo de aprendizagem (acessibilidade), que todas as diferenças sejam con- sideradas e influenciem a proposta (adaptabilidade) e que estejam instaladas as capacidades necessárias para execução da proposta (exeqüibilidade). • Integração das políticas: a educação integral exige uma visão transetorial, em que as políticas educati- va, econômica, social e cultural sejam formuladas e operadas de forma a garantir qualidade de vida. Para trabalhar com a perspectiva da educação inte- gral, a ação pedagógica considera: todas as dimensões humanas; que todos os envolvidos são sujeitos da apren- dizagem (adultos e crianças); os campos ético, estético e político como cenário e roteiro da aprendizagem. Parece importante adotarmos uma visão “integral e sistêmica do educativo, colocando no centro a aprendi- zagem e a cultura em sentido amplo”, como aponta a educadora Rosa Maria Torres. Assim, a educação integral é realizada por meio de uma equação político-pedagógica que, sustentada por esses princípios, articula sujeitos da aprendizagem, ob- jetos de conhecimento, tempos e espaços. Bibliografia AQUINO, J. G. Do cotidiano escolar: ensaios sobre a ética e seus avessos. São Paulo: Summus, 2000. ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. ________. A condição humana. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. 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São Paulo: Editora 34, 1978. GOUVEIA, M. J. A. Contextos expulsivos. In: GREGORI, M. F. (Coord.). Desenhos familiares: pesquisa sobre família de crianças e adolescentes em situação de rua. São Paulo: Alegro, 2000, p. 111-6. GOUVEIA, M. J. A. Imagens de “meninos de rua”: da enunciação ao evanescimento, 2003. Dissertação (Mestrado). São Paulo. Faculdade de Educação FE/USP. LA ROCCA, C. F. É tempo de recordar. In: BIANCHI, A. (Org.). Plantando Axé: uma proposta pedagógica. São Paulo: Cortez, 2000, p. 11-4. MARCÍLIO, M. L. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. PASSETI, E. (Coord.). Violentados: crianças, adolescentes e justiça. São Paulo: Imaginário, 1995. ROCHA, M. C. A experiência de educar na rua: des-cobrindo possibilidades de ser-no-mundo, 2000. Dissertação (Mestrado). USP. São Paulo. (Mimeo). TOBIAS, J. A. História da educação brasileira. 4. ed. São Paulo: Ibras, 1986. TORRES, R. M. Educação integral no enfrentamento de iniqüidades sociais, 2005, São Paulo. (Mimeo). WEREBE, M. J. G. 30 anos depois: grandezas e misérias do ensino no Brasil. São Paulo: Ática, 1994. 86 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Fazer da Vila Madalena, um dos bairros mais movimen- tados da cidade de São Paulo, uma escola a céu aberto. Essa era uma das missões que um grupo de psicólogos, advogados, arquitetos, jornalistas, psicopedagogos e pe- dagogos tinha no início do projeto bairro-escola, condu- zido pela ONG Cidade Escola Aprendiz. A idéia é que praças, parques, ateliês, becos, estúdios, oficinas, empresas, museus, teatros, cinemas, parques de diversão, centros esportivos, bibliotecas e livrarias fossem explorados como extensões das salas de aula, formando trilhas educativas a serem percorridas. O nome escolhido para batizar o projeto, Cidade Esco- la Aprendiz, traduziu a essência da ação: não deveriam existir muros entre o viver e o aprender, entre o ser e o fazer. Enfim, o objetivo era ampliar os espaços de apren- dizado na comunidade e ainda criar programas que es- timulassem os estudantes a se conhecerem e a intervi- rem em seu meio, desenvolver uma gestão de parcerias envolvendo comunidade, empresas e escolas e formar um centro de capacitação para auxiliar educadores e lí- deres sociais. As características da cidade selecionada também con- tribuíram para a implantação do projeto. São Paulo pode ser considerada um epicentro do terceiro setor, em que prosperam ações de responsabilidade social. Ela possui elementos de um laboratório a céu aberto, que combi- na capital humano com degradação urbana. Nela está a dualidade presente nos principais desafios brasileiros: de um lado, desemprego, violência e baixa escolarida- de; de outro, suas eventuais soluções. Apostamos que, nesse espaço, seria possível, em meio ao caos urbano, formar uma cidade que priorizasse, em todo os seus espaços, o aprendizado. Enfim, a preten- são era fazer da Vila Madalena uma vitrine em movimen- to, que revelasse uma forma diferente de ensino. O primeiro passo foi criar uma redação escola, a partir de uma homepage. A idéia era fazer da atividade um reforço à formação dos estudantes em leitura crítica da mídia. Para começar, leitura crítica da mídia. No início, o Aprendiz se alojou em um canto do labora- tório de informática do Colégio Bandeirantes, no bairro de Pinheiros, contíguo à Vila. Em 1998, uma antiga ofi- cina de cerâmica, na rua Belmiro Braga, tornou-se a nos- sa primeira sede. Tempos depois, nos mudamos para um galpão duas quadras acima de Belmiro Braga. Lá, alunos de institui- ções públicas e privadas construíam sites para entida- des sociais. Essa ação, além de ajudar no desenvolvi- mento de habilidades tecnológicas, fomentava o sen- timento de cidadania e o prazer de intervenção na co- munidade assistida. E assim, a essência do protagonis- mo ia se fortalecendo e, com ela, a nossa própria mis- são, na qual o agente da mudança é o próprio benefici- ário da mudança. Pensando nisso, criamos um projeto de “Design so- cial”. Dentro dele, que revelava uma nova concepção de ensino, o professor ocupava um lugar diferente no pro- cesso de aprendizagem. Ele atuava mais como um tutor a orientar os aprendizes. A “decoreba” da norma culta era deixada de lado e os estudantes partiam da leitura crítica da mídia e iam tecendo as ligações entre o mun- do e eles próprios. Nesse espírito empreendedor, ensi- navam e aprendiam juntos. Outro fator que o Design Social contemplava é a diversi- dade entre seus participantes. Queríamos unir alunos das mais diferentes origens e classes sociais para criar possi- bilidades de aprendizagens pela dessemelhança. * Gilberto Dimenstein é jornalista, membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo. Participa do Board do Programa de Direitos Humanos da Universidade de Columbia-EUA e criou a ONG “Cidade Escola Aprendiz”, em São Paulo. depoimento Tirar os muros entre viver, aprender, ser e fazer. Gilberto Dimenstein* 87 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Decidimos ir mais longe. Um novo galpão acolheu uma nova idéia: testar a educação pelas artes. E assim surgiu o ateliê de arte-educação, que recebeu o nome de “Escola da Rua”. A partir deste momento, as ações se pro- liferaram. Lançamos também o Projeto Sem Muros, que se baseava no antigo conto de João e Maria. Crianças e jovens deixavam pistas, rastros de mosaico nas calça- das, praças, muros e postes, como se fossem caminhos misteriosos a levar a algum tesouro. A união da arte e da comunicação se tornou ferra- menta útil no processo educacional e auxiliou os parti- cipantes a produzirem conhecimentos, a partir de seu ambiente. Contudo, chegamos a um ponto em que seria necessário misturar intervenção urbana com educação. Então, pensamos: se não existem recursos para dissemi- nar uma escola integral da qualidade, por que não ma- pear os potenciais educativos da comunidade e integrá- los cotidianamente à sala de aula? Conceitos como esses não são novidade. Sêneca, fi- lósofo romano, dizia: “Não se educa para a escola, mas para a vida”. O educador Anísio Teixeira, influenciado por John Dewey, seguia essa linha de pensamento e im- plementou no Brasil as escolas-parque. Interessado em unir o saber ao fazer e formar alu- nos para o trabalho e para a cidadania, Anísio propunha que os estudantes, espalhados em escola-classe (as sa- las de aulas), misturassem diversas atividades práticas. Daí parte o princípio de que experimentar é indissociá- vel do saber e sabemos porque experimentamos. O que não experimentamos, esquecemos – o que, aliás, está escrito em textos ancestrais dos árabes. Alunos que ensinam professores Toda essa filosofia que prega princípios pedagógicos diferentes é bastante discutida, mas a efetivação de tais propostas se torna de difícil execução nas escolas, em geral, e nas escolas públicas, em particular, nas quais os educadores tendem a ser desmotivados, sobrecarrega- dos, atrelados a um currículo defasado. Ou seja, esses professores não têm tempo nem estímulo para inovar. Identificando tais dificuldades, os projetos e idéias do Aprendiz percebem a necessidade de mesclar a esco- la desmotivada com a cidade acuada, romper a lógica do medo e manter as portas abertas. Fazendo essa análise, constatamos que estávamos fragmentados pelo bairro, espalhos em vários imóveis, todos ligados apenas por caminhos feitos de azulejos, como as migalhas deixadas por João e Maria. Faltava um ponto de encontro para reu- nir os educadores e a comunidade. Então, decidimos criar um Café. Com o plano, veio a idéia de transformar o terreno da frente em uma praça. As plantas deram um colorido todo especial ao espaço. O beco, antes lugar feio e sujo, deu lugar a uma sala de aula dos grafiteiros e, ao mesmo tempo, galeria de arte. Mais do que isso, tinha virado um símbolo – um lugar sem saída que apresentava uma saída. Brotava um grão na grande São Paulo. Uma espe- rança que transformou o ensinar. Se a Vila Madalena servia como showroom, a Belmiro Braga atuaria como a vitrine. Com a aglutinação dos projetos em torno do beco, as crianças ganharam uma equipe exclusiva de educadores comunitários. O espaço se tormou a própria personifica- ção da imagem da escola a céu aberto. Surgia assim a “Escola na Praça”, que resumia toda a nossa filosofia, mesclando escola, comunidade e família. Contudo, os progressos não escondiam a fragmenta- ção da Cidade Escola Aprendiz. Cada núcleo parecia uma estrutura independente. Percorríamos os passos que cri- ticávamos em uma instituição: o ensino fragmentado e disperso. Notamos que, se não agregássemos o concei- to de tecido social, combinando urbanismo e educação, estaríamos dificultando o nosso caminhar. Em 2002, apesar de o projeto ter alcançado grande vi- sibilidade, a nossa saúde financeira não seguia tal linha. Com pouco dinheiro e a paralisação dos programas pú- blicos que auxiliavam a nossa atividade, a situação co- meçou a se agravar. Para completar a fase negativa pela qual estávamos passando, o crack entrou no beco. Os traficantes nos en- caravam como inimigos a serem combatidos e a polícia, sem coordenação, não conseguia zelar por nossa segu- rança. Ficamos ainda mais vulneráveis. Contudo, esses complicadores não nos fizeram desis- tir. O Café seguia sempre cheio de pessoas interessantes e os jovens habitavam a praça como se fosse seu segun- do lar. Todo esse clima nos fazia sentir o hálito da utopia. Nas manhãs, idosos se reuniam no café para aprender a navegar na Internet com a ajuda dos adolescentes e, de quebra, aproveitavam para tomar seu desjejum. Tal- vez, se não fosse o programa, eles estivessem tranca- dos em casa, sem compartilhar com a comunidade suas histórias de vida. 88 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 89 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 O bairro-escola implica justamente isso. Ele vem para trazer a vida, com suas imprevisibilidades, dores e de- lícias para o cotidiano do aprendizado. Um belo exem- plo dessa didática é um grupo de alunos que aprendeu informática em nossas oficinas e causou uma revolução na escola onde estudavam. Os alunos descobriram que a instituição dispunha de equipamentos, mas eles não estavam sendo utilizados pelo simples motivo de que os professores, embaraçados, não admitiam a inaptidão para operá-los. Os “inconformáticos”, como se autoba- tizaram, assumiram o controle e logo começaram a dar aulas a seus educadores. Mas, ao mesmo tempo que ví- amos o sonho de Paulo Freire se tornando realidade – o aluno ensinando o professor – seguia-se uma frustração. Mudou a diretora e aquela “liberdade” foi abolida. A partir dessa experiência, percebemos que a ad- versidade gera oportunidade. Então decidimos cen- trar as energias no objetivo de erguer uma comunida- de de aprendizagem. Para tanto, investimos na con- quista de novos parceiros e na consolidação dos que já nos apoiavam. Em busca do pedagogo comunitário Buscamos parceiros nas redes municipal e estadual de educação para que pudéssemos trabalhar, durante o ho- rário de aula, com professores habilitados como capaci- tadores em projetos de arte e comunicação. Esses acor- dos permitiram que as escolas dos bairros, além de um quilômetro de onde estávamos situados, também parti- cipassem das ações. A Vila Madalena é, assim, apenas o pólo irradiador, pois essa gestão de potencialidades não exige constru- ção de prédios, espaços físicos, apenas a junção de pe- ças e a boa vontade para mover engrenagens. Representamos um processo em construção e, como tal, novas indagações surgiram: se o bairro-escola já en- volve uma operação complexa na Vila, onde somos uma liderança e moramos, como seria a implantação da ex- periência em outros bairros? A pergunta chegou em uma hora oportuna, já que encarávamos a educação como uma plantação em que vemos as sementes e nem sem- pre desfrutamos das árvores. Estávamos conscientes de que não poderíamos mudar rapidamente a mentalida- de dos professores – acostumados a esquemas antigos de ensino – e da comunidade, desacostumada à práti- ca do associativismo. Para tanto, começamos a estudar como seria a condi- ção ideal para a implementação do bairro-escola. A pri- meira exigência era dispor de uma liderança local, ca- paz de unir todos os membros em torno de uma propos- ta. Alguma pessoa ou instituição com um olhar educati- vo, preparada para fazer e manter as ligações para me- lhorar o aprendizado. E, diante de nossas experiências, percebemos que a pessoa que se encaixaria neste per- fil seria o diretor da escola, pois, quando ele consegue desempenhar o papel de líder, motiva e articula a comu- nidade, as redes de aprendizagem se estabelecem mais facilmente. Por isso, era importante a nossa intervenção junto ao poder público na formação de educadores, até mesmo diretores, em pedagogia comunitária. A escola do futuro terá de dispor, em seu organograma, da figura do pedagogo comunitário. E para auxiliar na organização de todos os projetos do bairro-escola, foi criada uma comissão que se reunia de tempos em tempos para um café da manhã. Durante os encontros, várias coordenadorias da subprefeitura (edu- cação, cultura, juventude, trabalho e saúde), delegados do orçamento participativo, professores, diretores das escolas, artesãos e ONGs participavam, colocando à dis- posição seu conhecimento e suas especialidades. Dessa maneira, os custos tornaram-se administráveis. Em 2004, já não era mais possível entrar na Vila Ma- dalena, por qualquer lugar, sem esbarrar numa inter- venção de arte. O ponto vital, para onde convergia toda a essência do Aprendiz, localiza-se em torno do conjun- to composto pelo beco e pela praça, deixando para bem longe os tempos sombrios daquele ambiente. 90 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 91 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 artigo Em busca do tempo de Ana Maria Cavaliere* aprender * Ana Maria Cavaliere é Professora de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A TEMPO REI / Gilberto Gil Tempo rei, ó, tempo rei, ó tempo rei, transformai as velhas formas do viver. Ensinai-me, ó pai, o que eu ainda não sei. Mãe, Senhora do Perpétuo, socorrei. O TEMPO / Sá de Miranda, 1481. Pede-me o tempo, de meu tempo a conta; e eu, para a conta, peço tempo ao tempo, pois quem gastou sem conta tanto tempo há que ter tempo para fazer conta. O tempo, no entanto, não quer ter em conta porque tal conta não se fez a tempo; bem quisera eu contar meu tempo em tempo se para contar tempo houvera conta! Que conta há de bastar a tanto tempo que tempo há de bastar a tanta conta... Se quem vive sem conta não tem tempo? Por isso estou sem tempo e sem ter conta, sobretudo que hei de dar conta do tempo quando chegar o tempo de dar conta. (Tradução do original em castelhano, por Heitor P. Fróes) s características dos sistemas escolares têm determi- nado, nas diferentes sociedades, o tipo de debate que se trava em torno do tempo de escola. Às vezes, esse tem- po é considerado excessivo e, outras, insuficiente. Qua- se sempre é criticado por seu referencial lógico-quanti- tativo e por submeter o tempo das crianças ao dos adul- tos, sendo um fator perturbador da relação pedagógica. 92 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 A partir de questionamentos quanto às formas padroni- zadas e impensadas de utilização desse tempo, buscam- se caminhos para as mudanças necessárias. Entre as discussões sobre o tempo escolar, está a da jornada integral que foi objeto de debate não apenas no Brasil, como também na Itália, nos anos 1970 (Catabrin- ni, 1997; Ragazzini, 1983), e na Espanha, um pouco mais tarde, na década de 1990 (Morales, 1993). No Brasil, o debate sobre a jornada integral eclodiu nos anos 1980, e esteve concentrado, principalmente, no Rio de Janeiro. O tema surgiu associado ao Programa dos CIEPs — implementado em duas gestões governamentais, respectivamente, nos períodos de 1983/86 e 1991/94 — que deixou em funcionamento 411 novas escolas de tem- po integral no estado (Ribeiro, 1995). Segundo dados de 2006 da Secretaria Estadual de Educação e da Secreta- ria de Educação do Município do Rio de Janeiro, o saldo, 12 anos após o fim do Programa, é de 264 CIEPs1 funcio- nando em horário integral. Além disso, a rede municipal tem 203 creches também em horário integral. O efeito da presença das escolas de tempo integral no sistema escolar do Rio de Janeiro aparece nas esta- tísticas do Censo Educacional/2004,2 em que se verifica que o estado possui o maior número de matrículas em turnos de duração de mais de cinco horas, correspon- dendo a 14,56% do total de matrículas. O Distrito Fede- ral segue de perto essa percentagem, com 13,01%. Nos demais estados, a porcentagem é bem menor: São Pau- lo com 5,82%, Minas Gerais com 1,99% e Rio Grande do Sul com 0,86%. O dado é um reflexo direto da existên- cia dessas escolas, visto que, em contrapartida, o estado do Rio de Janeiro apresenta um índice de matrículas em turnos, com duração de menos de quatro horas (2,36%), acima dos índices dos demais estados: Distrito Federal (0,65%); São Paulo (0,15%); Minas Gerais (0,84%) e Rio Grande do Sul (1,89%). A partir da promulgação da LDBEN/96, cujos artigos 34 e 87 prevêem a oferta de horário integral no ensino fundamental, alguns projetos e conseqüentes debates têm surgido em outros estados e municipalidades. A ex- periência do Rio de Janeiro tem propiciado investigações e reflexões que poderão contribuir com a discussão so- bre o tempo escolar no país, que agora parece tornar-se de interesse mais geral e de âmbito nacional. A abordagem do tema comporta diferentes vieses: desde aqueles voltados para aspectos quantitativos e regulatórios, eminentemente formais, àqueles de cunho psicológico, preocupados com os ritmos próprios da in- fância, ou sociológicos, voltados para a relação do tem- po de escola com a organização social mais geral. No que diz respeito ao estudo das organizações es- colares, pensar sobre o tempo de escola, isto é, sobre o que o instaura e suas implicações, pode ser um bom co- meço para que se criem bases sólidas às necessárias mu- danças, não apenas na quantidade do tempo de escola, como, principalmente, na lógica de sua utilização. Tempo de escola e organização social A organização social do tempo é um elemento que, simultaneamente, reflete e constitui as formas organi- zacionais mais amplas de uma dada sociedade. Dentre as formas de organização do tempo social, destaca-se o tempo de escola que, por ser a mais importante referên- cia para a vida das crianças e adolescentes, tornou-se, no mundo contemporâneo, um pilar para a organização tem- poral da vida em família e na sociedade em geral. Ao longo da história, o tempo de escola caminha em direção às situações de relativa harmonia com o tempo social e sofre lentas mudanças de médio e longo prazo em sua definição, a qual tende a ser compatibilizada com os níveis de urbanização, de eliminação do trabalho in- fantil, de regulamentação das relações de trabalho e de democratização das sociedades. O advento da obrigatoriedade escolar, a exigência ge- neralizada de se obter níveis mais altos de escolaridade, a profissionalização e autonomização do campo educa- cional e a padronização dos sistemas nacionais de en- sino produziram, por sua vez, mudanças marcantes na gestão do tempo dos indivíduos e instituições, confor- mando uma nova ordem do tempo social, da qual o tem- po de escola é componente fundamental. [...] o tempo de escola é função de diferentes interesses e forças que sobre ele atuam. [...] o ciclo de escolarização, nas sociedades contemporâneas, apresenta tendência universal de aumento, com o ingresso precoce e a permanência cada vez mais longa dos indivíduos no sistema escolar. 93 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Nas sociedades contemporâneas, além de ser, simul- taneamente, estruturante e estruturado pela organização social mais ampla do tempo, o tempo escolar tem outro elemento a ser ressaltado: o fato de que — por estar diri- gido às crianças e adolescentes, isto é, às idades de for- mação —, ele nos permite enxergar as expectativas, os projetos e as prioridades de um dado grupo social, cons- tituindo-se assim em mais um meio de compreensão da cultura e do ethos de uma sociedade. Em suas definições da prática, o tempo de escola é fun- ção de diferentes interesses e forças que sobre ele atuam. Essas forças têm as mais diversas naturezas e origens, como o tipo de cultura familiar predominante, o tipo de visão a respeito da formação geral da criança e do adoles- cente, o tipo de associação entre escola e políticas públi- cas de assistência ou de preparação para o trabalho. Al- gumas dessas forças estão diretamente relacionadas ao bem-estar das crianças, outras, às necessidades do Esta- do e da sociedade e outras, ainda, à rotina ou ao conforto dos adultos, sejam eles pais ou professores. A fim de identificar as diferentes dimensões do tem- po de escola, organizamos uma caracterização que en- volve três níveis diferentes e complementares. O primeiro, de caráter macroestrutural, é constituí- do pela duração do ciclo de escolarização, sua organi- zação em etapas e obrigatoriedade. Esse tempo, nas so- ciedades contemporâneas, apresenta tendência univer- sal de aumento, com o ingresso precoce e a permanên- cia cada vez mais longa dos indivíduos no sistema es- colar. No Brasil, o ensino fundamental foi ampliado, em 2006, de oito para nove anos de duração, antecipando- se para seis anos o ingresso obrigatório. O segundo nível, intermediário — parcialmente regula- do em âmbito macro, mas administrado pelos estabeleci- mentos escolares de acordo com suas especificidades —, é constituído pela duração e organização da jornada, da se- mana e do período letivo, e, no Brasil, também segue ten- dência de aumento progressivo. A partir da LDBEN/96, os dias letivos foram ampliados de 180 para 200, além da in- dicação de implantação do horário integral. O terceiro nível, microestrutural, é o da sala de aula, isto é, da dinâmica do tempo no trabalho do professor com seus alunos. Compreender o caráter relativo, contingente, do tem- po de escola significa, na verdade, compreender sua gê- nese histórica, muitas vezes obnubilada pelo fato de que os modelos escolares têm ultrapassado longos períodos de tempo com lentas transformações, terminando por se- rem encarados como elementos dados, isto é, naturais. Ademais, não há nada mais óbvio do que o tempo, e isso o torna pouco visível como objeto de estudo. No modelo escolar ocidental clássico, destaca-se, como sua característica básica, a organização acura- da e minuciosa do uso do tempo. Tudo na escola refe- re-se à regulação do tempo. Tudo nela controla e é con- trolado pelo tempo. Horários, calendários, planejamen- tos curtos e longos, prazos, tempos para a execução de tarefas, enfim, a administração do tempo compõe o cer- ne da vida escolar tal como ela se expandiu e triunfou. O bom cumprimento das prescrições relativas ao tempo constitui, em si mesmo, grande parte do sucesso esco- lar do aluno. A lógica de organização do tempo na escola é uma ló- gica que podemos classificar como monocrônica, isto é, cada coisa deve ser realizada em períodos predetermi- nados, bem definidos e sem que se tolere a simultanei- dade. Já a lógica policrônica – caracterizada pela possi- bilidade de se fazer várias coisas concomitantemente, pela interpenetração das ações, pela flexibilidade, sem um preestabelecimento rígido dos períodos — é banida organização do tempo escolar por ser considerada ine- ficaz para a aquisição da autodisciplina e para a conse- cução de objetivos pré-traçados. Uma das características das pedagogias que se pre- tendem inovadoras tem sido, desde finais do século XIX, o questionamento da lógica organizacional rigidamen- te monocrônica da escola e a proposição de uma racio- nalidade menos presa à formalidade cronológica e mais sensível aos ritmos psicológicos, biológicos e culturais dos indivíduos. Mas a realidade é que a instituição es- colar tem resistido às mudanças nessa direção, revelan- do o quanto está profundamente apoiada naquela racio- nalidade e a dificuldade que tem em incorporar um ou- tro tipo de organização. A escola e seu projeto de racionalização e controle do tempo está na base da própria constituição da con- cepção de infância, tal como a conhecemos hoje. Como mostrou Philippe Ariès (1981), em seu já clássico estu- do sobre a história da infância, a transformação de gran- de parte dos processos formativos de “aprendizagem es- pontânea” em “aprendizagem escolar” marcou também a passagem das sociedades tradicionais para as indus- triais ou modernas. O controle da idade — isto é, o regis- tro do tempo no próprio indivíduo —, a segregação entre 94 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 as “idades” da vida, o isolamento no tempo e espaço do aprendiz como condição da boa educação, que são ele- mentos generalizados pela expansão da escola, confor- maram a infância de longa duração. Segundo o autor, as classes de idade se organizam em torno de instituições e a especialização do sentimento de infância foi uma obra realizada, principalmente, pela escola, da mesma forma que a adolescência se distinguiu, mais adiante, já em fins do século XVIII, pelo alistamento militar. Entretanto, se a escola conforma a infância de lon- ga duração, não o faz de forma idêntica para todos. Por muito tempo, o mundo do trabalho, das classes popula- res, ignorou a divisão escolar das idades. Ainda segun- do Ariès, o aprofundamento da separação entre as ida- des foi mais evidente nas classes burguesas, justamen- te as mais influenciadas pela escola. Portanto, se é verdade que o tempo de escola é constitu- tivo da identidade moderna das crianças e dos adolescen- tes, definindo essas fases da vida, é verdade também que o modo de encará-lo apresenta diferenças entre as socie- dades e, também, internamente, em cada sociedade. Ne- las, são facilmente perceptíveis as variações nos níveis de adesão das diferentes classes e segmentos de classe em re- lação à escola e sua racionalidade organizacional. Por isso, lidar com o tempo de escola — ou seja, alterá-lo, reduzi-lo, ampliá-lo— não é mero acerto técnico, e sim uma ação com implicações político-culturais de grande alcance. Na prática, a organização do tempo escolar ultrapas- sa as questões de ensino e aprendizagem, isto é, da ins- trução escolar propriamente dita, e condiciona um es- pectro muito mais amplo da vida das crianças e adoles- centes. Os deslocamentos, a alimentação, o sono, o la- zer, a convivência familiar orbitam a organização tempo- ral da jornada escolar. Do ponto de vista político, as definições do tempo escolar podem sempre ser relacionadas a expectativas ou projetos de governo e de sociedade. Em geral, a mo- tivação para as mudanças do tempo de escola embute questões ideológicas, ainda que encobertas por deman- das de caráter pragmático. Ao longo da história, freqüentemente, quando se pre- tendeu fortalecer a direção pública ou estatal das socieda- des, planejou-se um aumento do papel da ação escolar na vida das crianças e adolescentes e, como conseqüência, um aumento do tempo de escola (Cavaliere,1996). Do século XX em diante, embora não se possa esta- belecer uma relação estável, biunívoca e necessária, en- tre mais tempo de escola e mais democracia, parece ter havido, até aqui, uma tendência nessa direção. No en- tanto, diferentes combinações já puderam ser percebi- das e estudadas. Kodron (1997), em estudo comparativo sobre os tempos escolares na Europa, mostra que, em al- gumas regiões da Alemanha, o encurtamento do tempo diário de permanência do aluno na escola foi uma me- dida que pretendeu a democratização do sistema esco- lar com o aliviamento das tarefas escolares, garantindo a inserção escolar de um maior número de alunos. Na Itália (Cattabrini,1997), ao contrário, a criação da esco- la de tempo pleno, nos anos 1980, teve o caráter demo- cratizante de buscar uma inserção mais efetiva de parte da população na vida escolar. A definição dessa relação entre o tempo de escola e o desenvolvimento democrático é função da própria gê- nese dos sistemas escolares, isto é, da maior ou menor base comunitária sob a qual foram estruturados, do ní- vel de diferenciação interna por grupos sociais ou dos formatos escolares tradicionalmente assumidos. É nas sociedades tardiamente escolarizadas que o sentido de- mocratizante da ampliação do tempo se estabelece com mais clareza. Isto porque a escolarização tardia, em ge- ral promovida pelo Estado, sem apoio em iniciativas co- munitárias já em curso, tende a ser uma escolarização minimalista, implantada com recursos parcos e modelos padronizados barateadores. Em suma, o sentido democrático da política de au- mento do tempo de escola aparece especialmente nos sistemas escolares mais recentes e menos estáveis, as- sim como a crítica a essa tendência surge nos países cujos sistemas têm forte estabilidade e tradição. Sobre essa crítica, observa-se um fenômeno recen- te que vem ocorrendo nos países desenvolvidos e mere- ce registro: são os movimentos de recusa à escola, nos moldes em que está estabelecida, sob a alegação de que ela submete e usurpa o tempo da infância e a liberda- de da família em relação à formação das crianças. Criti- ca-se fortemente a prática dos deveres de casa e o fato de que, enquanto o tempo de trabalho dos adultos vem sendo encurtado, o tempo de escola continua se pro- longando sem uma mudança na qualidade daquilo que ela oferece. O debate é visível na Alemanha e Suíça (Grun- der,1997), e também surgiu, recentemente, na França, nos debates em torno da tentativa frustrada de reorganização dos rythmes scolaires, promovida pela municipalidade de Paris em 2001 (Le Monde de L’Éducation, 2001). 95 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Importa ressaltar que, se de fato prevalece a tendên- cia inequívoca de crescimento do tempo de escola (Com- père, 1997) e uma relação histórica do fenômeno com a democratização social, não há qualquer essencialidade nessa relação, podendo-se encontrar, dependendo do contexto, significados diferentes e opostos. No caso brasileiro, o que poderia efetivamente colo- car a ampliação do tempo escolar a serviço da emanci- pação seria a compreensão dessa ampliação como con- dição para a incorporação de uma nova lógica de organi- zação do tempo: um tempo que propicie vivências multi- dimensionais, não comprimidas numa grade horária pa- dronizada e esterilizante. Dessa forma, certos tipos de experiências e saberes que normalmente não freqüen- tam as escolas — mas que são fundamentais tanto aos processos individuais quanto coletivos de emancipa- ção, ou seja, saberes e práticas normalmente presentes em contextos familiares ou privados — poderiam pene- trar com sucesso nas escolas. Por exemplo, a leitura, a pesquisa e a expressão escrita livres, a utilização da In- ternet, a apreciação de obras de arte, filmes, música, a prática de esportes, enfim, um conjunto de atividades que não fazem parte do cotidiano das escolas públicas brasileiras. A ausência dessas atividades não se deve apenas à carência de recursos, como também à falta de “afinida- de” da escola com elas. A organização policrônica do tempo é parte da construção dessa “afinidade”, trazen- do a possibilidade da escolha e o desenvolvimento da autonomia dos atores na administração de seus próprios objetivos e ritmos. Tempo de escola no Brasil: a experiência do Rio de Janeiro No Brasil, ainda estamos longe do fenômeno de recu- sa à escola aparecer com algum significado social efeti- vo. Somente agora o País se aproxima da universaliza- ção da escolarização e a questão da qualidade assume prioridade nos debates. Em relação à difusão da cultu- 96 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 ra escolar, sabemos o quanto ela pode variar em função da classe social e da região. Se, aparentemente, a população brasileira, hoje em sua maior parte urbanizada, dá sinais de uma já gene- ralizada adesão à escola, não é tão alto o patamar em que se encontra a interiorização dos valores e normas da escolarização. Constatamos, em pesquisa de campo em escolas de tempo integral do Rio de Janeiro (Cavaliere, 2002b), a forte falta de assiduidade, bem como o freqüente des- cumprimento dos horários escolares, em parte significa- tiva dos alunos, fato que tem preocupado professores e complicado o trabalho pedagógico. O fenômeno não é exclusivo dessas escolas, mas parece agravar-se nelas. Para além de problemas mais diretamente ligados às di- fíceis condições de vida em que se encontra grande par- te da população que acorre às escolas públicas, o fenô- meno pode revelar a persistência de formas tradicionais de organização social, especialmente as ligadas à dinâ- mica da vida familiar. Ou seja, pode significar uma rea- ção ao aumento da jornada escolar e do ano letivo, e seu impacto na vida das crianças e suas famílias. A observa- ção da demanda, nas escolas de tempo integral do Rio de Janeiro nos trouxe informações importantes que po- dem colaborar com a pretensão de se ampliar a jornada escolar em âmbito nacional. As peculiaridades da demanda Ao contrário do que ocorre nos países europeus, onde as crianças menores ficam menos tempo na escola, e esse tempo vai sendo progressivamente ampliado para as crianças maiores e para os adolescentes (Compè- re,1997), no Brasil, são as crianças menores que per- manecem mais tempo na escola. As creches, que aten- dem às crianças de zero a três anos, têm, em geral, tur- nos longos, e o perfil que traçamos, em 2001, das esco- las de horário integral do Rio de Janeiro, confirma essa tendência. Nos CIEPs da rede estadual, aproximadamen- te 40% das turmas em tempo integral eram de educação infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental (Cavalie- re e Coelho, 2002). Na rede do município do Rio de Ja- neiro, 29% das turmas de horário integral eram de Edu- cação Infantil (quatro e cinco anos) e 39% eram compos- tas pelos três anos do ciclo de alfabetização (seis a oito anos) (Cavaliere, 2002b), somando 68% do total das tur- mas em tempo integral. No Programa dos CIEPs, dentre as unidades escola- res de 5a a 8a série e também de ensino médio original- mente implantadas, poucas permaneceram atuando em horário integral ao final dos governos que as criaram. En- quanto isso, as unidades de Educação Infantil a 4a sé- rie, apesar de terem enfrentado inúmeras dificuldades, contabilizam já cerca de 20 anos de funcionamento com jornada integral. No município do Rio de Janeiro, onde é possível acom- panhar o percurso dessas escolas por ter havido continui- dade de funcionamento, é visível a transformação paulati- na de unidades de 5a a 8a série em unidades de educação infantil e séries iniciais ou, ao menos, o acréscimo dessas séries onde antes inexistiam, caracterizando uma espécie de “destino” associado ao tempo integral. Nessa mesma rede, a demanda por vagas em horá- rio integral na Educação Infantil é tão grande que levou a prefeitura a projetar 29 novos módulos anexos aos CIEPs, especialmente voltados para esse nível. Esse é um forte indício de que são as necessidades prementes dos pais em ter seus filhos menores protegidos enquanto traba- lham o principal motor da adesão à escola de tempo in- tegral. Nesse caso, são os interesses e necessidades da vida adulta exercendo seu papel no processo de defini- ção do tempo de escola das crianças. No que se refere aos CIEPs de 5a a 8a série, pode-se associar o fracasso da proposta de tempo integral para os adolescentes (em contrapartida ao sucesso do modelo para as crianças) à maior dificuldade em se projetar e re- alizar uma escola com jornada integral que seja capaz de satisfazer aos alunos dessa faixa etária. Na maior parte das vezes, além das aulas convencionais, poucas alter- nativas de atividades eram oferecidas, o que tornou a ro- tina maçante. Após um período inicial de intensa procura por essas escolas, com a formação de filas de espera em muitas delas, seguiu-se uma tendência ao esvaziamento. A forte procura revelou a expectativa reprimida por uma nova escola que, mais uma vez, foi frustrada. Como os indivíduos desse grupo etário são menos tu- teláveis, seus próprios interesses e seu nível de satisfa- ção exercem um papel relevante na permanência na es- cola. Pode-se ainda somar, aos motivos que levaram ao afastamento dos adolescentes das escolas de tempo in- tegral, formas culturais tradicionais, não apenas relacio- nadas ao trabalho infanto-juvenil (no sentido econômi- co-produtivo), como também aos diversos tipos de soli- dariedade familiar ou comunitária, que atribuem papéis 97 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 às crianças maiores e aos adolescentes que não se li- mitam ao papel de estudante. Os CIEPs de 5a a 8a série do Rio de Janeiro sucumbiram ao esvaziamento de ma- trículas e à pressão por vagas em tempo integral para as crianças menores. No exemplo anterior, o interesse mais explícito da esfera administrativa, no sentido de implan- tar o tempo integral em escolas de 5a a 8a série, foi sub- jugado por outros interesses — dos alunos e das famí- lias — envolvidos. Para compreender esses movimentos da demanda, é preciso considerar as forças que, em cada caso, sobre eles atuam. No Programa dos CIEPs, os interesses de go- verno, respaldados pela crítica da sociedade à baixa qua- lidade da escola então existente, representaram um for- te componente para a implantação da jornada integral, a ponto do Programa ter sido a mais forte marca da ges- tão governamental que o criou. Entretanto, como vimos, os diferentes interesses que intervêm na definição do tempo de escola sempre atuam uns sobre os outros, re- forçando-se ou anulando-se mutuamente. As peculiaridades culturais Pelo menos dois elementos de natureza antropológica entram em cena quando pensamos sobre o tempo de es- cola no Brasil: • o primeiro é um traço da cultura brasileira que con- siste na pouca segregação da criança em relação à vida adulta; a convivência entre crianças e adultos em eventos culturais e de lazer, familiares ou públi- cos, é grande; a quarentena, ou seja, o fechamento das crianças nos estabelecimentos escolares, não se deu sem resistências, ainda que nem sempre explíci- tas, especialmente quando a escolarização passou a alcançar as camadas populares. • o segundo elemento é o uso não rigoroso do tempo, isto é, um tipo de racionalização considerada precária- diante dos moldes das sociedades industrializadas desenvolvidas. Sobre a lógica de organização temporal na sociedade brasileira, não podemos deixar de considerar a forte pre- sença das culturas negras e indígenas na formação cultu- ral, especialmente das classes populares. Estudos antro- pológicos mostram que, nas práticas religiosas afro-brasi- leiras, ainda hoje é visível a diferença em relação aos usos do tempo na cultura ocidental capitalista. Segundo Pran- di (2001), no candomblé, por exemplo, é a atividade que No que se refere aos CIEPs de 5a a 8a série, pode- se associar o fracasso da proposta de tempo integral para os adolescentes (em contrapartida ao sucesso do modelo para as crianças) à maior dificuldade em se projetar e realizar uma escola com jornada integral que seja capaz de satisfazer aos alunos dessa faixa etária. Na maior parte das vezes, além das aulas convencionais, poucas alternativas de atividades eram oferecidas, o que tornou a rotina maçante. Após um período inicial de intensa procura por essas escolas, com a formação de filas de espera em muitas delas, seguiu-se uma tendência ao esvaziamento. 98 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 define o tempo e nunca o contrário. Dependendo de di- versos fatores, as atividades podem levar mais ou menos tempo e ser interrompidas caso se interponham outras ne- cessidades, e isso é perfeitamente aceitável e assimilável dentro de uma concepção cíclica do tempo. Nessa concepção — como tudo sempre se refaz, sem- pre retorna, e o novo, o inesperado, é justamente o inde- sejado — não há necessidade de se fazer uma rígida previ- são e nem de se viver com pressa. A experiência torna-se a chave dos saberes que são sempre os mesmos e não têm que ser permanentemente procurados ou inovados, numa espécie de “corrida” das gerações. Afirma o autor que “os afro-descendentes assimilaram o calendário e a contagem de tempo usados na sociedade brasileira, mas muitas remi- niscências da concepção africana podem ser encontradas no cotidiano dos candomblés” (Prandi, 2001, p. 47). Essa afirmação nos leva a pensar que determinadas formas arcaicas de organização social, que incluem não só outras lógicas de racionalização do tempo, como tam- bém de sociabilidade da infância, podem ainda estar su- tilmente presentes na cultura das classes populares que acorreram maciçamente à escola nas últimas quatro dé- cadas. Como nos lembra Bosi (1992), no Brasil, “o pro- cesso de aculturação luso-afro-americano ainda está lon- ge de ter-se completado”. No entanto, a visão ideológico-cultural hegemônica é a de que, à maior capacidade de sistematização e con- trole do tempo, corresponde um maior desenvolvimen- to civilizatório, cabendo, à escola, a introdução da crian- ça nos ritmos precisos da vida. Na situação brasileira, o uso pouco rígido do tempo pode ser visto como uma oportunidade de construção de um novo modelo de sua organização. Pois aqui, a co-habitação de tempos é mais evidente e tangível do que entre alguns povos mais sincronicamente modernizados do Primeiro Mundo (...) e certamente os seus descompassos e a sua polirritmia ferem os ouvidos afinados pelo som dos clarins e das trombetas evolucionistas. Por tudo isso, é preciso escutar a nossa música sem pressa nem preconceito. Com delicada atenção. É um concerto que traz um repertório de surpresas, é verdade, mas que, no seu desenrolar-se está constituindo a nossa identidade possível (Bosi, 1992, p. 32). Os efeitos escolares dos modelos culturais de utiliza- ção do tempo são grandes e penetrantes nas mais dife- rentes realidades. Sem precisar ir muito longe na histó- ria, inclusive na Europa, atual e sincrônica, estudos cons- tataram, por exemplo, a grande diferença de ritmos de trabalho entre estudantes espanhóis e alemães (Compè- re, 1997), ou seja, estudantes oriundos de duas culturas clássicas e constitutivas da sociedade ocidental. Mesmo lá, as dificuldades em relação a essas diferenças não são rapidamente ou facilmente superáveis, ainda quando se esteja convencido de que devam sê-lo. Por isso, é imprescindível a busca de referências na própria realidade cultural brasileira para a organização do tempo de escola, ainda mais se forem consideradas as críticas contemporâneas efetuadas à excessiva instru- mentalização do tempo. Esse hipercontrole das rotinas tem levado, paradoxalmente, a uma perda do controle dos indivíduos sobre seu próprio tempo e tem dado base, nos países desenvolvidos, aos já citados movimentos de recusa à escola. A exacerbação do controle estaria limi- tando uma série de experiências humanas que necessi- tam do ócio, da contemplação e de outras lógicas não monocrônicas ou seriadas de organização temporal. Ritmos e inovações Analisando o tempo tal como ele realmente se estabe- lece nas escolas públicas do Rio de Janeiro, pudemos ob- servar, com já relatamos, que, a despeito da vigência de um modelo convencional, sua prática é pouco rigorosa. Os horários, principalmente de entrada, nem sempre são cumpridos, em alguns casos, nem mesmo pelos professo- res. Principalmente no turno da manhã, muitos pais têm dificuldades para encaminhar as crianças à escola sem atraso. As faltas também são muito freqüentes, concen- trando-se principalmente nas segundas e sextas-feiras. Quanto ao ritmo consagrado ao trabalho na sala de aula, ele é, em geral, bastante lento e pouco sistemático. O ritmo lento em sala de aula associa-se tanto a pro- blemas de planejamento das ações didáticas quanto ao grande número de horas que os professores passam em contato direto com os alunos. Nas escolas municipais de tempo integral que investigamos em 2001, esse tempo era de cerca de oito horas e incluía o almoço, realizado em conjunto com as crianças. O profissional diminui seu ritmo, a fim de controlar o gasto de energia para que pos- sa vencer toda a jornada (Cavaliere, 2002a). Em sua fase de implantação, o Programa dos CIEPs tentou criar uma nova estruturação das atividades diárias. Não apenas a jornada integral, como também a 99 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 disposição das atividades ao longo dela foram alvo de discussão e mudanças. Como vimos, o tempo da insti- tuição escolar é tradicionalmente um tempo monocrôni- co e serial, sendo as tarefas agrupadas por sua natureza, sem misturas e de acordo com a hierarquia de valores que as enquadra. Na primeira fase do Programa, iniciada em 1983, essa lógica não chegou a ser questionada. As aulas convencionais eram agrupadas em uma parte do dia, de preferência pela manhã, e as atividades de ar- tes, educação física, biblioteca, música, animação cultu- ral etc. agrupadas na outra parte do dia, de preferência e, sempre que possível, à tarde. O modelo, entretanto, mos- trou-se ineficaz diante do objetivo de valorizar as ativida- des não convencionalmente escolares. Já na segunda fase do Programa, iniciada em 1991, tentou-se implantar uma estrutura aproximativamente policrônica, em que as atividades seriam entremeadas no tempo, independentemente de sua natureza mais ou menos sistemática. Pretendia-se, com essa nova lógica organizacional, favorecer o encontro interdisciplinar, bem como evitar a valoração prévia entre as diversas discipli- nas e atividades. Um horário de aula de matemática po- dia ser seguido de uma atividade promovida pela ani- mação cultural, que, por sua vez, podia prosseguir num horário de biblioteca ou numa aula de língua portugue- sa. Essas atividades poderiam, em função de um projeto elaborado, estar integradas, rompendo a rigidez da pró- pria concepção de aula. Tal sistema, entretanto, exigia um complexo padrão de organização do trabalho pedagógico, bem como das dinâmicas de deslocamentos e uso dos espaços. A ine- xistência de recursos compatíveis provocou uma rotina escolar conturbada e muito fragmentada, demonstrando 100 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 que a proposta só poderia obter sucesso em condições muito diferentes das que existiam, tanto nas práticas de organização e planejamento docente quanto na propor- ção numérica entre alunos e profissionais da escola. A experiência dos CIEPs mostrou que, para a constru- ção de uma organização do tempo escolar mais flexível, menos presa aos rigores das rotinas burocráticas esva- ziadas, necessita-se, ao contrário do que possa parecer a primeira vista, de um nível de organização muito mais desenvolvido. Isso inclui um corpo de profissionais que seja capaz de organizar o trabalho pedagógico de forma consciente, do ponto de vista político-filosófico, e com- plexa, do ponto de vista técnico-pedagógico. Tempo de escola e emancipação O tempo é um elemento fundamental para a compreen- são não apenas dos processos civilizatórios, num sen- tido mais amplo, como também dos processos de cria- ção, acumulação e distribuição de riquezas materiais e simbólicas nas sociedades. Na teoria marxista, ele está presente na determinação do valor da mercadoria, que é função do tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção e, também, na possibilidade de criação da mais-valia, ou seja, de apropriação do tempo exce- dente convertido em valor. Em Bourdieu, o tempo apa- rece na formulação da noção de capital cultural, sendo elemento imprescindível ao seu processo de incorpora- ção. Nos dois casos, o tempo serve como elemento de medida para a compreensão de estruturas e representa- ções sociais complexas. O estudo do tempo, em sua expressão social, pre- tende compreender, entre outras coisas, as formas pe- las quais essa dimensão, de tão difícil descrição e tão complexa aproximação teórica, é posta a serviço tanto do incremento quanto do enfraquecimento das desigual- dades sociais. A complexidade dessa abordagem deve- se ao fato de que, assim como o tempo constitui uma forma de relação e não um fluxo objetivo (Elias, 1998), a categoria tempo social não pode ser considerada em 101 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 sua objetividade ou substancialidade. O tempo social é constituído de um conjunto de relações entre categorias que compõem um determinado contexto, no nosso caso, o contexto escolar. Se quisermos imaginar um tipo de vivência na esfe- ra pública relativa ao acesso e usufruto de bens simbóli- cos, que possa gerar processos formativos que rompam as inércias da estrutura social, o tempo em que o indiví- duo está sob a ação da instituição tem que ser não ape- nas ampliado ou intensificado, mas qualitativamente transformado. Um tempo de escola organizado de forma convencio- nal e meramente duplicado em horas é desnecessário e ineficaz. A proposta de ampliação do tempo diário de es- cola só faz sentido — especialmente na sociedade bra- sileira, dadas as peculiaridades culturais já apontadas — se trouxer uma reorganização inteligente desse tem- po e se levar em conta essas peculiaridades. A forte presença dos esportes, das artes e de ativida- des culturais na escola exige uma organização flexível do tempo, pois essas atividades constantemente invadem os limites dos horários rigidamente determinados. Orga- nização flexível, aproximativamente policrônica, que não se confunde com falta de clareza quanto aos objetivos, mas que é necessária à autonomia, ao pensamento e à ação independente. Estas últimas precisam de um tempo pessoal, não linear e não inteiramente previsível. A rigo- rosa e minudente organização das horas na escola não deixa oportunidades à invenção e à tentativa, pois essas trazem sempre o risco da “perda” do tempo. Não se trata de imaginar uma escola sem horários ou re- gras, e sim de recriar esses horários e regras em função de um projeto mais ambicioso do ponto de vista das oportuni- dades formativas que ali os indivíduos possam encontrar. A ampliação da jornada escolar atua e tem efeitos em uma esfera diferente da ampliação longitudinal do tempo de escolarização dos indivíduos. Essa última, por si só, não altera as posições relativas dos indivíduos na sociedade. A escolarização torna-se de longa duração, mas os valo- res simbólicos dos níveis de ensino diminuem na mesma proporção. Já a ampliação e reorganização da jornada es- colar — que, com muito mais força, atinge os dogmas da vida escolar e seus moldes de formalização — traz desafios ao nível microssocial, no qual se desenvolvem processos de produção cultural que, mesmo balizados pela visão de mundo dominante, muitas vezes a subvertem. Isso localiza as potencialidades transformadoras da instituição escolar em sua experiência vivida, em seus processos culturais internos, entre os quais, a experi- ência de uma vivência coletiva intensificada pela jorna- da integral e por uma outra racionalidade organizacio- nal do tempo. A escola é um equipamento social por de- mais complexo e importante para que seja conduzido por inércias e burocracias estéreis. Ainda que dentro de cer- tos limites, parece-nos possível repensar um seu apro- veitamento que seja mais intensivo e fecundo do ponto de vista civilizatório. Referências Bibliográficas ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 1981. BOSI, A. O tempo e os tempos. In: NOVAES, A. (Org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras,1992. CATTABRINI, U. L’Ecole du tempo pieno en Italie: genèse, débats et résultats. In: Compère M. M. Histoire du temps scolaire en Europe. Paris: Éditions Économica/INRP, 1997, p. 313-342. CAVALIERE, A. M. Escolas públicas de tempo integral: uma idéia forte, uma ex- periência frágil. In: CAVALIERE, A. M. e COELHO, L. M. C. Educação brasileira e(m) tempo integral. Petrópolis: Vozes, 2002a, p. 93-111. CAVALIERE, A. M. Relatório de pesquisa Escolas públicas de tempo integral: análise de uma experiência escolar. UFRJ/FAPERJ, 2002b. CAVALIERE, A. M. 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MEC/INEP/SEEC. 102 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Uma das decisões mais difíceis para as famílias de clas­­- se­­­­­ média, nos últimos anos, tem sido matricular os filhos em uma escola pública, principalmente para aquelas que acreditam na necessidade de oferecer ensino de qualida- de para que os filhos “tenham chance” de entrar qualifi- cados no mercado e construir vidas melhores. No entan- to, apesar de difícil, essa é uma decisão que está sendo tomada por um número cada vez maior de pais que, por um motivo ou outro, não conseguem mais bancar os cus- tos do ensino privado e batem às portas da escola pú- blica, com dor no coração e entregando o futuro de seus filhos ao Estado. Esse foi o caminho que me levou até a porta da Escola Estadual Prof. Antônio Alves Cruz para matricular minha filha mais nova, no terceiro ano do en- sino médio, em 2004. O Alves Cruz é uma escola com história. Tem entre seus ex-alunos alguns bem-sucedidos empresários, mé- dicos e executivos, que hoje atuam em uma ONG chama- da Projeto Fênix, que auxilia em programas na escola. Mas isso eu só vim a saber algum tempo depois de fazer a matrícula. O que me levou a escolher o Alves Cruz não foi apenas a sua proximidade com a minha casa, como também a sua localização em uma belíssima praça, ao lado da avenida Heitor Penteado, no Jardim das Bandei- ras, um dos bairros mais nobres de São Paulo. Até ali, eu ainda esperava que a escola, por osmose, pudesse ab- sorver alguma coisa da classe média que a rodeia. Os protestos da minha filha ecoaram em minha ca- beça e, de alguma maneira, era preciso encontrar meios para aplacar a culpa que se espalhava dentro de mim. A senha foi um bilhete da escola convocando os pais para uma reunião na qual seria eleita a nova diretoria da As- sociação de Pais e Mestres. No dia, com o melhor espí- rito de cidadania em punho, rumei para a escola, acom- panhado de minha esposa, psicopedagoga. Afinal, pen- sava eu, sou fruto da escola pública. Primário, ginásio, colégio e universidade à custa do contribuinte. Ora, era hora de devolver um pouco do que recebera, naquela época, com boa qualidade. Este foi o início de uma experiência de quase dois anos como diretor executivo — equivalente a presidente — da Associação de Pais e Mestres da Escola Estadual Profes- sor Antônio Alves Cruz. E, também, o despertar do interes- se sobre a atuação dos pais na escola publica, como ela acontece e, principalmente, por que não acontece. O debate sobre educação integral deve, também, ser enriquecido com o caráter e a qualidade da participação dos pais de alunos, dos professores, de organizações da sociedade civil e dos próprios alunos na gestão das es- colas públicas. A lei já determina algumas instâncias de participação institucional: a APM, o Grêmio Estudantil e o Conselho de Escola. Essas instâncias decisórias e de- liberativas devem existir em todas as escolas públicas do Brasil. Entretanto, não basta a lei. Boicote institucional Um dos obstáculos à participação da comunidade na escola é o despreparo da estrutura do Estado, incluído diretores e professores, em acolher e aceitar essa parti- cipação. É vista mais como ingerência do que como con- tribuição. E os conflitos são permanentes: com o diretor, por conta das prioridades de gestão; com os professo- res, por conta de o Conselho da Escola ter a prerrogativa de discutir e votar o projeto pedagógico. Portanto, o boicote vem institucionalmente. Em maior ou menor grau, os diretores não demonstram boa vonta- de em relação a uma APM ativa. No caso do Alves Cruz, a primeira impressão foi horrível. No dia da eleição, convo- * Adalberto Wodianer Marcondes é jornalista, diretor e editor da agência de notícias Envolverde e foi presidente da Associação de Pais e Mestres da Escola Estadual Profo Antonio Alves Cruz durante dois anos. Coordena o Núcleo de Comunicação do Cenpec. depoimento A classe média vai para a escola pública Adalberto Wodianer Marcondes* 103 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 cada com atraso de quase um ano, poucos pais se digna- ram ou puderam sair de suas rotinas para ir eleger uma APM. Afinal, para que serve uma APM? Pouco mais de meia dúzia de pessoas esperou por mais de uma hora que o diretor aparecesse para fazer as honras da casa e explicar o que, afinal, estávamos fazendo lá. Depois de 15 minutos, nós já sabíamos que a APM era um estorvo para a gestão da escola, na opinião daquele diretor (e, descobri depois, de muitos outros). “Vamos apenas fazer a ata, dizendo que a eleição aconteceu, e depois eu arranjo os nomes para compor a diretoria da APM”, propôs o diretor para aquela meia dúzia de pais que esperavam estar ali cumprindo algum viés de cidadania. Foi a indignidade da proposta que se encarregou de mobilizar os pais para tentar realizar uma eleição representativa e democrática. Conseguimos reu- nir cerca de 50 pais, uma semana depois, em uma escola com 700 alunos. De qualquer forma, foi muito mais repre- sentativo do que a meia dúzia de uma semana antes. Desses dois anos de experiências boas com os alu- nos e muito frustrantes com a gestão do ensino público, veio-me a constatação de que não existem saídas para a educação sem o acolhimento real da família e da comu- nidade na escola. Essa participação não pode ser conce- bida apenas como “mão-de-obra barata” para mutirões de limpeza, de pintura, de jardinagem e outros. Deve-se promover o “empoderamento” para a gestão efetiva das unidades escolares, com a construção democrática das instâncias deliberativas e gestoras e, principalmente, o preparo dos delegados de ensino, diretores e professo- res para que não se sintam violentados em seus direi- tos e atividades. O antagonismo que se forma quando existe a partici- pação da comunidade é fruto, principalmente, de desin- formação de lado a lado e da incapacidade de se fazer o gerenciamento dos conflitos, principalmente de inte- resses. O diretor deve dividir as decisões de gestão, os professores precisam seguir um projeto pedagógico de- 104 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 cidido democraticamente e os pais têm de se responsa- bilizar pela qualidade da escola e do ensino oferecido a seus filhos. É muito fácil falar em democracia quando o único gesto necessário é usar o Título de Eleitor a cada quatro anos para eleger representantes e, depois, sentar-se so- bre a opinião de que as coisas públicas são inefi­cientes por definição. A educação, por meio da escola pública, é talvez a mais importante presença do Estado na so- ciedade, certamente, mais do que a polícia e o exérci- to. Está em todas as comunidades e precisa delas para cumprir seu papel de construção do futuro e da cidada- nia de milhões de jovens. Delegamos não ao Estado, e sim a uma burocracia despreparada e descomprometida, a gestão da construção de um futuro alternativo, quan- do a lei oferece os caminhos para que a sociedade­ assu- ma suas responsabilidades na gestão cotidiana do en- sino público e utilize adequadas ferramentas para que a boa qualidade seja um fato, e não apenas um desejo, na escola pública. Mas a estruturação dessa participação, que permiti- rá a construção da integralidade no ensino, tem de ser inclusiva e estar em consonância com o querer de cada uma das múltiplas partes envolvidas. Esse querer exis- te no discurso oficial, na letra da lei, na vontade de al- gumas comunidades e pode ser um grande aliado dos gestores e professores. A pressão à qual estão expostos esses profissionais em um duro cotidiano de problemas e riscos pode ser minimizada com a inclusão da família e da comunidade na busca de soluções. O olhar da família sobre a escola pública é, em grande parte, de desesperança. A construção das pontes neces- sárias para que as APMs e os Conselhos de Escola consi- gam assumir as responsabilidades para as quais foram idealizados é um trabalho árduo e não terá sucesso rá- pido, nem em todas as comunidades ao mesmo tempo. Mas os espíritos precisam se desarmar. Nem a educação é somente uma obrigação do Estado, nem a família é sim- plesmente mão-de-obra barata para mutirões. As estruturas concebidas pelo Estado para a partici- pação da comunidade na escola são esquizofrênicas. Por um lado, impedem a escola de funcionar sem qualquer presença comunitária, porque algumas verbas somente podem ser utilizadas pela APM. De outro lado, não ofe- recem apoio institucional para o fortalecimento da par- ticipação da comunidade nas APM. 105 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 O que é uma APM? APM — Associação de Pais e Mestres, e similares — pessoa jurídica de direito privado, é um órgão de representação dos pais e profissionais do esta- belecimento, não tendo caráter político partidário, religioso, racial e nem fins lucrativos. Quais são seus objetivos? Integrar a comunidade no contexto escolar, pro- movendo encontros de pais para refletirem sobre a política educacional vigente, visando sempre a realidade dessa mesma comunidade. Representar os reais interesses da comunidade e dos pais de alunos junto à Direção do estabeleci- mento de ensino, contribuindo com sugestões para adoção de medidas que se julgarem necessárias, respeitando as decisões tomadas pelo Conselho Escolar. Colaborar para o sucesso de ações previstas no Projeto Pedagógico do estabelecimento de ensino, voltadas para a assistência ao educando, ao apri- moramento do ensino e para a integração família – escola – comunidade. Discutir, colaborar e decidir sobre as ações para a assistência ao educando, o aprimoramento do ensino e para a integração família – escola – comunidade. Promover o entrosamento entre os pais, alunos, professores e membros da comunidade, através de atividades socioeducativas, culturais e desportivas, de comum acordo com a Direção do estabelecimento de ensino e aprovação do Conselho Escolar. Contribuir para a melhoria e conservação do aparelhamento do estabelecimento escolar, sempre dentro de critérios de prioridade, sendo as condições dos educandos fator de máxima prioridade. Promover palestras, conferências e círculos de estudos, envolvendo pais e professores, a partir de necessidades apontadas por esses segmentos. A realidade das escolas Esse texto, distribuído pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná, mostra de uma forma empírica e ideal o que seria uma Associação de Pais e Mestres. Muitas vezes, talvez na maioria, a realidade é que a APM é um instrumen- to manipulado pela direção da escola para atender a seus objetivos próprios. É desestimulada a realizar qualquer ati- vidade dentro da escola para que sua gestão se desgaste e termine no abandono da maioria dos mandatos de APM. O cotidiano das relações entre pais, diretores e pro- fessores é muito conflituoso e quem perde são os alu- nos. Esse conflito existe principalmente porque as inter- faces são de cobrança de parte a parte. Pais acusam pro- fessores de faltar muito, diretores acusam pais de omis- são e ingerência, a assim vai a cascata que deságua em alunos indisciplinados e desinteressados. Quando a comunidade se mobiliza e aceita assumir responsabilidades em relação à escola descobre que o Estado não está preparado para acolher essa participa- ção. Não existem instrumentos de apoio à atuação da fa- mília e da comunidade na escola. Não há a quem recor- rer para a construção dessa participação; as delegacias de ensino não são capazes de absorver as demandas da sociedade engajada e as secretarias de educação ape- nas informam a letra da lei. Facilitaria muito o trabalho de todos — pais, diretores, professores e alunos — se existisse alguma instância de apoio às APMs, aos Con- selhos de Escola e aos Grêmios Estudantis. O Estado, como gestor e financiador da Educação, tem a capacidade de oferecer o suporte necessário, com a formação e capacitação para todas as partes envolvi- das nessa gestão integral da escola pública. Não basta a lei, é preciso garantir a transferência e o intercâmbio de experiências e conhecimento, para que as boas prá- ticas possam ganhar amplitude e eco. A integralidade do processo educativo precisa que todos os envolvidos busquem a integração de propósi- tos e a negociação de seus conflitos. Enxergar a escola como um campo neutro, onde apenas os grandes ideais da educação devem florescer, é ingenuidade. A escola é mais um dos lugares onde os conflitos da sociedade de manifestam, onde o corporativismo dos professores se choca com as cobranças de pais e alunos, onde os con- flitos da família são jogados nas costas do Estado e onde a sociedade, por mais difícil que seja compreender, deve depositar suas esperanças de futuro. 106 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 M 107 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Educação não formal, jogo e brincadeira. I. Os Parques Infantis na gestão Mário de Andrade – um breve estudo sobre educação não formal na gestão pública. Escola! Alto! Pararráaaa... Não prestou! Escola!... ário de Andrade tinha uma idéia muito crítica em relação ao ensino formal e isso pode ser percebido em vários de seus poemas. Sua opinião sobre o sistema de ensi- no era bem ácida: ...o que há talvez de mais admirável na pedagogia contemporânea é o seu caráter, por assim dizer, antipedagógio; justamente o engurgitamento da massa mais oculta de estudantes, nivelando- os à dantes melancólica elite professoral, pelo respeito às suas qualidades tendências próprias, de massa e de sombra. Quando foi diretor de Cultura, Educação e Recrea- ção da Prefeitura de São Paulo, entre 1935 e 1938, teve a oportunidade de apresentar uma outra proposta peda- gógica, uma pedagogia infantil macunaímica. Ele estava à procura da identidade nacional (como vimos nas fugas espetaculares de Macunaíma) e buscava pontes para um Brasil novo. Encontrou, nos Parques Infantis, a ferramen- ta para formar pessoas livres. O Parque Infantil foi inaugurado antes da gestão Mário de Andrade, no parque Dom Pedro, em 1929, e era desti- nado a atender crianças de famílias operárias. No entan- to, foi a partir de 1935 que eles se transformaram em uma original experiência educacional para a época. Diferen- te de uma escola formal – as escolas públicas regula- res eram de responsabilidade dos governos estaduais e não das prefeituras –, as crianças poderiam freqüentá-la M ARTIGO Célio Turino* * Célio Turino é historiador e administrador de Cultura e Lazer. Atual- mente, é Secretário de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura e coordena o programa Cultura Viva / Pontos de Cultura. É autor do livro Na trilha de Macunaíma – ócio e trabalho na cidade; Ed. Senac/SP 108 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 livremente, em seu tempo de lazer após as aulas obri- gatórias. Entre 1935 e 1943, São Paulo abriu seis novos Parques Infantis inspirados nesse modelo. O modelo era o de uma praça pública cercada, com atividades orientadas e ampla área livre. Havia uma rua. Uma rua concebida como um espaço de convivên- cia e aprendizado, onde o controle social era mais flexí- vel, mais distante dos olhares dos pais. O Parque Infan- til era um ponto de encontro e convivência para as crian- ças, um permanente “Recreio”. Ana Lúcia Goulart, professora da faculdade de edu- cação da Unicamp, fez sua tese de doutoramento sobre essa experiência e aqui recomendamos sua leitura. Ela constata que: Embora não existisse currículo por disciplinas, e nem uma preocu- pação em alfabetizar ou transmitir conhecimentos escolares, não podemos negar que os fundamentos do “ensino de História” ade- quados à faixa etária em questão estavam sendo desenvolvidos. O Parque Infantil estava muito mais voltado para o conhecimento artístico e a produção cultural. De fato, as crianças brincavam o dia todo, muitas vezes eram brincadeiras orientadas e tantas outras propiciavam, através do lúdico, reviver as tradições nacionais, manifestas artisticamente através do desenho, da dança etc...1 Iam ao Parque Infantil, crianças com até 12 anos e seu dia era centrado nos jogos, brincadeiras e folclore brasi- leiro. Ali, elas passavam a maior parte do tempo brincan- do e usufruindo o espaço externo, muito mais estimulan- te que as salas e áreas internas. Dessa forma, aconteciam uns aprendizados mais espontâneos, vinculados à vonta- de de brincar. Uma outra diferença em relação ao ensino formal era com a preocupação de impor produtividade e ritmo ao aprendizado, para que crianças de diversas fai- xas etárias brincassem e aprendessem, juntas. Em um de seus despachos administrativos, Mário de Andrade, faz a seguinte recomendação: A criança aprende a sua roda em casa ou na rua e vai encontrá-la na escola com modificações de palavras e deformações de sen- tido. Fica-lhes assim a atenção chamada justo para as palavras e as idéias possivelmente imoralizadoras; cria-se-lhes um fundo de malícia e ao mesmo tempo de hipocrisia, porventura mais preju- dicial do que as próprias canções. (A marujada) Era o aprender brincando, colocado no próprio uni- verso infantil, em que o educador tinha o papel de orien- tador, estimulador de atividades elaboradas pelas pró- prias crianças. O documento da Divisão de Recreação do Departamento de Cultura, em 1937, fazia a seguinte ava- liação das atividades dos Parques: A educação física, os jogos, a música, o canto, o bailado, a bibliote- ca e os festivais resumem as atividades mais comuns no programa de recreação. A assistência médica, a distribuição do copo de leite (140 ml) e as frutas têm trazido real proveito aos pequenos anêmicos e desnutridos. Os serviços de assistência, educação e recreação vêm produzindo, assim, os resultados previstos. A freqüência aumenta de ano para ano, sendo que, em 1936, os três Parques acusaram entradas num total de 782.294.2 O Departamento de Cultura e Recreação está cuidando da constru- ção de Parques Infantis em todos os bairros da cidade. Dess’arte, as crianças paulistanas terão logradouro público nos quais, pelos mais modernos princípios da recreação, se visará à formação da sociedade de amanhã, baseada no fortalecimento constante da consciência nacional e dos ideais da solidariedade humana. E essas atividades estavam baseadas em um con- junto de considerações formalizadas no Ato Municipal de número 767, do Departamento de Cultura, publicado- em 1936. Considerando.... ...que as forças morais e espirituais de uma Nação dependem, em parte, da maneira pela qual são aproveitadas pelos cidadãos, em suas horas de descanso, e que é por isso necessário despertar, nas novas gerações, o gosto e criar o hábito de empregar seus lazeres em atividades saudáveis de grande alcance moral e higiênico; ...que as atividades lúdicas exercem uma função importante no processo educativo e social, podendo considerar-se os grupos de jogos como os construtores essenciais da vida social, e a fonte dos primeiros ideais e impulsos sociais, como solidariedade, a comunicabilidade, a cooperação; ...considerando que as praças de jogos para crianças, organizadas como meios de preservação social e educação sanitária, têm con- tribuído eficazmente, em toda parte, para a educação higiênica e social das crianças, proporcionando-lhes oportunidades e meios de recreação ao ar livre, estreitando o convívio de crianças de todas as classes sociais; ...que os Parques de recreio e de jogos inspirados nesse ideal de promover o bem-estar da infância que a desenvolve freqüentemen- te em más condições higiênicas e morais, constituem, sobretudo 109 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 em bairros pobres, um meio poderoso de derivar as crianças de focos de maus hábitos, vícios e criminalidade para ambientes sau- dáveis e atraentes, reservados aos seus divertimentos e exercícios, sob o controle dos poderes públicos; ...que nas cidades industriais como São Paulo, em pleno cresci- mento, a densidade da população, a valorização crescente dos terrenos, o movimento cada vez mais intenso nas vias públicas e as construções de casas apartamentos e de habitações coletivas concorrem para limitar, cada vez mais, senão subtrair às crianças, espaços ao ar livre, pátios, terreiros e jardins de que necessitam para seus jogos, exercícios e divertimentos. Selecionamos apenas as mais expressivas, de um conjunto de considerações bastante coerente com a tra- jetória macunaímica de um herói que vai descobrindo o seu caráter nas fugas e no enfrentamento ao gigante Piai- mã. Acima de tudo, é uma busca pelo respeito à capaci- dade criadora do ser humano. E, ao estender esse res- peito à criatividade das crianças, estamos, na verdade, aprendendo a não sufocar a nossa própria criatividade – ao menos o que sobrou dela. Este era o ideal do Parque Infantil: recuperar – ou dar vazão – à cultura das crianças e, ao fazer isso, “...nos transformar de especulativos em especuladores, não esquecendo de mudarmos para uma atitude interessa- da diante da vida contemporânea, participando do ami- lhoramento político-social do homem, enfim, marchan- do com as multidões”. Era o Mário de Andrade sonhador e idealista que falava na condição de gestor público, fa- zendo com que os atos administrativos da Prefeitura de São Paulo da época também incorporassem uma explí- cita preocupação com o brincar: [...] c)... orientar as atividades recreativas das crianças e velar sobre elas sem lhes perturbar ou ameaçar a liberdade e espontaneidade nos jogos que forem admitidos d) ensinar a prática dos jogos infantis, participando com as crianças nas atividades lúdicas e educativas (Ato 767; art. 9). E essas preocupações, expressaram-se em um con- junto de atribuições do Parque Infantil, como podemos perceber no Ato de número 861, art. 49: Cabe ao Parque Infantil... ... propagar a prática de brinquedos e jogos nacionais, cuja tradição as crianças já perderam ou tendem dia-a-dia a perder; ... promover prática de todos os jogos que, pela experiência uni- versal, forem dignos de serem incorporados ao patrimônio dos inspirados nas tradições locais e nacionais; ... promover, com a colaboração do corpo docente das instituições escolares municipais, estaduais e particulares, um inquérito per- manente de pesquisas folclóricas e, mais geralmente, etnológicas, entre a população escolar, recolhendo assim as tradições de costumes, superstições, advinhas, parlendas, histórias, canções, brinquedos etc..., sendo os resultados desses inquéritos devi- damente selecionados, organizados e catalogados em seções distintas e publicados na Revista do Departamento. O dia-a-dia das crianças nos Parques Infantis envolvia teatrinho, desenho, marcenaria, jardinagem, modelagem, trabalhos manuais (bordados, tapeçaria), exposição do trabalho das crianças, valsa, dança indígena, recorte de gravuras, bailado da Nau Catarineta, leitura, biblioteca, prateleira de livros, reunião da diretoria do clube, elei- ção e votação, aparelhos, carrossel, joguinhos (apanhar o lenço, corrida com batatas, pulo do canguru), voleibol, balanço, passo de gigante, escorregador, jogo de cons- trução, gangorra, pingue-pongue, tanque de areia, jogos tranqüilos (jogo de damas, dominós), fila indiana, prepa- rativos para ginástica (ginástica com bastões, roda, cor- rida), banho de sol. Essas foram as bases da passagem de Mário de Andrade pela gestão pública. É claro que houve contradições. Ele era um homem de esquerda, apesar de não ter vínculo partidário, em um governo conservador, apesar de ilustrado, como era o governo do prefeito Fábio Prado. Para esses, o Parque Infantil seria um espaço para o controle e moldagem do comportamento das crianças de origem operária, em que o atendimento à criança era visto por um olhar utilitário, de funcionalidade capitalista, ou para a preparação ao trabalho ou como assistência à mãe trabalhadora que, 110 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 assim, era liberada para o trabalho, como bem aponta a dissertação de mestrado de Ana Carolina Bonjardim.3 Mas durante a gestão de Mário de Andrade, não foi essa política que prevaleceu e ele aproveitou a oportuni- dade de estar no governo para se aproximar de seu povo, lançando projetos em uma escala que seria impossível sem a presença do Estado: programou um recital no Tea- tro Municipal para os trabalhadores, inaugurou uma dis- coteca e uma grande biblioteca — que hoje leva o seu nome — e promoveu expedições etnográficas. Também houve frustrações e amargura, e essas o poeta levou consigo até o final de seus dias. Mas a experiência dos Parques Infantis, 70 anos depois, ainda assim, seria considerada uma proposta educacional de vanguarda, ver- dadeiramente libertadora. Uma herança de educação não formal que nos foi legada por Mário de Andrade. II. Brincadeiras infantis e reprodução social O lazer para as crianças tem um significado diferente do que para os adultos e só aparece quando a criança é apresentada ao mundo de responsabilidades e obri- gações. Com a escolarização precoce, esse universo de obrigações está chegando cada vez mais cedo e, além da escola, uma agenda de compromissos (sim, agenda de compromissos), com aulas de ginástica, natação, quem sabe até inglês para bebês... Assim, o lazer também é precocemente apresentado às crianças. É claro que estamos falando das classes média e alta, pois, para as crianças pobres, a agenda de compromis- sos tem outras características: o acompanhamento dos pais pelas ruas, cuidar dos irmãos mais novos e o pró- prio trabalho. Em 2002, o Brasil contava com cinco mi- lhões de crianças trabalhando! E esse trabalho não está restrito a remotas fazendas, coletando tocos de carvão vegetal ou cortando pedras. O trabalho infantil está ao alcance de nossos olhos, de nossas mãos: encontramos crianças nas esquinas mais movimentadas – pedindo esmola, como uma forma de tra- balho (existe o feitor que controla as crianças, horário de atividade, cota de arrecadação) – ou vivendo de biscates, também nas esquinas, vendendo balas, oferecendo servi- ço de limpeza de pára-brisas. O mais incrível é que pouco se faz para evitá-lo. Em uma avenida como a Paulista, íco- ne de São Paulo, dá até para conhecer as crianças. Basta- ria uma presença diária de assistentes sociais, conselhei- ros tutelares e serviço de acolhimento. Mas... Essa mudança na organização do tempo livre da crian- ça acentuou-se nos últimos 40 anos e é reflexo de uma sociedade dominada pela ideologia da competição, em que as ambições e frustrações dos pais vão sendo trans- feridas para seus filhos com a mesma naturalidade de uma canção de ninar. O trabalho, ou a preparação para o trabalho, é uma realidade cada vez mais presente na vida infantil e, dessa forma, também vai pautar o seu tempo de infância, que deveria ser a verdadeira expressão do ócio criador, ou seja, um mundo de descobertas envol- vidas em um ambiente lúdico e prazeroso. Mesmo assim, a criança constrói um modo de inter- pretar a realidade muito diferente do que a representa- ção dos adultos: A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um pai, uma bruxa malvada ou um tigre. A criança fica literalmente “transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem contudo perder inteiramente o sentido da “realidade habitual”. Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realidade de uma aparência: é “imaginação” no sentido original do termo.4 É nesse mundo de brincadeira, ou de representação diferenciada da realidade, que as crianças tomam con- tato com a vida. Freud via nas brincadeiras duas fun- ções principais: • a “compulsão da repetição”, que consiste em repro- duzir seguidamente acontecimentos desagradáveis – brincadeiras de medo, por exemplo; ao fazer isso, a criança tem por objetivo comandá-los; e • a “realização de um desejo”, a partir da alteração da re- alidade, modificando os acontecimentos de modo que esses se enquadrem ao universo ideal da criança. Para Piaget, brincadeira se confunde com aprendi- zagem, representando um processo de assimilação cul- tural que, ao imitar o mundo dos adultos – brincar de casinha, caminhãozinho –, a criança vai tomando pos- se de comportamentos e sinais culturais. Em áreas do- minadas pelo tráfico de drogas e quadrilhas de crimino- sos, essa imitação acontece com brincadeiras igualmente vio­lentas. E como falamos de precocidade na entrada ao mundo­ do trabalho e das obrigações, também devemos levar em conta a precocidade para a entrada no mundo da violência, tanto em sua forma direta quanto imaginá- 111 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Macunaíma, acompanhou o processo educacional das crianças índias no atual estado de Roraima. Ele perce- beu que até os dois anos de idade, a criança descan- sa ao lado da mãe, amarrada em uma faixa de algo- dão, em contato corporal direto e permanente. Assim, a criança é alimentada, dorme, é banhada no rio (duas vezes ao dia, afinal, os­ hábitos de higiene que temos são uma herança dos sel­vagens dos trópicos) e a acom- panha na plantação e ati­­vidades sociais. Isso lhes dá confiança, em uma vida sem violência, gritos ou brigas (alguns “civilizados” diriam:­ em uma vida totalmente “preguiçosa”). Na medida que os meninos crescem, pais e avós os treinam no arco e flecha; as meninas acompanham as mães, auxiliado-as na plantação, no preparo da farinha, cuidado com os irmãos mais novos. As diferenças entre a educação de meninos e meninas são bem distintas, sen- do melhor não idealizá-las de uma forma romântica. Esse estilo de vida é que estimula o espírito de cooperação e solidariedade entre as crianças e os adultos para um comportamento absolutamente distinto do que conhe- cemos, em que o universo lúdico, a recreação e a brin- cadeira permeiam as obrigações cotidianas.7 O espaço para o lazer infantil A casa e a família são a primeira fonte de formação dos interesses em torno do lazer. Até o início do século XX, a estrutura familiar praticamente provia as necessida- des recreativas de seus membros: casas com grandes quintais, as visitas entre familiares.8 Em uma recreação familiar, a família se mantém mais solidária e as crian- ças aprendem lições de responsabilidade e considera- ção com os outros. Quando essa recreação envolve a ida a lugares externos, principalmente parques que facili- tam a recreação ao ar livre, em amplos espaços, há um incremento ainda maior da união entre os pequenos e os velhos membros da família. O sentido desse proces- so de integração e educação entre pais e filhos vai além da própria obrigação familiar, de modo que brincar com os filhos é também uma prazerosa atividade recreativa para os pais. A desestruturação deste convívio lúdico entre pais e filhos é um elemento de enfraquecimento dos laços fa- miliares, desestruturando padrões de referências com reflexos diretos na violência social. Aqui não estamos entrando especificamente na razão dessa desestrutu- ria – brincar de soldado e ladrão, armas de brinquedo, jogos e videogames violentos. Mas é claro que os meios de comunicação e o pavor generalizado que toma conta da classe média se encar- regam de espalhar esse jeito de brincar por todo o teci- do social. Visto dessa forma, o investimento social na infância e adolescência é fundamental na construção de valores e na formação do modo de interpretar o mundo, nas condutas e no habitus. Pierre Bourdieu define o habitus como: ...um sistema de disposições duráveis e transferíveis que, integran- do todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações, e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas.5 O habitus é um mecanismo de mediação entre as prá- ticas sociais e as representações coletivas e, dessa for- ma, a reprodução do comportamento social passa pela criança e pelo brincar, determinando comportamentos futuros na sociedade. Uma sociedade cujo grande objetivo é o sucesso, in- veste nos jogos competitivos, na destreza física. A difu- são do esporte escolar nos Estados Unidos – e não há país algum do mundo em que o esporte esteja tão di- fundido na escola – oferece-nos fartas imagens sobre um estilo de vida tão caro àquela sociedade: rapazes fe- rozes se socando no futebol, massacrando os adversá- rios, assim como fariam mais tarde nas selvas da Indo- china ou estão fazendo nas areias e cidades do Iraque. Esse é um bom, e triste, exemplo de como o jogo, os es- portes e as brincadeiras refletem valores e indicam ca- minhos pelos quais as sociedades vão trilhar. Mais que a atividade em si, cabe-nos procurar o sentido dessas brincadeiras e jogos. O antropólogo Koch-Grunberg,6 o mesmo que inspi- rou Mário de Andrade na criação de seu personagem, O trabalho infantil está [...] nas esquinas mais movimentadas – pedindo esmola, como uma forma de trabalho [...] ou vivendo de biscates, [...] vendendo balas, oferecendo serviço de limpeza de pára-brisas. 112 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 mento das crianças para objetivos previamente fixados, privando-as do prazer da descoberta por seus próprios meios. No caso do esporte educacional, o que vemos? O modelo da vitória, a busca por medalhas, a ascensão social. E para os pobres e negros, o esporte é apresen- tado, ao lado da música, em certa medida, como a úni- ca porta de entrada no sistema econômico. São programas de inclusão social na ordem estabele- cida e não de questionamento social. Reproduzem a ide- ologia dominante em um caráter ritualístico e, ao mesmo tempo, dramático. E nisso não diferem do esporte insti- tucional e “espetacularizado”, no qual os ritos assumem funções sociopsicológicas semelhantes aos ritos de pas- sagem em que são afirmadas as lealdades a times e as identificações que, naquele momento, unem pessoas e grupos tão diferentes. Esse processo ritualístico e identificador é bem per- cebido quando vamos a um estádio de futebol. Em um dado momento, as diferenças desaparecem, todos são torcedores, não importando se estão na geral ou na ca- deira numerada e coberta. Em um estádio vazio, a dife- rença é nítida: há uma cor para cada local. Mas quando começa o jogo, só restam as cores dos times em cam- po. E nesse processo de fusão de cores, o espetáculo esportivo se assemelha a uma peça teatral, envolvendo divertimento e excitação, em que cada torcedor se iden- tifica com os atores-jogadores em campo. Essa é a ma- gia do esporte, ao mesmo tempo, sedutora e conforma- dora. Stanley Parker faz uma análise comparada entre o esporte e os valores da sociedade: ração, que pode ser resultante de um excesso de traba- lho ou mesmo de ausência completa de trabalho, po- dendo atingir tanto as pessoas mais abastadas quan- to as mais pobres. O que nos interessa perceber é que a falta de limites em casa, ou de contato mais fraterno com os mais velhos, implica um comportamento mais violento na adolescência e na idade adulta. E essa vio- lência sem limites acontece tanto entre jovens de classe média – algazarras, brigas sem sentido, pequenas gan- gues de condomínio, desprezo pelo “outro” –, quanto entre os jovens mais pobres. Porém, neste caso, a so- ciedade vai criminalizar os atos de violência. Uma vez que vão desaparecendo as relações mais desobrigadas de acompanhamento no lazer entre as crianças, a sociedade vai criando uma forma de ocu- pação desse tempo que deveria ser livre. As aulas de judô, iniciação artística, balé etc. Um ir e vir constante, uma rotina de obrigações e até mesmo de uma supe- rexigência de treinamento das crianças, como aponta João Batista Freire, ao analisar os treinamentos obses- sivos e dolorosos a que as crianças da ginástica olím- pica e do balé são submetidas. Um antilazer, com ati- vidades rotineiras e obrigatórias. E assim roubamos o lazer de nossas crianças. Esporte para combater o ócio ? Os programas de preenchimento do tempo livre das crianças pobres, em especial, mas não só em relação a elas, comumente reproduzem a seguinte idéia: “Comba- ter o ócio!”, “Tirar a criança da rua”. Não seria melhor di- zer: “Transformar o aprendizado em uma atividade pra- zerosa e lúdica”, “reconquistar a rua como um espaço de convivência e brincadeira”? Ocorre que os gestores públicos e formadores de opinião, mesmo que eivados de boas intenções, vão incorporando um pensamento funcionalista para o la- zer. Melhor dizendo, vão transpondo a lógica produti- vista do trabalho para um tempo que deveria ser livre. São conservadores, portanto. Mesmo que as motiva- ções sejam justificáveis, de cunho social, essas polí- ticas caminham no sentido do adestramento e da do- mesticação das pessoas­ e não para sua verdadeira emancipação. Esse conservadorismo se distancia de um conteú- do verdadeiramente transformador ao reduzir sua ativi- dade a um mero “ocupar o tempo”, dirigindo o pensa- 113 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 O esporte também se relaciona aos valores dominantes em nossa sociedade, e existem provas substanciais de que opera como for- ma de controle social. Isso se aplica especialmente ao ensino de esportes nas escolas. Desenvolveu-se nas escolas particulares o esporte como “formador de caráter” e a idéia de que o esporte tem “valor educacional” e isso torna-se evidente nas escolas públicas de hoje. Como nos mostra John Hargreaves, as características fun- damentais do esporte apresentam uma grande semelhança com os valores políticos. O esporte é essencialmente competitivo, sendo, portanto, um modo efetivo de socialização na moral competitiva da sociedade contemporânea. Sendo uma competição governada por regulamentos, estimula os jogadores a aceitarem a regra do “jogo limpo”, assim como os cidadãos são estimulados a aceitar que os regulamentos da sociedade são neutros e que todos são iguais perante a lei.9 É assim que o esporte se constitui em um racional instru- mento de treinamento, de divisão de tarefas e assimilação das regras do trabalho moderno, bem como de aceitação das normas e ideologia dominantes e, nesse sentido, podemos compará-lo a um processo de educação de massa. Mas o esporte também pode se abrir a sentimentos de cooperação e solidariedade. Tudo depende do modo de pensar hegemônico, dos sentidos que damos às coisas: ou caminhamos para uma excessiva especialização, compe- tição e busca da vitória a qualquer custo, valores tão caros à ideologia neoliberal; ou tomamos um rumo diverso, bus- cando o cultivo de uma nova consciência, mais integrada às necessidades de cooperação e transformação dos valores humanos. E isso começa desde a infância, estimulando a cooperação e proporcionando sensações de encantamen- to e êxtase, em que a forma e conteúdo do esporte refletem os caminhos que a sociedade aceita como desejáveis. Nós desejamos um caminho de liberdade, que abra horizontes, entrelace programas e una pessoas. Cabe a cada um, ou a todos, escolher o caminho que deseja seguir. III. Reprodução social, lazer e educação Nelson Marcellino propõe um novo “jogo do saber (...) onde se exercite a recusa das velhas regras ditadas, que de tão frágeis e absurdas precisam ser impostas a cada geração, fornecendo-lhes o álibi para o conformismo”.10 Em seu trabalho, ele refere-se especificamente à escola, mas aqui vamos tratar dessa relação entre lazer e educa- ção de um modo mais abrangente. Primeiro, é preciso deixar claro que não se trata de simplesmente instrumentalizar o lúdico, um equívoco muito comum, de caráter funcionalista, que também se aplica ao lazer, como já falamos anteriormente. O jogo não pode ser visto apenas como uma forma agradável de inculcar uma cultura estabelecida, como se houvesse um mundo pronto, com ordens e normas a serem segui- das. Ao contrário, o papel do jogo é o de valorizar a cultu- ra dos participantes, no caso da criança, permitindo que ela se perceba como reprodutora de cultura11 e, no caso das classes populares, assumindo uma conduta de res- peito ao seu saber, ao mesmo tempo que se questionam os valores e condutas tidos como superiores. Esse seria um jogo em que se detona “...um processo irreversível de questionamento criativo do ‘jogo da reali- dade’, fundamental para o processo educativo na escola e fora dela, na sociedade como um todo”.12 Para ser eficiente, esse “jogo do saber” deve ser pratica- do ludicamente e apresentar uma crítica da realidade (não é o que víamos no carnaval?) constituindo-se em um espa- ço de resistência. Esse jogo precisa ser mediado, é claro, e essa mediação deve ser feita por agentes – sejam profes- sores, artistas, gestores, intelectuais, ou agentes da comu- nidade – que tenham condições de estabelecer um diálogo e tensão entre diferentes valores e culturas. Se enlameando dessa cultura, indo ao “húmus”, como propunha Gramsci, estaremos desenvolvendo uma práxis contra-ideo­lógica, de gestação de uma nova consciência social. Walter Benjamin apontava que a verdadeira essên- cia da educação tem que ser a observação. Não exis- te momento mais propício à observação que o lazer, no 114 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Essa é uma atividade em constante tensão e pressu- põe subversão de valores. E valores não mudam com ra- pidez. Os valores são cultivados e reproduzidos pelo sis- tema de ensino, pelos meios de comunicação e pela pró- pria difusão de usos e costumes. É a partir dessas estru- turas de reprodução social que se reproduz a “estrutura das relações de força e das relações simbólicas entre as classes, contribuindo assim para a reprodução da distri- buição do capital cultural entre as classes”.16 Não basta apenas “oferecer” produtos culturais ou ex­pressões artísticas mais elaboradas, é preciso tocar, encantar as pessoas, fornecer-lhes ferramentas para que adquiram um novo repertório cultural e se apropriem da cultura em um sentido largo, decifrando códigos e trans- formando suas vidas a partir de uma educação que não se aprende na escola. Notas 1 GOULART DE FARIA, Ana Lúcia. Educação pré-escolar e cultura. São Paulo: Cortez, 1999, p. 200. 2 Como não havia inscrição regular, o controle da freqüência era feito por meio da soma da freqüência diária. 3 (Na rua a troça, no parque a troca, Parques Infantis na cidade de São Paulo na década de 1930 – Faculdade de Educação – USP – 2003). 4 Huzinga, Johan. Homo Ludens. Ed. Perspectiva, 2001, p. 17. 5 Bourdieu, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. Ed. Perspectiva, 2001, p. 50. 6 Kishimoto, Tizuko Morchida. Jogos Infantis, o jogo, a criança e a educação. Ed. Vozes, 1993, p. 63. 7 Para esses povos, até mesmo o conceito de trabalho tem um sentido diverso, de modo que é mais apropriado definir atividades, como caça ou trançado, como sendo “obrigações cotidianas”. 8 Atualmente, uma moradia de classe média tem até mais atrativos para o lazer, mas esses atrativos são voltados para um lazer individualizado – a TV no quarto, o computador – e, de certo modo, até reforçam o distanciamento e a falta de comunicação entre os indivíduos de uma mesma família. 9 Parker, S. A Sociologia do Lazer. Zahar Editores, 1978, p. 54. 10 MARCELLINO, Nelson. Pedagogia da animação. Papirus Editora, 2003, p. 94. 11 Florestan Fernandes desenvolve um original estudo sobre a cultura infantil (As trocinhas do Bom Retiro), que foi escrito em 1940. Neste trabalho, publicado na Revista do Arquivo Municipal ele demonstra que a transmissão de culturas, jogos e brincadeiras – e, neles embutidos, uma série de valores e precon- ceitos – ocorre nos próprios círculos das crianças, nos quais as li­geiramente mais velhas passam os seus conhecimentos para as mais jo­vens. 12 MARCELLINO, Nelson. Pedagogia da Animação. Papirus Editora, 2003, p. 95. 13 Pascal, Blaise (Pensamentos, p. 72) Apud MARCELLINO, Nelson. Lazer e Educação. Papirus Editora, 2002, p. 41. 14 Em 2003, o Departamento de Lazer da Prefeitura de São Paulo realizou dez palestras com Mano Brown, Fernando FF (escritor e ex-presidiário) e Paulo Magrão (produtor cultural do distrito do Capão Redondo). O tema das pa- lestras era “Fazer Acontecer” e o público-alvo, jovens da periferia da cidade. Ao todo, participaram dois mil jovens, entre rapazes e moças (a citação de Mano Brown é resultante de uma anotação em uma das suas palestras). 15 GIDDENS, Anthony. Admirável mundo novo: o novo contexto da política. In: Mili- band, David. (Org.). Reinventando a Esquerda. São Paulo: Unesp, 1997, p. 47. 16 BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 295. sentido de um ócio contemplativo, uma atitude de “pa- rar para pensar”. Quando a pessoa se encontra consigo mesma, ela se situa na realidade social e assim ganha condições de enfrentar a realidade, rompendo com uma determinada situação ou a assimilando, a depender dos interesses e posicionamentos em jogo. Mas, ao menos, que essa atitude seja a partir de um ato consciente e não uma simples reprodução do estabelecido. O rei está rodeado de pessoas que só pensam em diverti-lo e em impedi-lo de pensar em si mesmo. Porque se pensa em si mesmo, é infeliz, por mais rei que seja.13 Em um ciclo de palestras promovido pela Secretaria de Esportes e Lazer de São Paulo,14 o rapper Mano Brown le- vantou um pensamento semelhante. O objetivo do ciclo de palestras “Fazer Acontecer” era o de ligar o Estado, a gestão pública, à mobilização reflexiva na sociedade, particular- mente os jovens. Com essas atividades, pretendia-se (pre- tende-se) gerar uma política que permita às pessoas e gru- pos que assumam aquilo que acham justo, que façam as coisas acontecer. Desta forma, Mano Brown expressou o seu sentimento em relação à consciência das coisas: Eu preferia ser como alguns “manos” da periferia que só vivem falando de futebol ou nas “minas” que vão pegar no fim de semana. Eles são mais felizes porque não ficam preocupados com os outros, nem com eles mesmos. Quando a gente começa a perceber o que está em volta, vai ficando com raiva, infeliz, tentando entender porque as coisas são daquele jeito. Esse deveria ser o papel da Educação não Formal em um sentido humanista, libertador: possibilitar a parada, a refle- xão e fazer isso com brincadeira, fantasia e jogo. E, é claro, que, a partir de uma infelicidade inicial, de um sentimen- to de impotência, vai surgindo a felicidade da descoberta de que é possível mudar essa realidade. Anthony Giddens aponta que vivemos em um mundo de alta re­flexibilidade e que, em um mundo assim, o indivíduo “...deve alcançar um certo grau de autonomia de ação como condição para ser capaz de sobreviver e forjar uma vida”. Isso implica consciência e autonomia, mas autonomia não é egoísmo e pressupõe “reciprocidade e interdependência”.15 A Edu- cação não Formal, com suas expressões lúdicas e de jogo aliadas à ociosidade contemplativa, pode cumprir este pa- pel de reparar solidariedades, criando uma confiança ati- va de responsabilidade social e pessoal. 115 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Enredando-se e enredando-nos, prazerosamente Este texto trata de uma experiência de formação de educadores desenvolvida ao longo de 12 meses, no âmbito do projeto Ges- tores de Aprendizagem Socioeducativa – Projeto coordenado pelo Cenpec e de iniciativa da Fundação Itaú Social e Unicef, que aconteceu no período de março de 2005 a março de 2006, na Baixada Santista, Estado de São Paulo. A autora e participante do Projeto, Magali Leite de Freitas, presenteia-nos com a riqueza de seu olhar e de sua narrativa. Assina um texto que também ilumina a presença de outros autores que a acompanharam nesta experiência. Discorre, com leveza, as aprendizagens que obteve nos seus encontros com pessoas, textos, espaços, idéias, experiências e práticas educativas propostos no projeto. Nesses encontros, Magali enredou-se numa teia, descobrindo novos modos de se relacionar com outros profissionais, de organizar seu trabalho, de aprender, de ousar novos caminhos e também valorizar o seu próprio trajeto e de seus pares – to- dos educadores comprometidos com uma ação de qualidade para crianças e adolescentes que freqüentam as organizações não-governamentais. A escrita livre oferece também ao leitor a oportunidade de fazer perguntas acerca do que queremos, de fato, com as experiências educativas: • desejamos criar e fortalecer relações de interdependên- cias, no sentido de produção social de novos patamares de civilidade, tal como nos sugere Norbert Elias? • essas relações nos levariam a recolocar a dimensão da autonomia nos processos e práticas educativas? Stela Ferreira pesquisadora do Cenpec * Magali Leite de Freitas é Psicóloga e Técnica da Secretaria Municipal de Assistência Social de Santos, SP. depoimento As quatro estações Magali Leite de Freitas* Outono, inverno, primavera... Outono foi a estação anunciada para essa história começar. Nosso primeiro momento foi a apresentação do roteiro de viagem a bordo do Gestores de Aprendi- zagem Socioeducativa. Nós estávamos naquele espaço pequeno, na saída do elevador, aguardando uma outra reunião terminar para começarmos. Era uma reunião so- bre o circuito dos Fortes da nossa região. Isto me faz lembrar de histórias, fortalezas, piratas e capitães... Lembram-me aventuras que desbravam terras e mares e de histórias que se escrevem. Sinais e pistas de cartografia já se faziam presentes no come- ço desta história. Cartografia, instrumento metodoló- gico, que nos leva a ver tantas possibilidades no traba- lho com as pessoas! Pessoas brancas, negras, amare- las, vermelhas, de todas as cores, formas e jeitos de lin- damente ser, que se encontram, desencontram-se para tornar a se encontrar. O nosso primeiro encontro se deu mesmo naquele espaço meio desajeitado, quase um aquário da Secreta- ria. Detesto aquela sala de repartição pública que as pes- soas,­­ às vezes, utilizam para ações que não devem ser públicas. Bom, mas quando cheguei, estavam as três, como sempre, organizando o espaço e os materiais... quanto cui- dado, quantas novidades e surpresas deliciosas! No começo, rostos desconhecidos, bom-dia tímido, distante, pouco afetuoso. Com o passar das estações, quanta afetividade! Timidez? Que nada! O grupo que o diga, na dinâmica, após o almoço, da última estação. Desconhecidos? Hoje, todos muito familiares. Ah! E os nossos “bons-dias” foram tantos, de todas as formas, as mais cuidadosas possíveis! 116 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 E as nossas expectativas? No começo do outono, a Aquarela lançou no grupo “que com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo [...] e se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva. Se um pinguinho de tin- ta cai num pedacinho azul de papel, num instante ima- gino uma linda gaivota a voar no céu”. Ah! E como ima- ginamos! Imaginamos juntos a criança do nosso dia-a- dia, o navio fantasma, gênios dentro de lâmpadas e ro- tas de navegação. No inverno, sonhamos projetos, traçamos a carto- grafia, conhecemos as linhas de rota, dialogamos com as distâncias entre o sonho e o real, experimentando relacionamentos, interesses e sentimentos. Enfim, des- cobrimos que “o seu olhar melhora o meu”. Ah! E este é um caminho sem volta! Talvez, seja a descoberta da rosa dos ventos. No final da primavera, a nossa expectativa estava es- tampada na foto da rede de mãos, legendada pelo Rosa “porque a vida é um caldeirão de todos. Por todos reme- xida e temperada”. Foi também nesse final de primavera, que a Aquarela voltou nas mãos de alguém anunciando “um navio de partida com alguns bons amigos, beben- do de bem com a vida”. Durante o nosso percurso, cultivamos sonhos, mas também desenhamos as imagens que a nossa imagina- ção permitiu. Sem pensar em Gaudi, construímos torres. Foi um desastre! Porém, inspirados em Rodin, construí- mos esculturas, exploramos movimentos, expressões e olhares. Às vezes, como escultores, outras, como bailari- nos dançando ao som das mais variadas trilhas sonoras, resgatando, nas ruas da infância, as pedrinhas de brilhan- tes colocadas quando fui ao Itororó beber água. Saberes e sabores, povoados e pessoas Ah! Como compartilhamos... leituras de cartografias, de textos e de histórias. Lembram do nosso herói de ge- mas preciosas? Compartilhamos poesias, memórias e di- ários escritos de tantos jeitos, lindamente, diferentes. Im- pressões únicas! Nossa história sendo registrada, tam- bém, de muitas formas. Com as mãos de todos – não so- mente com as da Chantal, que registrava tudo sem pa- rar, mas todas as mãos – registrando aqui e ali, de uma forma ou de outra, com câmeras fotográficas, tintas, lá- pis, canetas e olhos! Os nossos olhos... quantos registros! Será que apren- demos a olhar como cartógrafo? Como educador-cartógra- fo, que vai registrando, cuidadosamente, personagens, objetos e lugares... próximos e distantes, imagináveis e inimagináveis, prováveis e improváveis. Isso foi um convite a ousar, a re-significar nossa prá- tica, a se inspirar com Manoel, Carlos, Saramago, Mário, Paulo, Kazuo, Rosa e tantos outros. Será que aprende- mos a rota da presença, da diversidade, das potencia- lidades e da riqueza presente nas relações? Esse lugar onde as coisas acontecem! Assim aconteceu conosco também! Nós fomos ficando, a cada estação, cada vez mais à von- tade, mais próximos uns dos outros, mais conhecedores. Conhecedores? Não, não... não é mais nem menos conhe- cedor. Talvez, “tateadores” uns dos outros, contato e com o tato. Aliás, os nossos sentidos foram aguçados e, com eles, fomos dando sentido aos nossos encontros. 117 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Momentos deliciosos dos cafés, dos apetitosos almo- ços e lanches do final da tarde. Olhos sempre arregala- dos para as podres delícias sobre a mesa. Momentos de chegar, de se aproximar, de compartilhar sabores e sabe- res. Sabor de sonho de valsa, sentido lindo do sonho, da valsa, do doar-se, do alimentar o outro, do alimentar-se e do alimento fraterno. Belo momento oferecido ao gru- po pelas nossas três encantadoras de sonhos. Sonhos... sabor que nos move, movimenta nossos saberes. Os saberes do grupo foram contando a nossa história. História que se fez nos encontros do grupo com a certeza, a dúvida, o humor, a seriedade, a ansiedade, a tranqüili- dade, a tagarelice, o silêncio, o medo, a coragem, o cho- ro, a tristeza e a alegria de cada um. Porque todos esses sentimentos habitam cada um de nós em momentos di- ferentes. E, num movimento de diferenciação, fomos nos vendo com as coisas de um, com as de outro, guardando dentro da gente um pouquinho de cada pessoa. Ficamos assim... povoados de pessoas. Somos povoados por gru- pos que fazem ou fizeram parte da nossa vida. Tempo, tempos, memória, memórias As estações foram passando e, a cada reencontro, um misto de sensações, de coisa perdida que se encontra adicionada a uma pitada de estranheza. Ora oscilando entre o doce e o amargo, entre o encontro e o desencon- tro, entre o conhecido e o desconhecido. Coisa que vai se acomodando devagar, que vai fazen- do parte de mansinho, que vai compondo com tantas for- mas diferentes de se manifestar. Diferentes territórios existenciais, encharcando de senti- do esse percurso, que vai se construindo como memória. Memória que dispara sentimentos. Memória que pode ser individual ou coletiva, pode ser do grupo ou da hu- manidade. História da humanidade, construída no tem- po. Idéia de tempo... Às vezes, não é o meu tempo, é o de- les! Em outras, pode ser o nosso. Possibilidades de tem- po: tempo de esperar, de chegar, de partir, de plantar, de colher, de chorar, de sorrir e de se encantar... Há, também, o tempo da delicadeza! Delicadeza de ouvir, de falar, de olhar e de acolher. A delicadeza de abarcar o tempo de todos num só tempo. Grande habilidade das nossas encantadoras de so- nhos... Forma delicada de entrelaçar o diverso, o pesso- al e o profissional, de potencializar, de assanhar os de- sejos, os sonhos nossos de cada dia. Forma de um sa- ber regado de simplicidade, espontaneidade e proximi- dade. De um saber que não é prepotente, autoritário e soberbo, e, sim, delicadamente generoso. Tomara um dia sejamos todos assim! As crianças, os adolescentes e as famílias agradecerão! Eu estarei sempre povoada por vocês, todos, que com seus jeitos diferentes de ser e estar no grupo, ensi- naram-me tantas coisas sobre eu mesma, que me deram este sentimento bom de pertencimento, que me deram coragem de compartilhar, nunca antes compartilhada, a minha forma de registrar as coisas que tocam devagar e deliciosamente o meu ser. Amei a nossa temporada juntos. Até o verão! Magali 119 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 educação, mais especificamente a escola, atravessa um momento de questionamentos quanto ao seu papel social. As transformações sociais e a universalização do ensino trouxeram a diversidade para a sala de aula. O en- sino tradicional centrado na transmissão de conteúdos desvinculados da realidade dos alunos tem se mostra- do pouco eficiente em relação às novas demandas que recaem sobre a escola. Diante deste quadro, torna-se importante a discussão sobre uma educação inclusiva, que privilegie a formação dos jovens, orientada por princípios éticos convergentes para a convivência democrática. Apresentamos a propos- ta de uma educação voltada para a cidadania que articula comunidade e escola em seu projeto pedagógico. Mais diversidade na sala de aula Os discursos pedagógicos enfatizam a necessidade de uma educação capaz de preparar os jovens para o exer- cício da cidadania por meio de uma formação que con- temple aspectos éticos e democráticos. Contudo, a es- trutura escolar e os seus conteúdos privilegiam um tipo de saber voltado prioritariamente à instrução. Esse tipo de ensino, instrucional e preparatório para o nível supe- rior, adequava-se a uma escola que se destinava a pou- cos, restringindo-se a uma parcela da população. Tal mo- delo pedagógico tem sua eficácia subordinada à homo- geneidade do grupo ao qual se destina, ou seja, quan- to maior a convergência entre as expectativas da popu- artigo Escola e comunidade, juntas, para uma cidadania integral. Ulisses F. Araújo Ana Maria Klein* A * Ulisses F. Araújo é Doutor pela Universidade de São Paulo, Mestre pela Universidade de Campinas e Professor da Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades – USP Leste. Ana Maria Klein é Mestre pela Universidade de São Paulo. 120 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 lação atendida e os princípios e objetivos professados pela escola, mais efetivos serão o reconhecimento do va- lor dessa instituição e sua atuação. A universalização do ensino trouxe a diversidade para dentro das salas de aula. Novos contingentes po- pulacionais, pouco habituados ao universo escolar, pas- sam a fazer parte deste cotidiano. A escola de hoje está aberta a todos, àqueles que vão cursar uma faculdade e àqueles que vão desempenhar outras funções sociais que não requerem tal grau de formação. A integração desses alunos e alunas, muitos deles filhos e filhas de pais não-escolarizados e, portanto, representantes de uma primeira geração que tem acesso ao ensino esco- lar, aponta para a necessidade de uma educação capaz de fortalecer os vínculos entre os alunos e alunas, suas famílias e a escola. Defrontamo-nos, assim, com novas questões que en- volvem desde a adoção de políticas públicas capazes de proporcionar não apenas o acesso e a permanência na escola, como também de viabilizar o acesso ao conheci- mento produzido pela humanidade. Um currículo orien- tado apenas à preparação para o ingresso no ensino su- perior não faz sentido para grande parte dos discentes. Muitos dos conhecimentos valorizados tradicionalmente nas escolas não se vinculam à realidade vivenciada pe- los alunos e alunas e, possivelmente, não serão utiliza- dos por eles e por elas. No contexto delineado, torna-se relevante a discus- são sobre propostas que privilegiam a articulação entre a educação escolar e a “vida”. Entendido dessa maneira, o processo de ensino-aprendizagem não se esgota nos conteúdos tradicionalmente abordados pela escola, liga- se a um projeto mais amplo da sociedade. Durante o século XX, o movimento a favor de uma edu- cação comprometida com uma forma de vida democrá- tica, conhecido como escolanovismo, trouxe propostas educacionais que buscaram articular a educação intelec- tual à vida comunitária, à autonomia dos alunos e profes- sores e à formação global dos discentes. Essas propostas podem ser consideradas como as bases constituintes da concepção de Educação Integral (Cavaliere, 2002). No Brasil, esse movimento influenciou as idéias de Anísio Teixeira, que propunha uma escola orientada para práticas e valores democráticos. Para o autor, a democra- cia é essencialmente um modo de vida social que exige uma formação que enfatize a personalidade (individua- lidade) e a cooperação (sentir-se responsável pelo bem social). A escola defendida por Teixeira (1975) tem como contraponto a inadequação da escola tradicional – su- plementar e preparatória – às inovações e transforma- ções sociais. Tais transformações alteraram as funções da vida familiar e social que acabaram por perder a cons- ciência da sua ação educativa. A vida familiar mudou, já não pode oferecer uma edu- cação integral. A vida social também mudou: está mais complexa e a criança só tem acesso aos aspectos frag- mentados da realidade. A constatação dessa inadequa- ção é central na proposta do autor, pois é no vazio dei- xado pela família e pela sociedade que se insere a sua proposta educacional voltada para a formação integral dos indivíduos, extrapolando a mera transmissão de conteúdos. Teixeira, ao sinalizar as transformações sociais e as suas repercussões no funcionamento familiar, aponta- nos para a necessidade de a educação escolar assumir uma função que historicamente já foi de competência pú- blica: a formação dos indivíduos. Para desempenhar tal função, a nova escola, precisa trazer a vida para o seu in- terior, tornar-se o local onde a criança viverá plena e in- tegralmente, de modo que os educandos adquiram há- bitos morais e sociais. Para o autor, as ações desse tipo de educação não po- dem se orientar por procedimentos tradicionais, pois não há como marcar lições sobre tolerância, simpatia, entu- siasmo. A escola meramente informativa não é suficien- te para aparelhar seus alunos e alunas para a atitude crí- tica de inteligência, para julgar, discernir, ser consciente do que acontece sem perder sua individualidade. Assim, a proposta de Teixeira aponta para a importância de uma educação integral, alicerçada na vivência e nas ex- periências cotidianas como base e fonte para a construção do saber e formação moral dos alunos e alunas. Os pressupostos dessa concepção de educação inte- gral fundamentam a idéia, defendida por nós, de que a escola deve voltar-se, também, para a formação do cida- dão, priorizando práticas e construindo valores que pos- sibilitem a convivência em uma sociedade democrática, sem abrir mão de seus conteúdos, mas atribuindo1 sen- tido ao que é transmitido. Neste artigo, apresentaremos uma proposta de edu- cação2 que visa a formação para a cidadania a partir da articulação entre a escola e a comunidade na qual ela se insere. 121 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Formação para a cidadania Em seu sentido tradicional, a cidadania expressa um conjunto de direitos e de deveres que permite aos cida- dãos e cidadãs a participação na vida política e na vida pública, podendo votar e ser votado e atuar ativamente na elaboração das leis e do exercício de funções públi- cas, por exemplo. Hoje, no entanto, o significado da ci- dadania assume contornos mais amplos, que extrapolam o sentido de apenas atender às necessidades políticas e sociais, e assumem como objetivo a busca por condi- ções que garantam uma vida digna às pessoas. Entender a cidadania a partir da redução do ser hu- mano às suas relações sociais e políticas não é coeren- te com a multidimensionalidade que nos caracteriza e com a complexidade das relações que cada um e todas as pessoas estabelecem com o mundo à sua volta. Deve- se buscar compreender a cidadania também sob outras perspectivas, por exemplo, considerando a importância que o desenvolvimento de condições físicas, psíquicas, cognitivas, ideológicas e culturais exercem na conquis- ta de uma vida digna e saudável, que leve à busca virtu- osa da felicidade, individual e coletiva. Tal tarefa, complexa por natureza, pressupõe a edu- cação de todos (crianças, jovens e adultos), a partir de princípios coerentes com esses objetivos e com a inten- ção explícita de promover a cidadania pautada na demo- cracia, na justiça, na igualdade, na equidade e na par- ticipação ativa de todos os membros da sociedade nas decisões sobre seus rumos. Dessa maneira, pensar em uma educação para a cidadania torna-se um elemento essencial para a construção da democracia social. O problema é que, atualmente, as crianças e os ado- lescentes vão à escola para aprender as ciências, a lín- gua, a matemática, a história, a física, a geografia, as ar- tes, e apenas isso. Não existe o objetivo explícito de for- mação ética e moral das futuras gerações. Defendemos a idéia de que a escola, como institui- ção pública criada pela sociedade para educar as futu- ras gerações, deve preocupar-se, também, com a cons- trução da cidadania, nos moldes que atualmente a en- tendemos. Se os pressupostos atuais da cidadania pro- curam garantir uma vida digna e a participação na vida política e pública para todos os seres humanos e não apenas para uma pequena parcela da população, essa escola deve ser democrática, inclusiva e de qualidade, para todos e para todas as crianças e adolescentes. Para isso, deve promover, na teoria e na prática, as con- dições mínimas para que tais objetivos sejam alcança- dos na sociedade. Entendemos que aprender a ser cidadão e a ser cida- dã é, entre outras coisas, aprender a agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça, não-violência; aprender a usar o diálogo nas mais diferentes situações e comprometer-se com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do país. Tais competências pressupõem que os estudantes possam assumir princípios éticos, exercitados em pro- cesso formativo, no qual dois fatores são centrais: • que os princípios se expressem em situações reais, nas quais os estudantes possam ter experiências e conviver com a sua prática; • que haja um desenvolvimento da capacidade de au- tonomia do sujeito, isto é, da capacidade de analisar e eleger valores para si, consciente e livremente. Nesse processo, estudantes e docentes desempe- nham um papel ativo. São sujeitos da aprendizagem, interpretam e conferem sentido aos conteúdos com que convivem na escola a partir de valores construídos, de seus sentimentos e emoções. A construção de valores democráticos deve partir de temáticas significativas do ponto de vista ético e propiciar condições para que os alunos e as alunas desenvolvam sua capacidade dialógi- ca, tomem consciência de seus sentimentos e emoções (e das demais pessoas) e desenvolvam a capacidade au- tônoma de tomar decisões em situações conflitantes do ponto de vista ético/moral. Tal proposta educativa, buscando atingir amplos es- pectros de atuação, pode abarcar quatro grandes eixos temáticos que, de maneira geral, configuram campos principais de preocupação da ética e da democracia nos dias atuais: ética, convivência democrática, direitos hu- manos e inclusão social. Ética Na filosofia, o campo que se ocupa da reflexão sobre a moralidade humana recebe a denominação de ética. Esses dois termos, ética e moral, têm significados pró- ximos e, em geral, referem-se ao conjunto de princípios ou padrões de conduta que regulam as relações dos se- res humanos com o mundo em que vivem. Uma educação ancorada em tais princípios, de acor- do com Puig (1998), deve converter-se em um âmbito de 122 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 reflexão individual e coletiva que permita elaborar racio- nal e autonomamente princípios gerais de valor, princí- pios que ajudem a defrontar-se criticamente com reali- dades, como a violência, a tortura ou a guerra. De for- ma específica, para esse autor, a educação ética e mo- ral deve ajudar a analisar criticamente a realidade coti- diana e as normas sóciomorais vigentes, de modo que contribua para idealizar formas mais justas e adequa- das de convivência. Em linha complementar de compreensão do papel da educação para a formação ética dos seres humanos, Cortina (2003) entende que a educação do cidadão e da cidadã deve levar em conta a dimensão comunitária das pessoas, seu projeto pessoal e também sua capacidade de universalização, que deve ser exercida dialogicamen- te, pois, dessa maneira, poderá ajudar na construção do melhor mundo possível, demonstrando saber que é res- ponsável pela realidade social. De forma específica, lidar com a dimensão comunitá- ria e o diálogo com a realidade cotidiana e as normas so- ciomorais vigentes nos remetem ao trabalho com a diversi- dade humana e a abordar e desenvolver ações que enfren- tem as exclusões sociais, os preconceitos e as discrimina- ções advindas das distintas formas de deficiência e das di- ferenças sociais, econômicas, psíquicas, físicas, culturais, religiosas, raciais, ideológicas e de gênero. Conceber esse trabalho na própria comunidade em que se vive, no bairro e no ambiente natural, social e cul- tural de seu entorno, é importante para a construção da cidadania efetiva. Convivência democrática O conflito é uma parte natural de nossas vidas. A maio- ria das teorias interacionistas em filosofia, psicologia e educação está alicerçada no pressuposto de que nos cons­tituímos e somos constituídos a partir da relação dire- ta­ ou mediada com o outro, seja ela de natureza subjeti- va ou objetiva. Os conflitos se apresentam diariamente- no mundo: na vida, na sociedade civil e, também, na es- cola. Por meio deles, há o confronto de idéias, sentimen- tos, atitudes, tornando-se, assim, possível o consenso e o dissenso. O enfrentamento de conflitos permite que se apren- da a respeitar quem dissente, a reconhecer pontos de vista, a compreender posições divergentes, a perceber e respeitar os sentimentos dos outros. Nessa relação, de- paramo-nos com as diferenças e semelhanças que nos obrigam a comparar, descobrir, ressignificar, compreen- der, agir, buscar alternativas e refletir sobre nós mesmos e sobre os demais. O conflito torna-se, portanto, a ma- téria-prima para nossa constituição psíquica, cognitiva, afetiva, ideológica e social. Na escola, os distúrbios disciplinares, a violência e o autoritarismo nas relações interpessoais são alguns dos maiores problemas pedagógicos e sociais da atualida- de e vêm comprometendo a busca por uma educação de boa qualidade. São fenômenos complexos, cujo enfren- tamento requer disposição e preparo para buscar cami- nhos não-autoritários. Enfrentar esses fenômenos exige dos profissionais da educação uma nova postura, democrática e dialógi- ca, que entenda os alunos e as alunas não mais como su- jeitos passivos ou adversários que devem ser vencidos e dominados. O caminho está no reconhecimento dos es- tudantes como possíveis parceiros de uma caminhada política e humana que almeja a construção de uma so- ciedade mais justa, solidária e feliz. Esses objetivos específicos de ressignificação das relações entre adultos, crianças e adolescentes, e os conflitos a elas inerentes, devem servir de base para a construção de formas de convívio pautados na ética, na democracia e em valores desejados pela socieda- de contemporânea. Direitos Humanos De acordo com Tugendhat (1999), o comportamento moral e ético consiste em reconhecer o outro como sujei- to de direitos iguais, o que significa que, às obrigações que temos em relação ao outro, correspondem, por sua vez, direitos. Complementando, demonstra que todos os seres humanos, independente de suas peculiarida- des e papéis específicos na sociedade, têm determina- dos direitos simplesmente porque são seres humanos. Benevides (2004), ao tratar do tema dos direitos huma- nos, discute sua universalidade e a concepção de que são naturais e, ao mesmo tempo, históricos. Partindo de formas de compreensão como as citadas acima, e como resultado do esforço da comunidade inter- nacional para estabelecer parâmetros que possam bali- zar as ações das diferentes culturas com relação ao que se considera como razoável, quanto ao respeito aos di- reitos fundamentais dos seres humanos, foi que a Orga- 123 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 nização das Nações Unidas promulgou, em 1948, a De- claração Universal dos Direitos Humanos. Esse documento, em sua base, reconhece três dimen- sões dos direitos humanos: 1. as liberdades individuais, ou o direito civil; 2. os direitos sociais; e 3. os direitos coletivos da humanidade. Os princípios presentes na Declaração Universal dos Di- reitos Humanos – DUDH situam-se na confluência demo- crática entre os direitos e liberdades individuais e os deve- res para com a comunidade em que se vive. Juntamente à forma coletiva de acordo com a qual foi elaborada, a DUDH pode ser compreendida como a base para o que vem sendo chamado de valores universalmente desejáveis. Dessa maneira, a DUDH pode ser um guia de referên- cia para a análise dos conflitos de valores vivenciados em nosso cotidiano e para a elaboração de programas educacionais que objetivem uma educação em valores. Se quisermos, portanto, promover uma educação ética e voltada a para a cidadania, devemos partir de temáticas significativas do ponto de vista ético (como é o caso da- quelas contidas na DUDH), propiciando condições para que os alunos e alunas desenvolvam sua capacidade dia- lógica, tomem consciência de seus próprios sentimentos e emoções, e desenvolvam a capacidade autônoma de tomada de decisão em situações conflitantes do ponto de vista ético/moral. Introduzir essas temáticas no cotidiano das salas de aula, a partir do conhecimento da situação real obser- vada no entorno de cada escola e nas famílias de mem- bros da comunidade, pode ser um bom instrumento para a construção de valores que reforcem a ética, a cidada- nia e a democracia na educação. Inclusão social De acordo com Barth (1990), as diferenças represen- tam grandes oportunidades de aprendizado. Para ele, o que é importante nas pessoas – e nas escolas – é o que é diferente, não o que é igual. Para Stainback (2002), a total inclusão de todos os membros da humanidade, de quaisquer raças, religiões, nacionalidades, classes socioeconômicas, culturas ou capacidades, em ambientes de aprendizagem e comuni- dade, pode facilitar o desenvolvimento do respeito mú- tuo, do apoio mútuo e do aproveitamento dessas dife- renças para melhorar nossa sociedade. É durante seus anos de formação que as crianças adquirem o entendi- mento das diferenças, o respeito e o apoio mútuos em ambientes educacionais que promovem e celebram a di- versidade humana. A construção de sociedades e escolas inclusivas, abertas às diferenças e à igualdade de oportunidades para todas as pessoas, é um objetivo prioritário da edu- cação nos dias atuais. Nesse sentido, o trabalho com as diversas formas de deficiências e com as exclusões geradas pelas diferenças social, econômica, psíquica, física, cultural e ideológica devem ser foco de ação das escolas. Buscar estratégias que se traduzam em melhores condições de vida para a população, na igualdade de oportunidades para todos os seres humanos e na construção de valores éticos so- cialmente desejáveis por parte dos membros das comu- nidades escolares é uma maneira de enfrentar essa si- tuação e um bom caminho para um trabalho que visa a democracia e a cidadania. A educação comunitária Os quatro grandes eixos temáticos propostos para uma educação voltada para a cidadania enfatizam a impor- tância da interação entre escola e comunidade, trazen- do aspectos da vida em sociedade para o currículo es- colar. Assim, o cerne desta proposta é tornar os recur- sos da cidade e, prioritariamente, do entorno da esco- la, como espaços de aprendizagem, promoção e garan- tia de direitos. A Carta das Cidades Educadoras, chamada de Carta de Barcelona (Gadotti, 2004), de 1990, é um documento central para essa concepção. Em tal documento, afirma- se que a cidade educadora é um sistema complexo, em [...] lidar com a dimensão comunitária e o diálogo com a realidade cotidiana e as normas sociomorais vigentes nos remetem ao trabalho com a diversidade humana e a abordar e desenvolver ações que enfrentem as exclusões sociais, os preconceitos e as discriminações 124 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 constante evolução, que sempre dará prioridade absolu- ta ao investimento cultural e à formação permanente de sua população. Ela será educadora quando reconhecer, exercitar e desenvolver, além de suas funções tradicio- nais, uma função educadora, quando assumir a intenção e responsabilidade cujo objetivo seja a formação, promo- ção e desenvolvimento de todos os seus habitantes, co- meçando pelas crianças e pelos jovens. Dentre os princípios constituintes dessa carta, des- tacamos quatro que consideramos centrais à nossa pro- posta. Em sua proposição, a cidade educadora deve fa- vorecer: 1. a liberdade e a diversidade cultural; 2. a organização do espaço físico urbano, colocando em evidência o reconhecimento das necessidades de jogos e lazer; 3. a garantia da qualidade de vida a partir de um meio ambiente saudável e de uma paisagem urbana em equilíbrio com seu meio natural; 4. a consciência dos mecanismos de exclusão e margi- nalidade que as afetam. A partir de tais idéias, Torres (2005) afirma que a educa- ção deve deixar de ser vista como função apenas da comu- nidade escolar para que seja assumida pela comunidade de aprendizagem, de forma que os diferentes recursos e disci- plinas locais possam ser utilizados no processo educativo. Na educação comunitária proposta por ela, todos são edu- cadores e todos são aprendizes, desaparecem as barreiras entre educação formal e informal, educação escolar e extra- escolar. Esse é o princípio do bairro-escola, que adota o en- torno da escola como espaço de aprendizagem. Tomando por referência discussões como estas, acre- ditamos que estudar formas de ampliação dos espaços educativos, rompendo os limites físicos dos muros esco- lares, pode ser um bom caminho para uma educação em valores éticos e democráticos, que visam a cidadania. Re- forçar a importância da articulação entre sujeito e cultura/ sociedade na construção da cidadania e de relações mais justas e solidárias no seio da comunidade onde cada um vive, pode indicar possibilidades para o desenvolvimento de ações educativas que levem a uma reorganização da es- cola na forma em que está estruturada, tanto do ponto de vista físico quanto pedagógico. Dessa maneira, embora trabalhemos com a ampliação dos espaços educativos, incorporando os recursos da cida- de e prioritariamente do entorno da escola no desenvolvi- mento de projetos que contemplem a comunidade como es- paço de aprendizagem, o centro das ações continua sendo a escola. Essa instituição, com seu papel social de instrução e formação das novas gerações, é que possui os educadores capacitados ao exercício profissional da educação. Para tanto, a matriz para o desenvolvimento das ações conseqüentes desta proposta está na constituição do que chamamos de “Fórum escolar de ética e cidadania”3 nas escolas. O fórum proposto tem como papel essencial ar- ticular os diversos segmentos da comunidade, escolar e não-escolar, que se disponham a atuar no desenvolvimen- to de ações que mobilizem os participantes. Sua organiza- ção é articulada, inicialmente, por um educador, de pre- ferência formado para a função. Esse educador comuni- tário será o responsável por promover a aproximação e o diálogo entre os diversos atores sociais interessados na sua constituição e participação. A estrutura e composição deste fórum deve ser a mais aberta possível, tornando-se desejável que dele partici- pem professores, estudantes, funcionários, diretores, fa- mílias e membros da comunidade. De maneira geral, o fórum será responsável por orga- nizar e desenvolver as atividades e projetos relaciona- dos aos quatro grandes eixos temáticos que sustentam a proposta: ética, convivência democrática, direitos hu- manos e inclusão social. De forma específica, a atuação do fórum se dará junto à direção da escola e aos membros da comunidade para garantir os espaços e tempos necessários ao desenvol- 125 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 vimento dos projetos. Podemos citar como exemplos de atuação junto à comunidade: • a busca de recursos que permitam a aquisição de ma- teriais necessários ao desenvolvimento dos projetos; • a interação com especialistas em educação/pesqui- sadores, que possam contribuir com o melhor desen- volvimento das ações planejadas; • a articulação de parcerias com outros órgãos e institui- ções governamentais e não-governamentais (ONGs) que possam apoiar as ações do projeto e a criação de propostas que promovam seu enriquecimento. Caberá ao fórum, portanto, representar a comunida- de dentro da escola, por meio de ações objetivas e pla- nejadas que visam a articulação entre o currículo esco- lar e temáticas relevantes para a comunidade na qual a escola se insere. As ações envolvendo membros da comunidade são centrais. No entanto, não encerram o objetivo maior, a saber: articular o conhecimento socialmente construí- do, que deve ser transmitido pela escola, às temáticas da vida social que se apresentam como imprescindíveis à formação do cidadão, aqui compreendido em seu sen- tido mais amplo. Assim, a presente proposta prevê ações que, inter- relacionadas, possuem uma dupla direção: para “den- tro” e para “fora” da escola. Para “dentro” da escola, lo- calizam-se as ações que objetivam a implementação da pedagogia de projetos, aliada aos princípios de trans- versalidade e interdisciplinaridade. Os conteúdos rela- cionados aos projetos desenvolvidos junto à comunida- de serão incorporados nas aulas das disciplinas espe- cíficas da escola. Para “fora” da escola, localizam-se as ações que promovem a articulação entre a escola e os espaços de aprendizagem de seu entorno. Assim, a par- tir dos projetos interdisciplinares e transversais desen- volvidos em sala de aula, a escola poderá se aproximar da comunidade externa, utilizando seus equipamentos e espaços como fonte de aprendizagem. Levar tais temáticas para dentro da sala de aula e ar- ticulá-las com os conteúdos tradicionalmente contem- plados pelos currículos pressupõe uma nova maneira de pensarmos o papel da escola. Nela, não só os objetivos educacionais devem ser revistos, como também a rela- ção entre conteúdos e temáticas, que, nessa perspecti- va, inverte-se, ou seja, os conteúdos passam a ser vis- tos como ferramentas para a solução de questões rela- cionadas à vida e ao interesse dos alunos. Esta mudança de paradigma implica a revisão dos papéis dos diferentes atores envolvidos e uma abertu- ra da escola, no sentido de estar sensível e acolher a di- versidade da população que a compõe. Assim concebi- da, a escola não se encerra em si mesma, torna-se par- te integrante da vida de seus alunos e da comunidade onde está inserida. Referências Bibliográficas ALVES, Rubem. Aprendiz de mim – um bairro que virou escola. Campinas: Editora Papirus, 2004. ARAÚJO, U. F. Temas transversais e a estratégia de projetos. São Paulo: Moderna, 2003. ____. A construção de escolas democráticas: histórias sobre complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Moderna, 2002. ARAÚJO, U. F. e AQUINO, J. G. Os direitos humanos em sala de aula: a ética como tema transversal. São Paulo: Moderna, 2001. CASTELLAR, S. M. V. Da alfabetização ao letramento cartográfico: a ação docente. Ciência Geográfica, v. XI. Bauru, São Paulo, jan/abr, 2005. CAVALIERE, A. M. V. Educação integral: uma nova identidade para a escola bra- sileira? Educ. Soc., dez., v. 23, n. 81, p. 247-270, 2002. CORTINA, A. O fazer ético: guia para a educação moral. São Paulo: Moderna, 2003. DEWEY, J. 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Comunidad de aprendizaje. In: Medeiros, B. e Galiano, M. Barrio- escuela: movilizando el potencial educativo de la comunidad. São Paulo: Fundação Abrinq, Unicef, Cidade Escola Aprendiz, 2005. TUGENDHAT, E. Lições sobre ética. Petrópolis: Vozes, 1999. Notas 1 A proposta de educação aqui apresentada constitui a base do curso de atualização em Educação Comunitária, oferecido pela Universidade de São Paulo, em parceria com a SME e a Cidade Escola Aprendiz, a 1.200 docentes da rede municipal de ensino de São Paulo, durante o primeiro semestre de 2006. O curso visa a formação de dirigentes escolares e docentes para o trabalho com a comunidade (bairro) onde as escolas estão inseridas, com o objetivo de auxiliar na constituição de redes de ação educativa que integrem bairros e escolas e que tenham como meta a construção da cidadania e da democracia. A atuação do educador comunitário prevê a promoção da inser- ção da família e da comunidade nos espaços escolares, ao mesmo tempo em que a formação de estudantes e docentes, para atuarem no desenvolvimento de ações educativas junto à comunidade e ao bairro onde vivem. 2 A base dessa proposta está no Programa “Ética e Cidadania: construindo va- lores na escola e na sociedade”, desenvolvido pelo Ministério da Educação, com a consultoria do autor deste artigo. Esse programa chegou em mais de 26 mil escolas de todo o país. 126 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Meu pai me apresentou a terra e as sementes. Depois de algumas experiências no jardim da nossa casa, foi a vez de eu aprender na escola. Lista das primeiras idéias que imagino ter formulado: 1. Semear é muito diferente de plantar. 2. Semear é amplo, plantar é íntimo. 3. Semear a gente corre o risco de não ver, plantar a gen- te vive. 4. Para plantar, a gente escolhe um pedacinho de terra boa, um pouco úmida e bem fofa; daí cava uma espécie de berço; deita a semente; cobre, voltando a terra para o seu lugar (nessa hora, costuma aparecer uma certa preocupação com a pro- vável claustrofobia da semente, mas a recordação do trabalho das minhocas faz passar); joga um pouquinho de água por cima e espera. (Pai é bom porque ensina a esperar com ternura. Es- perar com ternura é assim: tempo para olhar, tempo para regar, tempo para acompanhar todo o cresci- mento. E pai é ainda melhor porque escolhe plantar feijão. E feijão cresce tão depressa que a gente tro- ca ansiedade por alegria. Quando eu já sabia do fei- jão, meu pai veio com alguma semente mais demo- rada. Ele não precisou de muitas sementes para me ensinar a plantar. Recado à margem: até hoje, tenho mão boa para plantas). * Maria Cristina S. Zelmanovits é Pedagoga, Assessora da Coorde- nação do Cenpec e já assessorou vários projetos de Literatura e Artes em escolas, museus e outras instituições. depoimento É mais simples do que parece Maria Cristina S. Zelmanovits* 5. Semear pode dar um trabalho danado: há que se preparar muito a terra – revolver, adubar, medir, cavar, jogar as sementes (atenção: muitas sementes não podem disputar o mesmo espaço!), cobrir com terra, controlar matinhos e outras pragas, regar, acompanhar o crescimento, colher. Colher é a grande questão. Dá um prazer infinito brin- car de cabo de guerra com o solo (solo vira sinônimo de terra quando semear é a palavra de ordem!). 6. Existem muitas formas de semear, pode até se usar máquinas. Gostei mais de aprender os jeitos das abelhas, dos morcegos, dos pássaros e dos ventos. O tempo passou e, de muitas outras formas, me vi às voltas com sementes durante a vida: abri para ver por dentro, tomei café com cardamomo, conversei com gen- te que trabalha na terra, li sobre os benefícios de algu- mas sementes para a saúde, fiquei interessada em se- mentes de flores, visitei plantações, soube da história dos escravos e do café... Mas tudo isso na perspectiva do plantar. Só fiz as pazes com a semeadura de verdade lá em Juazeiro, em 2005. Vou contar como foi. Fui chamada para ouvir e analisar a fala de uma pro- fessora. Entendi que seria o relato de um projeto já rea- 127 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 lizado por ela junto aos alunos (adoro ouvir professora contando o que fez com os alunos!). Ledo engano: o projeto ainda nem havia sido reali­za- do­ e quem apresentaria o planejamento do projeto seria- a coordenadora. Não gostei muito da mudança, porém, procurei me refazer com disponibilidade de ouvinte in- teressada. ... A gente vai ensinar os nomes científicos e as carac- terísticas das plantas que os alunos conhecem e que fazem parte de seu cotidiano... Eles vão ler, escrever, pesquisar... Apresentação séria, dedicada, mas que não grudou em mim. Até que, rompendo minha já quase desatenção, ouvi a seguinte delicadeza, nascida do único minuto em que a professora falou: Uma das atividades de nosso projeto Aprendendo a Se- mear é a da pipa. A gente vai chamar os pais dos alu- nos para ensinar a fazer pipa. Os alunos vão construir pipas e vamos trabalhar com geometria, medição, tex- to com as regras de como se faz o brinquedo, arte... (Pensei: “Puxa, tenho que falar com ela sobre Volpi”). Interessadíssima, não me contive: – Mas o que as pipas têm a ver com o projeto Apren- dendo a Semear? E a professora: As pipas vão carregar sementes e quando os meninos soltarem, tudo vai se espalhar. Fiquei pensando na delícia de aprender a semear com pipas. Quis mesmo ser aluna dessa professora! Quanta doçura para explicar um conceito, quanta poesia, quanta brincadeira. Fiquei com vontade de aprender, desse jei- to, matemática, leitura de textos de instrução (até hoje não gosto de seguir receitas e detesto manuais), relação cor/forma. Fiquei com vontade de aprender a fazer pipa com pai. Fiquei com vontade de ver planta nascendo da dança da pipa com o vento. Se não tive a chance de voltar na máquina do tempo, ao menos pude rever minhas idéias sobre semear e, mais que isso, relembrar que aprender pode ser leve, gratui- to. Às vezes, aprender até voa. 129 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Nós vivemos um momento inédito da história, o da indivi- dualização das crenças, em que a escola deve repensar sua articulação entre a sua virada universalista e o pluralismo do público que ela recebe, entre a esfera pública e a vida privada, protegendo a infância das agressões do mundo adulto, sem, contudo, deixá-la ignorar os conflitos que o atravessam. Dominique Julia epensar a escola e as suas articulações se constitui em um imperativo atual e de complexas relações, como nos lembra Dominique Julia, importante pesquisador e espe- cialista em história da educação na época moderna. Entre os diversos temas que a discussão da educa- ção pública nos evoca, a formulação de concepções de uma educação integral, herdeira da corrente pedagógi- ca escolanovista, conforme assinala Ana Maria Cavalie- re (2002), tem ocupado importante espaço, nos últimos anos, na agenda dos debates sobre educação e está as- sociada à formulação de uma escola de tempo integral, especificamente a partir dos anos 1980, nas discussões sobre a experiência de implantação dos CIEPs1 no Rio de Janeiro. O movimento reformador, do início do século XX, refletia a necessi- dade de se reencontrar a vocação da escola na sociedade urbana de massas, industrializada e democrática. De modo geral, para a corrente pedagógica escolanovista, a reformulação da escola esteve associada à valorização da atividade ou experiência em sua prática cotidiana. [...] Uma série de experiências educacionais escolanovistas desenvolvidas em várias partes do mundo, durante todo o século XX, tinham algumas das características básicas que poderiam ser consideradas constituidoras de uma concepção de escola de educação integral (Cavaliere, 2002, p. 251, grifo nosso). artigo Reflexões sobre educação integral e escola de tempo Antonio Sérgio Gonçalves* integral R * Antonio Sérgio Gonçalves é educador e psicanalista, pesquisador do Cenpec e sócio-gerente da empresa Nexus Consultoria Ltda. 130 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Essa reflexão é oportuna na medida em que estão sen- do desenvolvidos dois grandes programas na rede públi- ca de educação, no município e no estado de São Pau- lo, que têm, como objetivo, a ampliação de oportunida- des de aprendizagem: o “Programa São Paulo é uma Es- cola”, implantado pela Secretaria Municipal, e o progra- ma “Escola de Tempo Integral”, formulado pela Secreta- ria Estadual. Ambos nos remetem à idéia de educação integral, apresentando, em suas diretrizes, formas dis- tintas de operacionalização.2 No tocante aos modos de operacionalização, em li- nhas gerais, o programa municipal aponta para a com- plementação das oportunidades de aprendizagem, por meio da oferta de atividades educativas diversas, arti- culadas à otimização do espaço escolar e dos demais espaços públicos municipais, caracterizando um turno complementar. A proposta estadual apresenta a ampliação da jor- nada, com uma nova grade curricular, a ser desenvolvi- da a partir das próprias unidades escolares, implicando um aumento do número de docentes para o desenvolvi- mento de oficinas curriculares. Também podemos verificar propostas implantadas em diversos outros municípios e estados, de escolas de ensi- no fundamental, com jornadas ampliadas — tempo inte- gral — e propostas de educação integral em que ações so- cioeducativas, complementares à aprendizagem de crian- ças e jovens, desenvolvidas por ONG’s, buscam a articu- lação com a escola pública (Guará, 2005). Vale ressaltar o dispositivo legal, Lei n. 9.394 (LDB, 1996), que estabelece diretrizes e bases da educação nacional, que determina, ainda, em seu Artigo 34, Pa- rágrafo Segundo: Artigo 34. A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo pro- gressivamente ampliado o período de permanência na escola. [...] § 2o. O ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino. Deve-se considerar que, especificamente, a questão da formulação de propostas de escolas de tempo inte- gral gerou, nas duas últimas décadas, um intenso deba- te, posicionando diversos educadores e pesquisadores que ora questionavam o caráter populista nas propos- tas políticas de apresentação (Paiva, 1985) e a inviabili- dade de sua universalização (Paro, 1988), ora, sua con- sistência como projeto pedagógico, apontando uma in- tenção de confinamento, constituindo-se numa institui- ção total (Arroyo, 1988). Para além das críticas, as propostas de escola de tem- po integral, principalmente as propostas de Anísio Tei- xeira e de outros educadores de sua geração, represen- taram, para seus alunos, não um lugar de confinamento, e sim uma oportunidade para uma vida melhor: As escolas criadas por Anísio e a geração de educadores à qual per- tenceu, tanto nos anos 30 quanto nos anos 50 e 60, não foram vis- tas pelos alunos que as freqüentaram como locais de confinamento. Pelo contrário, constituíram a possibilidade de reapropriação de espaços de sociabilidade crescentemente sonegados às classes trabalhadoras pelas reformas urbanas que lhes empurravam para a periferia da cidade. Para muitos desses alunos, essas escolas foram a única abertura para uma vida melhor (Nunes, C., 2001, p. 12-13). Concepção de educação integral O conceito mais tradicional encontrado para a definição de educação integral é aquele que considera o sujeito em sua condição multidimensional, não apenas na sua dimensão cognitiva, como também na compreensão de um sujeito que é sujeito corpóreo, tem afetos e está in- serido num contexto de relações. Isso vale dizer a com- preensão de um sujeito que deve ser considerado em sua dimensão bio-psicossocial. Acrescentamos, ainda, que o sujeito multidimen- sional é um sujeito desejante, o que significa conside- rar que, além da satisfação de suas necessidades bá- sicas, ele tem demandas simbólicas, busca satisfação nas suas diversas formulações de realização, tanto nas atividades de criação quanto na obtenção de prazer nas mais variadas formas. O aprender pressupõe a superação de enigmas, algo que desafia o já sabido e que instiga o desejo de superar. Agora, só é possível tal ampliação e apropriação de conhecimento se for estabelecida uma relação [...] entre o que o define como sujeito e o mundo que o rodeia. 131 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 A aprendizagem acontece desde o nascimento e con- tinua ao longo de toda a vida. Ocorre em diferentes con- textos: na família inicial, com os pais; com os pares, na nova família, na escola; em espaços formais e informais. Nesse sentido, a educação escolar precisa ser repensa- da, de modo a considerar as crianças e os adolescentes sujeitos inteiros, levando em conta todas as suas vivên- cias, aprendizagens. Por exemplo, propostas que concebem o trabalho a par- tir dos interesses das crianças e jovens têm-se mostrado muito mais eficazes do que aquelas que não o fazem. Isso não significa trabalhar apenas com o que elas querem aprender, e sim que aquilo que é proposto como conteúdo escolar, curricular, só poderá ser significativo se dialogar com os interesses do grupo, seus conhecimen- tos prévios, seus valores e seu cotidiano. Nesse sentido, somente o que se coloca como desafio, como inquieta- ção para educadores e educandos, pode se transformar numa relação profícua de ensino-aprendizagem. O aprender pressupõe a superação de enigmas, algo que desafia o já sabido e que instiga o desejo de supe- rar. Agora, só é possível tal ampliação e apropriação de conhecimento se for estabelecida uma relação entre o particular e o geral, entre o local e o global, entre o que o define como sujeito e o mundo que o rodeia. Tempo, espaço e educação escolar Falar de uma escola de tempo integral implica conside- rar a questão da variável tempo — a ampliação da jorna- da escolar — e a variável espaço — colocada aqui como o próprio espaço da escola, como o continente dessa ex- tensão de tempo. Variáveis essas que estão longe de se constituírem neutras, segundo Viñao-Frago: [...] esses lugares e tempos são determinados e determinam uns ou outros modos de ensino e aprendizagem. [...] Em síntese, o espaço e o tempo escolares não só conformam o clima e a cultura das instituições educativas, mas também educam (Viñao-Frago, p. 99, trad. dos autores, apud Pessanha; Daniel e Menegazzo, 2004, p. 65). É importante ressaltar o caráter educativo do espaço- tempo escolar, pois muitas discussões a respeito da exten- são do tempo, para o desenvolvimento das aprendizagens de crianças e jovens, consideram, prioritariamente, outros espaços educativos, existentes além da escola. Ainda que possamos estender essa discussão para outras, como a importância da intersetorialidade das po- líticas públicas, focando na vertente educacional, o que está em debate é o aumento de oportunidades ou a am- pliação nas condições de aprendizagem. O que podemos considerar que permeia e qualifica tais discussões é a concepção de educação integral que deve estar como pano de fundo para fundamentar sua execu- ção, seja na ampliação da jornada escolar, seja na articu- lação da escola com outros espaços públicos de aprendi- zagens, governamentais ou não-governamentais. Educação integral como direito à aprendizagem Só faz sentido pensar na ampliação da jornada escolar, ou seja, na implantação de escolas de tempo integral, se considerarmos uma concepção de educação integral com a perspectiva de que o horário expandido represente uma ampliação de oportunidades e situações que promovam aprendizagens significativas e emancipadoras. Segundo Antonio Flávio Barbosa Moreira, em estu- do sobre propostas que procuraram caminhar contraria- mente ao discurso hegemônico nas décadas de 1980 e 90,3 apontando alternativas e conquistas que merecem atenção, comenta sobre as escolas de tempo integral, no estado do Rio de Janeiro: A partir da preocupação em oferecer às crianças das camadas populares condições de aprendizagem, de enriquecimento cultural e de engajamento na luta por mudança social, estabeleceram- se, no estado do Rio de Janeiro, com o prioridades para a esfera educacional, o aumento da permanência do aluno na escola, com a eliminação do chamado terceiro turno, e a ampliação da rede escolar, com a construção de escolas de tempo integral (Moreira, 2000, p. 115). Devemos, ainda, considerar que as classes média e alta têm meios de proporcionar uma educação ampliada a seus filhos, mediante a matrícula em estabelecimen- tos de ensino privado, bem como o acesso e fruição de diversos outros espaços-oportunidades culturais, priva- dos e públicos. Esses estabelecimentos privados de ensino já ofere- cem atividades extracurriculares em seu contraturno, fun- cionando como uma jornada escolar expandida. Ou, tam- bém, na lógica da formação competitiva, muitas famílias compõem, para seus filhos, uma agenda de investimen- 132 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tos educativos, oferecendo uma suplementação do horá- rio escolar, com atividades de aprendizagem, por meio de cursos de idiomas, práticas de atividades físicas, es- portes diversificados, cursos artísticos etc. É importante ressaltar que, quando nos referimos às ins- tituições de ensino privado, na lógica de mercado, a educa- ção oferecida concorre, por sua clientela, com outras institui- ções similares na oferta de um produto melhor. Desse modo, no entanto, a educação escolar fica caracterizada como uma mercadoria e, assim, perde seu significado como direito as- segurado constitucionalmente. Em termos de uma política pública de educação, a concepção de educação integral também incorpora a idéia de uma oferta maior de oportunidades complemen- tares de formação e enriquecimento curricular, como di- reito de aprendizagem das novas gerações, independen- temente da lógica perversa de mercado que determina que o acesso se define por quem pode pagar mais. Em uma perspectiva crítico-emancipadora que nos possibilita refletir sobre a função social da escola, Bour- dieu e Passeron ressaltam: Ao possibilitar às classes subalternas a apropriação do saber sis- temático, revelando-lhes, por essa mediação, as relações de poder em que se estrutura a sociedade, a educação lhes permite também a compreensão do processo social global, uma vez que este saber está genética e contraditoriamente vinculado à situação social, por mais que, ideologicamente, se tente camuflar esta vinculação. O saber acaba levando ao questionamento das relações sociais, mediante um processo de conscientização do real significado dessas relações enquanto relações de poder, revelando inclusive a condição de contraditoriedade que as permeia (apud Almeida, 2005, p. 151). Não se trata apenas de um simples aumento do que já é ofertado, e sim de um aumento quantitativo e quali- tativo. Quantitativo porque considera um número maior de horas, em que os espaços e as atividades propicia- das têm intencionalmente caráter educativo. E qualita- tivo porque essas horas, não apenas as suplementa- res, mas todo o período escolar, são uma oportunidade em que os conteúdos propostos podem ser ressignifica- dos, revestidos de caráter exploratório, vivencial e pro- tagonizados por todos os envolvidos na relação de en- sino-aprendizagem No tocante às relações no ambiente escolar, elas me- recem ser repensadas e reformuladas. Isso compreende não apenas a execução dos dispositivos institucionais já existentes, embora, por vezes, pouco desenvolvidos — como os conselhos, os grêmios, as reuniões de planeja- mento e reuniões com os pais —, como também repensar e reformular as relações no ambiente escolar, o que im- plica esforço e desejo coletivo, principalmente daqueles que detêm posições de poder na instituição. Poderíamos pensar, hipoteticamente, em uma deter- minada escola, onde há um diretor muito atuante, zelo- so e que trabalha para que as condições físicas do pré- dio se mantenham em perfeitas condições. Uma escola onde os horários sejam rigorosamente respeitados pe- los professores e alunos e que esses últimos, apesar de cumprirem com o que é disposto, não se vejam motiva- dos e não tenham qualquer prazer em estudar ali. Essa instituição, apesar do zelo e dedicação desse dirigente, não está cumprindo com sua função social, além de re- produzir um modelo de controle e treinamento. A construção de um tempo e espaço democráticos É certo que uma escola deve apresentar condições ade- quadas, tanto físicas quanto organizacionais para fun- cionar, mas isso não basta. É preciso que algumas des- sas condições existam a priori, como um corpo docen- te, salas e mobiliário adequados ao número de alunos, salas de aula, sala-ambiente de leitura, de informática, de ciências, e que seu caráter de funcionalidade seja uma conseqüência das relações democráticas vividas em seu interior. Queremos dizer, com isso, que a relação existente entre dirigentes, professores, educandos e familiares (comunida- de educativa) pressupõe que cada segmento tenha voz pró- pria e um canal de expressão de suas necessidades, opi- niões e sugestões sobre a forma de organização do espa- ço escolar, espaço esse que é comum a todos. E o que é comum a todos é, na realidade, um espa- ço que tem uma função educativa, que promove apren- dizagens significativas, não para a vida futura e adulta das crianças e jovens e, sim, para a vida que é vivida no aqui e agora do ambiente escolar. O momento de esco- larização não se dá à parte da vida, portanto, ele só po- derá se realizar, ao se constituir num espaço vivo e pul- sante para todos os envolvidos. Democratizar as relações existentes na escola pres- supõe a democratização do acesso a todos os meios dis- poníveis para as situações de aprendizagem e a sua ges- 133 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tão compartilhada. Significa distribuir o poder, muitas ve- zes concentrado, para um partilhar conjunto de respon- sabilidades e o exercício de uma autonomia progressi- va. Agregando, desse modo, o aprendizado de um currí- culo que considere as relações existentes e a participa- ção de todos. Conseqüentemente, esse currículo propi- ciará a formação de sujeitos críticos, autônomos e com as competências necessárias para participar coletiva- mente em uma sociedade democrática. Uma escola democrática precisa contribuir para o de- senvolvimento de competências diversas, como ressal- ta Flávio Brayner: No campo lingüístico-argumentativo, capaz de gerar códigos elabo- rados, necessários a formulações generalizantes e abstracionistas exigidas no circuito da comunicabilidade intersubjetiva, produtora de verdades consensualmente válidas, espaço decisivo de geração de palavras e de ação; a competência propositiva, capaz de gerar táticas e estratégias alternativas e que forçosamente re-envia a confrontação argumentativa ao espaço público e ao diálogo; a competência decisória, que exige a visibilidade do outro, em voz e ação; a competência auto-inquiridora que nos permite interrogar os fundamentos de nossa própria inserção no mundo, de nossas relações com ele e com os outros (Brayner, 1995, p. 141-142). Nesse sentido, na escola de tempo integral, o uso dos espaços e tempos deve ser repensado, de modo a criar situações e oportunidades para o desenvolvimento das competências no campo lingüístico-argumentativo, competência propositiva, competência decisória e com- petência auto-inquiridora. Tradicionalmente, as escolas se organizam em salas de aulas, com turmas pré-definidas por idade/seriação e com horários bastante demarcados entre o início de uma atividade (aula), seu término e o início de outra. Não ne- cessariamente aprendemos nesses compassos. E estas formas de organização são muito mais devedoras de um outro tempo, de outros contextos históricos e políticos, das formas encontradas por administradores da coisa pú- blica, para a concepção de um sistema em que os recur- sos oferecidos sejam moldados para darem conta de res- ponder a uma determinada oferta de serviços. Mas é importante salientar que essa oferta nem sem- pre considerou a demanda, nem a qualidade social da educação, não como a discutimos nos últimos anos. A eficácia de aulas criativas e prazerosas Há que se considerar que a universalização do ensino fundamental é conquista relativamente recente em nos- sa história da educação pública e a garantia do acesso, como matrícula e permanência, não é suficiente para que a escola cumpra sua função social, embora sejam condições básicas. Não obstante, é preciso avançar. E avançar muitas ve- zes é ousar fazer diferente, ainda que a diferença ocorra no microterritório, seja no modo como uma sala de aula pode ser disposta, no arranjo das carteiras, na organiza- ção de uma aula que se desprenda desse espaço, que explore outros espaços existentes na escola e mesmo fora dela, articulando-se com outros lugares e serviços potencialmente educativos. 134 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Poderíamos, por exemplo, pensar que uma aula-ati- vidade de ciências (ou qualquer outra disciplina, oficina) possa ser preparada na escola com a participação de to- dos, visando se desenvolver em um parque próximo, em uma praça ou em outros espaços possíveis que se mos- trem adequados à finalidade da aula. Tal diversificação do que poderia ser uma aula tradi- cional, ocorrida na mesma sala de todos os dias, pode se constituir em uma experiência rica e significativa para to- dos os envolvidos e não apenas para os educandos. E não se trata simplesmente de fazer “passeios”, de artificialmente intercalar aulas repetitivas, monótonas, com supostas “saídas” ou excursões divertidas. Trata-se de considerar excursões, atividades extra-escola e aulas em sala, como um todo, como um projeto pedagógico de desenvolvimento de uma determinada disciplina, em que não precisa haver repetição e que a diversão não é ini- miga da aprendizagem, ao contrário, quando aprende- mos de modo prazeroso, esses aprendizados se tornam muito mais significativos. Cabe ainda ressaltar que uma situação de aprendi- zagem que extrapola os espaços da sala de aula ofere- ce inúmeras oportunidades educativas, por exemplo, como o grupo vai se organizar, quem vai se responsabi- lizar por esta ou aquela atribuição etc. Comumente, na sala de aula, os lugares são determinados desde o início e quase nenhum desafio é vivenciado, seja sobre a for- ma de os alunos adentrarem à sala, seja a de ocuparem seus lugares e já terem, em mente, o que, em termos de dinâmica de uma aula tradicional, provavelmente vai se desenvolver nos próximos 50 minutos. Uma aula-atividade em um ambiente diferente propi- cia um novo olhar sobre as relações. A discussão quanto a sua preparação, sua avaliação e os conflitos ocorridos não representa prejuízo no desenvolvimento dos conte- údos propostos. Significa, sim, que os conteúdos foram ampliados e não se considera que planejar e avaliar são aspectos apenas do aprendizado de qualquer disciplina, como também o são para a vida. E que os conflitos ocorri- dos não desqualificam a atividade, ao contrário, enrique- cem-na, desenvolvendo competências diversas. Tais atividades, com todos esses aspectos envolvidos, poderiam ser consideradas numa perspectiva mais inte- gral de educação, pois concebem o sujeito por inteiro e num contexto real. No cotidiano, as relações passam por conflitos de interesses, opiniões, desejos, e o exercício é aprendermos a administrá-los democraticamente. Nesse sentido, cabe refletir sobre as diferentes abor- dagens de currículo em jogo e considerar o desenvolvi- mento de arranjos curriculares no contexto de uma edu- cação (de tempo) integral. Vale lembrar as reflexões de Lígia Coelho e Dayse Hora que retomam a perspectiva crí- tico-emancipadora para uma concepção curricular: 135 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Entendemos Educação Integral dentro de uma concepção crítico- emancipadora em educação. Na prática, ela eclode como um amplo conjunto de atividades diversificadas que, integrando o e integradas ao currículo escolar, possibilitam uma formação mais completa ao ser humano. Nesse sentido, essas atividades constituem-se por práticas que incluem os conhecimentos gerais; a cultura; as artes; a saúde; os esportes e o trabalho. Contudo, para que se complete essa formação de modo crítico-emancipador, é necessário que essas práticas sejam trabalhadas em uma perspectiva político-filosófica igualmente crítica e emancipadora (Hora e Coelho, 2004, p. 9). Conclusão Falar em educação integral e de uma escola de tempo integral, longe de se constituir em modismo em nossa educação pública, compreende a formulação de ques- tões relevantes e atuais, se quisermos pensar nas diver- sas proposições e formulações existentes, para além dos slogans educativos contemporâneos e do modo superfi- cial como, muitas vezes, o tema da educação integral é trazido às discussões. Abordar a educação integral e o desenvolvimento de uma escola em tempo integral implica um compromisso com a educação pública que extrapole interesses polí- ticos partidários imediatos; que se engaje politicamen- te numa perspectiva de desenvolvimento de uma escola pública que cumpra com sua função social, qual seja, a de socializar as novas gerações, permitindo-lhes o aces- so aos conhecimentos historicamente acumulados, con- textualizando-os e contribuindo na ampliação do capital simbólico existente, propiciando às crianças e jovens co- nhecer o mundo em que vivem e compreender as suas contradições, o que lhes possibilitará a sua apropriação e transformação. Um compromisso ético-existencial tão bem enunciado por Hanna Arendt e que diz respeito a todos nós, educadores: A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável, não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expul- sá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência, para a tarefa de renovar um mundo comum (Arendt, 1979, p. 247). Bibliografia ALMEIDA, L. R. S. Pierre Bordieu: a transformação social no contexto de “A re- produção”. INTER-AÇÃO. Revista da Faculdade de Educação, Editora da UFG, Goiânia, v. 30, n. 1, p. 139-155, 2005. ARENDT, H. A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro. 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Documento do Congresso Internacional de Educação, realizado em São Paulo, em 27 e 28/03/06. (Mimeo). 3 Discurso neoliberal que expressava os interesses conservadores de grupos de direita, bem como buscavam aplicar, às escolas, as leis do livre mercado. 136 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Em cada rosto, a cada gesto ou palavra dos jovens, sinto que é necessário nos organizarmos e nos unirmos para continuarmos este trabalho, a fim de resgatarmos valores, talentos, virtudes, cidadania e dignidade. “Ações em Rede” é um projeto em que nos motivamos, tro- camos experiências e nos reanimamos para continuar nossa incansável caminhada em prol das crianças e adolescentes do Cidade Aracy. Josenil Pereira da Cunha Liderança jovem da Paróquia N. Sra. de Guadalupe Fruto da parceria entre a Prefeitura Municipal de São Carlos — Secretaria Municipal Especial da Infância e Ju- ventude — SMEIJ e Secretaria Municipal da Educação e Cultura – SMEC, o Centro de Estudos e Pesquisas em Edu- cação, Cultura e Ação Comunitária – Cenpec e a Funda- ção Volkswagen, o Projeto “Ações em Rede” começou em 2005. A opção pelo município de São Carlos, como referência-piloto de um projeto desta natureza, deve-se à determinação política da Prefeitura no atendimento a crianças e adolescentes, fazendo jus, inclusive, ao Prê- mio Prefeito Amigo da Criança. “Ações em Rede” é um projeto que visa promover a in- tegração de ações educativas, desenvolvidas por organiza- ções governamentais e não governamentais de um determi- nado território, a favor da educação e proteção integral de crianças e adolescentes, para as quais concorrem a educa- ção escolar, considerada central no desenvolvimento da ci- dadania, e outros espaços de aprendizagem existentes. Busca incentivar e fortalecer o diálogo entre a escola e outras instituições de caráter educativo, por meio de uma ação coletiva, potencializando ao máximo seus re- cursos e atuação, na perspectiva da construção de uma rede de base local. Um projeto a favor da educação integral de crianças e de adolescentes A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente são instrumentos legais, conquistados pela sociedade brasileira, que reconhecem e confirmam as crianças e os adolescentes como sujeitos sociais de di- reitos, e atribuem, respectivamente, nos seus Artigos 4 e 227, a responsabilidade da sua educação à família, à sociedade e ao estado, que lhes devem assegurar, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à edu- cação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à li- berdade e à convivência familiar e comunitária. Seguindo o mesmo princípio, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional amplia o conceito de educação para além da educação escolar, reconhecendo o caráter socio- educativo de outros espaços públicos, governamentais e não governamentais, e sua importância para o desenvol- vimento integral de crianças e adolescentes, entendido como o desenvolvimento de suas potencialidades. Sabe-se que quanto mais acesso tiverem aos bens culturais socialmente produzidos, maiores serão as pos- sibilidades de ampliação do repertório cultural e de ní- veis mais elaborados de letramento das pessoas, condi- ções para o sucesso escolar e para o crescimento pessoal e social. Compreendemos que, somente juntando esfor- ços entre os envolvidos, de alguma forma, com a educa- ção de crianças e jovens, pode-se garantir a eles, como de direito, a educação mais completa possível. Uma proposta em construção O espaço indicado pela SMEIJ para o desenvolvimento do projeto-piloto foi a região da Cidade Aracy,1 por ser carente e contar com alguns elementos mobilizadores, como a existência de grupos organizados: associações, ONGs,igrejas etc.2 * Maria José Reginato é pedagoga e coordenadora de projetos do Cenpec. Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes é pedagoga e pesqui- sadora do Cenpec. RELATO DE pRÁTICA PROJETO AÇÕES EM REDE No Aracy, com garra, transformando idéias em ações. Maria José Reginato Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes* 137 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Iniciaram-se, então, reuniões de concertação com am- bas as secretarias — SMEIJ e SMEC — no sentido de dis- cutir e afinar a proposta e seus respectivos princípios, pressupostos e metodologia entre os parceiros, definin- do-se, ainda, critérios de adesão das demais secretarias e instituições a serem gradativamente envolvidas. A missão primordial da Secretaria Especial da Infância e Juven- tude, criada em janeiro de 2005, é a integração das diversas ações de órgãos, governamentais e não governamentais, de- senvolvidas no município em prol das crianças e adolescentes de nossa cidade. Articular as inúmeras iniciativas é um grande desafio. Neste contexto, tivemos a oportunidade de trazer para São Carlos o Projeto “Ações em Rede”, objetivando a educação integral de crianças e adolescentes, entendendo que os espaços de aprendizagem, que para isso concorrem, são múltiplos. Este trabalho uniu em um território, conhecido como Grande Cidade Aracy, entidades e pessoas que ali vivem e desenvolvem ações a favor desse espaço. Há muito a ser feito para as crianças e jovens do bairro e o “Ações em Rede” tem mostrado que não há somente carências no Aracy, mas um potencial que pode e deve ser ativado. Pe. Agnaldo Soares Lima, Secretário da Infância e Juventude da Prefeitura de São carlos Como opção metodológica para a implementação do Projeto, o Cenpec propôs a constituição de duas instân- cias coletivas: o Grupo Gestor e o Grupo Referência (ver quadro ao lado), das esferas central e local, respectiva- mente – para propiciar uma dinâmica de relacionamento ágil e flexível entre os responsáveis pelas políticas públi- cas e as lideranças locais, no desenvolvimento de ações integradas de atenção à criança e ao adolescente, visan- do à formação de uma rede de base local. O Grupo Gestor tem caráter intersetorial, integrando representantes de diferentes secretarias da administra- ção municipal de São Carlos, e sua função é coordenar o desenvolvimento do Projeto na cidade, mobilizando, apoiando e viabilizando as ações dos parceiros do Gru- po Referência no Aracy. O Grupo Referência é composto por lideranças de or- ganizações governamentais e não governamentais do Ci- dade Aracy e tem o papel de planejar e desenvolver ações integradas entre as instituições locais, tendo como bali- za as perspectivas do Projeto, de forma a otimizar os re- cursos existentes no bairro e na cidade, numa interação GRUPO GESTOR, GRUPO DE REFERÊNCIA E EQUIPE DO CENPEC Participam atualmente do Grupo Gestor as se- guintes Secretarias de governo e instâncias centrais: Infância e Juventude; Educação e Cultura: represen- tação do Sistema de Ensino, Sistema Integrado de Bibliotecas e Departamento de Cultura; Saúde; Assis- tência Social e Cidadania; Esporte e Lazer; Fundação Educacional São Carlos; Administração Regional do Aracy; Diretoria de Ensino Estadual: representação do Sistema de Ensino e Programa Escola da Família; Conselho Tutelar; Universidade Federal de São Car- los, Centro de Divulgação Científica e Cultural (USP) e Centro Universitário Central Paulista (Unicep). Fazem parte do Grupo Referência as lideranças locais das seguintes instituições e serviços: Adminis- tração Regional de Saúde do Cidade Aracy; Núcleo Integrado de Saúde Cidade Aracy; Unidade Saúde da Família — Presidente Collor; Unidade Saúde da Família — Antenor Garcia; Centro de Referência da Assistência Social; Centro Comunitário Antenor Gar- cia; Creche Dário Rodrigues; EMEI Aracy II — Casa Azul EMEI Casa Rosa; EMEI Casa Amarela; E.M.E.F. Afonso Fioca Vitalli (CAIC); E.M.E.F. Arthur Natalino Deriggi; E.E. Dona Aracy Leite Pereira Lopes; E.E. Marivaldo Carlos Degan; E.E. Orlando Perez; GR Escola de Samba Acadêmicos do Aracy; Guarda Municipal atuante no Aracy; Polícia Militar: Pro- jeto J.C.C. Jovens construindo a cidadania; Igreja Evangélica Avivamento Bíblico; Paróquia N. Sra. de Guadalupe; Pastoral da Criança; Projeto Associação Atlética Banco do Brasil — comunidade; Salesianos — Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Co- munidade; TEIA — espaço de criação; Rodas de Fute- bol Antenor Garcia; ONG Espaço Cidadão. Integram, ainda, o Grupo Referência, todas as instituições que compõem o Grupo Gestor. A equipe do Cenpec é composta pelos seguintes profissionais: Antonio Sérgio Gonçalves, Maria José Reginato e Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes. 138 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Outro marco importante, em 2005, foi a realização de um seminário, no final do ano, na Fundação Educacio- nal São Carlos, que reuniu a comunidade organizada do Aracy, para discutir propostas de trabalho, visando ao atendimento das crianças e adolescentes do bairro. O seminário, aberto à população, contou com o apoio do poder executivo e legislativo, representados, respec- tivamente, pelo vice-prefeito Emerson Pires Leal, pelo se- cretário da Infância e da Juventude, padre Agnaldo Soares Lima, pela secretária da Educação e Cultura, professora Géria Maria Montanari Franco, e pela presidente da Câma- ra Municipal de São Carlos, Diana Cury, que compuseram a mesa e deram início aos trabalhos, manifestando sua visão a respeito do significado do Projeto para o município. As professoras Isa Maria Guará, assessora da coor- denação geral do Cenpec, e Elza de Andrade Oliveira, da Universidade Federal de São Carlos, tiveram papel impor- tante na análise das propostas elaboradas pelos quatro grupos de trabalho, destacando pontos relevantes para a elaboração do Plano de Ações Integradas, na continui- dade do Projeto, em 2006. 2006 — Onde estamos? A concentração de esforços do “Ações em Rede”, em 2006, incidirá sobre o Plano de Ações Integradas, tanto em relação à sua elaboração, ainda em processo, quan- to à implementação das ações a serem programadas, o que envolve um amplo movimento para “escutar” os ha- bitantes do Aracy, que nos proporcionará um conheci- mento mais real desse território e de sua gente. O primeiro passo para quem deseja planejar e implantar uma política de atendimento à criança e ao adolescente no município- é, sem dúvida, a análise da realidade de sua situação. Essa análise é que permitirá visualizar o que fazer primeiro, onde concentrar mais recursos, que intervenção utilizar; da mesma for- ma, permitirá detectar os aspectos menos agudos, ou seja, que podem esperar momento mais oportuno para uma abordagem sistemática, tanto pelo poder público quanto por organizações não-governamentais ou por uma aliança entre ambos. Nesse sentido, será importante o resultado do censo demo- gráfico no Aracy, abordando as condições educacionais, sócio- econômicas e de habitabilidade da população local (S.M.E.C. e Fundunesp). José Maria Loureiro Diniz Diretor do Depto. Educação Infantil — SMEC constante e orgânica com o Grupo Gestor, procurando tecer a malha da rede pretendida. Dada a sua natureza, a composição do Grupo Referên- cia é bastante heterogênea, o que lhe permite expressar a diversidade presente no bairro, trazendo o colorido das di- ferentes necessidades e desejos dos habitantes do Aracy. A articulação entre o Grupo Gestor e o Grupo Refe- rência, de acordo com a metodologia adotada, aconte- ce por meio de encontros sistemáticos e alternados en- tre: Cenpec e Grupo Gestor; Cenpec e Grupo Referência; Grupo Gestor e Grupo Referência. Esse caminho metodológico, percorrido pelos dois grupos cons- tituídos, permitiu um diagnóstico do potencial dessa região e, assim, chegar a um plano de ação comum. Esse processo de trabalho reforça e estimula a participação. Assim, estamos buscando construir o nosso próprio caminho [...] o setor público municipal e as demais entidades presentes no território, definindo um plano de ação, exatamente para termos alternativas de aprendizagem: profissional, cultural, esportiva, ambiental e outras, com a possibilidade de cons- trução de uma nova cidadania. Elisete Silva Pedrazzani Fundação Educacional São Carlos Tecendo a malha da rede — 2005 A idéia da constituição de uma rede de base local, direcionou, desde o início, o traçado da linha de traba- lho a ser desenvolvido no Aracy, exigindo a tarefa de ar- ticular e integrar instituições e lideranças para uma ação comum, que deveria ser referendada e sustentada por princípios e pressupostos também comuns. O primeiro passo para isso seria o conhecimento e o reconhecimento mútuo de todos os envolvidos, pois ali estavam reunidas experiências muito diferenciadas e im- portantes, porém, desconhecidas umas das outras, em- bora pertencentes a um mesmo território. Este passo foi um marco significativo que teve duas importantes conseqüências para a constituição do Grupo Referência: primeiro, representou um momento de refle- xão e análise de cada instituição sobre o que faz, como faz e para que faz; segundo, produziu uma primeira sis- tematização do grupo, organizada em um referencial in- formativo importante para a construção da rede, com a relação de todas as instituições envolvidas, disponibili- zada em CD-room, de fácil acesso para todos. 139 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 No processo de elaboração do Plano de Ações Inte- gradas, o Grupo Referência discutiu muito sobre as indi- cações do Seminário, definindo prioridades e princípios norteadores. Desse movimento, surgiram várias propos- tas que, problematizadas e reelaboradas, culminaram na atual versão do Plano, que ora apresentamos: Plano de Ações Integradas – 2006 Princípios norteadores: • Realizar ações integradas entre organizações go- vernamentais e não-governamentais e diferentes ins- tâncias do poder executivo estadual e municipal uni- tárias no bairro. • Fortalecer e estimular a criação de vínculos e relações comunitárias no bairro. • Promover a auto-estima e a afirmação da identidade da população. • Criar e manter canais permanentes de comunicação en- tre os participantes do “Ações em Rede” e no bairro. • Valorizar a participação da família nas atividades pro- movidas no bairro. FORMAÇÃO AÇÕES RECURSOS Cursos para a formação e capacitação dos cidadãos do Aracy. • Palestras educativas para jovens/famílias. • Grupos de jovens, multiplicadores – jovens, formando jovens. • Escola de circo. Voluntários / Departamento de Cultura / Escola da Família / Igre­jas /- Rodas de conversas entre jovens / Círculos de discussão /cursos dados pelos próprios jovens / lona e arquibancada disponíveis. EVENTOS AÇÕES RECURSOS • Mostras, exposições, shows que evidenciem os talentos do bairro (trabalhos manuais, artesanato, música, teatro, literatura etc.). • Eventos esportivos e culturais, seminários (seminário lúdico, seminário “Ações em Rede” e outros). • Espaço do mercado municipal e outros espaços da cidade. • Evento de mobilização comunitária do “Ação de Cidadania”. • Festa do bairro e outras. Otimização dos dados existentes, referentes ao bairro de Cidade Aracy. Eixos Temáticos São três os eixos temáticos: formação, eventos e comu- nicação. COMUNICAÇÃO AÇÕES RECURSOS 1. Ampliação dos canais de comunicação entre o “Ações em Rede” e a comunidade. 2. Levantamento e sistematização de dados considerados rele- vantes para o trabalho do “Ações em Rede” no Cidade Aracy: • seminário lúdico de escuta da população; • coleta de dados por agentes comunitários de saúde; escolas — conselho, grêmio, salas de aula nas diferentes disciplinas; estagiários da universidade; • censo escolar – SMEC; • dados das outras secretarias. 3. Divulgação das ações e serviços nos meios existentes. 4. Criação de um painel de informações utilitárias para os cidadãos do bairro (“Você sabia que...?”). 5. Criação de uma rádio e um jornal comunitário. 6. Produção de folhetos informativos e cartazes, confeccionados pelos próprios jovens. • Encontros sistematizados do “Ações em Rede”. • Comunidade virtual do “Território Escola” — “Ações em Rede” no site do Educarede (www.educarede.org.br). • “Escrevendo o Futuro” (Cenpec). • Jornais e rádios da cidade. • Folhetins/cartazes. Otimização dos dados existentes, referentes ao bairro de Cidade Aracy. 140 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Um olhar reflexivo sobre o Projeto Observando a trajetória do Projeto, ao longo do tempo, podemos vislum- brar conquistas e dificuldades. Como o próprio nome indica, “Ações em Rede” implica o movi- mento articulado de pessoas, o que já traduz sua dificuldade para cons- tituir um grupo com identidade pró- pria e que fale a mesma linguagem e trabalhe numa direção comum. Isso demanda paciência e persistência dos integrantes, em todo o proces- so, pois, a adesão ao grupo ocorre em diferentes momentos, tanto para as pessoas quanto para as próprias instituições. Respeitar o processo de cada um, acolher os recém-chegados e, ao mesmo tempo, corresponder às expectativas dos que já participam é uma aprendizagem difícil para to- dos nós. Por outro lado, as contin- gências particulares de cada parti- cipante ou instituição também pro- vocam instabilidade na composição e freqüência do grupo. As variadas funções que cada um desempenha em sua instituição, bem como as di- ferenças de formação e de experiên- cias de vida, também expressam uma diversidade com a qual o grupo preci- sa aprender a lidar. Se, por um lado, são reconhecidas estas dificuldades para a constituição do grupo, por outro, o próprio proces- so vivido, aparentemente simples, já se configura como conquista, se con- siderarmos o número expressivo de instituições que aderiram ao Projeto e a criação de um amplo espaço co- letivo de participação local, condi- ção básica e essencial para o plane- jamento de ações integradas. O “Ações em Rede” é de suma importância para qualquer comunidade, não somente para o grande Aracy, pois divulga, canaliza e fortalece ações que estão sendo e que poderão ser desenvolvidas para a população menos favorecida; é através dele que as outras instituições vêem que suas contribuições, por menores que sejam, são de grande valia. Júlia Gomes da Silva Freitas Educadora da EMEI Casa Azul / Apoio pedagógico do Projeto Associação Atlética Banco do Brasil O pequeno número de entidades não-governamen- tais que até o momento se fizeram representar no pro- jeto pode ser um dado significativo que nos leva a pen- sar na necessidade de se investir na produção de capi- tal social na região, para que a população possa contar com novos espaços de participação que ampliem ofertas educativas para suas crianças e adolescentes. O “Ações em Rede” espera contribuir para isso, unindo esforços para a conquista de novos parceiros e para a consolida- ção das parcerias estabelecidas. A adesão definitiva das universidades locais, que recentemente participaram de encontros do “Ações em Rede” – Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR, Universidade de São Paulo – Centro de Divulgação Cien- tífica e Cultural – CDCC e Centro Universitário Central Pau- lista – Unicep – será uma conquista muito importante para o Projeto, porque poderá ampliar as possibilida- des de desenvolvimento de ações sistemáticas no bair- ro, com as contribuições que lhe são peculiares. Há que se destacar, ainda, a gestão compartilhada do Projeto que, desde o início, permitiu a interlocução franca e afetiva entre o Grupo Gestor, o Grupo Referên- cia e o Cenpec, dando apoio, sustentação e vida ao pro- cesso. Consideramos este o ganho mais expressivo do Projeto, uma vez que o trabalho intersetorial é um gran- de desafio para as políticas públicas do mundo contem- porâneo, pois exige múltiplos esforços para romper com a fragmentação tradicional de nossa cultura. A reflexão que ora fazemos sobre o que foi realizado até este momento no “Ações em Rede” nos dá clareza sobre os limites do Projeto, nas suas condições concre- tas, mas também nos revela suas possibilidades como uma mensagem de confiança no futuro. 141 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Participar do “Ações em Rede” reforça em mim a certeza de que necessito cada vez mais participar de espaços nos quais seja possível contribuir com a formação de seres humanos conscien- tes e dispostos a dedicar sua energia em favor da constituição de um cotidiano mais saudável e equilibrado. Fico feliz em me ver atuando diariamente nesse sentido. Julio César Pereira Júnior Programa de medidas Socioeducativas em meio aberto Salesianos – São Carlos Bibliografia MELLO, Roseli Rodrigues de. Comunidades de aprendizagem: democratizando relações entre escola e comunidade. In: GT: Movimentos Sociais e Educa- cionais, n. 3, Agência Financiadora, Fapesp. GUARÁ, Isa. Educação Integral. Articulação de projetos e espaços de aprendi- zagem, 2005 http://www.Cenpec.org.br/modules/xt_conteudo/index. php?id=46 Série Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, n. 4, Gestão Municipal dos Serviços de Orientação à Criança e ao Adolescente, Instituto de Estudos Espe- ciais da PUC/SP, Centro Brasileiro para a Infância e Juventude, 1995. CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. et alli. Desenvolvimento local. Dez. 2002. BRANCHER, Leoberto N. Visão Sistêmica da Implementação e da Gestão da Rede de Atendimento. In: MARQUES, Antônio E. S. e BRANCHER, Leoberto N. (Coord.). Encontro pela Justiça na Educação. Brasília. Fundescola/MEC 2001. Notas 1 Trata-se de uma região 02 do Município de São Carlos, englobando os bairros Presidente Collor, Antenor Garcia e Cidade Aracy. População: 15.338 habitantes (Fonte: Orçamento Participativo – IBGE – 2000). 2 Os dados encontram-se no box da página 40. 142 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 143 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 ste texto tem por objetivo discutir algumas relações entre educação e cultura, a partir da constatação de que os embates entre as valorizações e desvalorizações de personagens, relações sociais e modos de vida influen- ciam as práticas educacionais. Num primeiro momento, retomaremos e ampliaremos algumas idéias sobre edu- cação e cultura discutidas anteriormente (Setúbal e Er- nica, 2005). Para isso, serão apresentadas formulações teóricas baseadas na obra de Vigotski sobre o papel do “outro” social na formação das pessoas. A seguir, essas idéias serão relacionadas com as de patrimônio cultural e de educação para que, por fim, cheguemos às ques- tões que se quer levantar. Conforme já afirmamos, entendemos por “educação” os diversos processos que os grupos humanos elaboram para fazer com que as novas gerações aprendam os sabe- res que são socialmente valorizados e, sendo assim, po- demos estender o sentido de “educação” para todos os processos pelos quais os legados passados são transfor- mados em modos de viver no presente. Dessa maneira, estamos supondo que a sociedade é lógica e historica- mente anterior aos indivíduos e que nela existem meios de vida (materiais e simbólicos) que forçosamente de- vem ser apropriados pelos seres humanos. O “eu”, o “outro” e a sociedade Assumimos que o “outro” antecede a formação do “eu” e, mais especificamente, que o “eu” só poderá se formar a partir do momento que forem estabelecidas, no qua- dro de atividades coletivas, uma série de interações so- ciais que permitam aos indivíduos interiorizar os meios de vida que eram, num primeiro momento, exteriores a artigo Dos outros de que somos feitos: educação, cultura Maurício Ernica* e conflitos sociais. E * Maurício Ernica é cientista social pela Universidade de São Paulo, Mestre em Antropologia pela Universidade de Campinas e Doutor em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP. 144 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 ele. O “eu”, portanto, é social; todas as dimensões de nossa vida são sociais, do nosso gestual ao modo como divagamos em pensamentos incertos. Na obra de Vigotski (1934), encontramos subsídios para sustentar essas afirmações. Como é sabido, Vigotski (1934) atribui um lugar central à interiorização dos signos verbais na formação do agir humano. É pela apropriação da linguagem que a consciência se forma, pois a interio- rização dos signos verbais permite que imagens difusas e idiossincráticas sejam transformadas em representações sociais que generalizam experiências, que são estáveis e discretas e que, por essas características, podem ser re- produzidas para além da presença do objeto. No sujeito, os signos interiorizados permitem a ele ter acesso a si mesmo e a agir sobre seu corpo e seu pensa- mento. A interiorização dos signos propicia a emergência do mecanismo ativo e auto-reflexivo que permite ao su- jeito tomar-se a si mesmo um outro, agir sobre si como quem age sobre um outro e, assim, desenvolver suas ca- pacidades psíquicas. Vigotski reconhece que em todas as espécies são ge- rados traços internos de seu comportamento ativo. En- tretanto, o que seria particular aos seres humanos é que, tanto suas necessidades quanto o processo de sua satis- fação e como o quadro de interações com os outros mem- bros da espécie emergem em seu interior, generalizados e formalizados em representações sociais distintas e re- lativamente estáveis, podem ser apropriadas e operacio- nalizadas pelos seres humanos (cf. Bronckart, 1997). A partir de Vigotski, podemos ver que o material que nos forma como pessoas, que nos permite desenvol- ver nossos mecanismos auto-reflexivos e que nos abre a possibilidade de nos auto-orientarmos, é social e es- tava, primeiro, fora de nós, no outro. Portanto, só pode- mos existir como humanos porque fazemos com que as marcas dos outros existam dentro nós como recursos que nos formam; porque, pela interiorização das pala- vras e das ações dos outros, desenvolvemos a possibili- dade de nos estranharmos, de olharmos a nós mesmos como um outro. É o que se expressa na seguinte passa- gem de Vigotski: Conhecemos nós mesmos porque conhecemos os outros, e pelo mesmo procedimento pelo qual conhecemos os outros, porque nós somos em relação a nós mesmos os mesmos que os outros são em relação a nós. Eu me conheço somente na medida que eu sou eu mesmo um outro para mim (1925, p. 90; em tradução livre de M.E.). Diversos animais usam instrumentos materiais como extensão de suas propriedades naturais, como a teia para a aranha ou um galho para um macaco. No caso dos hu- manos, afirma Vigotski, a esses instrumentos materiais, são associados instrumentos semióticos, que permi- tem ao humano agir sobre o meio, representando para si mesmo e para os outros suas necessidades, suas fi- nalidades e o curso de sua ação. De posse dos signos, então, cada humano pode tomar distância em relação a si e ao meio, pode autonomizar o seu próprio agir e, por extensão, pode regulá-lo e se responsabilizar por ele (Vi- gotski, 1984). Assim, a partir das interações sociais e da interiori- zação da linguagem verbal, tanto o agir humano quan- to o mundo são representados em imagens mentais que podem ser confrontadas com as de outros seres huma- nos. Com isso, geram-se representações sociais váli- das coletivamente que fazem com que, para cada indi- víduo particular, o mundo se apresente como um mun- do (re)presentado socialmente, como um mundo já vis- to anteriormente (cf. Ernica, 2006). É importante que assim seja, pois, desse modo, ga- rante-se que os modos de agir não tenham de ser reinven- tados a cada momento. Podemos pensar na noção de gê- nero de texto e na famosa imagem de Bakhtin em Os gê- neros do discurso, segundo a qual, sem os modelos rela- [...] só podemos existir como humanos porque fazemos com que as marcas dos outros existam dentro nós como recursos que nos formam; porque, pela interiorização das palavras e das ações dos outros, desenvolvemos a possibilidade de nos estranharmos, de olharmos a nós mesmos como um outro. 145 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tivamente estáveis de dizer e compreender, a comunica- ção humana seria impossível. Com Vigotski, assumimos, então, que as experiências passadas são generalizadas, formalizadas socialmente e tornam-se disponíveis como meios para que os sujeitos possam desenvolver novas vi- vências (cf. Vigotski, 1925 e 1934 e Clot, 2003). Não há palavras isentas de valorações e afetos A afirmação de que somos seres sociais implica o reconhecimento de que o modo como somos, a manei- ra como vivemos, recoloca no presente outras pessoas e outras experiências que existiram antes de nós. Quan- do falamos, fazemos ressoar as vozes daqueles com os quais nos formamos; quando agimos, revelamos o agir daqueles com os quais interagimos anteriormente. Cabe agora trazer para a discussão outra idéia de Vi- gotski (1934, cap. 7). Para o autor, todo signo verbal é marcado pelo conteúdo afetivo e valorativo que anima a relação das pessoas com o objeto a que ele se refere. Não há palavras isentas de valorações e afetos. Assim, ao nomearmos ou mesmo ao nos lembrarmos de algo, atribuímos valores a esse “algo” e dirigimos a ele deter- minadas emoções. Podemos concluir, portanto, que as vozes e as ações dos outros que nos compõem são re- cobertas por valores e emoções. Os outros que nos permitem viver socialmente po- dem existir para nós, por exemplo, como um outro re- provável ou louvável, pernicioso ou engrandecedor, re- pulsivo ou atraente, digno ou risível, imprescindível ou descartável. Na medida que esses outros existem em nós e nos constituem, os afetos e valorações que se re- ferem a eles tornam-se afetos e valorações referidos a aspectos nossos. São esses pressupostos teóricos que nos permitem afirmar que as atividades educacionais e o patrimô- nio cultural de um grupo estão profundamente interli- gados. Só se pode falar em educação porque existe um meio cultural e porque, nele, há saberes que são valori- zados e que devem ser transmitidos para as novas gera- ções. Assim, as várias formas de desenvolver a ativida- de educacional são fundamentais para que todo o patri- mônio cultural que um grupo herda de seus antepassa- dos seja transmitido e sirva de meio para as novas ge- rações viverem. Seguindo nessa argumentação, afirmamos que há um olhar para a vida cultural e uma seleção do que deve ser ensinado que antecede a atividade educacional propria- mente dita. Como dissemos, a própria noção de educa- ção pressupõe a definição de quais são os saberes so- cialmente relevantes e que formam o patrimônio valoro- so a ser transmitido. Para além dos saberes propriamente intelectuais e es- colares, como ler e escrever diferentes gêneros de texto e fazer operações matemáticas em situações diversas, ensina-se, também, a olhar para a própria história, ensi- na-se também a valorizar este ou aquele produto do tra- balho humano, este ou aquele grupo social como presti- gioso, importante, belo, valioso ou como sem prestígio, sem importância, feio ou sem valor. Identificamos que há uma seleção de elementos da natureza, da cultura material e da cultura imaterial (os saber-fazer) para definir o que é o patrimônio cultural de um grupo. Essa seleção constrói uma determinada leitura do passado e dos aspectos que devem ser lembrados no presente e dos que devem ser silenciados; ela cria repre- sentações dos personagens, dos saberes e de suas obras que influenciam o desenrolar da história. A partir dessa abordagem, podemos ver que há con- teúdos valorizados e selecionados por algumas práti- cas educacionais que podem, no entanto, ser desvalo- rizados e excluídos de outras práticas. Pode ser que al- guns grupos sociais consigam consolidar na coletivida- de certas representações que estigmatizem modos de vi- ver que são nossos. Pode ser que o modo de viver, pen- sar, sentir, falar, que desenvolvemos em alguns espaços de sociabilidade, seja interdito ou estigmatizado em ou- tros. Pode ser que acabemos por fazer viver em nós mo- dos de vida estigmatizados e, ao mesmo tempo, o olhar que os estigmatiza. A interiorização do outro e as cargas discriminatórias A título de exemplo, vejamos trechos do verbete “caipira” nos dicionários Houaiss e Aurélio. HOUAISS: Adjetivo: 1. que vive no interior, fora dos centros urbanos, no campo ou na roça; roceiro; 2. que leva uma vida campestre rústica, tem pouca instrução, pouco convívio social, e hábitos e modos rudes (por vezes, pejorativo); 4. Derivação: sentido figurado que é tímido, acanhado, pouco sociável. 146 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Substantivo: 7. indivíduo natural ou habitante de parte das regiões Sudeste e Centro-Oeste brasileiras, esp. São Paulo, de origem rural, caracterizados pela agricultura de subsistência, pela cultura itinerante e por não terem a posse da terra; 8. indivíduo simplório, ger. habitante do campo, de pouca instrução e modos pouco refinados. AURÉLIO S. 2 g. 1. Bras. S. Habitante do campo ou da roça, particular- mente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos e canhestros. S. m. Adj. 2 g. 5. Bras. Diz-se do indivíduo sem traquejo social; cafona, casca-grossa. 6. Bras. Diz-se das festas juninas e do traje típico usado nessas festas. [Cf. (nas acepções 1, 3, 4 e 5) provinciano.] Notemos que a definição do caipira é feita, sobretu- do, por marcas de insuficiência (pouco isso, pouco aqui- lo...) e de ausência (sem isso, sem aquilo...) de caracte- rísticas valorizadas positivamente e que são quase sem- pre associadas à vida urbana, moderna e letrada. Em ge- ral, “caipira” virou uma designação pejorativa e voltada para o outro – é quase uma acusação de falta de traque- jo com as coisas do progresso.1 Uma das conseqüências disso é que se identificar como caipira envolve um embate contra toda uma carga discriminatória. Reconhecer em si traços do mundo cai- pira e se ver na história rural paulista, portanto, é reco- nhecer em si esse universo que aprendemos que deve ser recusado e evitado em nome do progresso e da mo- dernidade – do futuro. Acrescente-se a isso o fato de que as representações do “Brasil profundo” e da “cultura popular brasileira” re- metem, em geral, a universos culturais nordestinos e mi- neiros. Parece haver um certo consenso de que não há cul- turas tradicionais e populares em São Paulo habilitadas a fazer parte do nacional. Quando elas não são desconheci- das, não é raro que essas tradições sejam relegadas à con- dição de “regionais”, uma etiqueta que serve para designar o que desvia do que foi aceito no “nacional”. No interior e na capital de São Paulo, há experiências de vida, memórias orais e escritas, marcas nas ruas e nas edificações, experiências artísticas, manifestações reli- giosas e celebrações populares que sobrevivem, por ve- zes, de maneira desconexa e como experiências residuais- que não cabem por inteiro nos símbolos hegemônicos da identidade paulista. Na sua própria terra, a história os tornou fora de lugar, os desterrou.2 Na sociedade brasileira, é comum vermos o mundo da cultura erudita e dos saberes letrados voltando-se agres- sivamente contra os legados rurais transmitidos oralmen- te, sobretudo aqueles que herdamos das pessoas sim- ples. Em vez de serem meios para vivermos no presente e para inventarmos o futuro, tais legados passam a ser vistos como máculas e como traços que devem ser repri- midos. Não é raro nos depararmos com resultados trági- cos devido a isso, como tentativas mal-ajambradas de se evitar o que se é, em nome de uma busca aflita de se pa- recer o que não se é e que nem pode se chegar a ser. A personagem Biela, do filme Uma vida em segredo, de Suzana Amaral, revela esses conflitos. Ela é uma mu- lher formada no meio rural; em seu agir e em suas pala- 147 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 vras, manifesta-se a cultura rústica e simples, ligada às coisas da terra. Com a morte de seus pais, Biela herda terras cultivadas e gado, tornando-se muito rica. Entretanto, como quem administrará seu patrimônio será Conrado, seu primo e tutor, ela é forçada a se mu- dar do lugar onde mora, chamado de “fundão”, para a casa de seu primo, na cidade. Lá, Biela se confronta com o universo do luxo burguês e com as pressões para se comportar como uma dama da sociedade. Por um mo- mento, Biela considera as iniciativas da esposa de Con- rado como boas e necessárias, lançando-se numa sofri- da e constrangedora re-socialização. Para tornar-se uma dama citadina, Biela precisaria ne- gar-se, precisaria abrir mão de gestos, roupas, hábitos, pala- vras, pensamentos, sentimentos e laços sociais. Já no limi- te do sofrimento e após um noivado mal sucedido, ela rom- pe com o projeto de viver segundo hábitos que não são os seus e que a transformara numa caricatura risível. Biela ten- tará reconstruir sua sociabilidade simples na cidade. Será com os empregados das damas da sociedade aburguesa- da, que ela recusa, que Biela se sentirá à vontade. Entretanto, o isolamento de Biela não será superado e a personagem viverá o aprofundamento da carência de relações com outros que a afirmem, que legitimem seu legado cultural. Por decorrência da ruptura das re- lações nas quais ela pudesse desenvolver-se como ela mesma, Biela morre. Podemos encerrar este texto lançando essas ques- tões para as práticas educacionais. A escola pode ser um fórum de consolidação desses preconceitos e des- sas mutilações. Afinal, o sistema escolar, nele incluídas as universidades, é a instância decisiva para a formação da gente letrada e culta. Se é assim, pensar a educação de modo amplo, in- tegral, pode ser um meio de reconhecermos que algu- mas dimensões de nossa formação histórico-social po- dem estar sendo valorizadas em detrimento de outras; um meio de reconhecermos quais legados são autoriza- dos em detrimento de outros. Em suma, tais questões po- dem ser um meio de vermos quais dos “outros” que nos constituem nós podemos marcar no presente e quais es- tão sendo silenciados e apagados. Entre as culturas eruditas e letradas e as culturas po- pulares, não é necessário haver uma oposição. Alfredo Bosi (1992, p. 330-1) afirma que: [...] desse contacto podem nascer frutos muito diferentes entre si e que vão do mais cego e demagógico populismo, que é a má consci- ência estertórea do elitismo básico de toda sociedade classista, à mais bela obra de arte elaborada em torno de motivos populares, como a música de Villa-Lobos, o romance de Guimarães Rosa, a pintura de Portinari e a poesia negra de Jorge de Lima. Muitos exemplos nos mostram que esse diálogo pode ser enriquecedor e pode recolocar, no mundo contempo- râneo, aspectos os mais longínquos de nossas vivências, não só por meio das artes, como também em todas as demais dimensões de nossa vida. Bibliografia Amaral, Suzana. Uma vida em segredo (longa-metragem baseado no romance homônimo de Autran Dourado), 2000. Bakhtin, Mikhail. 1953. Os gêneros do discurso. In: _____. Estética da criação verbal. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (tradução do russo de Paulo Bezerra). Bosi, Alfredo. 1992. Cultura brasileira e culturas brasileiras. In: ____. Dialética da colonização. 4a ed. acrescida de posfácio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Bronckart, Jean-Paul. 1997. Atividades de Linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: Educ., 1999 (tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha). Clot, Yves. Vygotski, la conscience comme liaison. In: Vygotski, Lev S. Cons- cience, inconscient, émotions. Paris: La Dispute, 2003. Dicionário Eletrônico Aurélio século XXI. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. Ernica, Mauricio. O vivido, o possível e o catártico: para uma abordagem vigotskia- na do estudo de representações sociais em textos artísticos. São Paulo: Programa Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC/SP, 2006. (tese de doutorado) Francisco, Luís Roberto de. A gente paulista e a vida caipira. In: Setúbal, Maria Alice. (Coord.). Terra Paulista: histórias, arte, costumes. São Paulo: Cenpec e Imprensa Oficia do Estado de São Paulo, 2004. Marinho, Jorge Miguel. A literatura do interior paulista: do lirismo à anedota. In: Setúbal, Maria Alice. (Coord.). Terra Paulista: histórias, arte, costumes. São Paulo: Cenpec e Imprensa Oficia do Estado de São Paulo, 2004. Setúbal, Maria Alice. (Coord.). Terra Paulista: histórias, arte, costumes. São Paulo: Cenpec e Imprensa Oficia do Estado de São Paulo, 2004. Setúbal, Maria Alice e Ernica, Maurício. 2005. Por que educação e cultura? Cadernos Cenpec: educação, cultura e ação comunitária. n. 1, primeiro semestre de 2006. Vigotski, Lev Semyonovich. 1925. La conscience comme problème de la psycholo- gie du comportement. In: Vigotski, Lev S. Conscience, inconscient, émotions. Paris: La Dispute, 2003. (traduction du russe de Françoise Sève) ____. 1934. A construção social do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (texto integral de Pensamento e Linguagem traduzido do russo por Paulo Bezerra) ____. 1984. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994. (orga- nização de Michael Cole) Notas 1 Cf. De Francisco, 2004 e Marinho, 2004, para uma discussão sobre esse aspecto no quadro do projeto Terra Paulista: histórias, arte, costumes. 2 Cf. Setúbal, 2004, para ver como trabalhamos com esses elementos no projeto Terra Paulista: histórias, arte, costumes. 148 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 ESTUDO DE CASO E o circo chegou à capital do pequi! Seluta Rodrigues de Carvalho, Ione Garcia Altieri, Izabel Brunsizian, Célia Terumi sanda OCirco Lahetô foi uma das 30 entidades finalistas do Prêmio Itaú Unicef 2005, com o projeto Arte, Circo e Cidadania. A instituição está sediada em Goiânia, Es- tado de Goiás, e atua há mais de dez anos. Foi funda- do por umgrupo de artistas e educadores que acredi- tavam na possibilidade de educar por meio da arte. Respeitável público, o circo chegou! E parece que para ficar! A história do Circo, como diz o escritor Torres (1998), vem de longe e pra longe vai. E nossa história não poderia- ser diferente. No picadeiro, artistas milagrosos executam exercí- cios que parecem até ilógicos se não soubéssemos os sacrifícios que são feitos para consegui-los. Este é o Cir- co que as crianças amam. Um Circo que faz sonhar com olhos abertos, onde as crianças se sentem adultos e os adultos, mais crianças. É nesse cenário mágico, na capital de Goiás, que o Circo Lahetô realiza seu trabalho, onde crianças e ado- lescentes, de sete a 17 anos, alunos de escolas públi- cas, desenvolvem múltiplas habilidades que vão além do picadeiro. E, do picadeiro, saem para expressar ao mundo seus sonhos e dar o significado que esta arte produz em suas vidas. ESPAÇO LÚDICO DE RESPEITO E APOIO O Circo Lahetô está sediado no Parque da Criança, espaço revitalizado no centro da cidade de Goiânia, atualmente utilizado por várias organizações não- governamentais. Quiosques, área de preservação permanente, parque infantil com brinquedos educativos, espaços para atividades de esportes, viveiro de mudas nati- vas do cerrado. Tudo é utilizado em comum pelas instituições parceiras que atuam em diversas áreas e de diferentes maneiras. A instituição não está só! Uma rede de organiza- ções atua em benefício da criança e do adolescente: a ONG Pró-Cerrado, o Circo Lahetô, Atletas de Jesus, Banco Florestal, Casa da Cultura Digital e Raiz Crepe. Juntos, fundaram a Associação Amigos do Parque que tem como objetivo discutir a qualidade das ações desenvolvidas, o uso das áreas comuns, as questões de legislação em relação à população atendida, bus- cando contribuir com a formulação e implementação de políticas públicas. No Parque, também estão instalados o CIMP – Centro Integrado de Apoio Psicopedagógico e a Vara do Juizado da Infância e da Adolescência. Evidencia-se o constante movimento e a intera- ção entre os coordenadores dos projetos durante as atividades, numa relação de respeito e apoio. A população atendida pelo Circo reside ao lado do Parque, no Jardim Lobó, área de posse, situada em região de risco, em um vale com enchentes e de- sabamentos, nas épocas de chuvas, sendo uma das comunidades mais empobrecidas da cidade. Diante dessa situação, o governo municipal construiu alguns prédios (chamados “predinhos”), transferindo famílias para essa área. Outras foram remanejadas de suas casas, construídas com latas, e passaram a morar em casas menos precárias. * Seluta Rodrigues de Carvalho é pedagoga e coordenadora do circo Lahetô; Ione Garcia Altieri, educadora; Izabel Brunsizian, psicope- dagoga; e Celia Terumi Sanda, assistente social, são pesquisadoras do Cenpec. 149 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Embaixo da lona colorida, no picadeiro, as crianças e adolescentes experimentam toda fantasia e transfor- mação possível: vale ser palhaço, equilibrista na per- na de pau, malabarista, diabolista, acrobata, monoci- clista, mágico, apresentadores, animadores culturais e muitas outras possibilidades que a imaginação e a cria- tividade permitirem. Arte-educadores, que já foram educandos do proje- to, contribuem para o desenvolvimento humano inte- gral, incentivam a permanência na escola e promovem o trabalho de iniciação à arte circense, que já atendeu mais de mil crianças e adolescentes, em seus dez anos de existência. As atividades estimulam a possibilidade de sonhar, exercer sua criatividade, elaborar a confiança e a certe- za de ser capaz de reconhecer seus limites, ao dominar equipamentos que antes pareciam impossíveis e inacessí- veis. Os desafios do Circo nos remetem às estripulias que os meninos e meninas fazem nas ruas, pois tais equipa- mentos têm relação direta com o perigo e a aventura. As atividades podem desenvolver, tanto na criança quanto no adolescente, a compreensão de sua capaci- dade de movimento corporal, de expressividade, de co- municação com maior inteligência, responsabilidade, equilíbrio e autonomia. Vale dizer que, no Circo, não se trabalha sozinho. 150 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 RESPEITO AO OUTRO, COM DETERMINAÇÃO E CONFIANÇA Circo Lahetô considera as crianças e adolescentes integrantes da sociedade que é construída por e junto a eles. Utilizam o cenário do circo para viverem este exercício de autonomia. Dentro do circo, as crianças e jovens têm a possibilidade de fazer escolhas e viven- ciá-las, compreendendo que integram um conjunto e que suas atitudes e ações estão intrinsecamente envolvidos com as do outro, de acordo com o princípio da complementaridade. As técnicas simples do circo e seu colorido trazem o desafio da relação de confiança que os participantes devem ter: o salto no trapézio não pode existir sem a confiança de que o outro estará esperando; o jogo do palhaço não existe sem um outro que o complementa. O papel do educador aqui é valorizar a potencialidade, ultrapassar limitações e desafiar a natureza numa relação de positividade. Por isso, o dia no Circo Lahetô começa com uma roda na qual se canta, vivenciam-se valores, exercita-se a memória, sempre com intencionalidade educativa. Depois, os grupos se organizam em oficinas nas quais, além de desenvolverem habilidades específicas, são incentivados a superar o medo, a entender que errar é parte da vida e a superar as dificuldades com alegria. Os conteúdos utilizados nas atividades de mágica ou do palhaço, por exemplo, são meios para debater com crianças e adolescentes a necessidade de ter determinação e confiança. Cada número ensaiado mobiliza uma equipe e é um exer- cício de superação dos limites, especialmente, de con- vivência grupal. As crianças e adolescentes têm oportunidade de se desenvolverem de maneira responsável, legitiman- do seus direitos e estabelecendo relações entre o indivi- dual e o coletivo. Com isso, aprendem a ouvir, a opinar e a respeitar as diferentes manifestações. Além de per- mitir amplas possibilidades de aprendizado, vivenciam preciosos momentos de prazer, de alegria e de boa con- vivência com o próximo. No começo de 2006, as professoras da Escola Esta- dual São Cristóvão, situada próximo à sede do Circo, reu- niram-se com os coordenadores do projeto e levantaram os temas que gostariam que fossem trabalhados. Suge- riram os temas de meio ambiente e higiene como moti- vadores de um projeto conjunto. Ficou estabelecido que cada grupo de alunos da escola visitaria a instituição e participaria das diversas atividades circenses, nos brin- quedos e brincadeiras populares e também nas ativida- des de contação de histórias, de forma dinâmica. O Circo uniu o seu trabalho diário a essas demandas, utilizando o tema da cooperação e da gentileza, que pro- põe, por exemplo, que as crianças façam fila para o lan- che e observa como se organizam. Em seguida, discute com eles se houve cooperação ou não nesse momento e desafia: “Como é possível formar fila e praticar a gentileza e a cooperação?”, propondo que repitam a atividade. Em todos os grupos atendidos, uma média de três ou quatro educandos do Circo Lahetô recebem as crianças da escola e apresentam os equipamentos. O trabalho está em processo de avaliação pelas pro- fessoras da Escola e espera-se que o resultado dos en- contros seja maior motivação para o estudo e a presen- ça da alegria, uma vez que buscam desenvolver as ofici- nas de Palhaço (clown). As professoras já revelam que a vivência no Circo tem se refletido nos textos que as crianças desenvolvem posteriormente à atividade: elas narram o que aprende- ram, do que gostaram e do que não gostaram. As crian- ças que participam cotidianamente do projeto têm mais domínio de certos conteúdos, segundo os professores. Isso se pode notar, por exemplo, na participação de ado- lescentes em atividades que acontecem em outras cida- des, como a cidade de Goiás ou São Paulo, e que retor- nam com grande repertório apreendido pelos debates e oficinas de que participam. 150 151 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 EM COOPERAÇÃO, TODOS APRENDEM E FAZEM DE TUDO Antes de iniciar o projeto, os coordenadores firmaram parceria com os síndicos dos predinhos, lideranças locais da comunidade e fizeram visitas domiciliares para conhecer as dificuldades de cada família, para efetuar as inscrições das crianças ao projeto. As crianças passam por todas as atividades – ofici- nas de malabares, monociclo, bambolé, cama elástica, aula de mágica, de palhaço, perna de pau, diabrete, acrobacia, diabolô e bolinhas – pois se acredita que, num Circo, todos devem conhecer sobre todas as ati- vidades, desde a montagem da lona, o cuidado com os equipamentos, até as apresentações. Depois, o grupo é incentivado a trocar experiên- cias. “Eles têm que saber todas as técnicas e como o sucesso do Circo é um trabalho de cooperação entre todos, todos aprendem e todos fazem de tudo”, dizem os coordenadores das atividades. Continuam: “A escola de Circo oferece à criança e adolescente que nunca tiveram oportunidade com o lúdico, exercitar a convivência em grupo que é a essência do Circo. Bons espetáculos dependem do outro e isso cria um trabalho de cooperação, com a idéia que um deve torcer pelo sucesso do outro. Todos devem estar juntos! Na hora do espetáculo cada um brilha, todos têm a oportunidade. A idéia é da totalidade!” PONTOS FORTES DO PROJETO • Inovação da proposta de ensino-aprendizagem, que­­ vem pelo lúdico, pela alegria, por proporcio- nar­ o resgate da identidade da criança e do adoles- cen­te.- • Parceria com a escola de ensino público e acom- panhamento da aprendizagem das crianças na escola. • Protagonismo das crianças e adolescentes. • Inserção da organização e de seus participantes, em Conselhos Municipais, envolvidos em políti- cas públicas. • Resultados positivos comprovados ao longo dos anos de trabalho. • Número de parceiros envolvidos com o trabalho. • Credibilidade conquistada ao longo do trabalho. O projeto mantém uma ficha individual de cada criança e adolescente e as escolas são visitadas sistematicamente para acompanhamento, junto aos coordenadores das escolas, do aprendizado do aluno. “O Circo mudou a vida das crianças. Eu os vejo no dia-a-dia, vejo-os fora da escola e do projeto e percebo o quanto eles mudaram. Por isso, sou uma parceira presente”, diz a presidente da Associação de Moradores. Reforça o síndico dos predinhos: “Antes, as crian- ças perturbavam a organização. Hoje eles cooperam com a minha administração. E por isso estou aqui cooperando e ajudando este projeto a dar certo”. Segundo depoimento de coordenadora pedagógi- ca de uma das escolas estaduais: “A escola de Circo vem dando mais responsabilidade e mais compro- misso às crianças e adolescentes. Isso evita evasão escolar. A pedagoga do Circo vem constantemente aqui e discutimos sobre cada aluno”. Uma das alunas do projeto completa: “Moro num abrigo a seis meses. O circo é, para mim, um des­canso na minha cabeça. Aqui aprendo várias atividades; as atividades aqui do Circo me tiraram o pensamento e sentimento ruim. Eu chorava muito pela minha vida! Agora mudou muito... só tenho alegria. Agora me descobri!” 151 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 152 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 153 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 nísio Teixeira merecia ter chegado ao final do século XX. Nascido em 1900, não fosse seu trágico desaparecimento em 1971, talvez estivesse — como esteve, até há pouco, Barbosa Lima Sobrinho — contemplando o final de um ciclo conturbado, diante do qual seus escritos oferece- ram uma observação atenta sobre a renitência de deter- minadas questões históricas. Quais seriam essas questões históricas? Quais seriam as leituras a informar sua observação atenta e crítica do passado? A obra de Anísio Teixeira ergueu-se sobre uma com- preensão singular acerca da herança cultural que o Bra- sil carregava de suas raízes ibéricas. Quase tudo o que escreveu, de alguma forma, renovou seu entendimento sobre o que considerava ser uma “necessidade históri- ca” ou uma “missão civilizatória”, ambas configuradas no seu convencimento de que era necessário ultrapas- sar as próprias raízes para deixar, no passado, um acen- tuado privatismo; um habitus antidemocrático e perso- nalista e um distanciamento estéril diante da ciência mo- derna e da democracia. As representações do passado brotavam em seus es- critos como se fossem uma reavaliação sentida do que havíamos deixado de fazer; das barreiras que havíamos deixado de transpor. Diante do “não feito”, afirmava que: [...] tudo que o país tem de característico vem desses três fatores originais, de mistura com o catolicismo romano, o feudalismo e a organização imperial de poder [...] A sociedade brasileira funda-se assim na família patriarcal, na escravidão e no latifúndio, cujos característicos são a imobilidade, a limitação de oportunidades e a supremacia da ordem privada (Teixeira, 1999, p. 349-350). memória Anísio Teixeira, leitor da História Marcos Cezar de Freitas* do Brasil. A * Marcos Cezar de Freitas é professor da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e pesquisador do CNPQ. 154 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Diante dessa constatação, incomodava-se com uma certa ambivalência que permanecia nos frutos daque- las raízes: Os brasileiros eram europeus nostálgicos, transviados nestas paragens. [...] Esse tipo cultural dúbio, ambivalente, nem peixe, nem carne, acabou por criar nestas terras novas da América algo de congenitamente inautêntico, de congenitamente caduco, na cultura americana. [...] A verdade é que resistiam às forças de formação nes- tas paragens de uma cultura autêntica, com o arraigado sentimento de estrangeiros em sua própria terra (Teixeira, 1999, p. 322). O educador baiano habitualmente é lembrado em ra- zão do seu envolvimento com o chamado escolanovismo e, conseqüentemente, com a leitura e tradução dos au- tores e das obras que deram sustentação teórica àquele movimento internacional de renovação educacional. Nes- se cenário, seguidamente se destaca, aliás, sem maio- res aprofundamentos, a influência de John Dewey sobre sua obra. Contudo, raramente, as fontes historiográficas de Anísio Teixeira vêm à luz, quase que como se não ti- vessem existido. Os “lamentos” acima mencionados, representações da história do País, escoraram-se na leitura atenta de au- tores como Sérgio Buarque de Holanda. As semelhan- ças são notáveis: A tentativa de implantação da cultura européia em extenso terri- tório, dotado de condições naturais, senão adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. Tra- zendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra (Holanda, 1986, p. 3). É importante, sempre, acentuar a memória de um ana- lista perplexo com a vitalidade do passado. Esse passa- do, aquelas raízes, respondiam pela forma do “obstácu- lo cultural e político” a ser transposto no século XX, um século de passagem para um novo ciclo, no qual ciência e democracia estariam de mãos dadas. Uma personagem perplexa Para descrever o século XX, é necessário compor uma narrativa na qual a tragédia ocupe lugar de destaque. Olhan- do mais de perto, porém, será possível perceber que, sem a evocação da esperança ou ao menos da expectativa de uma nova ordem planetária, não terá ocorrido uma reme- moração fidedigna do ciclo que está acabando. Trata-se de um período de impressionante distân- cia entre a forma e o conteúdo observáveis ao início e as formas e conteúdos diante dos quais fomos pasmos contemporâneos. Anísio Teixeira surgiu com as esperanças que abriram o século XX. Tornou-se, no transcorrer das sete décadas que viveu, uma personagem histórica singular, uma ex- pressão brasileira do encanto que seduziu muitos inte- lectuais à tarefa de reorganizar o mundo e fazê-lo transi- tar da barbárie para a civilização, do obscurantismo para a luminosidade. No início, essa era a expectativa maior di- recionada aos últimos cem anos do milênio. Anísio, considerado o “escolanovista” brasileiro por excelência, habitualmente é relacionado à defesa da es- cola pública, à criação de instituições de pesquisa e a projetos ousados, abreviados pelas conjunturas políticas sempre desfavoráveis. Todavia, ainda que corretas, estas co-relações não apanham “todo” o Anísio. Estamos diante de uma personagem tão complexa quanto o período histórico que o recebeu. Também es- tamos diante de uma personagem perplexa. Anísio Tei- xeira não aceitava passivamente as “permanências”, as “sobrevivências” do passado num momento no qual jul- gava estar construindo o futuro. Por que restava, ainda, um país “medieval” à som- bra de um país que queria ser industrializado e cosmo- polita? Por que era possível retratar o brasileiro ora como se um Manuel Bandeira fosse expressão de sua alma, ora como se Riobaldo Tatarana fosse a síntese de sua per- sonalidade? Por que a permanente ambigüidade, a contínua du- alidade? Olhando para fora do Brasil, considerava que, desde a Grécia antiga, a razão vinha caminhando em passo cada vez mais rápido. Embora essa trajetória da razão tivesse sido “desacelerada” na Idade Média, uma nova acelera- ção do tempo teria sido reiniciada com o Iluminismo. Este “tempo solto”, rápido e realizador, seria o tempo das ins­ 155 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tituições universais: a escola, a democracia e as várias faces da esfera pública. Seria também o tempo da ciên- cia, da cultura laica e dos compromissos públicos firma- dos nas questões de Estado. A soma de todos esses itens corresponde ao entendimento anisiano sobre o que é a razão. O “tempo iluminista”, no seu entender, precisa- va ser solto, desamarrado, nestas plagas. Por isso, olhando para dentro do Brasil, incomoda- va-se com a obra que a colonização portuguesa reali- zara no País: A descoberta da América pelos europeus, nos fins do século XV, deu lugar a uma transplantação da cultura européia para este continente. Tal empreendimento constituiu, porém, uma aventura impregnada de duplicidade. Proclamavam, os europeus, que chegaram para expandir nestas plagas o cristianismo, mas, na realidade, movia-os o propósito de exploração e fortuna. A história do período colonial é a história desses dois objetivos a se ajudarem mutuamente na tarefa real e não confessada da espoliação continental. (...) A vida do recém-descoberto continente foi, assim, desde o começo, marcada por essa duplicidade fundamental: jesuítas e bandeirantes; fé e império; religião e ouro (Teixeira, 1999, p. 319). Anísio Teixeira que, ao longo de sua vida, passou por várias situações de animosidade com a Igreja Católica, nunca foi um pensador de corte anticlerical. Ao contrá- rio, as críticas que teceu à cultura católica estiveram sem- pre subordinadas à defesa da escola pública. Essa defe- sa, sempre apaixonada, gerou divergências, em mais de uma circunstância, com alguns representantes do clero. Mas sua concepção de história havia sido forjada tam- bém na leitura de historiadores católicos. De Frei Vicen- te do Salvador, recolheu a seguinte impressão sobre as raízes da sociedade brasileira: ... nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular... verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é uma república, sendo-o cada casa (Salvador, 1998, p. 264). Em relação às origens da identidade do País, a cul- tura brasileira poderia ser metaforicamente comparada a um largo rio. As falas de Anísio foram empreendimen- tos estéticos metafóricos. Sendo assim, imaginemos um leito caudaloso que, ao mesmo tempo, une e separa duas margens. Numa delas, contemplando as peculiaridades da colonização portuguesa, podemos encontrar intelectuais como Fran- cisco Adolfo Varnhagen e Gilberto Freyre. Em tal “lugar interpretativo” repousa uma compreensão da socieda- de, diante da qual um certo elogio do passado enalte- ce a vitória do homem sobre o meio. Na outra, na mes- ma “via historiográfica”, podemos encontrar Capistra- no de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fer- nandes e Anísio Teixeira. Nessa margem, no encontro imaginário entre tais tradições interpretativas, pode- mos observar uma forte rejeição às instituições legadas por esse passado. Anísio reproduziu, no âmbito do debate educacional, a leitura buarquiana com a qual rejeitou tanto a trans- plantação de idéias quanto a disseminação de uma cul- tura privatista, por meio da qual apagava-se a fronteira entre os domínios públicos e os privados. Há um extra- ordinário encontro de imagens nessa margem. Elas retra- tam um Brasil em conflito com as próprias raízes. Nas nossas raízes, estariam depositadas tendências imobilistas. O homem forjado nesse processo de coloniza- ção estaria adaptado a um ritmo temporal imutável, perma- nente, no qual confundia sua família com o Estado. A nação terminava sempre logo ali, na divisa de seu quintal. O predomínio da cultura jesuítica no processo de es- truturação da educação escolar brasileira era visto como sinal de um movimento que, continuamente, restaurava o passado e mantinha uma idade média imaginária, a oferecer-se como parâmetro de conduta. Quando escrevia metáforas sobre a aceleração do tempo, descrevia a história do país sendo movimenta- da no sentido de se desvencilhar de suas fundações: a família patriarcal, a escravidão e o latifúndio, responsá- veis pela imobilidade, pela limitação de oportunidades e pela supremacia da ordem privada. A leitura do livro Educação no Brasil oferecerá, ao leitor, exemplos às far- Estamos diante de uma personagem tão complexa quanto o período histórico que o recebeu. [...] Anísio Teixeira não aceitava passivamente as “permanências”, as “sobrevivências” do passado num momento no qual julgava estar construindo o futuro. 156 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 tas desse raciocínio anisiano/buarquiano que, de certa forma, reverberou também em Florestan Fernandes: A relação senhor-escravo e a dominação senhorial minaram, pois, as próprias bases psicológicas da vida moral e política, tornando muito difícil e muito precária a individualização social da pessoa ou a transformação do “indivíduo”, da “vontade individual” e da “liberdade pessoal” em fundamentos psico e sociodinâmicos da vida em sociedade. Seria preciso lembrar que, no cosmos se- nhorial, só pode existir um tipo de individualismo, que nasce da exacerbação da vontade do senhor e se impõe de cima para baixo (Fernandes, 1975, p. 165). À medida que outras afirmações completam a fala anisiana, é possível estabelecer um dado inequívoco de sua trajetória: Anísio Teixeira não pode ser pensado sozi- nho. A arquitetura intelectual que buscou para si é, tam- bém, uma plataforma política erguida sobre uma base conceptual tecida a muitas mãos. No entender do educador baiano, as marcas da coloni- zação e do escravismo ainda permaneciam sob múltiplas formas no Brasil do século XX. Este era um diagnóstico que se produzia “em comum”, no esforço conjunto dos inte- lectuais que lamentavam nossa colonização ibérica. Ou- tra conseqüência aferida junto desta perspectiva históri- ca e historiográfica, ou seja, seu conjunto de leituras, era a permanente inconclusão dos momentos de ruptura. Um exemplo recorrente, tanto do educador baiano quanto de vários intelectuais de sua geração, era a Re- volução de 1930. Interrompida pelo Estado Novo, a Re- volução não completara o plano de reconstrução nacio- nal a que se propusera. Voltemos às metáforas. Pesquisa educacional e antropologia De certa forma, Anísio considerava que o País ainda deixava-se refletir no espelho de Euclides da Cunha, ou seja, com um sertão de costas para o litoral, com a cida- de apartada do mundo agrário e com uma mentalidade ruralista a bloquear a disseminação da ciência, da for- mação individual e da democracia. O múltiplo Anísio pode ser localizado, na memória da intelectualidade nacional, também ao lado de muitos antro- pólogos e sociólogos que, nos anos 1950 e 60, receberam dele a incumbência de realizar um mapa cultural do Brasil e conhecer, mediante o estudo de caso, a forma social das permanências de mentalidades “não modernas”. Neste outro “álbum de família”, o educador pode ser visto entre Emílio Willens, Charles Wagley, Oracy Noguei- ra, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Otto Klinneberg e Roger Bastide, entre tantos outros. Com esse grupo, ele gerou um dos mais importantes empreendimentos científicos que o Brasil conheceu até o presente momento: o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CBPE, que, com os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais – CRPE, iniciou uma inédita par- ceira entre pesquisa educacional e antropologia. Aqueles intelectuais moviam-se com a certeza de que a superação da herança colonial e escravista demanda- va conhecer o país “de perto”. Em razão disso, propu- seram a formulação de mapas culturais para que se pu- desse perceber o verdadeiro papel da escola em cada comunidade. A idéia de mapa cultural talvez tenha sido a grande metáfora de Anísio Teixeira. Significava um es- forço institucional de cientistas no sentido de trazer ao debate a opinião do brasileiro, considerado ainda “fora da modernidade”. Os informes do Centro Brasileiro de Pesquisas Educa- cionais expressavam tais objetivos com clareza: A expressão mapa cultural está sendo naturalmente usada como um símbolo, para representar um conhecimento completo da cultura brasileira contemporânea, no seu sentido mais amplo, incluindo vida de família e criação de filhos; atividades econômicas e sociais, o uso do tempo de lazer, atitudes psicológicas, objetivos e ideais, com a devida atenção à herança religiosa e ética do povo [...]. O mapa educacional deverá conter, também, um componente psico- lógico representado pelas atitudes do povo em relação às escolas, o grau e natureza da satisfação e descontentamento, os desejos e esperanças — e possivelmente também os temores — relativos à educação, qual a contribuição prática que o povo poderá dar à escola e assim por diante. [...] Se o antropólogo social tiver sido designado pelo Centro para elaborar um estudo de comunidade, é de se esperar que ele dedique atenção especial ao papel da escola na comunidade, à escola como instituição, à composição (econômica, social, étnica) da população da escola, às atividades e ocupações dos educandos, ao status dos professores etc. (Informe CBPE, E. In: RBPE, 1955, p. 119-121). Tratar de Anísio Teixeira significa deixar-se levar pelo ritmo das metáforas que ele manuseava tão bem. Ma­pear a cultura, acelerar o tempo, ultrapassar as próprias raí- zes, espalhar uma cultura pública, refazer a civilização pela escola primária, pública e laica são algumas expres­ 157 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 sões de um homem que foi uma das mais impressionan- tes personagens a equilibrar-se no fio frágil que separou a tragédia da esperança nesse século, especialmente neste complexo país — o Brasil. De certa forma, todo o século XX foi projetado nas pá- ginas de Thomas Mann, quando retratou, na obra A Mon- tanha Mágica, o embate entre um mundo que acabava e outro que se anunciava. Pelas palavras da personagem Setembrini, Mann expres- sou a confiança num futuro iluminado pela razão e pela li- berdade, acompanhado pelo poder emancipador da ciên- cia e da cultura. Pelas palavras do jesuíta Nafta, por sua vez, ele mostrou o apego ao passado, o temor violento em rela- ção às promessas da liberdade, considerada vã e inconve- niente. O duelo travado entre ambos, no romance, pode ser considerado uma prévia do século que chegava. Enquanto futuro e passado, liberdade e autoridade, ciência e fé duelavam nas páginas de Thomas Mann, no Brasil, na Bahia, Anísio Teixeira era um adolescente. De certo modo, em escala microscópica, ele encarnava o embate entre a fé e a ciência. Quis ser jesuíta antes de descobrir a “missão” de educador. Contudo, se a trajetória de Anísio, por vezes, suge- re a fabulação de A Montanha Mágica, no mais das ve- zes parece uma aventura partilhada nas desventuras da própria realidade. A busca por novos horizontes para a educação brasi- leira o envolveu ora com outros educadores profissionais, ora com historiadores, ora com antropólogos. Na sua órbi- ta, gravitaram expressivas opiniões, as quais compreende- ram o grau de comprometimento público necessário para que algumas “raízes do Brasil” fossem superadas. Pensava — pensavam — numa ordem pública com a escola pública como compromisso e questão de Estado. Anísio era um iluminista. Ao mesmo tempo que seu enredo parece aquele nar- rado por Thomas Mann, é possível reconhecer que, olhan- do-o de perto, ele não poderia ser uma personagem de A Montanha Mágica. Apesar de tudo que enfrentou, Aní- sio não consideraria apropriado permitir que a esperan- ça e a tragédia se enfrentassem em duelo mortal, como ocorre no romance. É mais provável que advogasse a emancipação e a construção de um novo mundo no âmbito da esfera pú- blica, especialmente da escola, sem enfrentamentos. Anísio Teixeira foi leitor e estudioso de várias acepções de História. O interesse por esse tema tornou-o um atento observador dos usos da categoria “tempo”. Por isso mes- mo, cuidou da esperança e da tragédia, assim como fize- ra Thomas Mann. Mas, diante de uma e de outra, consi- derou que a escola, a ciência e a democracia facultariam, ao homem, a percepção de que a esperança poderia nu- trir-se dos exemplos que a História proporcionava e que tais exemplos tornavam a tragédia uma escolha a ser evi- tada. No fundo, o que Anísio queria encontrar, nos livros de História e nas hipóteses dos antropólogos, era o con- junto de exemplos por meio dos quais pudesse conven- cer seus pares de que a liberdade era plausível. Bibliografia CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1975. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. INFORME CBPE. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, INEP, 1955, p. 59, 119-121. SALVADOR, Vicente do. Do nome do Brasil. In: MENESES, Djacir (Org.). O Brasil no pensamento brasileiro. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 263-265. Excerto de História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1965. TEIXEIRA, Anísio. Educação e o mundo moderno. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. TEIXEIRA, Anísio. Educação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999. 158 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Mosaico * Fernando Rios, jornalista, publicitário e comunicólogo, é consultor do Cenpec em Comunicação Organizacional. Isa Maria F. Rosa Guará é pedagoga, Doutora e Mestre em Serviço Social (PUC-SP) e Pós-graduada em Psicopedagogia. É vice-presiden- te da Fundação ABRINQ pelos Direitos da Criança e do Adolescente e Assessora de Coordenação do Cenpec. Dados e informações nós podemos obter em qualquer lugar e hoje, principalmente, na Internet. Eles estão em torno de nós, o tempo todo. Não é por acaso que este momento da humanidade tem sido denominado “sociedade de informação e do conhecimento”. Mas como saber se aquela informação e aquele dado são confiáveis? Como conseguir que aqueles da- dos e aquelas informações se transformem em conhecimento e sirvam para acrescentar algo à vida de cada um? Só há uma maneira: utilizando o conhecimento que acu- mulamos. Um conhecimento que reunimos a partir de nossa experiência de vida, da educação formal e informal, com nossos amigos e amigas, na comunicação de massa, nos livros de boa qualidade, na Internet. É esse conhecimento, que se expressa tanto na sua utilidade imediata pecuniária como bem tangível, enquanto desempe- nhamos uma atividade profissional, quanto bem intangível, diante de uma obra de arte, que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos ou degustamos. Sim, porque tanto o conhecimento formal, objetivo, direcionado, quanto a emoção artística podem ser obtidos e experimentados otorrinolaringologísticamente. Tudo entra e passa pelos sete buracos de nossa cabeça e, ainda, pelos membros, pela pele do corpo inteiro. Quanto mais conhecimento temos, mais possibilidade teremos de conhecer. E se alguém perguntar “para quê”, por favor, tente procurar a resposta, começando pela pessoa mais próxima e não acabando na mais distante. E para quem quer incorporar um pouco mais de conheci- mento à sua vida, Cadernos Cenpec criou esta seção. “Mosaico” pretende colaborar para que nossos leitores tenham acesso a algum conhecimento que acabou de ser produzido ou a outro que, algumas vezes, ou já saiu de “cartaz”, ou está um pouco escondido em algum site da Internet, em alguma estante ligeiramente empoeirada., em uma loja que poucas pessoas costumam ir ou, quando vão, ficam fascinadas por mercadorias, à primeira vista, mais atraentes. Aqui, escrevemos sobre livros, filmes, cds, sites, revistas, quadrinhos e charges. Mas poderíamos escrever também sobre exposições, paisagens, cidades, ruas, avenidas, museus, cur- sos, seminários, enfim, tudo o que pode ajudar cada um de nós a ver, enxergar e conhecer melhor o mundo, tanto ao alcance da mão quanto ao alcance do pensamento, e a experimentar mais e melhores emoções, saberes e sabores. Para que possamos experimentar mais e melhores emoções, saberes e sabores. Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará* DIREÇÃO: MARIE PERENNOU E CLAUDE NURIDSANY. DOCUMENTÁRIO, TRÊS ANOS DE FILMAGEM E 15, DE PESQUISA. FRANÇA, 1996, 77 MINUTOS. Um casal de competentes biólogos amantes de biologia e cinema. O resultado dessa junção é uma obra de arte chamada Microcosmos. Um olhar para aquilo que normalmente não damos importância. Pequenos seres, escondidos, captados por lentes especiais. Formigas, besouros, caramujos, aranhas e uma infinidade de outros animais que a câmara capta e nos oferece para deleite. E surpreendeu a especialistas também: em Cannes, ganhou o prêmio da Comissão Técnica Superior de Cinema: e ainda recebeu quatro César, chamado de Oscar francês, por trilha sonora, fotografia, som e montagem. Filmes Microcosmos 159 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 A guerra do fogo DIREÇÃO: JEAN-JACQUES ANNAUD. ATORES: EVERETT MCGILL, RAE DAWN CHONG, RON PERLMAN, NAMEER EL KADI. AVENTURA, FRANÇA/CANADÁ, 1981, 100 MINUTOS. Quase ninguém imagina que se possa fazer ficção científica do passado porque a maioria dos filmes desse gênero fala do futuro. Para mostrar que nem sempre é assim, aqui está um belo exemplo de ficção científica antropológica. A Guerra do Fogo é um filme que se passa na pré-história, quando alguns humanóides estavam aprendendo a falar e a usar e conservar o fogo. Mas não só. E aí está sua riqueza. Num espaço geográfico delimitado, grupos de hominídeos vivem experiências que aconteceram em alguns milhares de anos, da guerra às relações amorosas. Vale a pena ver o filme e repensar a nossa história, a origem de nossa humanidade. O filme, baseado no livro de J. H. Rosny, foi elogiado e premiado por criar ambiente e personagens convincentes, inclusive com uma linguagem original, criada por Desmond Morris e Anthony Burgess. Sua maquiagem foi premiada com o Oscar e recebeu o César (considerado o Oscar francês) de melhor filme e melhor direção, em 1981. Dez DIREÇÃO: ABBAS KIAROSOTAMI. ATORES: AMIN MAHER, MANIA AKBARI, KAMRAN ADL, ROYA ARABASHI, AMENE MOBADI, MANDANA SHARBAF, KATAYOUN TALEIDZADEH. DRAMA, IRÃ/FRANÇA/EUA, 2002, 94 MINUTOS. São dez pequenas histórias que têm como fio condutor uma mulher, divorciada, recém-casa- da com outro homem, dirigindo seu automóvel numa cidade. Seu principal interlocutor, seu filho, um estudante de ensino básico, não se cansa de criticar seu comportamento. Ela ainda dá carona para cinco mulheres, entre elas, uma prostituta, uma jovem apaixonada e uma senhora mais velha. Podemos conhecer um pouco dos preconceitos que cercam as mulheres no Oriente Médio, em particular, no Irã. Mas isso nos remete para a situação da mulher no ocidente e, evidentemente, no Brasil. Kiarostami é um mestre. Ele mostra o essencial, seus personagens falam o essencial. O crítico Luiz Carlos Merten, no livro Cinema: entre a realidade e o artifício, chama a atenção para o fato de Kiarostami pretender reeducar o olhar do público, viciado nos códigos estabelecidos pelo cinema do espetáculo. Ele pretende que o espectador tenha um novo olhar para as imagens dos filmes e aprenda a saborear todas as possibilidades do cinema, sem deixar de refletir sobre o sentido da vida. A cor do Paraíso DIREÇÃO: MAJID MAJIDI. ATORES: MOHSEN RAMEZANI, HOSSEIN MAHJOUB, SALIME FEIZI, FARAHNAZ SAFÁRI, MORTEZA FATEMI. DRAMA, IRÃ, 1999, 88 MINUTOS. É impressionante como Majid Majidi consegue colocar uma grande carga de emoção em tudo que sua câmara registra. Nos mínimos detalhes. Sem qualquer sofisticação. Este é um daqueles filmes que podemos ver algumas vezes e redescobrir cada cena. Majidi é o mesmo consagrado diretor de Filhos do paraíso, aquele do menino que perde o sapato da irmã e passa a revezar o seu com ela. Agora, ele nos conta a história de Mohammad, um menino cego, órfão de mãe, que mora numa escola para deficientes visuais e que, nas férias, volta para seu vilarejo nas montanhas, onde convive com as irmãs e sua avó. O pai, se prepara para casar novamente. Uma relação difícil entre pai e filho vai se desenrolando, mas a paciência e a perspicácia de Mohamed se impõe. O diretor usa o cenário natural, os sons da natureza e a alegria. E mesmo um cego pode ser feliz naquele espaço, sentido como um pedaço de paraíso. É um filme otimista, humanitário, a favor da vida. 160 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 O caminho para casa DIREÇÃO: ZHANG YIMOU. ATORES: ZHANG ZIYI, SUN HONGLEI, ZHENG HAO, ZHAO YUELIN, LI BIN, CHANG GUIFA, SUNG WENCHENG, LIU QI, JI BO. DRAMA, CHINA, 2000, 100 MINUTOS. Um filme emocionante para qualquer público. Mas os professores que amam sua tarefa poderão compreendê-lo, senti-lo, aproveitá-lo e saboreá-lo melhor. Yimou chegou ao cinema de massa com o poético e grandiloqüente O clã das adagas voadoras. Mas sua fama de cineasta brilhante precedeu essa superprodução com Lanternas Vermelhas. Este O caminho de casa nos leva a uma aldeia chinesa, onde nasceu o executivo que vai assistir ao enterro de seu pai, um velho professor. A partir daí, Yimou nos conta o romântico namoro do pro- fessor com uma recatada aldeã, mostra as aulas dadas da maneira mais simples possível, e nos propõe comparar os momentos de felicidade e o que leva até eles. Zhang Yimou também dirigiu Nenhum a menos, as peripécias de uma professora para trazer de volta, à sala de aula, um aluno. Este é um dos grandes diretores da atualidade e merece um cuidado especial pelas histórias que conta e pela plasticidade com que constrói suas cenas. Vem dançar DIREÇÃO: LIZ FRIEDLANDER. ATORES: ALFRE WOODARD, ANTONIO BANDERAS, DANTE BASCO, JOHN ORTIZ, LAURA BENANTI, MARCUS T. PAULK, ROB BROWN, YAYA DACOSTA. DRAMA/MUSICAL, USA, 2006, 108 MINUTOS. Um filme para encantar o olhar, a escuta e a imaginação pedagógica. Pierre Dulaine (Antonio Banderas) é um dançarino de salão profissional, que se torna voluntário para dar aulas de dança em uma escola pública de Nova York. Pierre tenta apresentar seus métodos clássicos, mas logo enfrenta resistência dos alunos, mais interessados em hip hop. É quando, deste confronto, nasce um novo estilo de dança, mesclando os dois lados e tendo Pierre como mentor. Encontramos nesta história elementos preciosos de idéias pedagógicas: conside- rar os saberes dos aprendizes e atribuir a eles o mesmo valor que damos aos saberes que queremos ensinar-lhes, transformar os problemas que surgem em desafios para todos, considerar a confiança mútua um exercício do aprendizado, exercer a autoridade (conduzir) com a delicadeza de quem sabe que o outro escolhe ser conduzido e explicitar a gratuidade ou não de nossos interesses. Estes elementos em ato inundam o espectador. Sites A Internet é hoje a principal porta de entrada para o conhecimento. Tudo está na Internet, mas é preciso cuidado e conhecer os melhores caminhos. Aqui você terá algumas dicas obrigatórias que vão do geral para o particular. E prepare-se para algumas dos mais maravilhosos passeios que se pode fazer nesta rede mundial de dados, informação e conhecimento. Boa viagem. Começamos com: http://vlmp.museophile.com/world.html Um guia dos principais museus e bibliotecas virtuais de todo o mundo. Ciências humanas, físicas e biológicas; tecnologia, design, literatura e arte. Escolha o tema, o país, a língua e deixe-se levar para todos os ramos do conhecimento humano. Louvre, em Paris; Museu Vang Gogh, em Amsterdan; Museu de História Natural, de Nova Iorque; galerias de arte, no Japão; universidades alemãs. Enfim, o que existe de melhor. E mais: você conhecerá alguns dos mais belos sites da Internet. 161 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Agora, um pouco de literatura brasileira e internacional. http://www.dominiopublico.gov.br/Missao/Missao.jsp Este site do Governo Federal abre sua missão com uma frase do Dr. Avul Pakir Jainulabdeen Abdul Kalam, presidente da Índia: “Uma biblioteca digital é onde o passado encontra o presente e cria o futuro”. O “Portal Domínio Público”, lançado em novembro de 2004, com um acervo inicial de 500 obras, propõe o compartilhamento de conhecimentos de forma equânime, colocando à disposição de todos os usuários da rede mundial de computadores – Internet – uma biblio- teca virtual que deverá se constituir em referência para professores, alunos, pesquisadores e para a população em geral. Este portal constitui-se em um ambiente virtual que permite a coleta, a integração, a pre- servação e o compartilhamento de conhecimentos, sendo seu principal objetivo o de pro- mover o amplo acesso às obras literárias, artísticas e científicas (na forma de textos, sons, imagens e vídeos), já em domínio público ou que tenham a sua divulgação devidamente autorizada, que constituem o patrimônio cultural brasileiro e universal. Você tem à sua disposição três tipos de pesquisa: por conteúdo, utilizando uma palavra- chave; pesquisa básica, você diz como quer receber o que procura: em imagem, som, texto ou vídeo; por nome de autor disponível no acervo. E pode fazer down load gratuito das obras. E concluímos com dois sites de literatura, particularmente poesia, e português: Primeiro, o Jornal de Poesia: http://www.secrel.com.br/jpoesia/ Ele coloca à sua disposição alguns milhares de poetas, contistas e críticos de literatura. E o site de um museu inaugurado este ano, em São Paulo, sobre a nossa língua portuguesa: http://www.estacaodaluz.org.br/ Este site é dedicado ao português, a quinta língua mais falada no mundo, e a seus quase 200 milhões de usuários. Pelo menos três objetivos orientaram a construção deste por- tal: saber o quanto as pessoas sabem do português e como entrou em contato com ele; divulgar estudos modernos sobre a língua; e disponibilizar amostras dos nove séculos de Língua Portuguesa, como um fundamento para a formulação de novas perguntas e a busca de novas respostas. Navegando no tema da Educação e do Desenvolvimento Integral http://www.educpart.org.br O site Educação & Participação foi pensado para ser um canal de comunicação com ONGs, Poder Público e parceiros da iniciativa privada, envolvidos na busca pelo desenvolvimento integral de crianças e adolescentes do País. Fruto da parceria entre Fundação Itaú Social, Unicef e Cenpec, traz informações sobre os projetos do Programa Educação & Participação – Gestores de Aprendizagem Socioeducativa, Prêmio Itaú-Unicef e, em 2006, o Seminário Nacional Tecendo Redes. É uma ferramenta de formação para ampliar ainda mais o processo de formação dos profissionais das Ongs. 162 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 http://www.mineduc.cl/index0.php?id_portal=21# Jornada Escolar Completa – Portal do Ministério da Educação do Chile que apresenta alguns aspectos da jornada escolar completa: infra-estrutura, projeto pedagógico, espaços edu- cativos, entre outros. Trata-se de um projeto central da política de educação no Chile, que pretende expandir o modelo para toda a rede, mas há reconhecimento de que o projeto é particularmente efetivo nas áreas de maior vulnerabilidade social. http://www.risolidaria.org.br/index.jsp Portal RISolidária – Projeto da Fundação Telefônica, de abrangência internacional, o por- tal RISolidária possui uma plataforma tecnológica comum a diversos países. No Brasil, a RISolidária nasceu de uma parceria com o CEATS – Centro de Empreendedorismo Social e Administração do Terceiro Setor. Tem espaços e conteúdo focalizados no Sistema de Proteção Integral da Criança e do Adolescente e tem produzido uma série de entrevistas sobre Educação Integral. http://www.educacaoonline.pro.br/ O site EDUCAÇÃO ON-LINE, criado em 1996, visa utilizar a lNFORMÁTICA e a INTERNET, para ten- tar trazer aos professores, especialistas, psicólogos, pedagogos, psicopedagogos, educadores e outros, o que de mais recente tem acontecido no campo educacional no mundo. Traz exce- lentes artigos sobre educação e documentos internacionais sobre educação e inclusão. http://www.crmariocovas.sp.gov.br/index.php O Centro de Referência em educação Mario Covas, da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, traz referências importantes para educadores e gestores de educação, abordando temas pedagógicos e educacionais. Há muitos artigos e links sobre Educação Integral com subsídios para atividades escolares. http://www.fronesis.org/index.htm Portal do Instituto Fronesis organizado pelos especialistas Rosa María Torres e José Luis Coraggio de Quito, Equador, com textos dos organizadores e artigos diversos na área da Educação e Comunicação. Indica diversas redes e comunidades virtuais e traz documentos internacionais de educacão, além da agenda em temas correlatos. Recomendamos espe- cialmente, os artigos de Rosa sobre comunidades de aprendizagem. Livros A literatura histórica de Ana Miranda e João Felício dos Santos No Brasil, não temos o costume de reverenciar os autores que mostram cenários de nossa história. Costumamos nos ater aos fatos e deixar de lado as circunstâncias em que viviam as pessoas e os detalhes de suas épocas. Precisamos criar essa hábito. Ele é indispensável para que possamos viver mais intensamente nossa brasilidade. Dois autores nos brindam com textos memoráveis: Ana Miranda e João Felício dos Santos. 163 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Boca do Inferno ANA MIRANDA. COMPANHIA DAS LETRAS / COLEÇÃO COMPANHIA DE BOLSO, SÃO PAULO, 2006. Boca do Inferno, de Ana Miranda, é um livro imprescindível para quem quer entrar em contato com o segundo século da história do Brasil, o século XVII. Traça um quadro realista dos desmandos da política e do poder, colorido com os comentários de dois dos principais autores da língua portuguesa – Gregório de Matos, poeta e boêmio baiano, apelidado de Boca do Inferno, e o Padre Vieira, autor de sermões antológicos. É o romance de estréia da escritora cearense radicada no Rio, que até então se dedicara à poesia. O livro teve muito sucesso no seu lançamento, em 1989, ganhando vários prê- mios, dentre os quais o Jabuti de revelação, em 1990. É um trabalho de reconstituição da sociedade baiana do século XVII e um retrato fiel das injustiças sociais e dos governantes ineptos, corruptos e arbitrários que perduram no Brasil. João Abade JOÃO FELÍCIO DOS SANTOS. LIVRARIA AGIR EDITORA, RIO DE JANEIRO, 1958. 1A. EDIÇÃO, 307 PÁGINAS. João Abade, de João Felício dos Santos, é apenas um pretexto para falarmos desse autor, raramente lembrado. Neste livro, ele mostra a Guerra de Canudos, por meio do olhar de um de seus personagens, o jagunço João Abade. É um romance áspero, de grande beleza. Ele vai aos Sertões, de Euclides da Cunha, no qual se inspira, mas utiliza sua verve de ótimo romancista para descrever a vida, as paisagens e os relacionamentos. Normalmente, os livros de João Felício dos Santos são difíceis de serem encontrados. Podem ser consultados em bibliotecas públicas ou em sebos. Mas valem uma boa garimpagem. E com certeza, quem se esforçar um pouco, poderá conhecer, além de João Abade, preciosidades como: Ganga-Zumba, sobre Zumbi dos Palmares; Xica da Silva; Guerrilheira, romance da Vida de Anita Garibaldi; Cristo de Lama, sobre Aleijadinho; Capital Calabar. Francisco Miguel de Moura, poeta, crítico literário, romancista, contista e cronista piauiense, fala de João Felício dos Santos: “autor de [...} obras primas do romance brasileiro, falecido em 13 de junho de 1989, no Rio de Janeiro, só posso desejar que lá no céu, enquanto desfruta da presença e alegria de Deus, peça por nós outros, pobres escritores mortais, para que alcancemos um pouca de sua doçura, de seu lirismo, de sua tão simples e humana sabedoria e graça”. Música e Literatura Vinícius DIREÇÃO: MIGUEL FARIA JR. ELENCO: CAMILA MORGADO, RICARDO BLAT, RENATO BRAZ, YAMANDÚ COSTA, ADRIANA CALCANHOTO, OLÍVIA BYINGTON, MÔNICA SALMASO, MARIANA DE MORAES, ZECA PAGODINHO, MARTINÁLIA, MS BOM, NEGO JEFF, LEROV. ANTÔNIO CÂNDIDO, CAETANO VELOSO, CARLOS LYRA, CARLINHOS VERGUEIRO, CHICO BUARQUE, FERREI- RA GULLAR, EDU LOBO, FRANCIS HIME, GEORGIANA DE MORAES, GILBERTO GIL, LUCIANA DE MORAES, MARIA BETHÂNIA, MARIA DE MORAES, MIÚCHA, SUSANA MORAES, TÔNIA CARRERO, TOQUINHO. DOCUMENTÁRIO. BRASIL, 2005. 122 MINUTOS. Aqui, vamos juntar literatura e música, com o mais importante representante brasileiro nesse quesito: Vinícius de Moraes. Este documentário de Miguel Faria Jr. registra um dos mais férteis momentos da história da música popular brasileira, aquele que mostra a criação, o desenvolvimento e a glória da bossa nova. E aí, Vinícius de Moraes é presença obrigatória. 164 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Poeta e letrista, dos melhores que este país já produziu, ele tanto tem sua fase engajada, como o poema “O Operário em Construção”: E um fato novo se viu / Que a todos admirava: / O que o operário dizia / Outro operário escutava / E foi assim que o operário / Do edifício em construção / Que sempre dizia “sim” / Começou a dizer “não” quanto sua fase romântica, do “Soneto da Fidelidade”: E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama / Eu possa (me) dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure. Mas o que conhecemos mais são suas letras escritas para quase todos os compositores brasileiros de bossa nova, do Maestro Tom Jobim, o maior deles, passando pelos afro- sambas de Baden Powel, ou as singelas músicas feitas com Toquinho. Este documentário, que homenageia Vinícius de Moraes, enche-nos o corpo e a alma de música, poesia e liberdade. Música Popular Brasileira Coleção MPB por seus intérpretes / Sesc São Paulo O Sesc São Paulo produziu um dos mais completos mapeamentos da música popular bra- sileira no século XX, feito até agora. São cerca de 100 artistas, em oito caixas, com 12 ou 13 CDs cada, com a gravação em áudio de parte do acervo dos programas “MPB Especial”, TV Tupi, e “Ensaio”, TV Cultura, criados e dirigidos por Fernando Faro. Os convidados tocam, cantam e falam de seu trabalho, de sua vida e relembram casos. Cada CD é acompanhado de um livro com a transcrição literal dos depoimentos dos artistas, precedida por uma breve apresentação, que relembra o contexto da época. Entre no endereço: http://www.sescsp.org.br/sesc/loja/index.cfm?area_loja=6 e veja a relação dos CDs e seus autores. Eles reúnem desde os conhecidos Adoniran Bar- bosa, Cartola, Paulinho da Viola e Chico Buarque, até os hoje, esquecidos, mas não menos brilhantes, Lupicínio Rodrigues, Nora Ney, Paulo Soledade e Germano Matias. Uma coleção que deveria fazer parte do acervo de qualquer escola brasileira. Para quem quer conhecer mais sobre Educação Integral Escola de Tempo Integral – desafio para o Ensino Público VITOR H. PARO, CELSO J. FERRETTI, CLAUDIA P. VIANN, DENISE T. DE SOUZA, CORTEZ EDITORA / AUTORES ASSOCIADOS, SÃO PAULO, 1988. Escola de Tempo Integral é um livro-referência no tema. Analisa as duas experiências de Educação Integral mais significativas e fundantes como modelos diferentes de política pública com este recorte: os Centros Integrados de Educação Pública – os CIEPS do Rio de Janeiro e o Profic – Programa de Formação Integral da Criança de São Paulo. 165 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Diretrizes da Escola de Tempo Integral SÃO PAULO: SEE, 2006. DISPONÍVEL APENAS NA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO PARA CONSULTA. Documento do Congresso Internacional de Educação, realizado em São Paulo, em 27 e 28/03/06, o livro apresenta as diretrizes gerais que fundamentam a concepção e a imple- mentação da Escola de Tempo Integral, cujas orientações e sugestões práticas subsidiam gestores e professores para o planejamento, a organização e a avaliação das Oficinas Curriculares que compõem a matriz curricular. Em foco: a escola nas férias SÃO PAULO: SEE/CENP, 2000. DISPONÍVEL PARA DOWNLOAD: HTTP://WWW.CRMARIOCOVAS.SP.GOV. BR/PDF/ ES_TEMPOINTEGRALA%20ESCOLA%20NAS%20FERIAS.PDF Em foco: a escola nas férias propõe a realização de projetos aglutinadores das experiências vivenciadas por alunos e professores, transformando-as em um produto que permita ao aluno e à comunidade escolar observar o que foi possível progredir na aprendizagem. É proposto um conjunto de sugestões de atividades que articulam os seguintes aspectos: a pedagogia de projetos, a seleção dos núcleos temáticos e a linguagem fotográfica. Site Um site dedicado inteiramente à educação integral, dentro do site da UNIRio. http://www.unirio.br/cch/neephi/ O NEEPHI / UNIRIO – Núcleo de Estudos – Escola Pública de Horário Integral – da Universi- dade Federal do Estado do Rio de Janeiro surgiu em 1995, quando foi apresentado o projeto de sua criação aos Colegiados do Departamento de Didática, da Escola de Educação e do CCH da Universidade do Rio de Janeiro. O Núcleo pretendia trabalhar com atividades de ensino, pesquisa e extensão, e elaborou uma série de metas relacionadas a essas três funções da universidade. Nos primeiros anos de atividade, a pesquisa resumiu-se à leitura e organização de dados bibliográficos acerca do objeto de estudo do Núcleo – Educação integral e Tempo integral. No ano 2000, começaram as pesquisas Análise situacional das escolas públicas de horá- rio integral do estado do Rio de Janeiro, concluída em 2005, e Escolas Públicas de Tempo Integral: análise de uma experiência escolar, financiada pela FAPERJ. Em 2005, o Núcleo procurou trabalhar mais virtualmente. O site do NEEPHI – Núcleo de Estudos Tempos, Espaços e Educação Integral – foi atualizado e iniciou-se um grupo de discussão. Quem tiver interesse em participar deve acessar o site e cadastrar-se. E qualquer pessoa que tenha informação sobre educação integral e/ou de tempo integral pode enviar para o site que a disponibilizará para o grupo. 166 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Cadernos Cenpec Ano I Número 2 Segundo semestre de 2006 Cadernos Cenpec é uma publicação do Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Dante Carraro, 68 05422-060 – São paulo – SP Brasil Telefax: (55) (11) 2132 9000 cenpec@cenpec.org.br www.cenpec.org.br Os artigos assinados não representam necessariamente os ponto de vista do Cenpec. As opiniões e idéias expressas neles são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Presidência Maria Alice Setubal Diretora Presidente Ricardo Campus Caiuby Ariani Diretor Vice-Presidente Diretores Administrativos Lydia Maria Queiroz Ferreira de Magalhães Tereza Maria Macedo Soares de Araújo Conselho de Administração Antonio Carlos Caruso Ronca Bernadete Angelina Gatti Hélio Mattar Maria Alice Setubal Michel Paul Zeitlin Ricardo Campos Caiuby Ariani Conselho Fiscal Reginaldo José Camilo Rebecca de Castro Filgueiras Raposo Coordenação Coordenadora Geral Maria do Carmo Brant de Carvalho Assessoria da Coordenação Isa Maria F. R. Guará Maria Ângela Leal Rudge Maria Cristina S. Zelmanovits Carola Carbajal Arregui Coordenadora Administrativo-Financeira Maria Aparecida Acunzo Forli 167 Cadernos Cenpec 2006 n. 2 Créditos desta edição Organização e Coordenação Isa Maria F. Rosa Guará Comitê Editorial Ana Regina Carrara Eloísa de Blasis Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará Maria do Carmo Brant de Carvalho Conselho Editorial Âmbar de Barros Antonio Jacinto Mathias Bernadete Gatti Fernando Almeida Fernando Rossetti Gilda Portugal Gouveia Isa Maria F. Rosa Guará Marco Aurélio Nogueira Maria Alice Setubal Maria do Carmo Brant de Carvalho Vera Masagão Colaboram nesta edição Abdalaziz de Moura Adalberto Wodianer Marcondes Ana Maria Klein Ana Maria Villela Cavaliere Antonio Jacinto Mathias Antonio Sérgio Gonçalves Célia Terumi Sanda Célio Turino Cristina Fernandes de Souza Dulce Critelli Fernando Rios Gilberto Dimenstein Gil Noam Ione Garcia Altieri Isa Maria Ferreira da Rosa Guará Izabel Brunsizian Lúcia Velloso Maurício Luiz Braga Magali Leite de Freitas Marcos César de Freitas Maria Cristina S. Zelmanovits Maria do Carmo Brant de Carvalho Maria Julia Azevedo Gouveia Maria José Reginato Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes Maurício Ernica Renata Moraes Abreu Seluta Rodrigues de Carvalho Ulisses Araújo Redator Fernando Rios Revisão e preparação de textos Dora Helena Feres Sylmara Beletti Projeto gráfico original Homem de Melo & Troia Design Diagramação e editoração eletrônica Fonte Design Fotos João Kulcsár (consultor) Antonio Augusto Ferraz Dú Ribeiro Arquivo Prêmio Itau-Unicef Tiragem 5.000 exemplares Cadernos Cenpec / Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. – N. 2 (2006) – São Paulo: CENPEC, 2006 ISSN 1808-9631 Semestral 1. Educação 2. CENPEC CDD 370

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Oficinas
Leitura e escrita

Crônica: a ocasião faz o escritor

Conheça esta edição dos Cadernos Docentes, do programa Escrevendo o Futuro, que reúne uma série de oficinas para você trabalhar a produção de crônicas com estudantes do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, estimulando a criatividade, a observação do cotidiano e a expressão das(os) estudantes.

Os Cadernos Docentes são materiais de orientação para a prática destinados a professoras e professores de Língua Portuguesa que, estruturados de forma sistemática a partir da noção de sequência didática, propõem um trabalho com os gêneros textuais, com o objetivo de desenvolver a aprendizagem da leitura e da escrita por estudantes. Esses materiais foram organizados em oficinas para que professoras e professores desenvolvam com suas turmas atividades com os gêneros Poema, Memórias literárias, Biografia, Crônica, Documentário e Artigo de opinião. São, portanto, seis Cadernos Docentes elaborados, originalmente, para o trabalho com estudantes desde o 5o ano do Ensino Fundamental até a 3a série do Ensino Médio, da seguinte forma: Caderno Poetas da Escola: atividades do gênero poema desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 5o ano do Ensino Fundamental I. Caderno Se bem me lembro: atividades do gênero memórias literárias desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6o e 7o anos do Ensino Fundamental II. Caderno Biografia: a tessitura da vida: atividades do gênero biografia desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6o e 7o anos do Ensino Fundamental II. Caderno A ocasião faz o escritor: atividades do gênero crônica desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 8o e 9o anos do Ensino Fundamental II. Caderno Pontos de vista: atividades do gênero artigo de opinião desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 9o ano do Ensino Fundamental II. Caderno Olhar em movimento: cenas de tantos lugares: atividades do gênero documentário desenvolvidas preferencialmente para estudantes da 1a e 2a séries do Ensino Médio. Apesar de serem indicados para determinadas oficinas, anos e séries, as sequências didáticas podem ser adaptadas para outros anos e séries, conforme a turma de estudantes, a necessidade e a criatividade de professoras e professores. Diálogos com a BNCC Introdução Na página inicial de cada oficina, são apresentados seus objetivos e dicas de preparação para os temas e atividades que serão trabalhados com as turmas de estudantes. Também encontramos ali uma seleção de habilidades para o componente de Língua Portuguesa, mapeadas na Base Nacional Comum Curricular e acionadas no desenvolvimento de cada oficina, indicando como cada proposta se aproxima das expectativas anunciadas pela BNCC. A seguir, apresentamos o mapeamento completo das habilidades e competências da BNCC realizado para as atividades presentes no Caderno A ocasião faz o escritor, que traz abordagens didáticas para o gênero crônica. Leia a descrição das habilidades. A crônica é um gênero que ocupa o espaço do entretenimento, da reflexão mais leve. É colocada como uma pausa para o leitor fatigado de textos mais densos. Nas revistas, por exemplo, em geral é estampada na última página. Ao escrever, as(os) cronistas buscam emocionar e envolver seus leitores, convidando-os a refletir, de modo sutil, sobre situações do cotidiano, vistas por meio de olhares irônicos, sérios ou poéticos, mas sempre agudos e atentos. A crônica é um gênero que retrata os acontecimentos da vida em tom despretensioso, ora poético, ora filosófico, muitas vezes divertido. Nossas crônicas são bastante diferentes daquelas que circulam em jornais de outros países. Lá são relatos objetivos e sintéticos, comentários sobre pequenos acontecimentos, e não costumam expressar sentimentos pessoais da(o) autora(or). As(Os) cronistas brasileiras(os) exprimem vivências e sentimentos próprios do universo cultural do país. Em relação à linguagem, crônicas costumam se aproximar da oralidade e da coloquialidade, por estarem profundamente ligadas aos acontecimentos do cotidiano. No Brasil, há vários modos de escrevê-las. Algumas delas adotam o tom da poesia, o autor produzindo uma prosa poética, como é o caso de algumas crônicas escritas por Paulo Mendes Campos e Clarice Lispector. Mas elas podem ser escritas de uma forma mais próxima ao ensaio, como as de Lima Barreto ou Ivan Ângelo. Além disso, podem ser mais narrativas, como algumas de Fernando Sabino e de Cidinha da Silva. As crônicas podem ser engraçadas e provocar, puxando a reflexão por meio do humor do leitor pelo jeito humorístico, como as de Moacyr Scliar, ou adotar um tom sério. Outras podem se aproximar de comentários, como as crônicas esportivas ou políticas. A diversidade de estilos e abordagens é o que torna as crônicas um gênero literário tão fascinante e versátil.

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Políticas públicas, participação e cidadania

Recomposição de aprendizagem nos anos finais do ensino fundamental

No quinto episódio do podcast "Educação na ponta da língua", você ouvirá um diálogo importante sobre os desafios e as estratégias para enfrentar as desigualdades educacionais no Ensino Fundamental II. Ouça agora!

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Família, comunidade e território

Cadernos Cenpec (nº 1, 2006): Educação e cidade

A primeira edição da revista Cadernos Cenpec te convida à reflexão sobre a cidade como espaço educativo, de convivência e de desenvolvimento integral de crianças e jovens. Confira!

cadernoscenpec Educação e cidade 1 stamos muito felizes por compartilhar com educadores, assistentes sociais, professores, psicólogos, profissionais de saúde, ges- tores, agentes públicos e estudantes a concretização de uma meta há muito tempo desejada por toda a equipe do Cenpec: este livro-revista com conteúdo reflexivo e, ao mesmo tempo, recheado com práticas e experiências. Uma publicação que focaliza a realidade educacional, social e política a partir do olhar sobre as ações locais que as expressam. Temos visto e vivido por este Brasil afora expe- riências de educação que merecem divulgação e que nascem da luta cotidiana de muitos agentes que, com sua ousadia, alargam possibilidades e recursos para desenvolver projetos de inclusão cidadã. Essas iniciativas promovem as invisíveis mudanças que fa- zem avançar este País, apesar das dificuldades e da lentidão das políticas sociais e educacionais. Esperamos que nossos Cadernos Cenpec, cujo pri- meiro número apresentamos, possam se tornar uma referência positiva de construção de conhecimento na área de educação e em todas as áreas com inter- faces educativas, especialmente a proteção social e a cultura, neste momento profícuo de entrecruzamento e articulação temática. Nossa experiência nos inspirou a planejar uma re- vista que apresenta as teorias inovadoras que ilumi- nam a análise dos especialistas, em conexão com os saberes da prática que se banham também no fervor da vontade e da paixão. Acreditamos que será possível criar vasos comunicantes de mútua e fértil fecunda- ção entre ambos. Cada edição será dedicada a um tema central, para o qual faremos confluir os artigos, ensaios e estudos produzidos por especialistas, professores e técnicos, num leque de abordagens que mostram o estado da arte do assunto em pauta. Ele será balanceado com a viva experiência das ações e projetos concretos. Re- servamos ainda um espaço para relembrar aprendi- zados e iniciativas do passado, documentos de referên- cia e indicações de leitura, sites e filmes como recur- sos complementares de reflexão. Tratamos, neste número, da educação na cidade. A cidade como lugar de educação e proteção, saúde e desenvolvimento integral de nossas crianças e jovens. Refletimos sobre os espaços educativos da cidade e sobre as experiências cartográficas que contribuem decisivamente para a transformação de crianças e jo- vens em verdadeiros detetives do conhecimento. Va- mos refletir sobre o compromisso que cada cidadão pode e deve ter nos projetos municipais de educação e nos passos que se podem seguir para que o municí- pio faça o melhor por suas crianças. No meio da revolução digital, vamos navegar com vocês nas possibilidades de olhar as boas coisas da cidade — recursos e pessoas — que podem fazer dela uma cidade educadora, que respeita o patrimô- nio cultural de seu povo e que reafirma a centrali- dade da educação no mundo de hoje. Estamos certos de que, com a contribuição do leitor, poderemos ajustar e atender cada vez mais ao nosso público interessado em aprimorar seu conheci- mento sobre os estudos e sobre os saberes da prática social e educativa. Maria Alice Setubal Diretora-Presidente do Cenpec Cadernos Cenpec 2006 n. 1 3 E O estado da arte com racionalidade e paixão EDITORIAL Editorial Maria Alice Setubal O estado da arte com racionalidade e paixão 3 • artigo Maria do Carmo Brant de Carvalho Pensar e repensar, fazer e refazer, juntos, a ação social pública. 7 debate Fernando Almeida, Âmbar de Barros, Marco Aurélio Nogueira, Selma Rocha Qual cidade educadora queremos? 15 • artigo Silvia S. Alderoqui Educação na cidade: responsabilidade contemporânea e solidariedade institucional. 33 relato de prática Maria Júlia Azevedo Gouveia A cidade vista por cartografias 44 • artigo Maria do Carmo Brant de Carvalho Educadora, protetora, saudável. Uma cidade feita de pertencimento. 49 relato de prática A. S. Gonçalves, M. J. R. Ribeiro, M. F. R. de Moraes Projeto Juventude e Cidadania: Ponto de encontro. Espaços educativos e de proteção para jovens 54 • artigo Eloísa de Blasis Os habitantes fazem a diferença nos projetos municipais de educação 59 relato de prática Ana Maria Falsarella, Ana Guedes Pinto, Eloísa de Blasis Alagoa Grande, Paraíba. O teatro revelou professores, alunos e cidadãos. 68 relato de prática Ana Maria Falsarella, Eloísa de Blasis, Maria Guillermina Garcia Sobradinho, Bahia. O encontro com a identidade perdida 72 • artigo Selma Rocha Tempo, cidade, educação. 77 estudo de caso Alexandre Isaac Lençóis, Bahia. Grãos de Luz e Griô Um personagem africano mobiliza a comunidade contando histórias 84 Sumário “ artigo Marcos Antônio Lorieri Escola e cidade educadora 89 depoimento Marcos Antônio Lorieri Detetives do conhecimento 94 • artigo Denise Carreira Educação pública de qualidade 99 estudo de caso Adriana Dibbern Capicotto Limeira, São Paulo. Indicações e propostas de uma política municipal de educação 106 • artigo Vital Didonet Carta à Prefeita/Carta ao Prefeito Uma cidade para a criança 111 instrumento de gestão Vital Didonet Instrumentos para construir uma cidade da criança 116 • artigo Fernando José de Almeida Tecnologias da comunicação para a cidade educativa 121 relato de prática Marcia Padilha Lotito, Jaciara de Sá Carvalho, Alice Lanalice “As coisas boas da minha terra” na rede mundial de computadores 129 • artigo Moacir Gadotti A escola na cidade que educa 133 depoimento Ana Maria Wilheim O plano estratégico de Barcelona educadora 140 • artigo Maria Alice Setubal, Maurício Érnica Por que educação e cultura? 143 Cenpec Área Educação e Cultura Um diálogo com o patrimônio cultural brasileiro 148 • memória Eloi Marcelo Lagoa Santa, Minas Gerais. Um pacto pela Educação 152 • documento Carta das Cidades Educadoras 156 • Mosaico Sites, Livros & Filmes. 162 alar sobre a ação social pública e os saberes nela envolvidos tem para nós um persistente significado ético de realimentação do sentido da ação que se quer pública. É esse o propósito desta revista. Os textos e práticas, aqui veiculados, têm um impor- tante objetivo: articular a teoria e a ação no campo social. Trazer para a revista a teoria convertida em projetos de intervenção, de forma que subsidiem e estimulem nossos trabalhadores sociais — aí incluídos educadores, psicó- logos, agentes de saúde, assistentes sociais etc. — para um agir competente no sentido de melhorar a qualidade de vida da população brasileira. Quer também subsidiar profissionais da área; ampliar a consistência e o suporte teórico das “intervenções” exi- gidas pela nossa complexa demanda de proteção, edu- cação e desenvolvimento social. A necessidade de buscar uma orientação epistemológica sólida nos toca a todos que somos profissionais da área social, intervindo no plano da decisão e implementação das Políticas Públicas. Falamos hoje em profissional reflexivo. Schon (2000) propõe: “... uma nova epistemologia da prática, que possa lidar mais facilmente com a questão do conhecimento profissional, tomando como ponto de partida a compe- tência e o talento já inerentes à prática habilidosa — especialmente a reflexão-na-ação que os profissionais desenvolvem em situações de incerteza, singularidade e conflito”. A epistemologia da prática dominante está baseada na racionalidade técnica. A medicina, o direito e a admi- nistração figuram como exemplos dessa visão de prática profissional. * Maria do Carmo Brant de Carvalho é coordenadora Geral do Cenpec, doutora em Serviço Social e professora do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 7 Pensar e repensar, fazer e refazer, juntos, a ação Maria do Carmo Brant de Carvalho* social pública. F ARTIGO A racionalidade técnica supõe um currículo normativo que procede e processa uma hierarquia de conhecimento. Assim, o currículo profissional normativo apresenta, em primeiro lugar, a ciência básica relevante, em seguida, a ciência aplicada relevante e, finalmente, um espaço de ensino prático no qual se espera que os estudantes apren- dam a aplicar o conhecimento baseado na pesquisa dos problemas da prática cotidiana. Há uma crise de confiança nesse modelo formativo. Os problemas da prática do mundo real já não se apresentam aos profissionais com estruturas bem deli- neadas; guardam características de complexidade, incer- teza, instabilidade, singularidade e conflito de valores. A realidade social resiste a ser enquadrada em es- quemas preestabelecidos, exigindo forte capacidade ana- lítica sobre a conjuntura política, social, econômica... Ou seja, a leitura da conjuntura é fundamental à ação. Sem ela, a própria leitura dos fundamentos estruturais perde sua função compreensiva e orientadora da ação. Hoje, já não se pode falar em situação-problema, mas em situações problemáticas. Freqüentemente, as situações são problemáticas de várias formas ao mesmo tempo. Conformam zonas inde- terminadas da prática — a incerteza, a singularidade e os conflitos de valores — que escapam à racionalidade técnica. Os fenômenos que a engenharia enfrenta e, em algu- ma medida, também a medicina, são inertes e, portanto, objetiváveis, enquanto os educadores, assistentes sociais e psicólogos tratam de pessoas/grupos que necessaria- mente pensam, sentem, agem e reagem. Os processos de ação são processos de interação mental/afetiva, cuja riqueza está precisamente na singularidade subjetiva que os caracteriza. Estudos recentes sobre a questão da formação profissional vêm dando destaque ao que se chama de talento artístico. Advoga-se que, na ação profissional, a ciência aplicada e a técnica baseada na pesquisa ocu- pem um território crítico importante, porém limitado, fazendo fronteira com o talento artístico (Shon, 2000). Há a arte da sistematização de problemas, a arte da im- plementação e a arte da improvisação, necessárias ao uso competente de conhecimentos científicos e técnicos na intervenção social. O que estamos desejando com esta revista é exata- mente caminhar nessa trilha reflexiva, visando envolver, numa produção coletiva, o maior número possível de pro- fissionais engajados na ação pública. Dessa forma, pretendemos: • priorizar a intervenção e as práticas movidas a partir de políticas e programas sociais; • instaurar um diálogo com características de oficinas e observatórios da prática; • produzir teorias da ação e investigações na ação; • valorizar a leitura do contexto e da conjuntura em que se dá a ação pública. Quais questões permanecem, de maneira candente, na pauta do debate sobre os saberes e a ação social pública? 1. Menos racionalidade cognitivo-instrumental e mais racionalidades ética/estética/crítica/ comunicativa, humanizadoras da ação. A racionalidade cognitivo-instrumental marcou a ciência na modernidade e produziu imensos e fantásti- cos avanços, muito conhecimento e excesso de especia- lização. Ganhou voz o especialista; perderam voz a política, a utopia e a sabedoria popular. “A filosofia foi expulsa para a periferia”. O “saber-fa- zer” afastou o “por-que-fazer” (Dupas, 2000:80). Habermas já nos sinalizou que uma racionalidade cognitivo-instrumental é a “capacidade de manipular in- formadamente e de adaptar-se inteligentemente às con- dições de um meio ambiente contigente”. Seu êxito está na autocompreensão da modernidade, não substitui a racionalidade comunicativa, cujas conotações nos re- metem “à experiência central da capacidade de unificar sem coação”. (Cohn, 1993:55). O que se quer aqui destacar é que o trabalhador social precisa do conhecimento e de tecnologias. Mais do que isso, porém, ele necessita da arte das relações, pois lida com pessoas e grupos. E também necessita da arte para criar intervenções singulares, capazes de ga- nhar a adesão dos grupos com os quais age, visando a mudanças. É por isso que a razão técnica-instrumental Cadernos Cenpec 2006 n. 1 8 assegura burocracias estáveis, mas não ações sociais competentes, carregadas de humanidade. 2. Menos saberes e ações fragmentadas A ação social acompanhou esse modelo, apostando na especialização profissional, nas ações setoriais, na segmentação dos grupos sociais em públicos-alvo e no seccionamento da ação em planejamento e execução. Há hoje desalento, insegurança e desencanto com ações parceladas originadas da própria especialização do conhecimento. O que se constata é que esse para- digma de ciência e sua corporificação na política social já não são convincentes nem confiáveis. “Se o mundo tornou-se global — isto é, mundializou-se categoricamente e viu suas áreas específicas integrarem- se sempre mais —, não temos como apreendê-lo sem tratá-lo como um complexo, um todo que é tecido junto. Isto requer uma inteligência especial: histórica, dialéti- ca, totalizante. Em vez de uma inteligência que separa o complexo do mundo em pedaços isolados, fraciona os problemas e unidimensionaliza o multidimensional, como afirma Edgar Morin, precisamos de uma perspectiva que integre, organize e totalize. Só assim teremos como aproveitar de modo pleno as inúmeras possibilidades de compreensão e reflexão propiciadas pela evolução geral dos conhecimentos” (Nogueira, 2001:35). “...os fatos observados têm vindo a escapar ao re- gime de isolamento prisional a que a ciência os sujeita. Os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são constituídas por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles” (Santos, 2000:73). É assim que o conhecimento transdisciplinar e a ação transetorial ganham maior credibilidade, especialmente quando o nosso horizonte de utopia caminha para a emancipação. A ação social requer a combinação de saberes múlti- plos, convertidos em processo, argumento, conteúdo e relação. O processo, o argumento, o conteúdo e a relação são movidos por uma concepção e demanda de ação social que possuem atributos políticos de mobilização, gestão, atenção e, igualmente, aqueles atributos clássi- cos do Serviço Social, consubstanciados no trato psi- cossocial, na pedagogia emancipatória, na afetividade, no cuidado. Eles invocam uma razão comunicativa e não instrumental, como afirma Habermas (1985). É por isso que dizemos que a boa ação é feita de competência ética, política, técnica, processual e comunicativa. Nessa condição, a ação competente, numa socie- dade complexa como a nossa, coloca-nos uma nova exi- gência: compartilhar saberes e construir ações em redes. A articulação/combinação de saber e a ação inter- programas, intersetorial e interdisciplinar permitem potencializar o agir, porque arranca cada ação do seu isolamento e assegura uma intervenção agregadora, totalizante, includente. O saber/fazer social ocorre hoje no entrelaçamento de redes alimentadas por fluxos contínuos de conheci- mento, informação e interação. 3. Revalorização dos saberes e da ação local, popular, da cultura, do cotidiano. A hipervalorização da ciência e da técnica seguiu produzindo a relativização de todos os demais saberes — o popular, o religioso, o local etc. Ora, tais saberes — na ação social — são o ponto de partida e a mediação necessária para a ação profissional na área social. O pensar, o saber, o agir não são exclusivos de agentes profissionais ou de uma elite “iluminada”. A “fruição” que ocorre entre os múltiplos saberes que governam o fazer social não permite defender qualquer atributo de pureza a um ou a outro. Tais saberes guardam relativa coerência nas muitas sínteses que processam para mover a ação. Nessa condição, é preciso relembrar: o pensamento único interdita o agir. Muito sonho possível ficou inviável pelo excesso de Cadernos Cenpec 2006 n. 1 9 A ação social requer a combinação de saberes múltiplos, convertidos em processo, argumento, conteúdo e relação. certeza dos agentes que se movimentam junto aos gru- pos em situação de pobreza e exclusão, pelo volunta- rismo com que pretendiam moldar a história deles, em vez de fazê-la em conjunto, refazendo-se nesse processo. No reinado dos saberes científicos e técnicos, nós, profissionais, arrogamo-nos à condição de porta-vozes de reivindicações dos pouco reconhecidos na sua cidada- nia. Não fortalecemos sua voz e a interlocução política. Há um conhecimento que se faz a partir da ação e relação com esses grupos no próprio terreno da ação. 4. Os saberes e a ação social e educacional possuem um componente ético pouco considerado. Pensar a questão dos saberes e da ação social nos remete com prioridade às relações éticas e políticas aí contidas. Nesse âmbito, não é possível dispensar um retorno a Aristóteles, uma vez que seu pensamento permanece como “referência necessária” às reflexões sobre esta temática. Aristóteles apreende a ação como ética e a vir- tude como o hábito de praticar o bem, supondo a inter- venção da razão no agir e oferecendo, assim, os primei- ros e indispensáveis elementos para “diferenciar a ação do movimento, do gesto, da produção, do comporta- mento ...” (Carvalho, 1993:15). A ação diz respeito às boas ações dos homens — ou bondade — e nos remete ao fim último dos nossos atos: a completude do homem como homem. As ações se empreendem com o objetivo de que o homem chegue a ser o que ele é mesmo — que realize sua humanidade. Portanto, quando nos referimos à ação como ética, estamos reafirmando que ela exige a busca do bem e não apenas da verdade. O conhecimento científico na busca pela objetividade e legitimidade acabou produ- zindo a separação entre a busca da verdade e do bem. Nessa cisão, perdeu-se o sentido ético maior da ação: a busca do bem. Partindo desse pressuposto, é possível afirmar que as ações empreendidas pelos profissionais do social exigem um saber que está além do conhecimento cien- tífico e tecnológico, pois eles não são suficientes para Cadernos Cenpec 2006 n. 1 10 Na pós-modernidade, as referências são o mercado, o consumo, a técnica, a informação. Nesse caldo, ganha significado o presente, não o futuro. referenciar a intencionalidade ética e política da ação. São os fundamentos ontológicos, metafísicos e mesmo religiosos que fornecem a ancoragem ética da ação. Há intencionalidades e objetivos com os quais todos concordam no âmbito do trabalho social. São objetivos de fortalecimento da inclusão social dos indivíduos no tecido societário; de investimento nas capacidades subs- tantivas dos indivíduos e de implementação de políticas asseguradoras de proteção social aos cidadãos. Esses objetivos possuem claro componente ético e político. Mas hoje há o risco de creditarmos apenas à ciência e à técnica toda a possibilidade de realizar uma ação com- petente. Aqui, caímos na tentação de uma ética do ra- zoável, ou seja, de um esforço de conciliação entre valo- res e interesses. 5. A ação é exercício da política Ação não é construção individual, é construção coletiva que se dá no espaço público. Ação é relação, processo, não apenas resultado, as- sim como o exercício concreto da política é produto da articulação intencional de conhecimentos, tecnologias, habilidades e atitudes. Refletindo sobre a ação como exercício da política, te- mos que nos remeter necessariamente ao público-alvo des- se saber/ação social. E esse nosso público-alvo tem, como característica dominante, a vulnerabilidade, no que tange ao seu precário acesso às rotas de proteção e inclusão so- cial, ou, mais precisamente, a sua pouca presença na “res” pública, no pouco reconhecimento de sua cidadania. Portanto, é preciso insistir que os saberes que anco- ram a ação profissional nem sempre “re-atualizam” a pauta de interesses, necessidades e reivindicações des- se público-alvo. O agir profissional torna-se perverso quando ignora, neutraliza ou causa opacidade à dimensão pública des- sa pauta. A ação profissional, nesse caso, despolitiza as demandas do “pobre”, reduzindo-o a portador de carên- cias psicossociais. Nessa condição, a ação transmuta-se em tutela, não garantindo ao atendido a voz e a vez na interlocução institucional — arena pública de acolhimen- to de demandas de cidadãos. Na essência do exercício da política, está a distribuição do poder. Assim, a pergunta que se faz é exatamente se os programas e instituições se convertem em espaços públicos de vocalização e interlocução política aos cida- dãos que os freqüentam, já que são, em si, espaço de expressão e troca de saberes. Em outras palavras, será que, como profissionais, ha- bitamos o território institucional público para conduzir o cidadão ao espaço/fórum público que é dele também? Ou o habitamos para torná-lo apenas em “bureau” de ajuda interpessoal? Nesse caso, esvazia-se a petição do cidadão, transformando-a em pedido. Mantém-se então uma relação entre desiguais, e não entre iguais, no plano da cidadania. Quando a autoria do saber/ação não é compartilhada com o público-alvo, quando o sentido da ação é apropria- do apenas pelo profissional, sem espaço para o protago- nismo do destinatário, a ação deixa de ser relação. Não é demais repetir que o fazer por, fazer para, fazer com e fazer autônomo mantêm-se como tensão contínua na ação profissional junto aos grupos em situação de pobreza e exclusão. Mas a ação política jamais é resignada; ela é movida pela esperança. 6. Uma síntese Na pós-modernidade, a utopia do mercado, do con- sumo, da técnica e da informação tornou-se referência. Nesse caldo, ganha significado o presente, e não o futuro; o imediato, e não o mediato; o microdiscurso, e não mais as teleologias sociais; os projetos individuais, de agrupamentos particulares, de minorias, e não mais de coletivos expressos nas classes sociais, nas maiorias. A ação perde seu sentido público quando contaminada pela fragmentação dos interesses. A ação descaracteri- za-se, transformando-se em mera tecnologia social voltada à solução de problemas imediatos: torna-se utilidade. Como afirma Nogueira, “o ciclo histórico em que nos encontramos está inteiramente tomado pela mudança acelerada, ininterrupta e cumulativa. Nele, entrecruzam- se inovações tecnológicas e modificações socioculturais que repercutem sobre todos os planos e setores da vida social” (1995:107). Cadernos Cenpec 2006 n. 1 11 Melucci (1994) sinaliza para um dos fatores que qua- lificam a sociedade contemporânea: o excedente cul- tural, que é o alargamento das possibilidades de ação, que ultrapassam amplamente a capacidade efetiva de ação dos sujeitos. Esse é um sistema complexo, porque põe à disposição dos atores uma quantidade de pos- sibilidades, um potencial de ações possíveis, que são sempre mais amplas do que a sua capacidade efetiva de ação. Para reduzir a incerteza, diz ele, são necessários re- cursos do tipo cognitivo, relacional, comunicativo — que permitem aos sujeitos, tanto individuais quanto coleti- vos, agirem como sujeitos autônomos. Morin defende a idéia de um pensamento complexo, isto é, um pensamento que religa, porque contextualiza e integra, e um pensamento dialógico, porque relaciona antagonismo e complementaridade, aceitando a tensão entre certeza e incerteza. Esse é o significado e, como diz Nogueira (2001:36), “... a força do pensamento crítico, das suas possibili- dades efetivas de promover o conhecimento da essência das coisas e fornecer explicações consistentes a respeito do mundo e da vida”. Com base nesse elenco de questões sobre a temática dos saberes e ação social, é necessário concluir, reafir- mando: • A demanda pela ética cresce indefinidamente. O re- conhecimento “do sofrimento político” do outro, a transparência, o compromisso, a negociação, a par- ticipação, a probidade no gasto público, o diálogo, o envolvimento, o gesto político, afetivo, estético são imperativos éticos. • Há uma demanda constante pela construção e anún- cio de sentidos para a ação: busca da verdade, do bem, do belo, da ética. O que menos se reivindica hoje são ações ancoradas pela falsa ética da impar- cialidade e neutralidade. “Não precisamos da monocultura do rigor. É neces- sário buscar a objetividade superando a neutralidade. Neutralidade é indiferença às conseqüências” (San- tos, 2000). • “Pensar a realidade como processo, movimento, con- tradição, unidade da identidade e da não-identidade. Assumir uma postura intelectual totalizante, que separa e distingue, apenas para poder ficar em me- lhores condições de reunir e unificar. Entender que o real é sempre uma ‘síntese de múltiplas determi- nações’, como dizia Marx, um processo multidimen- sional permanentemente submetido ao jogo de con- tradições que não cessam de se manifestar e se repor” (Nogueira, 2001:37). • “Alcançar uma ‘regra’ para saber o que fazer com informações e conhecimentos. Saber dialogar tanto com a frase de Montaigne — ‘Mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia’ — quanto com o verso de T. S. Elliot: ‘Onde está o conhecimento que perdemos na informação? Onde está a sabedo- ria que perdemos no conhecimento?’” (Nogueira, 2001:38). • Lembrar sempre que o pensamento não dispensa a lucidez da ação. Caminham juntos. Esta revista pretende exercitar essas propostas, res- ponder a esses questionamentos e trilhar esses cami- nhos. É assim que entendemos a ação social. Referências bibliográficas CARVALHO, M. C. Brant de (org.). Teorias da ação em debate. São Paulo: Cortez; Fapesp; IEE/PUC–SP, 1993. COHN, G. A teoria da ação em Habermas. In: Teorias da ação em debate. São Paulo: Cortez, 1993. DUPAS, G. Ética e poder na sociedade de informação. São Paulo: Unesp, 2000. HABERMAS, J. Conciencia moral y acción comunicativa. Barcelona: Península, 1985. MARX, Karl. Contribuições para a crítica da economia política. In: Cole- ção Pensadores. São Paulo: Abril, 1986. MELUCCI, Alberto. Movimentos Sociais, renovação cultural e o papel do conhecimento. In: Novos Estudos Cebrap, n. 40, São Paulo: Cebrap, 1994. MORIN, Edgar. In: NOGUEIRA, M. A. Em defesa da política. São Paulo: Senac, 2001. NOGUEIRA, M. A. Em defesa da política. São Paulo: Senac, 2001. SANTOS, Boaventura Sousa. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000. SCHON, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 12 Âmbar de Barros Jornalista e coordenadora do escritório da Unesco em São Paulo. Marco Aurélio Nogueira Cientista social; professor livre-docente de Teoria Política na Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara. Selma Rocha Historiadora; foi secretária de Educação da Prefeitura de Santo André e chefe de gabinete da Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo. Fernando José de Almeida mediador Educador, mestre e doutor em Educação pela PUC de São Paulo; professor do curso de pós-graduação da Faculdade de Educação da PUC-SP; foi secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo. “ ste debate inaugura uma seção que pretende ser a mais original dos Cadernos Cenpec. Nela, ao invés de oferecer ao leitor uma única visão sobre a temática abor- dada na edição, são colocadas frente a frente abordagens distintas — e até mesmo divergentes —, apresentadas por diferentes profissionais envolvidos com as relações entre educação, escola, comunidade e sociedade. Neste debate, cada um dos convidados apresenta seu olhar e suas preocupações, destacando o papel dos protagonistas — alunos, professores, pais, comunidade — na construção de um processo educativo que privi- legie a criação e a transmissão de conhecimento e per- mita a inserção e a convivência das várias faixas etárias. O Cenpec trabalha com um conceito de educação que supera o de rede escolar. Ele procura relacionar e integrar educação e cultura, com proteção social, arte, esportes e cidadania. Deriva daí a escolha do tema cidade educadora, um conceito que vem ocupando cada vez mais espaço desde que foi proposto pela Unesco, na década de 1970. Os profissionais chamados para debater esse assunto têm diferentes perfis e experiências. Fernando Almeida e Selma Rocha vêm de uma experiência direta com a administração pública. Ambos trazem uma indignação produtiva que nos remete para a transformação. Fernando Almeida argumenta: “A idéia é que a escola redescubra o saber dos alu- nos. Nós percebemos que os nossos alunos são extre- mantes motivados. Eles querem aprender. Porém, quando não conseguimos identificar a motivação deles ou quando a motivação deles para a aprendizagem não é a nossa, eu, covardemente, digo: ‘eles não têm motivação’. Preciso sensibilizá-los pelas novas tecnologias ou por aulas mais espetaculosas? O problema não é a es- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 15 Qual cidade educadora queremos? Escola, cidade, alunos, professores, comunidade, poder público... Os muitos lados da questão educacional. E DEBATE ” petaculosidade das nossas aulas, nem as novidades tecnológicas, mas a competência em capturar a sabedo- ria que está no interior da vida dessa moçada. E, com isso, formá-los para a escrita, leitura, ciência, filosofia e ética e estética, de forma a realmente permitir que esse contingente de pessoas, as quais passam pela escola, possa voltar para a sua sociedade reorganizando as po- líticas públicas, as obras, o financiamento, a saúde etc.” E Selma Rocha analisa: “Desde a Revolução Industrial, no século XIX, a esco- la foi montada para a reprodução do conhecimento. Nós continuamos a perceber isso como uma ação constitu- cional. Testemunhamos legiões de professores discutindo estratégias didáticas para superar problemas que ne- cessariamente não se resolvem assim. Os problemas estão relacionados a uma concepção social da escola e aos processos mais profundos de exclusão pedagógica. Quem dera que a discussão pudesse se restringir a exclusão social. Quem dera que distribuição de merenda e outros programas de vocação assistencial fossem suficientes para resolver os problemas envolvidos no processo de construção do conhecimento e da cultura. Estou convencida de que os processos de exclusão que ocorrem na escola, além de muito mais sofisticados e violentos, lesam muito mais as gerações por conven- cerem centenas e centenas de crianças e jovens do Brasil de que eles não conseguem construir conheci- mento, que estão destinados ao mundo do trabalho concebido como execução da técnica. Isso quando há trabalho, quando há técnica.” A jornalista Âmbar de Barros nos remete à origem das Cidades Educadoras ao apresentar o percurso que a Unesco realizou desde seu começo, com as palavras de Anísio Teixeira, até as definições atuais de defesa da des- centralização da política educacional, da total interação entre escola e comunidade, inclusive com sua abertura nos fins de semana. “Ao retomar o conceito de que a educação tem lugar em todas as idades da vida e na multiplicidade das situa- ções e das circunstâncias da existência, ela (a educa- ção) retoma sua verdadeira natureza, que é ser global e permanente, e ultrapassa o limite das instituições, dos programas e dos métodos que lhe impuseram ao longo dos séculos.” Para Marco Aurélio Nogueira, que apresenta suas reflexões a partir de sua intensa vivência universitária, “...a escola e a educação se tornaram desesperadamen- te operações estratégicas e decisivas, porque somente processos educacionais e escolares fortes e ativos po- derão fazer com que as cidades se encontrem com sua promessa urbana, com sua promessa cívica. Por isso, quando olhamos a questão, seja privilegiando os muni- cípios, seja privilegiando a escola, assistimos a um ca- samento quase perfeito: escola, educação e cidades”. Entre suas conclusões, destaca: “mais do que nunca, precisamos conhecer o universo cognitivo dos jovens e ajudar a melhorar a imagem da escola pública”. Ao final, o mediador, Fernando Almeida, propõe para reflexão: “... o que nos parece, neste momento, é que a equa- ção entre cidade e educação se dá pelo redimensiona- mento da função das políticas públicas dos governos e das instituições, com um novo modelo curricular, que con- tenha, não inovações meramente impositivas e burocrá- ticas, mas inovações capazes de capturar as sabedorias que existem nas culturas brasileiras, rurais ou urbanas.” Cadernos Cenpec 2006 n. 1 16 “ Âmbar de Barros O pioneirismo da Unesco na proposição da Cidade Educadora e a importância estratégica da abertura das escolas nos fins de semana. Começo elogiando: primeiro, pela decisão de lançar a revista; depois, pela escolha do tema, muito oportuno. Sou jornalista de formação e atualmente coordeno o escritório da Unesco em São Paulo. Fui buscar em textos e documentos da Unesco aquilo que teria mais relação com o tema. Vou ler alguns trechos de textos produzidos pela Unesco que falam sobre a educação no município, envolvendo o conceito de Cidade Educadora. Nunca será demais insistir sobre a importância estra- tégica do município, sobretudo em relação à educação infantil e fundamental, de jovens e adultos. Como dizia Anísio Teixeira, que ajudou a fundar a Unesco, “... a descentralização é uma condição do governo democrático e federativo. Não é uma tese educacional, mas uma tese política, parecendo ser impossível não reconhecê-la como ponto incontrovertido — de letra e de doutrina — da Constituição, que estabelece, além do mais, a federação dos estados e a autonomia dos municípios”. Anísio Teixeira disse isso numa conferência na Asso- ciação Brasileira de Educação, em 1952. Essas palavras são de uma impressionante atualidade. Colocam a des- centralização como tese política. Sem dúvida, o municí- pio sempre estará mais apto a compreender e a atender às necessidades básicas indispensáveis à conquista da cidadania. É nesse sentido que a educação municipal, ancoran- do-se na realidade de cada município, pode retratar e trabalhar a sua cultura com fidelidade e, assim, creden- ciar-se a vôos mais distantes e certamente mais dinâmi- cos. Em outras palavras, a educação municipal constitui o alicerce que sustentará e dará vitalidade à trajetória educacional de crianças, jovens e adultos. A Unesco, em todos os documentos que balizam o seu pensamento, tem procurado ressaltar e valorizar a gestão descentralizada da educação como forma de es- tabelecer a indispensável aliança entre recursos e proble- mas, entre idéias pedagógicas e necessidades e aspi- rações de crianças e jovens. Em suma, entre a escola e a comunidade a que serve. Essa idéia é muito impor- tante: a escola ideal é sempre aquela que está ligada diretamente à vida das pessoas e aos seus problemas. E isso se dá na comunidade ampliada que é o município. Sob esse aspecto, a bandeira “Educação para todos”, hasteada pelos países signatários da Declaração Mundial de Jomtien e do Marco de Ação de Dacar, procurou ressal- tar a dimensão política do processo educativo, não ape- nas concebendo a educação como direito fundamental de todas as pessoas, mas também como estratégia de superação do atraso e do subdesenvolvimento. Nessa mesma linha de raciocínio, situa-se também a Declaração de Hamburgo sobre Educação para Todos, que inspirou a proclamação da Década das Nações Uni- das para a Alfabetização, lançada em Nova Iorque em 1999, e que está em curso. Os compromissos de alfa- betização e educação para todos foram intensamente debatidos no Brasil nos últimos anos. O Plano Nacional de Educação, aprovado pelo Congresso Nacional e trans- formado em lei, incorporou a maior parte dessas metas. Se executado plenamente, poderá colocar o Brasil em um novo patamar de progresso com eqüidade social. Há, todavia, um fato que preocupa a todos. O Relatório da Unesco sobre a educação para o século XXI, coordena- do por Jacques Delors, já tinha chamado a atenção para a grande diferença cognitiva entre as nações. Mais do que isso, essa diferença, ao invés de diminuir, está aumentan- do, o que torna ainda mais urgente colocar a política edu- cacional no topo das prioridades de cada um dos países. No caso da América Latina em geral, e do Brasil em particular —apesar dos progressos que se registraram na década de 1990, sobretudo em relação à dimensão quan- titativa da política educacional — os desafios que persis- tem são ainda enormes e certamente exigirão esforços re- dobrados, tanto do poder público quanto da sociedade civil. O Estado sozinho já não tem condições de assegurar uma educação de qualidade para todos. A aliança entre o poder público e a sociedade civil assume nos dias atuais posição decisiva para o êxito da política educacional. A rigor, se a sociedade está cobrando e exigindo de forma crescente educação de qualidade, ela deverá cada vez mais se comprometer a ajudar o poder público a ofe- recê-la. A proposta de Cidades Educadoras deriva desse Cadernos Cenpec 2006 n. 1 17 ” raciocínio. Uma sociedade do conhecimento como é a atual conduz naturalmente a uma sociedade educadora. A Unesco, desde a década de 1970 — quando, por in- termédio do histórico relatório “Aprender a Ser”, lançou simultaneamente as propostas de Educação Permanente e das Cidades Educadoras — tinha consciência das ten- dências da educação num mundo que se globalizava em ritmo crescente. As conquistas que vinham sendo feitas no campo das novas tecnologias da educação permitiam vi- sualizar um contexto mais amplo de política educacional. Por isso mesmo, o relatório Aprender a Ser, procurando antecipar-se aos fatos, dizia, com muita segurança: “A partir de agora, a educação não se define mais em relação a um conteúdo determinado que se trata de assimilar, mas concebe-se, na verdade, como um pro- cesso de ser que, através da diversidade de suas experi- ências, aprende a exprimir-se, a comunicar, a interrogar o mundo e a tornar-se sempre mais ele próprio. Sendo assim, a educação tem lugar em todas as idades da vida e na multiplicidade das situações e das circunstâncias da existência. Retoma a verdadeira natu- reza, que é ser global e permanente, e ultrapassa o limi- te das instituições, dos programas e dos métodos que lhe impuseram ao longo dos séculos.” Esse é um trecho do relatório Aprender a Ser que ajuda a fundamentar a idéia de Cidades Educadoras. Como diz o especialista Eduard Lizop: “Em vez de se delegarem os poderes a uma estrutu- ra única, verticalmente hierarquizada e constituindo um corpo distinto no interior da sociedade, são todos os grupos, associações, sindicatos, coletividades locais, cor- pos intermediários que devem encarregar-se, pela sua parte, de uma responsabilidade educativa.” A partir do relatório, as idéias de Educação Perma- nente e de Cidades Educadoras foram se firmando aos poucos, devido mesmo à crescente importância da edu- cação para o desenvolvimento humano auto-sustentado das nações e ao aumento da velocidade das transfor- mações sociais. Por todas as razões expostas aqui, a Unesco acredita e concorda com a pesquisadora Pilar Filgueras, da Universidade Autônoma de Barcelona, quando ela diz: “No âmbito da ação transformadora, a ser desem- penhada pelas cidades, há um lugar central reservado à educação. A educação em sentido amplo, isto é, aquela que transcende os limites da escola, tem uma impor- tante contribuição a oferecer, pois é preciso promover a consciência sobre os direitos e deveres da cidadania, é preciso construir uma percepção de que os problemas que nos esperam podem e devem ser solucionados com a participação de todos.” Com essa constatação, surgiu a pergunta: por que não aproveitar os espaços educativos das escolas nos fins de semana para oferecer atividades lúdicas e cultu- rais para crianças e jovens, de forma a criar alternativas de educação e entretenimento e, assim, ajudar a evitar o crime e a violência? A idéia evoluiu e as propostas sur- giram. Em 2000, no Brasil, a Unesco criou um programa chamado “Abrindo Espaços”, que propôs a abertura de escolas para a comunidade em diversos estados. Hoje, no Rio de Janeiro, em Pernambuco, São Paulo, na Bahia, em Alagoas, no Rio Grande do Norte, e nas cidades de Natal, Maceió, Recife, Palmas e muitos outras, estão im- plementando essa política, não para atividades curricu- lares, mas para atividades extracurriculares, esportivas, culturais e de lazer. Em cada uma dessas cidades, o programa acontece de maneira diferente, porque cada município e cada es- cola tem uma cara diferente, tem uma relação diferente com sua comunidade. Mas o fato é que essa proposta tem tido uma grande aceitação e tem se ampliado, con- tando recentemente com a parceria do Ministério da Educação. Estou segura de que, no contexto da proposta de Cidades Educadoras, a abertura de escolas nos finais de semana pode dar uma contribuição importante em termos de mobilização da comunidade. Toda a competência cultural, educacional, científica e tecnológica existente na comunidade pode, em tese, ser disponibilizada para a escola. À medida que isso ocorrer, será possível não só ampliar a participação da comuni- dade na escola, como também reservar à comunidade um lugar de destaque na execução do projeto da escola. Chamo a atenção para a importância de a comunida- de ajudar a escola a elaborar o seu projeto educacional. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 18 Toda a competência cultural, educacional, científica e tecnológica existente na comunidade pode, em tese, ser disponibilizada para a escola. “ Essa abertura da escola nos finais de semana, como espaço de lazer, é uma estratégia muito interessante e eficaz. As pesquisas demonstram isso. É um fator de aproximação da comunidade que contribui para elabo- ração do projeto político-pedagógico da escola que, por sua vez, está em sintonia com as aspirações daquela comunidade onde ela está inserida. Por outro lado, o projeto pedagógico da escola poderá ser enriquecido por inúmeras atividades imprescindíveis à formação da personalidade de crianças e jovens. Na sociedade em que vivemos, torna-se, cada vez mais, necessário oferecer novas possibilidades de so- cialização, evitando que crianças e jovens se submetam exclusivamente aos processos socializadores da mídia que, em grande parte, não só deixam a desejar, como podem direcionar para vertentes pouco recomendáveis. A idéia de uma educação permanente e comunitária leva à idéia de escola permanente e comunitária. Isso se torna ainda mais importante nos dias atuais, pois a escola que forma cidadãos conscientes é o local mais privilegiado para a construção de cenários sociais mais justos e solidários. Marco Aurélio Nogueira Na sociedade urbana do século XXI, estamos mergulhados no paradoxo de vivermos em cidades que não cumprem plenamente suas promessas como cidades. Quero agradecer ao convite para estar aqui e também cumprimentar o Cenpec pela idéia tanto da revista quanto do debate. São duas belas iniciativas, que têm tudo para repercutir positivamente no contexto atual. A relação entre educação e município é um tema em torno do qual podemos ficar horas dialogando, entrando na discussão por diferentes portas. Farei uma pequena consideração inicial, imaginando que depois, no decorrer do encontro, teremos como interagir, corrigir algumas observações e acrescentar outras. Começarei com algu- mas observações que, apesar de óbvias, parecem-me decisivas para que entendamos o teor da discussão. A primeira delas: nós, brasileiros, estamos apren- dendo, de uns 15 anos para cá, a considerar os municí- pios como peça estratégica da vida nacional, tanto no que diz respeito à organização social, quanto à organi- zação estatal e às políticas estatais. Estamos imersos, ao menos desde a Constituição de 1988, em uma dinâ- mica democratizadora e descentralizadora, que tem transformado os municípios em protagonistas ativos da vida nacional e, em alguns aspectos, são até mesmo mais importantes do que outros componentes da federação, como os estados. A segunda observação é que, por isso, mas não ape- nas por isso, os municípios brasileiros estão experimen- tando um processo de efervescência e ebulição que pode ser explicado pelo fato maior da nossa época, por aquilo que “grosseiramente” costumamos chamar de globaliza- ção. Enfatizo a expressão “grosseiramente” porque, nessa questão, teríamos que refinar os conceitos, uma vez que globalização é uma palavra que, a rigor, não diz muita coisa. Para além da palavra, porém, creio estarmos dian- te de um processo de radicalização da vida moderna, repleto de formas novas de conexão, de interação, aba- lizadas quase sempre pela tecnologia da comunicação, processo que nos proporciona um conjunto grande de cenários inovadores. Cito, como exemplo, algumas expressões com as quais se tem tentado qualificar o novo modo de vida: so- ciedade em rede, estado-rede, sociedade hipermoderna, sociedade da informação, sociedade do conhecimento. As próprias ciências sociais parecem tatear em busca do melhor modo de explicar o que temos diante dos olhos. Trata-se de um processo que é particularmente forte e visível nos países e regiões mais desenvolvidos, mas que nem sempre percebemos como ele repercute de modo muito sensível na vida das regiões, dos municí- pios e das sociedades mais pobres ou excluídas das van- tagens do progresso moderno. À medida que surge a consciência desse fenômeno, percebe-se que há muitas conquistas sendo feitas e, ao Cadernos Cenpec 2006 n. 1 19 ” mesmo tempo — para fazer uma espécie de contraponto — há um crescimento muito grande das carências e, conseqüentemente, das reivindicações. Isso acontece tanto nas cidades ricas dos países ricos, quanto nas cidades pobres dos países pobres. Se há de fato alguma “globalização”, ela não significa uma uniformização do mundo, mas sim a constituição de um mundo no qual as conexões tendem a fazer com que tudo repercuta em tudo o tempo todo e que todos sejam atingidos pelos mesmos processos e dilemas, e isso de maneira extremamente dinâmica, heterogênea e desigual. A humanidade do século XXI é urbana, não vive mais nas zonas rurais. Poderíamos argumentar: “mas há 30% que vivem nas zonas rurais”. É verdade; mas a tendência, desde o século XX em diante, é de que haja uma urbani- zação maciça e, ao que tudo indica, inexorável: não vol- taremos à vida rural. Viveremos cada vez mais em cidades. Porém, apesar de estarmos convergindo para as cidades, não estamos nos urbanizando no que diz respeito à aqui- sição de formas de convivência mais polidas — que é, como sabemos, o segundo sentido da palavra “urbano”. Enfrentamos hoje, no início do século XXI, o paradoxo de vivermos em cidades que não cumprem plenamente suas promessas como cidades. Porque a promessa das cidades é a promessa urbana, de dar vida boa para todos os seus integrantes, criar condições de vida cívica, que também é o sentido do termo “civis”, que constitui a base da palavra cidade. Pensando nesses termos, podemos chegar a uma primeira conclusão: a escola e a educação se tornaram desesperadamente operações estratégicas e decisivas, porque somente processos educacionais e escolares fortes e ativos poderão fazer com que as cidades pos- sam cumprir sua promessa urbana, cívica. Por isso, quando nos debruçamos sobre a questão das relações entre escola e municípios, assistimos a um casamento quase perfeito, que aproxima a educação da vida cívica, da vida urbana, da pólis, da cidade. Quero ainda fazer uma terceira observação: não estamos hoje num mar tranqüilo quanto à questão da escola e da educação. Ao contrário, se há um terreno mo- vediço, no qual a incerteza prevalece sobre a certeza, esse terreno é o da escola e o da educação. Porque é muito fácil falar bem da educação e defender sua importância. Não há ninguém, da extrema esquerda à extrema direita, que deixe de considerar a educação como uma questão vital. Todo mundo valoriza a educação, todo mundo aposta na educação, todo mundo investe em educação, e nem por isso nós, receptores da educação, protago- nistas da escola, da educação, sentimo-nos tranqüilos. Vivemos mergulhados em dúvidas: onde colocar a crian- ça? Que tipo de escola é melhor? Como ensinar? O menu, digamos assim, de oferta escolar é escan- dalosamente amplo e não transparente. As pessoas olham esses cardápios e não sabem exatamente o que distingue uma escola da outra. Qual é a melhor escola? A que ensina mais a língua ou mais a matemática? A que promove rapidamente o ingresso da criança na universi- dade? Ou aquela que dá uma formação crítica, abran- gente e humanista, preparando a criança para a vida e não tanto, ou não somente, para o vestibular? A melhor escola é, obviamente, a que oferece tudo isso. Mas nem sempre fazer tudo é possível. E se esque- cermos as singularidades e olharmos as famílias de um modo geral, provavelmente elas se colocarão diante dessa questão conforme os parâmetros da cultura domi- nante na época. E a cultura dominante na nossa época é mercantil, promove e incentiva a maximização das vantagens e a eliminação completa das desvantagens. É uma cultura que não ensina a perder, só a ganhar, maxi- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 20 “ mizar, acumular, consumir. De modo geral, as famílias decidirão segundo os parâmetros dominantes. Não ne- cessariamente segundo os parâmetros do mercado ca- pitalista. Mas a cultura da nossa época é uma cultura dominantemente neoliberal. Esse caldo de cultura está nos dominando, talvez de modo meio silencioso. Entrou na corrente sanguínea. E esse fator tende a dar às famílias os elementos para a es- colha, que a motivam. Se continuássemos por aí, iríamos por uma linha perigosamente pessimista. Não é necessário, mesmo considerando as coisas nesses termos, caminharmos para um cenário sombrio. Tanto que, quando olhamos para aquilo que nos cerca, acredito não termos muitos motivos para sermos estru- turalmente pessimistas. Há muita coisa interessante acontecendo. E aí eu volto aos municípios, talvez pelo fato de eles estarem dentro desse mundo, mas com uma perna para fora, quase que na “periferia” do coração do sistema. O município tende a se enraizar mais no que é local, opera numa escala menor e pode, por isso mesmo, freqüentar as ondas globalizadoras de um modo particu- lar: é afetado por elas, mas também se beneficia delas. Os municípios se tornaram peças importantes de uma operação de valorização da escola que promove aquilo que me parece ser, hoje, o programa máximo de todos aqueles que estão interessados em recuperar a escola: a possibilidade de se ter, entre escolas e famílias, um outro tipo de pacto, de contrato, que explicite o que a escola pode dar, o que a família pode esperar da escola e com o que a família está disposta a contribuir. Atualmente, os limites não são claros. Muitas famílias, por exemplo, transferem tudo para a escola. “Queremos que a escola cuide de tudo, da higiene básica à alimen- tação, à educação, à alfabetização.” Evidentemente, isso enfarta as escolas, porque elas não estão preparadas e não existem para fazer isso. Elas, a rigor, não deveriam sequer responder pela merenda. Isso só existe numa sociedade como a brasileira, cujo grau de carência é tão grande que, se as escolas não fizerem isso, as crianças morrem. Essa situação cria uma confusão muito grande, ocupando, às vezes, até mesmo um tempo que a escola deveria dedicar ao ensino do bê-a-bá, dos números, da física, da química, da geografia. Por fim, uma quarta observação. Olhando mais cuida- dosamente para a nossa época, percebemos que há uma hipertrofia da racionalidade. A racionalidade é evidente- mente uma conquista humana. Porém, o que vemos é uma hipertrofia da racionalidade instrumental, da racionalida- de técnica, aquela que ensina as pessoas a fazer coisas, que privilegia a aquisição de habilidades operacionais. Uma forma de avançar para esse novo contrato seria ampliar o leque de racionalidades. As escolas, a educação e as famílias não deveriam pensar em si como sujeitos de processos de racionalização instrumental. Ensinar a fazer coisas é importante, mas ensinar a pensar, a ad- quirir racionalidade crítica, também é. A cultura dominan- te é a cultura do aprender a fazer. Dá-se bem no mundo quem sabe fazer coisas; não se dá necessariamente bem no mundo quem sabe criticar as coisas — no sen- tido de pensar e de enfrentar intelectualmente o mundo real, não no sentido de ser contra. No mundo em que vivemos, nem sempre se dá o de- vido valor à razão política, que ensina as pessoas a con- viver. Talvez nesse “programa” que estou sugerindo, nesse pacto de recontratação entre famílias, escolas, edu- cadores e professores, pudesse existir uma tentativa de refundir racionalidades — a técnica, a crítica, a política e a estética — que nem sempre conseguem se manter uni- das. Elas foram se separando em benefício da hipertrofia da razão técnica sobre as demais formas de razão. Essas são as primeiras idéias; posteriormente, du- rante o debate, poderei complementá-las. Selma Rocha Nenhum Plano Municipal de Educação terá a mínima chance de funcionar se ignorar a cidade real onde as pessoas vivem. Quero agradecer ao Cenpec pelo convite, pela possibi- lidade de discutir essas questões tão complexas e cumpri- mentar a todos os presentes pela disponibilidade. Quando Cadernos Cenpec 2006 n. 1 21 ” conversei com Fernando Almeida sobre este debate, ele me pediu que falasse um pouco sobre o Plano Municipal de Educação e a Cidade Educadora. Decidi começar pelo Pla- no Municipal para chegar à Cidade Educadora, por uma razão: estou convencida de que hoje, no Brasil, é muito difícil lidar com a idéia de prioridade à educação. Quando falo em prioridade, estou me referindo a ela do ponto de vista da lógica do Estado, da política edu- cacional. Nós estamos na época do espetáculo. A quan- tidade de ações espetaculares relativas à educação que se confunde com política educacional é cada vez maior. Essa é uma das minhas maiores preocupações atual- mente, pois é importante que se consiga configurar po- líticas educacionais, não ações espetaculares. Um fato, porém, é inquestionável: é impossível pensar em projeto de cidade, de nação, se a educação não estiver no centro dessa discussão. Quando falo de educação, não estou mencionando vagas, dinheiro e ações assistenciais. A questão mais importante, intransferível, que tem sido quase intransponível, é o que se faz dentro da escola. A discussão que proponho aqui, em torno do Plano e da Cidade Educadora, tem a ver com a idéia de que a função social da escola não é a de reproduzir informa- ção e conhecimento. Essa questão é tão fundamental quanto o direito ao conhecimento. Por muitas razões históricas, que nós poderíamos discutir com mais calma depois, a escola tem sido um espaço de reprodução. Desde a Revolução Industrial, no século XIX, a escola foi montada para a reprodução do conhecimento. Nós con- tinuamos a perceber isso como uma ação constitucio- nal. Testemunhamos legiões de professores discutindo estratégias didáticas para superar problemas que neces- sariamente não se resolvem assim. Os problemas estão relacionados a uma concepção social da escola e aos processos mais profundos de exclusão pedagógica. Quem dera que a discussão pudesse se restringir a exclusão social. Quem dera que distribuição de merenda e outros programas de vocação assistencial fossem sufi- cientes para resolver os problemas envolvidos no proces- so de construção do conhecimento e da cultura. Estou convencida de que os processos de exclusão que ocorrem na escola, além de muito sofisticados e violentos, lesam, às vezes de forma irreparável, as gerações que passam pela escola, por convencerem centenas e centenas de crianças e jovens do País que não conseguem construir conhecimento, que estão destinados ao mundo do traba- lho, quando há trabalho, concebido como execução da técnica. Trabalho em que pensar e fazer estão apartados. Entro no Plano por esse lado: ele não deve ser uma peça exclusivamente técnica. Os planos podem e devem nascer de um novo pacto da sociedade com a educação, no âmbito da cidade. Esse novo pacto não envolve só os níveis de ensino sob a responsabilidade do município. O Plano Municipal precisa abranger todos os níveis de en- sino que estão na cidade, ainda que sob a responsabili- dade de outros agentes governamentais. Quando falo em envolver todo mundo, é todo mundo mesmo: é necessário chamar a cidade para discutir as questões educacionais; assim como os movimentos so- ciais, os empresários, as igrejas e as promotorias. Chamar quem tem poder e quem não tem para refletir sobre a política educacional e, principalmente, sobre a idéia de política, o estabelecimento de diretrizes e metas, além de discutir os méritos do que é a ação, o que é a concep- ção de educar. Se esses propósitos se concretizarem, temos uma pequena chance de melhorar a educação. Digo pequena porque lidamos com forças políticas e culturais pode- rosíssimas no Brasil. Montar esse projeto não é simples. Mas é por aí que temos uma pequena chance de conce- ber outra cultura política, isto é, a cultura de que é pos- sível construir referências além das ações imediatas de governo, referências mais perenes do ponto de vista da sociedade, que não possam ser mudadas só em função de um programa governamental. Há pelo menos três grandes diretrizes a serem se- guidas, baseadas na experiência que tivemos em outros níveis de governo e dos Conedes — Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Econômico e Social, cujas proposi- ções foram no sentido de que tivéssemos um plano nacional de educação mais democrático. A partir dessas diretrizes — democratização do acesso, democratização da gestão e qualidade social da educação — ancoradas na idéia de uma política educacional, poderíamos recu- perar algo que tem uma história. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 22 O Plano Municipal precisa abranger todos os níveis de ensino que estão na cidade, ainda que sob a responsabilidade de outros agentes governamentais. “ Essas diretrizes articulariam as iniciativas. Por exem- plo, democratização da gestão envolve abertura da escola, o debate com a comunidade, a incorporação da experiên- cia, os conselhos, eleição de diretor, enfim, um sem-núme- ro de ações. Mas elas estariam articuladas com uma polí- tica. Isso nos remete à idéia da Cidade Educadora. Esse conceito — que está ainda muito ligado à expe- riência européia, principalmente à esquerda européia — relaciona-se com a idéia de uma ação intencional- mente educativa do Estado e da sociedade. Nesse con- texto, a palavra “intencionalmente” é fundamental, por- que a cidade sempre educa, nem que seja à força. Hoje, isso acontece cada vez mais, infelizmente. Na periferia de São Paulo, isso fica evidente. A cidade sempre educa. Porém, uma ação intencional de educar pressupõe uma compreensão mais profunda da cidade, que torna o indi- víduo cidadão, sujeito. Tivemos vários debates em Barcelona, no primeiro congresso sobre Cidades Educadoras, em 1994, quando encontramos profissionais da Europa e da América La- tina. Os europeus falam bastante em multiculturalismo, integração cultural, diversidade cultural. Isso é muito importante na nossa época e, sobretudo na Europa, não é uma questão secundária. Mas nós, latino-americanos, não podemos discutir isso sem abordar o problema da desigualdade tanto interna quanto, no caso dos países dependentes, em relação aos países centrais. Concomitantemente, devemos nos debruçar sobre o fenômeno da segregação interna e da fragmentação da percepção da vida cotidiana, seja por causa da globaliza- ção, seja pela maneira como a idéia de tempo tem sido identificada no cotidiano com a de velocidade. A idéia de velocidade fragmenta o olhar, a memória, a percepção e transforma tudo em visão fugaz. E é na cidade que acon- tece e se desenvolve toda essa trama. Mas o que a gente já pode fazer com esse problema do tempo na cidade? Muita coisa. Quando se articulam essas políticas — num processo de encontro da cidade com suas tradições urbanas, culturais, enfim, sua memória — isso se transforma num problema educativo não apenas no sentido da educação formal, mas das ações do Estado, que tenta mostrar e dialogar com essas experiências de intervenção urbana e cultural que ocorre nas cidades. Podem ser criadas pontes claras e objetivas que le- vem os cidadãos a se encontrarem com a história da cidade, das suas comunidades, com a sua identidade ética e cultural. Isso tem muito a ver com educação. Quero dizer algo que tem relação com essa noção de reprodução de conhecimento no interior das escolas. Em geral, quando se fala da perspectiva da Cidade Educadora e também de outros aspectos da experiência humana, científica, cultural, estética, há a idéia de que isso deve entrar pela porta da escola sempre por um desenho curricular inovador. Então, são gerações e ge- rações discutindo se o currículo vai para cá ou para lá, se o tema é horizontal ou vertical. Na verdade, os nossos jovens têm uma cidade inter- na, e até um país inteiro, cognitivamente construídos. Eles sentem e vivem a exclusão cultural, cognitiva, afe- tiva e todas as outras coisas que criamos. Raramente os processos educacionais permitem que isso seja verda- deiramente desvelado para se tornar ponto de partida de um trabalho curricular efetivo. Estão aí os parâmetros curriculares, os professores com o livro didático e mais um monte de iniciativas di- dáticas. Mas a verdadeira investigação não acontece. E, Cadernos Cenpec 2006 n. 1 23 ” quando essa investigação não acontece, não sabemos o que está nas cabeças dos nossos alunos. Tenho um ver- dadeiro arsenal de experiências que foi me mostrando como desconhecemos o que é feito e o assunto sobre o qual falamos, porque nós não somos formados. O termo “nós”, institucionalmente falando, não o professor. Formar professor é necessário. Mas não acredito nes- sa história de que formando o professor tudo melhora. Precisamos de muito mais do que isso, porque a respon- sabilidade não é apenas dele. Formamos professores, distribuímos textos para as escolas e aí, magicamente, a realidade se transforma, como se não precisasse exis- tir reunião pedagógica e muitas horas de conversa na escola para mudar a realidade. Tudo isso está ligado à questão da cidade, porque, conforme “tomamos pé”, ou nos movimentamos nesse sentido — das experiências individuais desse universo cognitivo dos nossos alunos — também estamos conta- tando uma cidade que tem muitas formas, que os alunos trazem porque vivem essas experiências do ponto vista da exclusão. Isso nos leva à discussão sobre o que é a família, uma discussão complexa e fundamental do nosso tempo. Evidentemente, o modelo de família da propaganda da Doriana, em que todo mundo toma café da manhã junto, está desmontado. E a escola trabalha com esse modelo de família, porque ela busca por isso e ainda faz um apelo moral à existência da família, o que é muito grave, porque não existe a tal da família, e a crise só se aprofunda. Estou fazendo essa colocação porque ela nos remete à discussão do Currículo, da Cidade Educa- dora, do Plano de Educação. E se essas coisas não apare- cerem na discussão do plano de qualquer cidade, ela se tornará uma peça tecnocrática novamente, que uns guardam, outros lêem, uns levam em conta um pouqui- nho, outros não, mas que não mexe com a realidade das pessoas, com suas vidas concretas, da forma como efe- tivamente acontecem. Algo que tenho observado muito nos últimos anos é como a educação da higiene está latente. É muito inte- ressante perceber como os professores trazem no seu imaginário a idéia de higienização social: precisa ensinar a escovar os dentes e a lavar os cabelos. O que está por trás disso é muito mais profundo, é a idéia de saneamen- to da vida do outro, como se ele fosse um saco vazio que precisasse ser preenchido. Fernando Almeida A presença maciça das crianças na escola é, na verdade, um fato recente na história do País. O desafio a ser enfrentado é o da quantidade com qualidade. Primeiro, vou expor algumas reflexões sobre o tema. O Brasil tem uma história muito desfavorável em rela- ção ao processo de educação. Embora hoje todos este- jam de acordo com a idéia de que a educação é funda- mental para o desenvolvimento, nem sempre foi assim. No Brasil, durante quatro séculos, o objetivo do projeto político educacional era que o brasileiro fosse apenas um povo bem-falante, mas não leitor, nem “escrevente”. A idéia era essa. Tanto é que nós falamos muito bem. O brasileiro, em geral, fala muito bem. Mas escreve e lê muito mal. A imprensa foi implantada no Brasil somente em 1808. Até então, era proibido qualquer tipo de pu- blicação e as máquinas de imprensa eram quebradas, se descobertas. A mudança para uma sociedade leitora e escritora, com pesquisa e condição de conhecimento formal, literal, escrito, científico, é recente em termos históricos. O grande movimento do século XX foi muito longo e, ao mesmo tempo, difícil: colocar todas as crian- ças na escola. Essa é uma das nossas questões aqui. Por isso, entrei nesse assunto. Colocamos as crianças na es- cola e, no entanto, não temos qualidade. Vale a pena citar uma frase que o professor Mário Sérgio Cortella costuma usar: “o dilema da qualidade para poucos é que quali- dade para poucos não é qualidade, é privilégio”. Li um relatório do censo da educação de 2004 apon- tando que temos hoje 97,3% das crianças brasileiras no ensino básico, no ensino fundamental. Isso é uma novi- dade histórica, é um feito histórico. Os pessimistas eli- tistas, contudo, afirmam: mas não temos qualidade. Poderia não ser assim, mas é. No entanto, já fizemos o primeiro movimento: colocar as crianças dentro da escola. Vamos ter até a possibilidade de descobrir que nação infanto-juvenil é esta, porque agora ela está den- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 24 “ tro da escola, que é a única agência socializadora que o nosso país tem. Porém, nós, educadores, sabemos que não podemos dar uma aula para 50 alunos. Temos que reverter essa equação. Nosso desafio é: trabalhar com muitos e com qualidade. Sem reduzir essa questão do número, a ques- tão da quantidade e da qualidade me parece um falso dilema que os governantes municipais e estaduais terão que contemplar. Educação com qualidade deve ser tam- bém educação de quantidade. • O debate agora passa a acontecer a partir das falas dos conferencistas e das perguntas enviadas pela pla- téia, que reunimos em quatro questionamentos: * 1. O primeiro pede que cada debatedor indique até cinco caminhos para a implementação de uma boa governança da educação nos municípios; 2. O segundo problematiza: atualmente vivemos em uma cidade que valoriza os espaços privados, nor- malmente restritos às pessoas com maior poder aqui- sitivo: são perceptíveis e condenáveis o abandono e a desvalorização dos espaços públicos. Assim, seria então possível planejar uma Cidade Educadora sem resolver as questões de distribuição de renda e do problema social existentes nos espaços urbanos bra- sileiros? Seria possível uma política pública sem re- distribuição de renda? 3. O terceiro avalia que, na história da educação bra- sileira, tivemos duas situações: escola com poucos alunos e educação com qualidade, e escola com muito alunos e educação sem qualidade. Assim, como pode- ríamos melhorar esse quadro? 4. O quarto questionamento considera que, mesmo com a proposta de socialização do poder por meio da criação dos conselhos, encontramos, principalmente nos pequenos municípios, um governo controlado, independente do prefeito, na maioria das vezes, re- presentante de uma elite. Dessa forma, não há meca- nismos efetivos de participação. Portanto, de que modo a proposta da Cidade Educadora poderá supe- rar e transformar essa situação? Marco Aurélio Nogueira ... não conhecemos os universos simbólicos, cognitivos das crianças que chegam à escola. ... não conhecemos... porque não conhecemos as crianças... os jovens. Perdemos essa sabedoria porque o mundo mudou demais. Vou considerar as questões da platéia e as interven- ções feitas aqui na mesa, porque houve uma grande confluência das nossas falas. A rigor, falamos a mesma coisa, com ênfases diferen- tes. Levando isso em conta, passei o tempo todo ouvindo a expressão “cidade educadora”, e fiquei me pergun- tando: se fizermos o caminho a partir do diagnóstico e do ambiente — digamos, do mundo real — será que po- deremos ter cidades educadoras? Claro que devemos ter isso como uma meta, meta filosófica, política; podemos desenvolver políticas que caminhem nessa direção. Mas, em termos práticos, a questão fica pulsando. Como podemos ter cidades educadoras se elas de- pendem do “protagonismo” das pessoas, do engajamento cívico? Como se dá o engajamento cívico em contextos que não são cívicos e que, de certa maneira, dificultam esse engajamento? Parece ser assim sobretudo quando projetamos o engajamento cívico nas metrópoles, nas cidades grandes e, hoje, cada vez mais, até mesmo em cidades médias. Atualmente, a disponibilidade de cada cidadão é pe- quena. O tempo rouba o “protagonismo” das pessoas. A compressão do tempo presente é uma experiência violentíssima. Não conseguimos evitar isso. Talvez de- vêssemos ter dias de 48 horas, pois 24 horas não são suficientes. Fora do questionamento do tempo, da pouca disponibilidade das pessoas, há a complicação da agen- da, os problemas urbanos, o trânsito, a pressa, a ansie- dade, que são terríveis. Fiquei pensando nisso e me ocorreu uma dúvida cru- cial: “Como fazer acontecer o ‘protagonismo’ local?”. Responder a isso é extremamente difícil. Todos nós Cadernos Cenpec 2006 n. 1 * Âmbar de Barros participou apenas da primeira parte do debate. 25 ” imaginamos alguma coisa, temos alguma idéia. Mas o fato de termos as idéias não nos dá qualquer tipo de garantia de que obteremos sucesso. Estamos acostumados, por exemplo, de uns anos para cá, a jogar muita luz na questão da participação. Tudo é participação. Quer dizer, todos nós devemos participar: a gestão deve ser participativa, a vida deve ser partici- pativa, a família deve ser participativa. Mas nem sempre fazemos a crítica da participação. Além do mais, nem tudo pode ser resolvido com participação. Muitas vezes, a participação aparece perversamen- te, como um fator que esvazia de responsabilidade aque- les que deveriam tê-la. Processa-se um mecanismo de transferência: “Vamos deixar que a participação resolva”. Mas nem sempre a participação resolve. Não estou di- zendo que devemos ser contra a participação, longe dis- so. Mas há que se fazer uma reflexão: a participação tem um custo, exige alguns requisitos e implica diversos ajus- tes e adaptações. Não é toda hora que as pessoas estão dispostas a pagar o custo da participação, porque, para que haja par- ticipação cívica, algumas horas de lazer são deixadas de lado, por exemplo. É um raciocínio mesquinho, mas nem por isso menos real. Imagine uma cidade como São Paulo: para o sujeito participar do sindicato e defender seu sa- lário, precisa consumir algumas horas no trânsito e, por- tanto, arcar com um custo financeiro e existencial. O ambiente mais geral em que nos encontramos complica a nossa vida, o governo e as políticas públicas. Selma Rocha falou que não conhecemos os universos simbólicos, cognitivos das crianças que chegam à escola. Concordo inteiramente com isso. E vou além: não co- nhecemos esses universos cognitivos, simbólicos, por- que não conhecemos as crianças, não conhecemos os jovens. Perdemos essa sabedoria porque o mundo mu- dou demais. De certa maneira, deixamos de lado o jovem e a crian- ça como fonte de interesse teórico. Não há mais uma sociologia da juventude. Isso aparece episodicamente em um ou outro texto. Mas não há uma reflexão sobre o assunto, a não ser do ponto de vista, digamos, “da vida marginal”. Costumamos olhar com mais atenção o hip hop, por exemplo. Certamente, temos ali uma imagem do jovem. Mas quem valoriza o hip hop? Talvez devêssemos passar a valorizá-lo como uma expressão. Há várias ou- tras manifestações que poderiam nos servir de base. E se não conhecemos os jovens, se não os conhecemos plena e profundamente, como é que resolveremos questões escolares básicas: o currículo, o tempo de duração da aula, a técnica pedagógica que o professor deve seguir, a organização da aula? Eu sou professor. A cada mês de março, quando co- meça o ano letivo, faço-me essa pergunta, porque já sinto, há muito tempo, que se eu sento e fico duas horas falando para os meus alunos, a minha eficácia cai pela metade. Eu não posso dar uma aula expositiva na base da saliva e do giz. Ainda faço isso, mas não deveria fazer, porque os jovens não estão propriamente interes- sados em participar desse tipo de palco: eles têm outra maneira de se projetar intelectualmente, outros hábitos intelectuais, diferentes estímulos sonoros, visuais, muitas informações etc. É claro que eles precisam ser educados e assimilar formas “clássicas” da vida inte- lectual, meio na contracorrente da tendência dominan- te. Possuímos um evidente embate aqui, mas ele pode ser mais bem travado em um palco atualizado, que não se distancie demais do cotidiano dos jovens. A escola precisa mudar e nós não sabemos como fazer isso. Temos idéias para dinamizar as aulas e torná-las mais atuais, mais sintonizadas com o modo de ser dos jovens de hoje. Podemos inovar na forma sem prejudicar o conteúdo. Somos capazes de imaginar a organização de salas de aula inteligentes, nas quais cada um tenha o seu laptop. São coisas que podemos cogitar. Porém, as condições das escolas não ajudam: elas são pobres e, assim, nem sempre é fácil resolver as coisas. Vou, tendo como base esse mesmo tipo de problema- tização, comentar a questão da velocidade, que Selma Rocha abordou — veloz, fugaz, espetacular. Veloz: falta de paciência; veloz: movimento; veloz: ação e não-institu- ição. A velocidade que vem da compressão do tempo, da mudança do tempo, mudança do espaço, das tecnologias de comunicação. Essa velocidade, esse ritmo mais acele- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 26 ... a gestão que gasta pouco e faz muito ainda é insuficiente. Ela tem que ser uma gestão que promova o diálogo, capaz de protagonizar o local, tornar o cidadão, sujeito. “ rado da vida, está nos subtraindo uma série de coisas que eram os nossos alicerces. O próprio modo de pensar está sendo modificado pela velocidade. Não temos mais muito tempo para ficar fazendo reflexões abstratas. Sempre aparece alguém para dizer: “Quero cinco encaminhamen- tos, cinco propostas práticas”. Como assim, propostas? Eu não tenho nem meia proposta, quanto mais cinco! O problema da velocidade, no que diz respeito à escola, mexe com as nossas identidades. Elas, hoje, são fugidias, as nossas, a minha, a de vocês e a da massa. Há uma dificuldade de fixação de identidades. Quem eu sou? Para onde vou? O que devo fazer? É difícil no Brasil, é difícil em todo lugar. Tanto que identidade hoje é tema de fronteira: multicultural, com a valorização do diferen- te. Mas a identidade está flutuando. Não conseguimos amarrá-la e fixá-la em qualquer campo específico. E a última observação, antes de passar para as solu- ções, é a questão da dificuldade institucional, que, no fundo, é a outra face da necessidade de valorização desse aspecto. Em muitos momentos o valorizamos, mas quando pedimos para o institucional “falar”, ele “fala” de modo precário ou não responde. Ano passado, pu- bliquei um livro pela Editora Cortez chamado Um Estado para a sociedade civil. Nele, há um capítulo que propõe a idéia do sofrimento das organizações. Quando falamos de dificuldade institucional, referimo-nos à dificuldade que as instituições têm de se renovar, de se modificar, de agir de modo coordenado e produtivo. Temos que transformar o que está dentro da instituição. As organi- zações despendem muita energia para produzir pouca coisa. E isso é um enorme problema. Quando pensamos em escola, devemos considerar que ela é uma instituição por excelência. E tudo que há dentro dela me leva a crer que o seu ambiente está em estado de sofrimento. Esse raciocínio nos remete à idéia de que há uma espécie de defeito congênito nas orga- nizações atuais, algo que está fazendo com que elas respondam precariamente a um ambiente extremamente desafiador. É um quadro que exige novas modalidades de gestão, novos procedimentos, adaptações culturais difíceis, em suma, operações que podem produzir in- centivos para o incremento da vida organizada, da vida unitária. Agora, vamos aos caminhos, providências ou propostas. Primeira providência: teríamos que melhorar de modo radical a gestão pública. Fazer com que ela caminhe para além da eficácia e da eficiência, que são hoje os parâ- metros da boa gestão pública. Devemos ir além disso, porque a gestão que gasta pouco e faz muito ainda é insuficiente. Ela tem que ser uma gestão que promova o diálogo, capaz de protagonizar o local, tornar o cidadão, sujeito. É genérico, mas acredito que é uma tentativa, um caminho para imaginar alguma coisa nova. Uma segunda proposta também é óbvia e é citada há décadas, mas não podemos deixá-la esquecida, nem des- valorizá-la: melhorar a imagem e o funcionamento da escola pública. Essa é uma questão crucial para um país como o nosso, que perdeu a escola pública. É uma questão decisiva, diante da qual todas as outras são supérfluas. Não melhoraremos a imagem da escola pública por meio, por exemplo, da política de cotas que garantam “x” vagas na universidade para os alunos provenientes dela. Isso não produz necessariamente melhoria na sua imagem. Por esse expediente, ela não será resgatada pela classe média, não voltará a ocupar o sonho da família brasileira: “Ponha seu filho na escola pública, porque 50% das vagas da USP serão destinadas a quem fizer escola pública”. Também avançaremos pouco e com dificuldade sem uma terceira providência: precisamos que os canais de comunicação, a mídia, a política, os partidos, os sindi- catos dêem um banho de vida cívica na sociedade. Para finalizar, um quarto expediente: recuperar a vida organizada. Olhar nos olhos disso que eu estou chaman- do metaforicamente de “sofrimento das organizações” e tentar corrigir. Não é necessário que a gente viva mal nos locais em que trabalhamos, que trabalhemos insa- tisfeitos. Não precisamos maximizar o infortúnio: “Ah! Eu ganho pouco, ninguém gosta de mim, todo mundo fala mal de mim pelos corredores”. Não deveria ser assim. Deveríamos tentar substituir esse rumor medíocre dos corredores das escolas, das organizações, por alguma coisa mais substantiva, mais solidária, fraterna. Creio que há como fazer isso, desde que possamos costurar essas quatro providências, digamos assim, e a gestão começar a ser de modo dialógico e democrático, sem deixar de ser competente. Isso significa, por exem- plo, entre outras coisas, que os chefes sejam substituídos por lideranças ampliadas, capacitadas para dar riqueza à convivência organizacional. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 27 ” Selma Rocha As leis que tratam da gestão da educação são incompatíveis entre si; no conjunto de conselhos envolvidos com a educação, ignoram-se uns aos outros. Tenho uma história pessoal marcada pelas estruturas nas quais estive inserida e que sempre me forçaram a tomar decisões. Isso tem sido a força da minha vida. Sempre brinco que passei a minha adolescência dentro de célula política. Nessa célula, havia a discussão inicial e a decisão final. Até hoje sou assim. Preciso, nem que seja comigo mesma, decidir alguma coisa para que eu possa sentir um movimento, uma ação. Essa questão pessoal da decisão me remete a uma questão geral que me angustia: a perda do sentido de ur- gência no Brasil. Essa é uma das coisas mais dramáticas que existem na nossa ação social, política, institucional: porque a perda desse sentido nos leva a contemporizar coisas que não podem ser contemporizadas. Trago aqui uma pergunta que o escritor José Sarama- go fez no Congresso das Cidades Educadoras, em Lisboa: “Eu quero saber quem educa as cidades educadoras, é o capital ou não é?”. Foi um rebuliço, foram duas horas de respostas. Creio que isso está relacionado um pouco com a questão do custo da participação, do tempo urbano. Coloco a questão do ponto de vista inverso, ou seja, se a gente partir do conceito, em vez de partir das pes- soas, acredito que não vai dar certo. Por quê? Porque tem que ter o conceito. O conceito existe para colocar a sociedade em movimento. O que vai acontecer não se sabe, porque isso vai depender do processo, do movi- mento. E há o problema do tempo, da dificuldade eco- nômica, material. Às vezes não dá nem para pagar o ôni- bus para ir à conversa. Não se trata de convencer qualquer secretário de obras. Eu não diria que tapar os buracos ou discutir que obra ele quer fazer tem um sentido educativo. Porque o problema não é esse. A questão não está na ação isola- da, mas no conjunto de ações que podem adquirir sen- tido educativo se isso for trabalhado na sociedade. O que eu quero dizer é que tudo depende de como as coisas são feitas. Se o dirigente monta um processo com intenção manipulativa, todos percebem. A população é perspicaz. Pode não decifrar tudo, mas percebe a intenção malévola e cai fora. Mário Sérgio Cortella disse também que “mundo de poeta não tem pernilongo”. Mas neste mundo aqui, que eu estou relatando, tem muito e, ainda assim, é possível realizar movimentos conseqüentes. Quero dizer com isso que a experiência participativa não pode substituir a responsabilidade do governante, porque ele deve tomar as decisões. Mas ele precisa di- zer que decidiu, precisa assumir o que está fazendo. Isso é uma ética que se constitui na relação, o que vale para a educação também. Vamos discutir as propostas. Minha primeira sugestão é a “democratização do acesso e da gestão”. Isso vale para todas as áreas, mas, no caso da educação, é imperdoável que não exista. O que acontece? Cansei de ver em Administração Pública a publicação de texto com a observação: “referência pedagógica para as escolas”. É quase um “cumpra-se”, e com a maior sofisticação: há inter e multidiciplinarida- des, tema horizontal, tema transversal, tudo. Mas há um problema: não se constrói uma experiência educacional se não houver gestão do diálogo e do processo de cons- trução da proposta pedagógica. Isso é mais importante do que a premissa teórica que a orienta. Nessa esteira, incluo os problemas de planejamento e currículo. Porque é assim: todo mundo se concentra na formação, o professor de matemática, de ciências, de geografia e, depois, vamos investigar os alunos. Só que o tempo para o planejamento é escasso para qualquer investigação. São dois dias de planejamento, incluindo a construção do currículo. Não se prevê tempo para a in- vestigação, para se discutir a experiência real da escola e se dialogar com os órgãos da educação sobre os im- passes da construção curricular. Construir o currículo é uma coisa que traz milhões de dúvidas, que vão da filosofia à geometria. Para isso, há a necessidade de diálogo. E não é porque o profes- sor é mal formado, é porque isso é inerente à ação de pensar. Desculpem-me, mas acho uma desonestidade intelectual essa conversa de que o problema é a má for- mação dos professores. Quem é bem formado? Nós estamos lidando com conhecimento. Então, é muito fácil transferirmos responsabilidades. É profun- damente desleal com os professores. Por que falo isso? Porque há dúvidas legítimas. Quando eu vou construir uma experiência com o outro e sentam três professores de ciências para ver como vão trabalhar com as quintas séries, todas as dúvidas da ciência estão expostas ali, tenham eles consciência disso ou não. É para esclarecer dúvidas que servem o interlocutor da universidade e as equipes técnicas das secretarias de governo. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 28 “ Aqui vai a segunda proposta: memória, registro, por- que ninguém escreve nada. Esse é o segundo problema. As escolas não têm memória e, conseqüentemente, não têm história. E quem não tem memória e não tem história não reflete sua experiência, vai trabalhando sem reflexão. Falta registro das discussões. Acontece uma reunião pedagógica na quarta-feira de manhã e à tarde você per- gunta aos professores: o que aconteceu na reunião? E recebe como resposta uma expressão indecifrável. Isso é gerir a construção pedagógica por meio de um processo democrático? O processo democrático não po- de ser a “festa da uva”. Todo mundo fala, fala, fala e não há registro da decisão, da discussão. Ao fazer isso, perde-se a experiência democrática, porque não há resultado. Isso vale para as outras estruturas, para algu- mas experiências do orçamento participativo. Agora entro na terceira proposta: hoje, no Brasil, um gestor da educação, o Secretário de Educação, deve escolher a lei que ele vai descumprir. Não há como gerir a educação no município cumprindo todas as leis pré- estabelecidas! Se juntarmos LDB, Constituição, ECA, Responsabilidade Fiscal, Fundef e os 25%, 30% da edu- cação, ele pode começar a escolher o que vai descum- prir e se preparar para se defender. Falo disso com a maior segurança, porque as metas são estabelecidas e as condições de financiamento das políticas públicas no Brasil não estão sendo discutidas efetivamente. A legis- lação precisa ser revista. Só na educação, há pelo menos três conselhos. E nenhum deles discute o conjunto. O Conselho do Fundef discute o dinheiro do Fundef, não discute os recursos da Secretaria da Educação, que, por sua vez, não discute a política nacional. Depois, temos o Conselho da Merenda que também não discute o resto. Já o Conselho Municipal da Educação, se puder, dependendo da lei local, pode discutir o conjunto dessas coisas ou não. Porém, os três conselhos jamais se encontram. Parece que é uma regra para a efetivação de conselhos do nosso país. Aqui também existe o problema da representação. Por exemplo: no Conselho da Merenda, há uma categoria chamada “pai de aluno”. Quem esse cidadão representa? Já que não há colégio eleitoral, os Conselhos não são representativos. Aquele cidadão representa a si mesmo. Isso vale para os professores, porque as entidades sindicais, em tese, representam todo mundo, mas tam- bém não têm os mecanismos para que a relação repre- sentante–representado se estabeleça efetivamente. Quero dizer que esse processo precisa ser repensado para que haja uma real democratização do diálogo. Não devemos esquecer que representante deve ser eleito, dia- logar com seus eleitores para falar em nome de quem re- presenta. Isso não ocorre. E as atribuições dos conselhos são quase no sentido de tornar normativa a política esta- belecida pela secretaria ou governo estadual ou federal. Quando isso acontece, esvaziamos o poder do conse- lho. Então, a quarta proposta é discutir essa legislação, esse financiamento. Não podemos ser vendedores de ilusão, é preciso dialogar. O governante não pode o tempo todo tomar para si a responsabilidade, imagi- nando que vai resolver tudo. Ele não vai. Então é preciso que a sociedade saiba das limitações do poder munici- pal, até mesmo para poder refletir sobre os mecanismos nacionais que engendraram essa situação. Na verdade, estamos assistindo a mecanismos de contenção, pois não há dinheiro para financiar tudo o que se precisa. Os municípios ficam competindo para am- pliar a educação infantil e não conseguem, já que não podem contratar pessoal, por causa da lei da responsa- bilidade fiscal. E ponto. Pode-se discutir o que quiser sobre a LDB. Eu sei disso porque vivi essa realidade intensamente. Em Santo André, tive que fazer parceria com Deus e o demônio. Fizemos parceria com a Faisa – Fundação de Assistência à infân- cia de Santo André, para ampliar o atendimento por meio de uma gestão mista das creches da Federação e da Secretaria. Foi bem legal, mas foi um sacrifício. Nós quase morremos para fazer isso. Por quê? Porque o fato é que não há dinheiro. Não é para universalizar a edu- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 29 ” cação infantil? Até porque isso não é uma perspectiva constitucional, é do ECA, não faz parte da Constituição. Então, como o Estado pode planejar? O ECA, no artigo 54, item IV, afirma que deve haver “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”. O pai vai ao Promotor e o Minis- tério Público manda matricular. Então, a LDB e a Consti- tuição dizem que não é obrigatório. Se não é obrigatório, como fazer? O Estado faz o que pode. E, com a lei de responsabilidade fiscal, menos ainda, porque mesmo que não se atinjam os 65% do teto da folha de paga- mento, previsto na lei, há um contingenciamento de 10% ao ano. E, enquanto se discute, as crianças conti- nuam sem escola. A última coisa que eu fiz em Santo André, no dia 31 de dezembro de 2000, foi assinar uma liminar, porque a Promotoria mandava dúzias e dúzias de crianças e dizia: “Matriculem-se”. E eu, com a minha “santa ingenuidade”, achando que o mundo podia ser bem bacana, construí critérios socioeconômicos para as creches. O Promotor sabotava. Entrava uma mulher na minha sala, com celu- lar, ligando para o advogado, e eu dizia: mas a senhora não precisa dessa creche, há 50 pessoas na frente em situação bem pior que a sua. Mas o Promotor dava a liminar. Então, eu tinha que entrar na justiça para cassar a liminar. A criança entrava e saía. Se eu não fizesse isso, a injustiça social seria muito maior, porque aque- les que estavam em condição de risco, de acordo com o ECA, não teriam atendimento. E o financiamento? É complicado da mesma forma. Essa discussão deve ser pública. Não acredito que ela possa estar vinculada estritamente aos problemas que o município tem aos 25%, 30%, até porque porcentual é uma discussão maluca: 25% de 10% é uma coisa, de 100% é outra. O problema é a base de financiamento do Estado. Os recursos ainda estão muito centralizados. É verdade que a Constituição deu um passo nessa dire- ção, mas nós não andamos tanto assim. Nesse sentido, temos uma quinta sugestão, que é a base de sustentação de nossa conversa: as condições e o uso da arrecadação. O problema maior é: o que esta- mos fazendo com o dinheiro no País? Nós não finan- ciamos o Estado brasileiro. Nas condições que estamos hoje, nada vai mudar. E o secretário fica brigando por causa do Fundef, e faz muita coisa, cria cota disso, cota daquilo, para tentar arrecadar mais um pouquinho, porque essa é a lógica. Não sou contra a cota. Acho que é uma medida artificial que pode, em alguma circuns- tância, ajudar, mas não resolve o problema de base. Precisamos mexer com as condições de financiamen- to do Estado brasileiro. Nós e a América Latina inteira. Não é um problema exclusivo do Brasil. Mas é preciso que essa discussão seja realizada com o povo, porque tenho a esperança de que, mesmo com a falta de tempo, as pessoas se arvorem no direito de interferir na vida como sujeitos. E não sou eu quem vai decidir isso, são elas. A minha obrigação, como ente público, é difundir, discutir isso à exaustão. E dizer a verdade. Nós deveríamos conversar muito sobre financiamento, para tentar planejar juntos — estados, municípios e União — e realizar o regime de colaboração em educação. Marco Aurélio Nogueira A turbulência, a incerteza, o risco, presentes no cenário em que vivemos, produzem, além de angústia e ansiedade, um questionamento constante sobre tudo. Quero fazer um comentário sobre uma observação da Selma Rocha. Acredito que, no mundo em que vivemos, aquilo que é complicação e problema também pode ser a solução. Nesse caso, a complicação é a incerteza, a velocidade, a fugacidade, o excesso de informação, uma série de coisas desse tipo, que são problemáticas, confundem, tumultuam, criam desafios seguidos. Também existem transparência, produção incessante de éticas alternativas, formação contínua de novos con- sensos, que vão surgindo, às vezes, independente- mente da vontade das pessoas. A turbulência, a incerteza, o risco, presentes no cená- rio em que vivemos, produzem, além de angústia e ansie- dade, um questionamento constante sobre tudo. Produ- zem também a derrubada dos modelos. Podemos encarar isso como vantagem. De repente, ficamos livres deles. Dá um certo pavor, porque somos meio bitolados. Sempre queremos um modelo. Mas qual devemos seguir? E se não tivermos mais modelos? É um desafio interessante. Nosso mundo é reflexivo. Tudo é pensado e refletido o tempo todo, e tudo se reflete em tudo, nada há de oculto no nosso mundo. E nós, as pessoas, temos opi- niões sobre tudo, o tempo todo, certas ou erradas. Isso cria um espírito crítico, portanto, cria problema, é óbvio. Imaginemos um gestor: solucionar um problema é só Cadernos Cenpec 2006 n. 1 30 “ uma ilusão, porque ao solucioná-lo, outro lhe salta à frente. Porque as pessoas continuam falando, reclaman- do, reivindicando. O que também cria novas subjetividades, ajuda pes- soas a se transformarem em sujeitos, querendo fazer coisas, se expressar, imaginando ter soluções no bolso, não aceitando as soluções dadas de antemão, queren- do discutir. Esse contexto, ao mesmo tempo, embaça, angustia e também estimula a criatividade. Fernando Almeida Recapturar o conhecimento impregnado na vida dos jovens pode ser a mola propulsora de mudanças que envolvam cidade e educação. Vou fazer uma síntese, correndo o risco de empobrecer essa troca de idéias tão rica. O núcleo da nossa discussão era cidade e educação. Perceber a articulação das cidades com a educação significa ver não apenas a cidade como espaço físico, mas também como espaço cultural, um espaço de vida. Habitar a cidade é um dos fenômenos mais sofisticados, como nos mostrou Marco Aurélio Nogueira. Portanto, ao refletir sobre a educação e a cidade, penso na neces- sidade de políticas públicas que viabilizem ambas, polí- ticas públicas que envolvam uma reconceituação do Es- tado, sua reorganização, novas formas de organizar as instituições em seu interior, financiamento e captação de recursos e a sua distribuição. Sem isso, dificilmente, poderemos fechar essa equação complexa. Entendo também que o Estado se operacionaliza em torno de governos, que devem se responsabilizar pela desfragmentação das questões existenciais das cidades. Que os governos sejam capazes de articular os proble- mas: de saneamento e meio ambiente, cultura e saúde, planejamento urbano e econômico. Sem a reconceitua- ção e a reorganização disso tudo, dificilmente eu com- poria a equação Cidade Educadora. Então, se, de um lado, políticas públicas, governo e as várias composições da cidade devem se reorganizar para entender a escola, a educação também deve se reorganizar para desempenhar a sua função social ade- quada. Hoje, a função social da educação se dá hegemo- nicamente na sociedade brasileira em torno da escola, embora educação seja muito mais do que a escola. A escola ainda é, e precisa ser, durante algum tempo, en- quanto a sociedade não estiver mais fortalecida cultu- ralmente, o lócus privilegiado da socialização da juven- tude que constrói a história. Essa escola se organiza em torno do currículo, que é o núcleo do qual o conhecimento se transmite, porque é importante, sim, que o conhecimento seja transmiti- do. Porém, se a escola assume apenas essa função re- produtiva do conhecimento, perde a sua originalidade e a sua capacidade de utopia. Portanto, cabe também à escola criar o conhecimento; recolocar os novos problemas, como o Marco Aurélio Nogueira dizia tão bem, que se derramam sobre a esco- la e sobre a sociedade; reequacionar esses problemas e acreditar que existam soluções alternativas para eles, ou seja, produzir conhecimento. Mas essa produção do conhecimento não acontece sem haver aquilo que a Selma Rocha destacou: uma metodologia curricular com a capacidade de capturar a vida que os alunos trazem para a escola, que a comu- nidade traz por meio de seus filhos. Se não houver me- todológica e intrinsecamente essa capacidade de cap- turar os valores e as vivências da juventude, da “moçada” que está na sala de aula, a escola estará transmitindo um saber fossilizado, cadavérico. A idéia é que a escola redescubra o saber dos alunos. Nós percebemos que os nossos alunos são extrema- mente motivados. Eles querem aprender. Porém, quan- do não conseguimos identificar sua motivação para a aprendizagem ou quando ela não corresponde à nossa, eu, covardemente, digo: “Eles não têm motivação”. Preciso sensibilizá-los pelas novas tecnologias ou por aulas mais espetaculares? O problema não é a espe- tacularidade das aulas, nem as novidades tecnológicas, mas a competência em capturar a sabedoria que está na vida dessa “moçada”. E, com isso, formá-los para a es- crita, a leitura, a ciência, a filosofia, a ética, a estética, de forma a permitir que esse contingente de pessoas que passa pela escola volte para a sociedade, reorganizan- do as políticas públicas, as obras, a saúde etc. O que nos parece, neste momento, é que a equação entre cidade e educação acontece pelo redimensiona- mento da função das políticas públicas dos governos e das instituições, com um novo modelo curricular que con- tenha não inovações meramente impositivas e burocrá- ticas, mas inovações capazes de capturar as sabedorias existentes nas culturas brasileiras, rurais ou urbanas. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 31 ” Cadernos Cenpec 2006 n. 1 33 Viagens pela cidade Para iniciar esta conversa, propomos uma viagem imaginária pela cidade. Visualizem o mapa da cidade e nele localizem o lu- gar onde cada um de vocês vive. Que posição ocupa esse lugar em relação à cidade? Está na parte mais an- tiga, próxima da zona comercial, afastada do centro, perto da entrada, à beira de um rio? Em uma região degradada ou valorizada, central ou periférica? Continuem pensando: vivem próximos da universi- dade ou de alguma outra instituição importante? Pen- sem nos limites do bairro onde vocês vivem, nas vias férreas, em autopistas ou vias expressas, nos cursos d ́água. Agora, localizem-se no bairro: • Como é a organização espacial? São quarteirões idênticos e de ruas simétricas, ou eles acompanham o relevo? • É possível observar o ordenamento original do bair- ro ou ele foi modificado? • O lugar onde está a sua casa era periférico e de- pois se uniu à trama urbana, ou sempre ocupou o mesmo lugar? Tentem resgatar um pouco a história. Pensem nas construções mais antigas: • Quando foram construídas? • Há dados ou inscrições nas fachadas que possam ajudá-los? • Todas as construções pertencem ao mesmo estilo, à mesma época? • As ruas têm nomes ou números? • Se tiverem nomes, eles são temáticos? Estão em or- dem alfabética? Referem-se a personagens, fatos históricos, elementos da natureza ou da geografia? Agora, observem as árvores da rua: • Quando foram plantadas? • São mais recentes ou antigas que as construções? Mentalizem agora as mudanças quanto aos mate- riais de construção e às dimensões dos espaços: • De que modo servem para localizar os edifícios em diferentes momentos históricos da cidade? • É possível relacionar a subdivisão de terrenos e de ambientes nos edifícios com o aumento da densi- dade na cidade? • Estão recuperando as antigas construções? As mudanças são visíveis quando observadas as atividades comerciais de uma cidade: • Há vários estabelecimentos novos? • São transformações dos antigos? • Que estratégias de resistência os antigos estabe- lecimentos desenvolvem? • O comércio local é suficiente ou é necessário recor- rer a estabelecimentos em outros lugares da cidade? Por fim, pensem nas pessoas que circulam no bairro: • Há muita ou pouca gente na rua? • Existe mescla de culturas, idades, etnias, idiomas? • Há zonas proibidas ou cercadas? • Há muitos locais ou moradias alugadas ou à venda? • Como será o bairro em dez anos? A partir desta viagem imaginária, provavelmente, alguns terão conseguido se localizar facilmente; outros, nem tanto. Algumas perguntas ficarão sem respostas; outras recordarão algum ensinamento. Morar na cidade não significa conhecê-la. Educação na cidade: responsabilidade contemporânea e solidariedade institucional. ARTIGO Silvia S. Alderoqui* Educar o cidadão: o direito à cidade. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. Hannah Arendt, A crise da educação Se as viagens são um tipo de percursos onde se organiza grande parte do sentido (comum) que a cidade tem para os sujeitos, portanto de sua cultura urbana, devem ser importantes para a constituição do que se costuma chamar cultura política e exercício da cidadania. Néstor García Canclini, La ciudad de los viajeros Poderíamos perguntar: • Por que faria falta conhecer a cidade? • Para que seria necessário que os imaginários privados coincidissem com as explicações públicas? E, assim sendo, • O que falta para que isso aconteça? Para responder à primeira pergunta, é fundamental reafirmar o lugar como expressão de identidade. Nesse sentido, recorro a Castells (1998), ao afirmar que, em termos culturais, o local e os lugares se convertem cada vez mais em “trincheiras de identidade” diante da dis- solução geral de identidades no mundo instrumental da sociedade informal (espaço dos fluxos). Esse autor estabelece a necessidade de se conec- tarem os espaços de lugares com os espaços de fluxos para que não se produzam dissociações entre a cultura cosmopolita global e a local. Por outro lado, para apren- der a viver e a apreciar a cidade, é necessário melhorar o conhecimento que temos dela. Isso pressupõe desenvol- ver ações no sentido intelectual do conhecer. Quanto à segunda questão, voltemos às pesquisas de García Canclini. Ele explica que as versões sobre o real, construídas pelos sujeitos, raramente coincidem com as explicações científicas. Desse modo, instala-se uma cultura urbana casuística que engendra uma cultura pré-política, em que, para além das causas sistêmicas, identificam-se culpados isolados ou pouco se percebe dos problemas estruturais da cidade. O autor destaca que as análises dos especialistas sobre os problemas urbanos são desconhecidas pelos habitantes, e assinala a importância, para as autori- dades municipais, de conhecer como seus habitantes percebem os usos do espaço urbano, os problemas de consumo, trânsito e contaminação ao elaborar políticas que fomentem a cidadania. A idéia de cidade contém a de cidadania. Compar- tilhamos uma concepção de cidadania como atividade desejável, uma dimensão que excede o meramente for- mal (a esfera dos direitos legalmente reconhecidos e do dever ser) para vincular-se indissoluvelmente a um tipo de ação social. Uma cidadania que se constrói em so- ciedade, conflitivamente como um espaço de valores, ações e instituições comuns que integram os indivíduos, permitindo o mútuo reconhecimento como membros de uma comunidade (Gentili, 2000) na qual também coe- xistem cidadanias compostas como efeito das migrações, das mesclas étnicas e religiosas. Também nos referimos à cidadania como certa rela- ção de apego com a cidade, que inclui simultaneamente conhecimentos, prazer, desejo, e que pode realizar-se, descobrindo-se e se deslocando. Uma cidadania que não é só política, no sentido de status, mas que nos obriga a repensar a relação cidade-cidadania. Para responder à terceira indagação — o que falta para que isso aconteça? —, é necessário perguntar quem transmite as chaves para formar o cidadão, para decifrar o texto urbano, conhecer as causas dos problemas es- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 34 * Silvia Alderoqui é licenciada em Ciências da Educação, especialista em Didática de Ciências Sociais e Didática de Educação Artística, coordenadora da equipe de Ciências Sociais e diretora de currículo da Secretaria de Educação do Governo da Cidade de Buenos Aires. truturais, construir uma cultura urbana, apegar-se, esta- belecer o vínculo com a cidade? Uma transmissão, en- tendida a partir da perspectiva de Jacques Hassoum (1996), é o nome que recebe o compartilhar o relato, é o que torna possível o ato de releitura e assegura a passa- gem das biografias singulares às gramáticas plurais das sociedades. Transmitir é “passar” o código e habilitar o outro a construir uma nova significação. Nesse caso, os adultos têm a responsabilidade de educar as novas gerações, transmitir o código, ensinar a ver, olhar, sentir e pensar a cidade. São os responsáveis pela “hospitalidade” para com os “recém-chegados”. Como diz Frigero (2001), “o verbo que expressa a ação responsável, o dever de hospitalidade diante dos novos, o horizonte de esperança (de ação sem espera, de ação sem demora) é o verbo educar”. Podemos, então, delinear a educação (sobre, em, da cidade) como uma responsa- bilidade geral de transmissão. Cidade, conjunto de liberdades. O tema educação e cidade remete-nos a um vínculo obrigatório: a educação do cidadão. A esse respeito, Frigerio (2001) afirma que não “é possível existir sujeito social sem produzir a passagem do universo social, inscrevendo-nos na pluralidade, construindo em cada um a figura do cidadão, patriota e cosmopolita”. Educar a participação para a gestão e a edificação da cidade é educar a visão crítica para suscitar a participação em seus usuários mais qualificados: os cidadãos. Todos os cidadãos merecem a cidade. Merecem em sentido duplo, por residir, trabalhar e construir a cidade todos os dias. Fala-se do direito ao espaço urbano, não só no sentido de fixar residência ou atividade econômica, mas, sim, no de acesso à educação, ao lazer, à saúde, ao transporte ou aos serviços públicos. Se esses bens têm distribuições geográficas desiguais, o direito à ci- dade não é igual para todos (Oslack, 1991). Como dissemos, a possibilidade de dominar a expe- riência urbana e de vivenciar a cidade como um jogo contínuo é para poucos. Há cidadãos incluídos e excluí- dos. Parte dos habitantes pode desfrutar “da cidade”; os demais têm de sobreviver, como se vivessem em “outra cidade”. A esse respeito, Jordi Borja (2001) estabelece alguns critérios importantes em função do direito à cidade e das condições da cidadania: sentir-se orgulhoso do lugar onde se vive e ser reconhecido pelos outros, ter visibili- dade e identidade, poder dispor de equipamentos e espaços públicos. Também são direitos do cidadão a mobilidade, poder ter e trocar informação, oportunida- des de formação, ocupação, acesso às ofertas urbanas e apropriar-se da cidade como um conjunto de liberdades. Se os direitos não são universais, a cidade não é democrática. Desse modo, o autor recria o conceito de cidadania como sujeito da política urbana, na qual tam- bém se exerce a cidadania quando se interfere na cons- trução e na gestão da cidade. “O marginal se integra, o usuário passivo conquista direitos, o residente modela seu ambiente, todos recuperam a auto-estima e digni- dade ao aceitar e responder aos desafios que lhes esta- belecem as dinâmicas e as políticas urbanas”. Quanto aos direitos da criança no Habitat, destacamos: “É necessário considerar plenamente as necessidades das crianças e dos jovens, especialmente no que diz respeito aos seus ambientes vitais. Tem-se de prestar atenção especial aos processos que favorecem a partici- pação no que se refere ao ordenamento de cidades, povos e bairros, para garantir as condições de vida das crianças e dos jovens e de utilizar sua intuição, sua criatividade e suas idéias sobre o meio ambiente” (Habitat, 1996).1 Parte-se da idéia de que a criança é cidadã, com di- reitos e capacidade para melhorar sua própria vida e a das comunidades onde vive (Encontro internacional de Prefeitos, Planejadores e Dirigentes Políticos, 1992). Desse modo, os princípios de participação requerem que as crianças não só expressem suas perspectivas, mas também que se comprometam com a articulação e a implementação das recomendações. Portanto, somente pela responsabilidade geral — que deve formular políticas que reduzam as desigualdades quanto ao acesso à cultura e seu exercício criativo e, ao Cadernos Cenpec 2006 n. 1 35 ...os princípios de participação requerem que as crianças não só expressem suas perspectivas, mas também que se comprometam com a articulação e a implementação das recomendações. mesmo tempo, que garantam aos diversos grupos que compõem a sociedade se manifestarem e “ensaiarem sua renovação” — pode-se reconstruir culturalmente o espaço público e revitalizar-se a vida pública como palco para “aparecer e compartilhar o comum”. A cidade como pedagogia: o território que educa. Hermes perguntou a Zeus de que maneira devia dar aos homens a justiça e o respeito. Devo distribuí-los como se distribuíram as artes, isto é, somente a uns poucos favorecidos ou a todos? Que pertençam a todos, respondeu Zeus; que todos tenham a sua parte, porque as cidades não podem existir se estas virtudes fossem, como as artes, quinhão exclusivo de alguns. Platão, Protágoras. Quando a educação “descobre” a cidade, pode-se reduzi-la a um recurso. Quando a cidade “descobre” a educação, pode se converter em uma pedagogia. A cida- de é ao mesmo tempo: • um conteúdo — a aprender; • um meio ou contexto — no qual se aprende; • um agente — do qual se aprende. Aprender sobre a cidade Aprender sobre a cidade implica conhecê-la. Trata-se da cidade como conteúdo educativo: freqüente e próximo, estudado na escola. Entretanto, exatamente por habitá-la, educadores e alunos têm, na maioria das vezes, dificulda- des para conhecê-la. A maior parte dos educadores cos- tuma ter, como representações do fenômeno urbano, um modelo funcionalista de cidade. É difícil assimilarem as mudanças, exceto os problemas; necessitamos de catego- rias para entendê-las, porque é desse modo que se ensina aos alunos. Uma coisa é abrir diariamente a torneira para tomar água; outra, é compreender o sistema de abasteci- mento e distribuição de água potável em uma cidade. A partir da pesquisa didática, sabemos que não há continuidade entre a escala do espaço vivido e a abstra- ção de pensá-lo, e que a passagem de uma escala a outra não é apenas uma questão de engrandecimento (Audigier, 1994). É importante destacar que não existem lugares transparentes nos quais a cultura e a sociedade se refletem por meio da organização do espaço. Para Marc Augé (1998), há zonas de revestimento, de opacidade, de ruptura, de relações de força e de con- tradições. Os macroespaços, como a cidade, somente podem ser construídos intelectualmente pela concei- tuação. A ação pressupõe dispor de idéias e conceitos que funcionam como os mecanismos de estranhamento anteriormente mencionados, para se desarraigar da per- cepção imediata das coisas. Os educadores são os responsáveis pela interven- ção didática, por transmitir (no sentido descrito) as fer- ramentas conceituais, que não são construídas espon- taneamente. Tal intervenção supõe o planejamento de atividades específicas, que promovam a conceituação, a generalização e a abstração. Habitualmente, nas aulas de Ciências Sociais e Naturais, dedica-se mais tempo ao trabalho com dados e exemplos particulares. As ativi- dades de generalização ficam para o final da aula e, muitas vezes, são apenas formuladas. Esse fenômeno é denominado “momento-chave fugitivo” pelos pesquisa- dores de didática das Ciências. O ensinamento das ferramentas conceituais, que são parte dos conteúdos escolares, é o que possibilita compreensões mais integrais da complexidade do espaço urbano. Porém, o fato de enunciar os conceitos não significa usá-los, mas, sim, saber organizar coeren- temente as relações entre seus atributos. Por exemplo: o conceito de rede de abastecimento — referente à distribuição de água potável — é compreen- dido pelos alunos se eles forem capazes de usá-lo para entender como o projeto, a localização das partes, o tra- jeto e as diferentes hierarquias dos elementos e problemas da rede intervêm no abastecimento. Para compreender aspectos derivados de outros serviços urbanos, organi- zados em forma de rede, os alunos deverão ser capazes de reconhecer o lugar do sistema em que eles aconte- cem, a quantidade de usuários afetados, sua vinculação aos diferentes pontos da cidade. É assim que eles apre- enderão certa unidade morfológica e social, que lhes permita superar as visões fragmentárias e casuísticas dos problemas urbanos (Alderoqui, 2001). Trata-se, portanto, de conhecer as causas estruturais dos problemas da cidade, como assinala García Canclini. Voltemos ao exemplo inicial. Uma coisa é caminhar ou viver no bairro mais antigo da cidade, onde há construções anti- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 36 gas e modernas, comparando estilos e materiais com um simples olhar. Outra, muito diferente, é compreender por que foram utilizados aqueles materiais e não outros; quais são as influências do modelo econômico atual, os estilos de vida e a relação entre os habitantes. Uma coisa é identi- ficar que no bairro há itinerários fechados ou seletivos; outra, é reconhecer as causas dessas desigualdades. Nessa dimensão, podemos incluir o projeto dos con- teúdos curriculares nos diferentes níveis de escolarida- de e na elaboração de materiais curriculares para os educadores, com informações sobre as problemáticas urbanas. Em todos eles, há um esforço na elaboração de um discurso de divulgação e difusão do conhecimento acadêmico. Tal informação pode ser provida pelos or- ganismos de governo e pelos saberes acadêmicos que se ocupam do tema urbano. Valem como exemplos con- vênios entre a administração da cidade e as câmaras de construtores ou outros profissionais; com a universidade e, sobretudo, com várias secretarias do governo local. A escola é o lugar privilegiado para o desenvolvi- mento dessa dimensão e são as crianças e os jovens, o principal público. O material de divulgação, produzido por outros organismos, contribui para ensinar sobre a cidade — por exemplo, folhetos dos serviços públicos, guias turísticos da cidade para crianças e famílias etc. Com o propósito de educar os alunos sobre a neces- sidade de cuidar da infra-estrutura da cidade, se esta- beleceu um convênio entre a administração de Buenos Aires e a Câmara da Construção para a elaboração de materiais curriculares sobre a relação entre as condi- ções de vida urbana, a prestação de serviços básicos e a infra-estrutura. A partir desses materiais de trabalho, capacitaram-se educadores de todos os níveis. Essas informações também constam em livros, para uso dos alunos na escola e no projeto de seqüências de ativi- dades para o desenvolvimento de pesquisa didática nas escolas. Para o caso do patrimônio urbano, foram pro- duzidos caderninhos em parceria com as Secretarias de Educação, Cultura e Planejamento Urbano da cidade. Aprender na cidade A expressão “aprender na cidade” se refere à cidade como contexto ou meio educativo. As escolas fazem parte dela, com outras instituições que se dedicam a transmitir educação formal, não-formal e informal: clu- bes, museus, meios de comunicação, cartazes de rua, serviços de transporte etc. É uma dimensão que inclui, como destinatários, os habitantes da cidade que têm acesso aos bens culturais e deles se beneficiam. No entanto, segundo Fiorenzo Alfieri (1993), não de- vemos exigir da cidade e do território as mesmas fun- ções da escola e, em sentido inverso, que a escola assuma os mesmos valores de autenticidade, “naturalidade”, pluralidade e complexidade inerentes à realidade externa. O especialista italiano nos adverte que não é necessário que a escola e o território tenham uma coordenação mi- nuciosa, passo a passo, atividade por atividade, penosa e ilusória. Nem uma relação absoluta, tampouco esqui- zofrênica, com as etapas de desenvolvimento das crian- ças, dos jovens e dos adultos. Mas, sim, uma “coopera- ção política”. Essa perspectiva pressupõe provocação às políticas locais, em geral, e aos esquemas já conhecidos do planejamento e da gestão urbana, em particular. Assim, não se discute a função educativa de um museu, coisa pouco freqüente há 50 anos. No entanto, é inovador, perturbador e conflituoso se pensar na natureza educa- tiva do traçado da cidade, na construção e manutenção de ruas, na preservação de patrimônio e edifícios, nas redes de abastecimento de energia, nos alimentos e na água, na rede de esgotos, nos centros de decisão políti- ca, na forma de assistência e solidariedade etc. Assim, a escola não é a responsável por fazer o maior esforço, e sim as administrações locais, conscientes do investi- mento na nova geração. Como afirma Alfieri (1933), “supondo que na administração de uma cidade exista a vontade política de desempenhar um papel impor- tante na formação dos cidadãos mais jovens, a primeira incumbência a enfrentar é permitir o encontro direto entre eles e todos os integrantes do território que tenham algo significativo a propor (...) O princípio inspirador desta faceta é o seguinte: todo aspecto constitutivo da cidade e todo acontecimento novo deveriam apresentar uma faceta educativa estru- turada, dirigida, sobretudo às crianças e aos jovens que poderiam a ela ter acesso com mais liberdade possível”. O autor insiste em um ponto: “Seria conveniente que nessas ações houvesse a participação direta de profissionais que trabalhassem nas estruturas duras da cidade, sem excessivas dele- gações e substituições dos educadores profissionais”. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 37 Exemplos de ações são as obras que revelam a cons- trução ao público enquanto elas são realizadas: abertu- ras em diversas alturas dos tapumes, cartazes e plantas que variem de acordo com a etapa etc. Portanto, uma estratégia fundamental para a mu- dança é investir na imaginação e em formas de atuação educativas que não sejam realizadas necessariamente na escola. Um exemplo de participação dessas “estrutu- ras duras” do governo da cidade, a que se refere Alfieri, foi o projeto Buenos Aires, o rio e as crianças, realizado pelas Secretarias de Planejamento Urbano e de Educa- ção do Governo de Buenos Aires. O projeto fazia parte do Programa “Buenos Aires e o rio”, subordinado à Secretaria de Planejamento Urbano, cujos principais objetivos eram a reforma da frente cos- teira da cidade de Buenos Aires e da superfície do pas- seio costeiro, a criação de novos parques ribeirinhos, passeios públicos e estacionamentos, a melhora do sis- tema geral de trânsito e transporte, do saneamento hidráulico, da iluminação e do mobiliário urbano. Organizou-se o trabalho para que os alunos da cidade recebessem informações sobre a costa portenha, se cons- cientizassem de que a cidade tem um rio, de que o espa- ço da costa deve ser de uso público, além de conhecerem as obras de governo. Atendeu-se, de forma diferenciada, às escolas localizadas nos distritos cujas necessidades básicas não eram plenamente atendidas e as que pos- suíam alunos que não conheciam o Rio da Prata, organi- zando visitas guiadas. O subsecretário de planejamento urbano colaborou, ministrando aulas de gestão urbana para educadores e alunos, e ouvindo as reclamações. Foram realizadas atividades nas escolas, por meio da apresentação de uma mostra itinerante (painéis com informações sobre o tema e sugestões de atividades es- colares) e, em seguida, os alunos responderam a um questionário elaborado com o objetivo de conhecer suas idéias e conhecimentos sobre a cidade e o rio. As atividades de continuidade do tema estiveram a cargo dos professores dos grupos envolvidos. As escolas fo- ram convidadas a visitar, com um guia, os escritórios do Plano Urbano Ambiental do Governo da Cidade de Bue- nos Aires, as obras do novo bairro de Puerto Madero e a parte antiga da cidade. As visitas foram organizadas por profissionais dos órgãos públicos correspondentes. A partir dos dados coletados, foi editado o material curricular A toda Costa, com informações atualizadas, idéias das crianças sobre a relação cidade–ribeira e pro- postas de atividades para as escolas, distribuído de acordo com a realidade de cada uma delas. Com o projeto Buenos Aires, o rio e as crianças, for- talecemos algumas concepções infantis sobre a cidade, corrigimos informações, como as causas da contaminação da água, sistematizamos as idéias das crianças relacio- nadas ao planejamento urbano e levamos suas propos- tas aos organismos de gestão. Por sua vez, as escolas passaram a dispor de um material curricular que mostra o vínculo da cidade com o rio, com base em conhecimen- tos atualizados e planos de governo em andamento. Outras instituições envolvidas com a educação na cidade são os museus, cujas visitas não deveriam ser uma recompensa, um assunto excepcional que se reali- za apenas quando já não há mais nada para se ensinar na escola. Não se trata de sair por sair. É uma escolha preparada e decidida. Ao mesmo tempo, é necessário evitar a mística especial de trabalhar no museu: trata-se de um privilégio (no sentido de valioso) que deveria tornar-se mais rotineiro. Estar em um lugar em contato com objetos ou experiências que foram destacadas pelas sociedades como importantes para serem guardadas, protegidas, exibidas ou experimentadas e, portanto, convertidas em “tesouro”, é um modo direto de sensi- bilizar para o que são as culturas, o que cada sociedade seleciona e descarta. Na atividade museológica, destacam-se as ações edu- cativas que consideram os diferentes tipos de públicos que visitam os museus e, especialmente, os que não os visitam, ou seja, as instituições que planejam ações po- sitivas para cada um dos diversos grupos. Nessa linha, estão os programas de apadrinhamento entre museus e escolas que atendem aos setores sociais mais desfa- vorecidos e que, habitualmente, não buscam a oferta cultural por diversos motivos: acessibilidade, distância, influência cultural. A partir de convênios e contratos especialmente ela- borados entre o museu e a escola participante, estabe- lecem-se as responsabilidades de cada um dos agentes e os compromissos da tarefa — transporte, guias, mate- riais, possibilidade de freqüência múltipla, trabalho em classe etc. Assim, a visita ao museu passa a ser habitual e não excepcional. Pode ser que as influências educativas de um meio urbano sejam opostas, confrontem-se ou se anulem. Por isso, é necessário analisar a interação e a capacidade de atuar conjuntamente e em harmonia (Trilla, 1993), ou de desenvolver estratégias para agir com instituições em conflito. Viagens e encontros pela cidade Aprender sobre a cidade implica compreendê-la como um transmissor denso, mutante, diversificado em informação e cultura. Tem a ver com a densidade dos encontros humanos e dos produtos culturais, no sentido mais amplo do termo: a cidade como agente de educação informal. A essa dimensão, lembremos da referência ini- cial — a das viagens pela cidade. Podemos dizer que, quanto a mudanças e continui- dades, a cidade é como um livro de história complexo e difícil. Não se pode ler seqüencialmente, página por pá- gina. Ela é uma reserva de conhecimentos e de possibi- lidades que ninguém pode pensar em esgotar ou orga- nizar definitiva e universalmente. Hoje, é semelhante à noção de hipertexto, em que cada um pode construir o próprio itinerário cognitivo. Por sua vez, não há cidade sem relato ou representação de si mesma — “A Paris das luzes, a vertiginosa Nova Iorque, a melancolia de Bue- nos Aires” expressam as modalidades segundo as quais o viajante se encontra com a cidade. Nessa dimensão, há o encontro com diferentes ho- mens e mulheres, crianças e idosos, ricos e pobres, em- pregados e desempregados etc., ainda que, como bem assinala Sennet (1994), o mero fato de existir a diversi- dade não impulsiona as pessoas a interagir. Entretanto, mesmo que tenhamos visões restritas de nossos bairros e da cidade, vinculadas às nossas práticas e percursos habituais, a convivência complexa entre essas distintas escalas e as suas correspondentes identidades tem um alto poder educativo e produz coesão urbana. O conhecimento obtido é relativamente superficial. Aprendemos a usar a cidade e a nos mover nela, mas não necessariamente a compreendê-la ou decodificá-la para além da evidência. Lidamos com a aparência e não com a estrutura. Lidamos com o presente, mas ignora- mos suas origens e perspectivas. Outra limitação da aprendizagem informal do meio urbano é que ela é, necessariamente, parcial. Essa par- cialidade relaciona-se à localização social do indivíduo. O local de residência, o grupo de amigos, os familiares e os gostos fazem com que os habitantes da cidade conhe- çam dela apenas uma pequena parte, a que tem a ver com as suas atividades e itinerários (Trilla, 1993). Nesse sentido, são muito interessantes as contribui- ções do urbanismo e da arquitetura. Já nos anos 1960, o arquiteto Kevin Lynch advertia sobre a alienação do Cadernos Cenpec 2006 n. 1 39 homem moderno que se perdia nas grandes cidades. Para remediar essa situação, ele propunha construir con- juntos de postes e marcos, como monumentos e praças, que servissem de pontos de referência para que os ha- bitantes “alienados” da cidade reconquistassem o sen- tido dos lugares. Outra contribuição do urbanismo é a necessidade de construir uma imagem unitária e sintética da cidade. Se a cidade possui representatividade, se pode ser imagi- nada por seus habitantes, eles podem construir com ela uma relação forte e sedutora (Améndola, 2000). No mesmo sentido, o arquiteto catalão Oriol Bohigas, ao colaborar com o projeto educacional de Barcelona (1999), defende que a cidade seja passível de ser lida e utilizada por todas as pessoas sem nenhum tipo de exclu- são, por meio de mecanismos que assegurem a legibilida- de e a continuidade, não só da cidade como também dos bairros, distritos ou áreas metropolitanas. É parte de suas contribuições dotá-la de novas configurações físicas, como a arte pública, ou no sentido de cidade-museu e de espa- ços e itinerários compreensíveis e sugestivos, nos quais a informação e a acessibilidade à oferta sejam coerentes. Por trás dessas propostas, está o conceito dos proje- tos urbanos como trabalhos sobre a consciência coletiva, além da forma e da capacidade do uso do espaço. No entanto, é importante considerar que as concepções miméticas e totalizadoras entre as cidades e mapas não bastam quando se trata das relações imaginárias que todos temos com o lugar que habitamos (García Cancli- ni, 1996). Por sua vez, há críticas às “cidades-museus” que podem anular a participação política em favor de uma experiência de consumo e entretenimento. De qualquer maneira, inovações urbanas que provo- quem o restabelecimento das continuidades nos gran- des conglomerados urbanos, sem dúvida, melhoram os aspectos vinculados à percepção do espaço vivido e à identificação com o lugar onde se vive. Em alguns casos sugerem, provocam, induzem, estimulam para que as pessoas se comuniquem e interajam. Sabemos que não basta a forma urbana. Se as cida- des não sabem construir volumes quantitativa e quali- tativamente aceitáveis de manifestações culturais e educativas, para que cada vez mais pessoas possam usufruir, tampouco a malha urbana pode ser vivida como bem cultural. Para Gennare (1998), “uma cidade que não sabe produzir cultura será uma cidade pouco legível como espaço cultural”. Para que toda a cidade seja mais transparente e ma- nipulável pelos cidadãos, diversos instrumentos podem ser utilizados minimamente — como informação gráfica e audiovisual concreta sobre cada lugar em que se desen- volve um serviço, uma transformação estrutural ou qual- quer forma de funcionamento consistente do organismo da cidade —, ou até o máximo, por exemplo, atividades específicas cognitivas e talvez operacionais, relaciona- das às estruturas em questão. O objetivo deve ser o de criar o maior número possível de curtos-circuitos que en- curtem as distâncias entre todos os habitantes, e algu- mas parcelas significativas da realidade (Alfieri, 1993). A solidariedade institucional A cidade é o lugar em potencial para que o novo surja. Walter Benjamin,2 Personagens alemães Cidade Educadora é aquela que assume o compro- misso de planejar e reunir todos os estímulos educa- tivos nela existentes. Toda cidade é educativa, mas se converte em educadora ao assumir esse compromisso, quando os responsáveis pelo governo decidem que o que os cidadãos recebem seja somado e não subtraído. Trata-se de compensar a desigualdade, equilibrar e mos- trar a diversidade, unificar e relacionar o que existe. Conceber a educação desse modo extrapola o esco- lar. Pressupõe, entre outras coisas, o compromisso do componente territorial, na tarefa de educar. A partir de 1976, em Turim (Itália), um modelo de funcionamento da administração local para a renovação do ensino público, denominado La città e i bambini, co- meçou a ser desenvolvido. Com uma série de propostas dirigidas aos professores, aos órgãos de gestão escolar e a todos os componentes da escola, pretendeu-se ofe- recer às crianças a possibilidade de entrar efetivamente Cadernos Cenpec 2006 n. 1 40 A educação está na agenda de muitos. Entretanto, parece que a responsável continua sendo uma só: a escola, a educação formal. em contato com os órgãos administrativos, produtivos e culturais para que, conhecendo-os melhor, fossem usuários conscientes e responsáveis.3 Em Turim, pretendia-se uma mudança na escola, na sociedade e na administração. A mudança na escola se centrava em sua abertura ao entorno, natural ou urbano. Como não se queria influenciar no trabalho do professor, decidiu-se fazer essas atividades depois do horário esco- lar. Foi criado um escritório de “escola integrada” que se ocupava de todas as questões de organização do projeto cujo problema, entre outros, era o de transportar diaria- mente quatro mil alunos que circulavam pela cidade. Apesar dos recursos destinados ao projeto, a auto- crítica realizada no início dos anos 1980 demonstrou que, embora a experiência tenha sido bem recebida pela sociedade, a escola não havia modificado seu compor- tamento e continuava sendo o único referencial das ini- ciativas educacionais. A cidade não havia assumido sua responsabilidade educadora (Filomeno e Ribalta, 1989). As primeiras experiências espanholas, na década de 1980, feitas pelos Serviços Pedagógicos Municipais, ado- taram o modelo italiano com algumas variações. Centra- ram-se em propostas de atividades possíveis de serem realizadas na cidade,4 em programas de conhecimento do meio e na formação do professorado. Mas não alcan- çaram o objetivo de incidir globalmente na cidade para que ela se convertesse em educadora. As experiências evidenciaram a dificuldade de de- finir o papel que a administração local tem no complexo mundo da educação: é apenas um organizador da oferta cultural, um provedor de outros espaços de aprendiza- gem? Em síntese, é um recurso a mais da escola? Pensar assim é reduzir a idéia a um mero recurso. Para analisar mais profundamente essa tentativa de coordenação, é necessário observar os seguintes indi- cadores: • a criação de serviços pedagógicos em outras instân- cias da administração local; • o reconhecimento legal das ações desenvolvidas, como as disposições do legislativo para acrescentar novos conteúdos ao currículo escolar; • a atuação coordenada com administrações compe- tentes para atender à educação; • a exigência de repasse de recursos econômicos. Em geral, o discurso referente à relação cidade-edu- cação não questiona a idéia de que a educação repousa na escola. Portanto, essa relação, ao destinar recursos para que elas possam exercer melhor suas funções, im- plica apoiar as tarefas escolares. A análise de diversos planos estratégicos de cidades revela que essa idéia continua arraigada. A necessidade de planejamento integrado aparece nas temáticas vin- culadas à vida comunitária e às problemáticas dos bair- ros. Um dos comentários mais freqüentes refere-se à necessidade de coordenação e comunicação entre as instituições. Identificam-se como atores as sociedades de auxílio, escolas, cooperativas escolares, igreja e or- ganizações beneficentes. Entretanto, quando se trabalha especialmente com educação, a perspectiva centra-se em recursos, escolas, oferta educativa e no produto que se espera obter. Há pouca conscientização em relação ao envolvimento de outros agentes do sistema educacional. A escola con- tinua convertendo-se em dona da educação, ainda que, em seus propósitos, apareçam palavras como integral, integrada, cidadãos comprometidos, soma de esforços, cooperação familiar, comunidade e governo. Ainda que continue afirmando que, sozinha, não pode cuidar da questão educacional, essa finalidade nem sempre cons- ta de projetos e ações. Organismos municipais responsáveis por temáticas como saúde, cultura, ação social, urbanismo, ou profis- sionais como os conselhos profissionais ou câmaras, enfatizam a necessidade da educação ou responsabili- zam a educação — a escola — pelos inúmeros males que afligem a sociedade: a falta de educação cívica, o vício, o tabagismo, o descuido ou o mau-trato com o mobiliá- rio urbano e a infra-estrutura de serviços básicos, entre outros. Todos pedem à escola que eduque os cidadãos. A educação está na agenda de muitos. Entretanto, pa- rece que a responsável continua sendo uma só: a esco- la, a educação formal. Na escola, é possível aprender teoricamente como atravessar a rua. Mas se atravessa a rua com os pais, vi- zinhos e até mesmo com estranhos. Se os adultos atra- vessam mal, será que a escola está equivocada quando ensina educação cívica? Se os adultos jogam lixo nas ruas, será que a professora é exagerada ou está equivo- cada quando insiste com os cuidados ambientais na cidade? Esses discursos e práticas revelam uma inadequação à sociedade do conhecimento e da informação na qual vivemos. Por um lado, a escola não é a única depositá- ria da informação, não é o único lugar onde a informa- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 41 ção pode se transformar em conhecimento. A educação tem um lugar fundamental na construção de valores e atitudes das pessoas, o que é sinônimo de intencionali- dades e propósitos educativos. Finalmente, inúmeras instituições, bem como a cidade, têm responsabilidades com a educação dos cidadãos. Portanto, se considerarmos que a educação é estra- tégica para a vida em sociedade, isto nos conduzirá à necessidade de elaboração de um novo discurso e do desenvolvimento de novas práticas sobre o vínculo entre a educação e a cidade, a escola e seu território (Gómes Granell, 2000). Com os anos, a idéia de cidade que educa requer novos sentidos e fundamentos. Os melhores anseios, nela depositados, parecem necessitar de oxigênio, inclu- sive, redefinindo o que é a co-responsabilidade cidadã. Surge assim a idéia do projeto educativo de cidade. Ele integra centros de formação, empresas, entidades cul- turais públicas e privadas. A partir da solidão da escola, não se pode abordar a complexidade da sociedade da informação e do conhe- cimento, e a socialização infantil. Os agentes e ofertas educativas não-formais têm papel decisivo. A co-res- ponsabilidade passa a ser de todos os cidadãos. Segundo Jaume Trilla (1999), os projetos com respon- sabilidade compartilhada deveriam ter as seguintes ca- racterísticas (ou ao menos compartilhar alguns traços): • Envolver diversos setores da população e territórios de incidência: ter alcance global. Isso é diferente de planejar ofertas educativas sempre para o mesmo segmento da população ou para a mesma zona da cidade. • Rejeitar a segmentação das funções ou a especiali- zação de lugares, funções e destinatários: tender à integração. Com isso, tenta-se superar as ofertas du- plicadas das diferentes secretarias de uma adminis- tração, por exemplo, quando oferecem cursos de educação não-formal de cultura, educação e saúde. • Ser pensados a partir da originalidade de cada lugar (contexto), sem refutar experiências alheias, nem re- nunciar à vocação de universalidade ou à exportação de suas idéias. Esta característica é uma advertência à “compra e cópia” de projetos bem-sucedidos de outras realidades urbanas. • Tender aos conteúdos interdisciplinares e abranger temáticas, âmbitos diversos e transversais. Programas educativos que impliquem distribuir conhecimentos públicos sobre o fenômeno urbano, explicações es- truturais de seus problemas, educação ética e sensi- bilidade estética, a questão ambiental e econômica, cultural e social etc. • Incluir e mesclar as três instâncias educativas de maneira permeável (formal, informal e não-formal). Por exemplo, os convênios entre museus e escolas, como também a presença dos museus fora de seus edifícios. • Ocupar-se sempre da formação do cidadão e dos va- lores democráticos. Por exemplo, nos projetos que respeitem a diversidade ou o reconhecimento das causas da desigualdade ou do cuidado com o ambi- ente urbano. • Procurar vincular os departamentos e organismos do governo da cidade e não ficar restrito aos setores educativos. Referimo-nos a isso ao falarmos de soli- dariedade institucional. • Incentivar a participação dos cidadãos sempre que possível, inclusive na gestação do projeto. • Promover a igualdade de oportunidades, especial- mente a redistribuição de recursos, entre setores mais carentes. Essas são ações positivas deliberadas de compensação. A cidade contemporânea tem uma demanda e uma necessidade de educação. Ao mesmo tempo, ela concen- tra os instrumentos educativos da sociedade cognitiva: associações de bairro, organizações esportivas, socie- dades de auxílio, escolas, universidades, empresas, fun- dações, organizações públicas, teatros, museus, biblio- tecas, instituições culturais e de solidariedade, e meios de comunicação. Extrapolar o escolar pressupõe que as instituições da cidade, governamentais ou não, assumam sua função educadora. Isso é sinônimo de cooperação política, de fusão e não de con-fusão de funções; significa “distribuir e repartir o capital cultural de forma mais eqüitativa”. Desse modo, todas as instituições, empresas e profissio- nais se co-responsabilizam e se tornam solidárias com o projeto educacional da cidade, para que “as diferenças não sejam base das desigualdades”. Serão esses os caminhos para formar os cidadãos do século XXI? Diante da pouca participação política, da violência e da insegurança em nossas cidades, do espaço dos flu- xos da sociedade informacional, será possível construir Cadernos Cenpec 2006 n. 1 42 cidadania na participação e apropriação, na cidade como direito e direito à cidade, por meio do conhecimento e da cidade que educa? Se diariamente pudermos assumir nossa responsa- bilidade geradora de transmissão de conhecimentos e da solidariedade institucional que tal empreendimento requer, talvez essas perguntas sejam respondidas. 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Cadernos Cenpec 2006 n. 1 43 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 44 Tomando como inspiração de trabalho o texto de Ítalo Calvino sobre Ercília1 — uma região onde os habitantes constroem cidades estendendo fios coloridos entre as arestas das casas de acordo com as relações (de paren- tesco, troca, autoridade) entre seus moradores, formando teias de relações intrincadas à procura de uma forma — desenvolveram-se trabalhos cartográficos com jovens em suas regiões. A experiência aqui relatada ocorreu no desenvolvi- mento do Projeto Jovens Urbanos, iniciativa da fundação Itaú Social, coordenada pelo Cenpec, que conta com o apoio da Secretaria de Assistência Social do Município de São Paulo e de diversas ONGs das regiões de Brasi- lândia e Capão Redondo. A cartografia não compreende apenas a elaboração de mapas e não se restringe às marcações visíveis do espaço físico, como na geografia. A psicologia faz uma apropriação desse conceito, ampliando sua abrangência e incorporando a ele uma dimensão subjetiva. Imprime ao conceito de território uma dimensão existencial, ao mesmo tempo que objetiva sua existência, reconhece as marcas que os espaços concretos fazem na vida dos su- jeitos. Portanto, um território é um conjunto de lugares, nos quais as pessoas existem, atuam, convivem com ou- tras pessoas e objetos, produzindo realidades. Aqui, a cartografia é um instrumento de registro que adentra as dimensões do tempo, da memória, das lem- branças, das reminiscências, das experiências, das sub- jetividades, dos desejos. Ela pretende disparar o diálogo entre o “eu” e o “outro” num exercício de alteridade. Per- mite explicitar as trajetórias de vida que acumulam ex- periências, articulam ações e decisões individuais e cole- tivas e o reconhecimento de encontros. Encontros acontecem quando se depara com algo, alguém ou algum lugar. Eles podem: • despertar uma vontade de agir, de construir novas realidades — encontro construtivo; • não fazer diferença — encontro neutro; • impedir a ação — encontro destrutivo. A cartografia é um esforço para dar um sentido a co- nhecimentos disparatados, como “o remo à cavilha, ten- tando determinar a medida do poder de cada um, mesmo que saibamos que estamos viajando em direção ao mes- mo destino”.2 Formação de jovens cartógrafos em São Paulo A formação não acontece fora dos territórios e sim nos lugares em que se viveu, experimentou-se — nos lugares em que se vive hoje, experimenta-se, atua-se — e, também, nos lugares que se deseja criar. A proposta de formação de jovens cartógrafos con- sidera o processo de vida e de desenvolvimento, identi- ficando elementos que, ao longo da vida, puderam ou não potencializar a formação e o desenvolvimento de suas capacidades. Os grupos de jovens participantes são moradores das subprefeituras de Brasilândia e de Campo Limpo, locali- zadas, respectivamente, nos extremos das zonas Norte e Sul do Município de São Paulo. Considerando sua con- dição precária, periférica e com alto grau de vulnerabili- dades sociais, esses lugares são tidos como territórios de alto risco e intensa violência urbana. No senso comum, essas áreas são percebidas como os lugares da pobreza, da moradia popular, da falta de empregos, das demandas por creches, escolas, hospitais, áreas de lazer, equipamentos culturais, dentre outros serviços urbanos. Do ponto de vista das políticas urbanas, essas áreas são vistas como lugares informais, criados à margem da legislação urbanística, na irregularidade e na clandesti- nidade. Da ótica das políticas sociais, essas áreas são encara- das como lugares destituídos dos direitos sociais básicos. RELATO DE PRÁTICA A cidade vista por cartografias Maria Júlia Azevedo Gouveia* * Maria Julia Azevedo Gouveia é psicóloga, mestre em Educação e coordenadora da área Educação e Comunidade do Cenpec. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 45 Todas essas avaliações sobre esses lugares da peri- feria paulistana são verdadeiras. Entretanto, em meio a essa precariedade territorial, vulnerabilidade social e riscos ambientais, milhões de pessoas vivem. Trata-se de uma multidão metropolitana. Essas pessoas criam relações sociais, entrelaçam solidariedades, organizam coletividades envolvidas em lutas políticas, reivindicam melhores condições de vida, articulam e transformam espaços, constroem histórias e fazem geografias. Essa realidade dinâmica, constantemente atravessada por for- ças coletivas intensas, indica as potencialidades dessas pessoas nesses locais. Portanto, os territórios de risco, de alta vulnerabili- dade e de profundas exclusões sociais da Brasilândia e do Campo Limpo, como vários outros da imensa perife- ria da metrópole paulistana, não se constituem somente de fragilidades, carências, pontos fracos. Existem neles também pontos fortes, resistentes, capazes de desen- volver processos altamente inteligentes e com grande ressonância criativa. É urgente reconhecer as potencialidades imanentes às trajetórias e territórios de todos que buscam utilizar suas capacidades para o desenvolvimento humano (ou desenvolver plenamente suas capacidades). Ou seja, reconhecer potencialidades para ativá-las em proces- sos de formação política e de construção coletiva de co- nhecimentos sobre as realidades locais, procurando en- frentar as transformações em curso. Para isso, são realizadas atividades em grupo cuja matéria-prima são os patrimônios existenciais que todos possuem, compostos por: experiências, memórias, conhecimentos, imaginação, narrativas, aprendizagens, valores, sentimentos, emoções, expectativas, motivações, desejos, visões, ações, decisões, escolhas e territórios dos jovens participantes. Nas atividades, procura-se mostrar uma pequena parte desse patrimônio, a partir de: diagramas, palavras, diálogos, enunciados, discursos, sinais, mapas, esquemas, desenhos, colagens, dentre outros recursos. Esse conjunto compõe a investigação cartográfica. O princípio orientador dessa proposta é constituído por uma forte convicção de que os territórios que estão presentes, mesmo como lembranças, nas trajetórias de vi- da dos indivíduos e dos grupos sociais são elementos ati- vos que compõem os processos de formação e autocria- ção dos jovens, que agenciam esses elementos na busca da construção de sentidos para as próprias experiências. Os sentidos não são dados, não são preexistentes, aguardando simplesmente serem descobertos, como em uma revelação. Eles são agenciados nos esforços feitos para ativar os elementos encontrados nas trajetórias, nas paisagens, nas vizinhanças. A investigação cartográfica em ato 1. Tempo e memória A primeira linha da investigação cartográfica é a carto- grafia do tempo e da memória. A proposta é cartografar o tempo da memória, o tempo da lembrança, é identi- ficar um momento específico de uma trajetória de vida individual e coletiva. Memórias no Capão Redondo Nós moramos no Capão Redondo. Seu Gonçalo, avô do Diego, conta que Capão é um lugar onde antigamente as pessoas cuidavam das galinhas e galos para depois venderem os ovos e os animais. Redondo, porque esse lugar é extenso e redondo. Dizem que o Capão era uma fazenda na qual havia um bosque que, visto de cima, era redondo, e bosque, mato, é o mesmo que capão, então ficou Capão Redondo. Memórias na Brasilândia Quantos se lembram do barro que amassaram na Rua Parapuã para chegar até Itaberaba? Até 1954, não havia asfalto e, para chegar até lá, o negócio era levar um par de sapatos limpos numa saco- la e, ao chegar, trocá-lo pelo outro, sujo, que ainda esta- va no pé. Aos sábados e domingos, em frente ao Bar do Gatto, colocava-se um imenso lençol branco e projetavam-se filmes ao ar livre. Na Rua Parapuã, altura do número 1703, num galpão de madeira, construído pela colônia japonesa, funcio- nava o primeiro Cine Brasilândia. Existiu um fato que ninguém esquece: as tábuas do banheiro das mulheres tinham mais furos do que “queijo em festa de ratos”. O incrível é que havia mais gente disputando esses furos do que dentro do cinema. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 46 2. Espaço de agora A segunda linha é a cartografia do território atual, os territórios dos dias de hoje, os espaços. Pedaços da ci- dade que a gente usa para trabalhar, estudar, se diver- tir, usufruir. Hoje, no Capão Redondo. Encontramos pessoas que lutam para sobreviver, que trabalham o dia inteiro e, à noite, ainda estudam para sair do subemprego, obter uma vida mais saudável, sustentar a família e lhe oferecer benefícios, como: escola, vesti- mentas, calçados, alimentos, lazer e muitos outros. Capão Redondo é como coração de mãe, sempre cabe mais um desfavorecido pela vida. Podemos oferecer vários adjetivos e cores, como: negro, branco, pardo, das pessoas; cinza e laranja das paredes mal-acabadas das casas. A cor cinza do asfalto esburacado, o amarelo e o marrom dos buracos das madeiras dos barracos; o laranja dos tijolos das casas não rebocadas, o vermelho do sangue daqueles que aqui se vão e uma gota esver- deada, que é o símbolo representando a quase morta esperança dos habitantes “menos mau”. As pessoas acham que a Zona Sul é uma região muito perigosa, mas onde, no Brasil, não é perigoso hoje em dia? A periferia é um lugar que pode melhorar muito. É só ter o interesse da sociedade. Eu adoro a região onde mo- ro, é onde eu estudo, me divirto e vou ao Centro Cultural. Hoje, na Brasilândia. Na Brasilândia, foram identificados, como lugares de encontro, praças, campinhos de futebol de várzea, esco- las públicas, associações de moradores, centros culturais, infocentros, igrejas, delegacia da mulher, Centro Educa- cional Unificado (CEU) e organizações que realizam tra- balhos comunitários. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 47 3. O desejo A terceira linha é a cartografia do que se deseja, do que é importante para que seja possível se ter uma mudança nas trajetórias de vida, nas trajetórias da cida- de. O que é importante realizar para que se possa trans- formar a realidade. Moradores sofridos da periferia Sonhar em ser alguém na sociedade Viver em abundância Ver reconhecida a capacidade nossa: Um povo batalhador Fé em Nosso Senhor Noites frias e caladas Pelo som da madrugada É! E a vida? A vida pára. O futuro está em nós Periferia sem problema Jovem urbano é nossa casa. Atitude é nosso lema. Jovens do Capão Redondo A identificação de elementos ao longo da vida das comunidades pôde potencializar o desenvolvimento dos jovens e permitir a realização de suas capacidades por meio de projetos de intervenção em seus territórios. O amanhã no Capão Redondo Projeto “Rádio Busão” • O que é: Rádio Biblioteca Móvel (itinerante). • Como surgiu a idéia: O grupo de jovens identificou um grande repertório de produção cultural no bairro e ricas narrativas so- bre a história local. Por outro lado, constatou-se a falta de espaço para a expressão desse repertório. Os jovens estão estabelecendo parcerias para a aquisição de um ônibus (ou tendas) adaptado para a instalação da rádio e da biblioteca. A programação da rádio privilegiará os artistas locais e a biblioteca in- cluirá, em seu acervo, registros da memória da região, a partir de narrativas dos moradores. Projeto SOHAB • O que é: Produção e instalação de aquecedores solares resi- denciais de baixo custo e ecologicamente corretos. • Como surgiu a idéia: Após a visita à ONG Sociedade do Sol, sediada no Departamento de Física da USP — momento em que conheceram a tecnologia de captação de energia so- lar — os jovens tiveram a idéia de contribuir com as famílias de sua comunidade que consomem grande parte de seu orçamento no pagamento de contas de energia elétrica. Dessa forma, decidiram aproveitar a energia natural em substituição à energia elétrica, obtendo impacto positivo no orçamento das famílias. O amanhã na Brasilândia Projetos Arte no Beco e Novo Olhar • O que é: Revitalização do espaço público com pintura de fa- chadas de residências. • Como surgiu a idéia: A idéia surgiu da necessidade de criar um local para as crianças brincarem tranqüilas e com mais segu- rança, para os adultos conviverem com mais como- didade e os idosos andarem por caminhos mais se- guros. A proposta é revitalizar locais estratégicos mais precários, estimular a conscientização da preserva- ção de tais espaços e promover melhorias estéticas no bairro, buscando o bem-estar e a valorização da comunidade. Projeto Cinema Móvel • O que é: Exibição de filmes em espaços públicos da comunidade. • Como surgiu a idéia: Os jovens fizeram uma pesquisa na comunidade e os resultados mostraram que 80% dos moradores nunca tinham ido ao cinema. Assim, a criação de uma estrutu- ra de cinema móvel visa divulgar informações e promo- ver momentos de lazer e cultura para a comunidade. Esse foi o terceiro momento da proposta, por meio da qual os jovens puderam cartografar um desejo e fazer dele um desejo da cidade. Notas 1 Ercília é uma cidade imaginária descrita por Italo Calvino em seu livro Cidades Invisíveis, Biblioteca Folha de S.Paulo, SP, 2003. 2 COWAN, James. O sonho do cartógrafo. São Paulo: Rocco, 1990. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 49 ada vez mais, sonhamos com uma cidade saudável, educadora, protetora. Isto é, com uma cidade que abra- ce seus cidadãos em seus circuitos de pertencimento e inclusão. Na política de saúde, muito se tem falado em Cidade Saudável; na educação, em Cidade Educadora e, na assistência social, em Cidade Protetora. No geral, é possível inferir que as políticas públicas solicitam um novo tipo de envolvimento entre a cidade e o seu “fazer público”. Querem uma cidade acolhedora e pró-ativa na formação e convivência com seus habi- tantes — uma cidade feita de pertencimento. Vamos iniciar esta reflexão pela idéia de Cidade Pro- tetora, por entender que a proteção social, em seu signi- ficado mais denso, refere-se a garantias de seguranças: seguranças traduzidas em qualidade de vida, pertenci- mento e inclusão social. Por isso, ela engloba os demais conceitos: Cidade Educadora e Cidade Saudável. Muito se tem discutido sobre a proteção social como demanda generalizada e crescente na sociedade con- temporânea. Nessa perspectiva, é bom refletir sobre os diversos significados da proteção social. Por proteção social, entende-se: “...as formas às vezes mais, às vezes menos institu- cionalizadas que as sociedades constituem para prote- ger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio, as privações. Incluo neste conceito, também, tanto as formas seleti- vas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias formas, na vida social. Incluo ainda Educadora, protetora, saudável. Uma cidade feita de Maria do Carmo Brant de Carvalho* pertencimento. ARTIGO C * Maria do Carmo Brant de Carvalho é coordenadora Geral do Cenpec, doutora em Serviço Social e professora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP. os princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades” (Di Giovanni, 1998:10). A seguridade social, definida na Constituição brasi- leira, contém um significado fragmentado de proteção social: envolve a política de saúde para todos os cida- dãos, a previdência social como segurança devida ao trabalhador e a assistência social para todos aqueles que, vivendo nas malhas da vulnerabilidade social, carecem da proteção social do Estado. Na missão desta última, a proteção social é compre- endida como o alcance de direitos sociais mínimos que assegurem o sentido de pertencimento e inclusão social. Para Aldaiza Sposati (1997:10), “propor mínimos sociais é estabelecer o patamar de cobertura, de riscos, garantias, que uma sociedade quer garantir para todos os seus cidadãos. Trata-se de definir o patamar de dignidade abaixo do qual nenhum cidadão deveria estar”. Assim, a Assistência Social, compreendida como po- lítica de seguridade social, é responsável por agir em função de uma parcela da população atingida por con- junturas, contextos ou processos produtores de vulne- rabilidade e risco social. São diversos os fatores de vulnerabilidade social: • ausência ou precariedade de renda; • trabalho informal e sazonal, trabalho precário e desemprego; • acesso deficiente ou nulo aos serviços das diversas políticas públicas; • perda ou fragilização de vínculos de pertencimento e de relações sociofamiliares; • discriminações diversas. As desigualdades socioeconômicas, que geram pobre- za e exclusão, inerentes à sociedade capitalista, engen- dram a desproteção social. Dessa forma, proteção so- cial deve ser parte fundamental da política pública, para que haja garantia permanente de vida digna e inclusão social. Essa é a missão de todas as políticas públicas no projeto de Estado social de direito. Mas é missão particular da política de Assistência Social prover serviços e programas de proteção social básica ou especial para indivíduos e grupos que estão fora dos canais correntes de proteção pública: o traba- lho, os serviços das políticas públicas e as redes socior- relacionais. As ações das políticas públicas só ganham eficácia quando há participação engajada de seus cida- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 50 dãos-beneficiários. À luz desse pressuposto, referimo- nos hoje, insistentemente, à cidade como educadora, saudável e protetora. Precisamos apelar para uma cidade protetora de to- dos, competente para articular todas as políticas públi- cas de distribuição da riqueza, bens, serviços e valores protetores de que dispõe. A busca da cidade protetora nas megacidades como São Paulo As vulnerabilidades sociais no mundo contemporâneo castigam, sobretudo, as populações das grandes cida- des. As situações de violência urbana, o stress urbano, a precariedade dos serviços, o apartheid e o desempre- go estão exigindo propostas e propósitos mais densos de proteção social. • Para começar, é preciso criar um sistema de vigilância para toda e qualquer situação em que falte proteção na cidade, no bairro, com o objetivo de corrigi-la com agilidade. • Para continuar, toda política pública precisa assegurar mecanismos de proteção social que viabilizem, aos grupos mais vulneráveis, o usufruto real dos serviços que oferta (serviços de saúde, educação, cultura, justiça, polícia, habitação, esporte...). Já se conjugam, por exemplo, a bolsa-escola ou a merenda escolar, programas complementares à escola e de erradicação do trabalho infantil, à política de educação. Nessa perspectiva, educação e proteção social se integram para assegurar o ingresso, permanência e sucesso escolar de crianças e adolescentes. No plano da saú- de, combinam-se bolsa-alimentação; projetos alter- nativos de saneamento básico e melhoria do meio am- biente; agentes comunitários de saúde e médico de família à política de saúde para, da mesma forma, garantir vida saudável. Portanto, não basta a uma cidade ser educadora e/ou saudável; é preciso estar associada à proteção social. É necessário fortalecer espaços e oportunidades de convi- vência social no microlocal. Há um tipo de proteção que advém das redes de relações de proximidade, geradas pe- la família e organizações comunitárias do microterritório. É fundamental reconhecer que o exercício vital das famílias e as microorganizações do território próximo (as sociedades amigos do bairro, as paróquias, os grupos de convivência...) processam proteção social em seu sen- tido amplo. Nessa direção, desempenham, em seu âm- bito, funções similares às das políticas sociais. Se, nas comunidades tradicionais, a família e as redes de socia- bilidade microterritoriais se ocupavam quase exclusiva- mente dessas funções, nas comunidades contemporâ- neas, elas são compartilhadas com o Estado por inter- médio das políticas públicas. A família e os grupos de apoio mútuo do microterri- tório, tanto quanto o Estado, funcionam de modo similar, como filtros redistributivos de bem-estar, trabalho e recursos (Souza, 2000). Nesse contexto, pode-se dizer que a família, os gru- pos da sociedade civil local e as políticas públicas têm funções imprescindíveis no desenvolvimento e proteção social de todos que habitam o território. É a esse con- junto, quando orgânico, que podemos denominar de cidade protetora, saudável e educadora. Os enunciados — cidade saudável, educadora, pro- tetora — traduzem valores que indicam “direção e prin- cípios” da vida coletiva na cidade. Esses adjetivos não se expressam apenas por indicadores de melhoria das condições de vida e, menos ainda, pelo tamanho e diver- sidade da rede de serviços de educação, saúde e prote- ção social que a cidade oferece. A alma da cidade se expressa por valores que guiam a distribuição e o usufruto da riqueza coletiva. Portanto, é preciso refletir sobre os valores que expressam a cons- ciência coletiva de seus habitantes, isto é, discutir os valores que movem os esforços de todos na produção diária da cidade. Valor é comportamento, mais do que a contabilização de espaços, equipamentos e programas disponíveis. Valor é a ação que contém uma pedagogia e fins objetivos. O debate sobre valores está no próprio coração das Cadernos Cenpec 2006 n. 1 51 A alma da cidade se expressa por valores que guiam a distribuição e o usufruto da riqueza coletiva. Portanto, é preciso refletir sobre os valores que expressam a consciência coletiva de seus habitantes... concepções, decisões e desafios da ação pública na cidade. A economia de mercado na sociedade contemporâ- nea tem obscurecido, apagado mesmo, todos os valores que não os de monetarização das trocas e oferta de bens e serviços materiais. Estamos impregnados da economia de mercado. As atividades solidárias, gratuitas, de convivência co- operativa — que permitem evitar ou limitar uma parte dos efeitos da violência/pobreza/exclusão persistentes — não são computadas como crescimento da riqueza social da cidade porque não são monetarizadas. “Ou seja, ao mesmo tempo em que celebramos o papel eminente das organizações da sociedade civil, con- tinuamos a tratá-las contabilmente, não como ‘produ- toras de riqueza social’, mas como um ‘ralo de riqueza econômica’, porque dependem de subvenções para subsistir”(Viveret, 2002). O mesmo autor nos lembra que nossa sociedade, ape- sar das declarações de princípio, facilita bem mais o lucra- volat, a vontade lucrativa, que a vontade boa, solidária. Mudar a representação da riqueza Já é tempo de empreendermos a tarefa considerável de mudar a representação da riqueza em nossas socie- dades; de revitalizar uma história em que a escolha da cooperação, da mutualidade e da associação é prioritária. É preciso retomar a iniciativa de fortalecer a sociedade e a economia plural diante dos riscos sociais e ecológicos da “sociedade de mercado” que subordina e até obscu- rece outras funções maiores da vida em sociedade, como as relações políticas, afetivas e simbólicas. Valores e qualidade de vida Deliberar sobre valores é recusar um tipo de gestão pública da cidade baseado na avaliação da qualidade de vida reduzida “a um simples exercício de medida, ele mes- mo referente às categorias dominantes de uma economia que já cortou seus laços com a ética e a política”. Os “indi- cadores” não podem estar dissociados dos “critérios” que revelam o debate sobre seus objetivos. E o sintoma maior de que a qualidade de vida deriva em direção às “socie- dades de mercado” é percebido quando as estatísticas monetárias esvaziam o conjunto do campo social. Ênfase na ética e na estética A demanda por ética cresce indefinidamente. O reco- nhecimento do sofrimento político do outro, a transpa- rência, o compromisso, a negociação, a convivência, a cooperação, a participação, a probidade no gasto públi- co, o diálogo, o envolvimento, o gesto político, afetivo, estético são imperativos éticos. Há uma demanda constante pela construção e pelo anúncio de sentidos para a ação pública: busca da ver- dade, do bem, do belo, da moral e da ética. O que menos se reivindica hoje são as ações ancoradas na falsa ética da imparcialidade e neutralidade. “Neutralidade é indi- ferença às conseqüências” (Santos, 2003). Referências bibliográficas DI GIOVANNI, Geraldo. Sistemas de proteção social: uma introdução conceitual. In: Reforma do Estado e políticas de emprego no Brasil. Campinas: Unicamp, 1998. SOUZA, Marcelo M. C. A importância de se conhecer melhor as famí- lias para a elaboração de políticas sociais na América Latina. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. SPOSATI, A. “Mínimos sociais e seguridade social: uma revolução da consciência da cidadania”. Serviço Social e Sociedade. São Pau- lo: Cortez, 1997. VIVERET, Patrick. Missão “Novos fatores de riqueza”. Relatório produ- zido a pedido de Guy Hascoët, 2002. Disponível na Internet www. place-publique.fr/esp/richesse/index.html: acesso: junho de 2005. SANTOS, Boaventura Souza. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2000. _____. Seminário Internacional O Papel da Sociedade Civil nas Novas Pautas Políticas, Abong, São Paulo. Registro da exposição do au- tor por Maria do Carmo Brant de Carvalho, em setembro de 2003. Bibliografia CARVALHO, M. C. B. (org.). Ação social e saberes. Revista do Centro de estudos do Instituto de Serviço Social de Lisboa, 2001. COHN, G. A teoria da ação em Habermas. In: Teorias da Ação em De- bate. São Paulo: Cortez, 1993. DUPAS, G. Ética e poder na sociedade de informação. São Paulo: Unesp, 2000. NOGUEIRA, M. A. Em defesa da política. São Paulo: Senac, 2001. SAWAIA, Bader. Fome de felicidade e liberdade. In: Muitos lugares para aprender. São Paulo: Cenpec, 2003. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 52 Há uma demanda constante pela construção e pelo anúncio de sentidos para a ação pública: busca da verdade, do bem, do belo, da moral e da ética. Cadernos Cenpec 20065 n. 1 n. 1 Projeto Juventude e Cidadania: Ponto de encontro Espaços educativos e de proteção para jovens Antonio Sérgio Gonçalves Maria José Reginato Ribeiro Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes* É incontestável a necessidade de se criarem espaços nas cidades, particularmente nos grandes centros ur- banos, que acolham os jovens para dialogar, refletir e discutir questões que os afetam, proporcionando-lhes experiências diversificadas que possam ampliar sua visão de mundo e suas possibilidades de escolha. A necessidade da constituição de um lugar social para o jovem tem sido apontada nos estudos sobre juventu- de1 e no debate público sobre as questões da violência urbana que tanto atingem esse segmento, quer como vítima quer como agente. “...a taxa de homicídios entre os jovens passou de 30,0 em 100 mil jovens, em 1980, para 52,1 no ano 2000. Já a taxa no restante da população (não jovem) caiu le- vemente, passando de 21,3 em 100 mil para 20,8 no mesmo período. Isto evidencia, de forma clara, que os avanços da violência homicida no Brasil, das últimas duas décadas, tiveram como eixo exclusivo a vitimiza- ção juvenil.”2 Por essa razão, no âmbito municipal, estadual e fe- deral, cada vez mais se observa a preocupação de ges- tores com a incorporação, ainda que timidamente, de políticas públicas destinadas aos jovens, seja criando instâncias próprias, como coordenadorias ou secretarias específicas, seja articulando ações das diferentes secre- tarias de governo, por meio de estratégias ou planos de trabalho voltados a esse grupo populacional. Essa necessidade se expressa também em dados3 que apontam que os jovens desejam mais participação so- cial, valorizam a democracia e reconhecem a importância RELATO DE PRÁTICA * Antonio Sérgio Gonçalves é educador, psicanalista e pesquisador da área de Currículo e Escola do Cenpec. Maria José Reginato Ribeiro é pedagoga e coordenadora de projetos da área de Currículo e Escola do Cenpec. Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes é pedagoga e coordenadora de projetos da área de Currículo e Escola do Cenpec. São Paulo, SP Dados do município População rural: 621.412 habitantes População urbana: 9.814.130 habitantes Índice de Desenvolvimento Humano: IDH 0,841 Índice de Desenvolvimento Infantil: IDI 0,680 (Unicef) Indicadores educacionais Analfabetismo na população acima de 15 anos: 10,4% Estabelecimentos públicos de educação: 3.006 Número de professores: 29.152 Total de matrículas no município: 1.601.847 Rendimento escolar no ensino fundamental municipal • Índice de aprovação: 93,6% • Índice de reprovação: 4,4% • Índice de abandono escolar: 2,0% • Taxa de distorção idade–série: 20,1% Fontes: INEP, Censo Escolar 2002; IBGE, Censo 2000; Unicef, 2002. São Paulo 54 da política na vida das pessoas. No entanto, não se vêem como agentes influentes, o que provavelmente re- flete o seu baixo nível de participação social e política. É importante explicitar que, embora possamos com- preender a juventude como uma determinada faixa etária vivida por todos, ela não é experienciada da mesma forma pelos jovens e não é, portanto, um fenômeno biológico e universal absoluto: existem diferenças significativas definidas pelo gênero, etnia e condição socioeconômica, entre outras, que podem marcar a singularidade das ex- periências vividas, bem como a projeção de futuro para distintos jovens. Implica dizer que ser jovem do sexo masculino, negro e pobre é muito, mas muito diferente de ser jovem, mulher, branca e de classe média alta. Desse modo, precisar a origem social e as caracte- rísticas de determinado grupo juvenil torna-se condição necessária para a aproximação e o diálogo com ele. Inclusive para que os especialistas possam realizar uma adequada intervenção grupal e contribuir para a supe- ração de dificuldades que eventualmente enfrentam. No entanto, essa condição, embora necessária, não é sufi- ciente para o total conhecimento do grupo, uma vez que encontramos diferentes modos de vida e de expressão dos jovens dentro de um mesmo grupo. Isso significa que eles possuem margem de escolha e de autonomia para orientar seus próprios destinos, o que se contrapõe à idéia de que são apenas produtos do sistema e não agentes de sua própria história. Reconhecer a condição de sujeito do jovem implica respeitá-lo em seus valores e crenças, promovendo es- paços de reflexão e participação que possibilitem o de- senvolvimento de sua autonomia, com opções respon- sáveis, que consideram a solidariedade, os laços sociais e não simplesmente uma independência em termos in- dividuais. É importante resgatar e discutir, com os jovens, a re- lação que guardam com a escola, o mundo do trabalho, a família, o grupo de vizinhos, a cultura de massa, a vio- lência, o tempo livre, os seus sonhos e decepções, para que compreendam sua condição e percebam que o ser humano desempenha diversos papéis e pertence a dife- rentes grupos. É nesse contexto que se insere o Projeto Juventude e Cidadania: Ponto de Encontro,4 desenvolvido na cida- de de São Paulo, em 2004, em consonância com o Plano de Metas da Secretaria Municipal de Educação, que estabelecia, como grandes eixos, o princípio da Cidade Educadora, a intersetorialidade das políticas públicas municipais no âmbito das subprefeituras e a formação da rede de proteção social nesse espaço. Projeto, proposta, material e metodologia. Ponto de Encontro é um espaço de interação do ado- lescente e do jovem com situações intencionalmente planejadas, por meio de vivências em oficinas que abor- dam temas relevantes para esses ciclos de vida. Com isso, pretende-se propiciar, a eles, o conhecimento e a consciência de seus direitos e responsabilidades, e de- senvolver a compreensão crítica de questões contem- porâneas, como trabalho, sexualidade, família, justiça e educação. Além disso, visa à internalização de valores considerados universais, como a preservação e a valori- zação da vida em todas as expressões, a solidariedade, o respeito à diversidade humana e ao ambiente, os cuidados consigo e com os outros. A proposta do Projeto Ponto de Encontro considera o ser humano produto e agente de sua história, e a identidade, um processo em permanente construção, com momentos de continuidades, rupturas e momentos de ressignificações. Assim, articula a dimensão social e pessoal do sujeito e contextualiza suas práticas, de forma a conscientizar o adolescente e o jovem quanto ao seu potencial de transformação. Alia-se, a essa consideração, a crença na importância do sentimento de pertencimento, de ser/estar acolhido, de compartilhar valores, ser aceito e ter referências cons- trutivas de inserção social, o que, por sua vez, é facilitado pelo acesso ao conhecimento que amplia a visão de mundo e as possibilidades de escolha. Também está impregnada dos princípios éticos de alteridade — o res- peito ao outro, que é como eu sou, porém diferente de mim; do reconhecimento e convívio com a diversidade e da defesa da igualdade de direitos, contra atitudes dis- criminatórias de exclusão. Por essas razões, pretendeu-se implementar a for- mação de grupos de jovens em cada um dos 21 Centros Educacionais Unificados — CEUs,5 no contraturno do horário regular das aulas. Para isso, propôs-se um amplo programa de formação de educadores, cujo princípio foi o de envolver diferentes segmentos de profissionais que atuam com adolescentes e jovens no contexto do CEU e da comunidade em geral, como possibilidade de se iniciar ou fortalecer a rede de proteção local. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 55 Foram convidados a participar os seguintes profis- sionais dos CEUs: os coordenadores de projeto do Nú- cleo Educacional, do Núcleo de Ação Cultural e do Núcleo de Esporte e Lazer, os coordenadores pedagógicos das unidades escolares do CEU e representantes do Conse- lho Gestor. Da comunidade local, foram envolvidos coor- denadores pedagógicos das escolas municipais, educa- dores sociais de diferentes organizações não-governa- mentais e representantes do Conselho Tutelar da região e das Coordenadorias de Educação e da Juventude. O Projeto Ponto de Encontro é constituído por um conjunto articulado de oficinas de diferentes naturezas: temáticas, culturais, de gestão e acompanhamento e for- mulação de projetos de intervenção comunitária, com- pondo cinco módulos independentes, cada módulo con- tando com uma oficina temática, duas oficinas culturais e uma oficina de projetos. Os temas abordados nas Oficinas Temáticas — Edu- cação, ponte para o mundo; Família e relações sociais; Justiça e cidadania; Saúde, uma questão de cidadania; O trabalho em nossas vidas — convergem para uma re- flexão sobre o projeto de vida dos adolescentes e jovens, estimulando-os à participação em movimentos sociais e comunitários e possibilitando o exercício e a vivência de ações construtivas na perspectiva do bem social. As Oficinas Culturais, bastante diversificadas, não estão diretamente relacionadas aos temas, guardando, no entanto, estreita relação com eles no que se refere aos princípios, pressupostos e metodologia de trabalho. O objetivo é ampliar o repertório cultural dos adolescentes e jovens, desenvolvendo sua consciência, como sujeitos, das diferentes potencialidades de expressão, comunicação e convívio social, e também valorizar a vida, o belo e a solidariedade, os cuidados consigo, com o outro e com o ambiente. São dez oficinas: Artes visuais e cênicas; Conto; Correspondência; Educação ambiental — problemas globais, ações locais; Hora de se mexer; Jogos da vida; Jornal; Música e movimento; Poesia e Ponto de encontro. Visando estimular o protagonismo juvenil, as Ofici- nas de Projeto propõem o planejamento, a execução e a avaliação de ações de intervenção na comunidade, con- sideradas relevantes pelos jovens participantes, com as quais afirmam sua identidade, liderança e auto-estima. Uma proposta que pretende desenvolver e fortalecer a autonomia do sujeito na perspectiva da construção do bem comum deve possibilitar a participação efetiva dos jovens em pequenas ações de transformação da reali- dade. Assim, essas oficinas foram elaboradas para potencializar essa idéia, incitando-os a pensar sobre a sua realidade, suas possibilidades e problemas, e como podem fazer interferências que estejam ao seu alcance. Estavam previstos também momentos específicos na formação dos educadores, em que relatavam sobre sua prática, a fim de refletir com seus pares, identifi- cando o que houve de avanços e de dificuldades para confirmar ou reorientar os encaminhamentos. São as Oficinas de Gestão e Acompanhamento que, diferente- mente das anteriores, caracterizam-se por trabalhar as questões emergentes na vivência dos grupos. A análise dessas questões é sustentada por subsídios teóricos, estudo de casos e relatos de práticas dos participantes. Implementação do Projeto O Projeto foi implementado por meio da constituição de quatro pólos regionais de formação, sediados em quatro CEUs,6 envolvendo dois momentos distintos, po- rém, interdependentes: o educador recebe a formação e coordena, paralelamente, o trabalho de formação dos jovens. O programa de formação teve como finalidade a apropriação, pelos profissionais, dos pressupostos, prin- cípios e metodologia do Projeto, para o desenvolvimento do trabalho com os jovens. Tais pressupostos, princípios e metodologia se conjugavam aos do projeto político- educacional da Secretaria Municipal de Educação e do próprio CEU, cujo propósito era a concretização do con- ceito de Cidade Educadora e a constituição da rede de proteção social. A simultaneidade do desenvolvimento da formação dos educadores e do grupo de jovens, com encontros intervalados ao longo do ano, permitiu a supervisão e o acompanhamento dos trabalhos, podendo-se avaliar os impactos e as eventuais dificuldades que surgiam no processo, possibilitando o planejamento das ações de intervenção exigidas. Dada a abrangência do Projeto, o programa de for- mação se desenvolveu por meio de uma carga horária extensa e não concentrada de 265 horas, necessárias à apropriação do Projeto por todos. Avaliação do Projeto O acompanhamento e a avaliação do Projeto Ponto de Cadernos Cenpec 2006 n. 1 56 Encontro guardam características participativas, tendo como eixo metodológico o envolvimento dos responsáveis pela coordenação geral do Projeto, dos coordenadores dos grupos de jovens, dos educadores e dos próprios adolescentes e jovens, incidindo sobre a implementação do Projeto e seus resultados. Compreendido como exercício de direito democrático do controle de ações sociais públicas, o acompanha- mento e a avaliação são concebidos numa perspectiva formativa: acredita-se que o modo como são conduzi- dos no processo traz um potencial transformador, ao proporcionar a todos os envolvidos elementos de refle- xão e aprimoramento de suas concepções e práticas. Além da necessária transparência, a avaliação e o acompanhamento permitem o acesso e a apresentação dos resultados parciais e finais do projeto, por meio de registros sistemáticos, cumprindo a função precípua de prestação de contas. Em razão disso, o processo de implementação do Pro- jeto Ponto de Encontro contou com momentos específi- cos de coleta e sistematização de dados, expressos em diferentes linguagens: relatórios, vídeos, fotos, entre- vistas e depoimentos, apresentados aos educadores nas oficinas de Gestão e Acompanhamento e, em momentos formais, perante as instâncias públicas responsáveis da Secretaria Municipal de Educação. A adesão dos Centros Educacionais Unificados ao Projeto foi total, contando com a participação dos pro- fissionais dos Núcleos de Educação, Esporte e Cultura, de todos os 21 centros, e a participação efetiva de repre- sentantes de Conselhos Tutelares, representantes da comunidade no Conselho Gestor dos CEUs, lideranças locais e educadores sociais durante toda a formação. Um fórum virtual do Projeto foi criado e foram realizados chats ou salas de bate-papo virtual, com a participação de formadores, dos autores da proposta e dos 16 módu- los do material publicado integrante da formação, o que agregou um contingente ainda maior de educadores, além dos 160 já envolvidos. Isso evidencia a boa recepção do projeto pelos vários segmentos de profissionais presentes na formação, que identificaram, na proposta do Projeto Ponto de Encontro, a potencialidade de desenvolvimento de um trabalho significativo com os jovens, no seu próprio contexto de trabalho educativo. • O depoimento de alguns dos participantes do Projeto confirmam o acerto da proposta “Acredito que as orientações propostas pelo Ponto de Encontro não estão restritas aos CEUs, mas fazem parte de um conceito de trabalho com jovens que poderá enriquecer a experiência pessoal e profissio- nal de todos os que participarem da formação. Representante do Conselho Gestor e ” líder comunitário — CEU “O Ponto de Encontro me trouxe uma nova metodo- logia de trabalho, um conhecimento sistematizado, uma base para atuar. Os temas não eram assim tão novos para mim, mas sua metodologia, o trabalho com grupos de origens diferentes é uma novidade. Coordenador de Projetos do Núcleo de ” Esporte e Lazer — CEU “ Teve uma (atividade) que eu gostei, quando a gente saiu pelo bairro tirando fotografias e filmando. Poluição, lixo, havia muitos problemas. Ajudou a gente a pensar mais no que a gente pode fazer pela comunidade. Jovem participante de um grupo do ” Ponto de Encontro — CEU Notas 1 Citamos, por exemplo, a Pesquisa “Perfil da Juventude Brasileira”, Projeto Juventude/Instituto Cidadania, de junho de 2004, o “Mapa da Juventude”, Coordenadoria da Juventude, São Paulo, 2003 e Sposito apud Batista, 2002. 2 WAISELFISZ, Jacobo. Mapa da Violência lll (síntese). Unesco, Bra- sil, fevereiro 2002, p. 11. 3 Percepções da Política — Pesquisa Perfil da Juventude Brasileira. Projeto Juventude/Instituto Cidadania, cap. 8, junho de 2004. 4 O Projeto Ponto de Encontro foi desenvolvido pela equipe da área Currículo e Escola, do Cenpec, coordenada pela pedagoga Maria Silvia Bonini Tararan. Contou com a participação dos seguintes profissionais: Antonio Sérgio Gonçalves, Fernanda da Silva Ribei- ro, Maria José Reginato Ribeiro, Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes, Paula Chieffi e Rosângela Lúcia Desiderá Moraes. 5 Os Centros Educacionais Unificados, que integram a Secretaria Municipal de Educação, são compostos por núcleos, unidades e espaços de diferentes secretarias, implantados em zonas de exclusão social da cidade de São Paulo para promover o acesso da população a direitos básicos previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, invertendo a lógica de concentração dos espaços culturais da cidade. 6 CEUs pólos da formação dos educadores no Projeto Ponto de En- contro: Cidade Dutra, Perus, Rosa da China e Parque São Carlos. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 57 [A cidade] é a sede de uma sociedade local compósita e complexa, cuja diversidade constitui um permanente convite ao debate. Milton Santos Cadernos Cenpec 2006 n. 1 59 Educação dentro e fora da escola constituição de 1988 fortaleceu o papel dos muni- cípios ao reconhecê-los como entes federados, com go- verno próprio e competência normativa, o que lhes am- pliou a autonomia política, administrativa, financeira e legislativa. A partir desse movimento, os municípios vêm sendo gradativamente responsabilizados pela presta- ção de serviços públicos, antes, em muitos casos, sob tutela dos estados e da União. Entre eles, destacamos os de educação. O texto constitucional atribui aos municípios a edu- cação infantil e o ensino fundamental. Assim, eles vêm assumindo um papel primordial, não apenas no geren- ciamento das redes escolares, como também no estabe- lecimento de metas de qualidade para a educação, com- prometendo-se com a redução da distorção idade-série; com a redução da reprovação e da evasão escolar; com a garantia de que todos os alunos cheguem à 4a série dominando a leitura e a escrita e com o aumento da escolaridade média dos adultos. Para tanto, as escolas necessitam experimentar novos formatos organizacio- nais e institucionais de funcionamento, além da adotar novos métodos de ensino e de gestão para o fortaleci- mento do sistema de ensino municipal. Em meio a esse movimento e expostos às rápidas e sucessivas mudanças nos campos cultural e científico- tecnológico, os municípios brasileiros estão sendo con- vocados a atuar num cenário, cujos desafios para a pro- moção do seu desenvolvimento exigem a compreensão e integração das dimensões ambiental, social, política, econômica, institucional, cultural, educacional, ética, humanística e temporal, valorizando o local como o es- * Eloísa Barbosa Oliveira de Blasis é pedagoga e pesquisadora da área de Gestão Educacional do Cenpec. Os habitantes fazem a diferença nos projetos municipais Eloísa de Blasis* de educação A ARTIGO paço em que essas dimensões podem ser mais facil- mente integráveis. A necessidade de compreender e integrar essas di- mensões reforça o papel dos governos locais na iniciativa e articulação de projetos de desenvolvimento que não se pautem por quesitos meramente econômicos, mas que valorizem aspectos de qualidade de vida para os indivíduos, promovendo o fortalecimento da sociedade civil, sua mobilização e participação. Dar conta dessas responsabilidades assume formas e intensidades diferentes, de acordo com a singularidade de cada município brasileiro, e aumenta, em volume e complexidade, as atividades de planejamento, controle e fiscalização, demandando dos governos municipais competências gestoras para que seja possível organi- zar, ler a realidade, identificando prioridades e poten- cialidades específicas, e elaborar propostas de ação que maximizem recursos e promovam a inclusão social. Crédito no potencial educativo das cidades O Programa Melhoria da Educação no Município surgiu nesse cenário, objetivando apoiar os municípios brasi- leiros na formação de gestores de educação aptos a planejar, implementar e avaliar projetos educativos que assegurem a todas as crianças e jovens, em suas locali- dades, o acesso e a permanência — com sucesso na apren- dizagem — em um sistema de ensino com qualidade. Fruto da parceria instituída entre a Fundação Itaú Social, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e com a coordenação técnica do Centro de Es- tudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comuni- tária (Cenpec), o “Programa Melhoria” está sendo reali- zado em todo o Brasil desde 1999. Acreditando no potencial educativo das cidades e entendendo que a educação é um processo que acontece em diferentes espaços e com o envolvimento de múlti- plos agentes, o Programa Melhoria propõe a seus parti- cipantes a integração entre o poder público e a comuni- dade, a gestão participativa e o respeito aos tempos de mudança da cultura local, como princípios que podem contribuir para o desenvolvimento da educação no mu- nicípio. Em seu percurso metodológico, o Programa Melhoria propõe a integração entre a participação ativa de diver- sos atores municipais em prol da educação e a iniciativa de ações conjuntas entre diferentes setores, entendendo que o desenvolvimento acontece quando a população local assume o papel de principal protagonista desse processo. Nesse percurso, o Programa valoriza a forma- ção das capacidades gestoras na área educacional, tendo como foco a aprendizagem das crianças e o acesso ao conhecimento, e destaca o papel fundamental do gestor nesse processo, já que, se ele não tiver capacidade para gerir o sistema, não será capaz de produzir os efeitos e resultados esperados. Nesse sentido, o Programa tem por objetivo possibi- litar aos gestores de educação as aprendizagens que se concretizam no exercício de suas funções. Pode-se carac- terizar algumas capacidades e habilidades privilegiadas na formação, indicativas da apropriação das diretrizes do Programa e que deveriam ser desenvolvidas pelo gestor: • Capacidade para ler a realidade, acessar e processar informações, fazer articulações, identificar proble- mas prioritários, planejar ações estratégicas e de- finir metas. Esses aspectos dizem respeito à etapa de elabo- ração do diagnóstico sobre a situação educacional e do plano de ação para enfrentamento dos proble- mas educacionais no município. • Capacidade para empreender e intervir na realidade. Esses aspectos são relativos ao momento de imple- mentação das ações educacionais planejadas. • Capacidade para analisar resultados e avaliar ações. Esses aspectos se revelam no monitoramento da execução do plano e na avaliação de seus resultados. Como parte indissociável do circuito de promoção do desenvolvimento, a educação pública tem papel pre- ponderante, já que sua finalidade é contribuir para a inclusão social e proporcionar a todos o exercício quali- ficado da cidadania. As estatísticas têm mostrado que há uma forte relação entre desigualdade social e baixa escolaridade, o que torna necessário articular ações de enfrentamento da pobreza e da desigualdade com pro- jetos de educação. Para tanto, a socialização do conheci- mento é vital, pois, como um recurso sempre em expan- são e transformação, hoje, mais do que nunca, acessá-lo é fundamental para a diminuição da desigualdade social. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 60 A sociedade informacional, sempre em mudança e crian- do a si mesma, tem no conhecimento sua principal forma de produção. A função da escola pública — um dos poucos lugares que a população excluída de outros espaços sociais tem possibilidade de entrar — é garantir a todas as crianças e jovens o acesso a conhecimentos e valores socialmen- te produzidos. Além disso, sobretudo nos municípios de pequeno porte, é um dos espaços públicos mais aptos a acolher as comunidades para que partilhem e apro- fundem os laços comunitários, consolidando de forma coletiva a noção de pertencimento e de identificação cultural. Assim, o fortalecimento da escola pública é uma das condições imprescindíveis para a promoção do desenvolvimento. A defesa de uma educação pública de qualidade para todos como direito social vem ganhando fôlego e legiti- midade nos debates travados entre o Estado e a socie- dade civil. É assim que a oferta da educação tem se constituído em um desafio para os entes federados responsáveis pela organização do ensino, uma vez que requer políticas que definam claramente os padrões daquilo que se quer e se entende por qualidade, além dos insumos necessários para o desenvolvimento da educação. Nesse contexto, os municípios — que tanta influência exercem sobre a vida de seus habitantes — assumem um novo e fundamental papel: o de fortalecer seus espaços educativos, integrando diferentes atores na tarefa de educar, ampliando para além da escola os espaços de aprendizagem. Ora, reconhecer que se aprende e se educa tanto na escola quanto fora dela, na família, no trabalho, no la- zer, nos locais de moradia, implica também reconhecer, de um lado, a necessidade de se promover atividades educativas que propiciem aos moradores das cidades o acesso e a apropriação de seus múltiplos espaços e saberes e, de outro, que, para promover essas ativida- des, é necessário a articulação entre as diversas instân- cias educativas e organizações comunitárias, no sentido de contemplar os serviços educacionais que estão fora do universo escolar. Uma tal perspectiva requer Planos Educativos que potencializem projetos sociais interse- toriais e promovam a Cidade Educadora. Desde que acreditem em seu potencial para pro- mover o desenvolvimento e assegurar o direito à quali- dade da educação para seus cidadãos, os municípios dispõem de amplo leque de iniciativas educadoras. As- sim, precisamos começar a observá-los mais em função das soluções e das propostas que oferecem do que em função de seus problemas. As cidades, nessa perspectiva, precisam de Planos Educativos que sejam negociados pela coletividade, respondam às suas necessidades e expressem a alma do lugar que os produziu. Nesse sentido, nenhum Plano pode descuidar das práticas educativas que ocorrem fora da escola, assim como não pode descuidar das práticas educativas que ocorrem no interior da escola, ou seja, é preciso que as atividades educativas sejam previstas para os múltiplos espaços que educam. As lições do Programa Melhoria da Educação no Município Os desafios educacionais identificados pelos municí- pios, se observados em conjunto, expressam, de um lado, a visão dos gestores sobre as grandes questões educa- tivas que enfrentam e, de outro, quais são os eixos de intervenção para a melhoria da qualidade na educação. Tomados em conjunto, os problemas apontados têm uma relação de interdependência que se manifesta tam- bém na articulação das ações propostas para o seu en- frentamento. Na educação, problemas, suas causas e soluções estão quase sempre interligados. Podemos eleger um problema como prioridade, mas, ao buscar as soluções para resolvê-lo, múltiplas ações são articuladas e muitos outros problemas são resolvidos. Essa interdependência produz efeitos diversos e expressa a complexidade das questões educacionais, apontando para a necessidade de se investir em intervenções simultâneas no enfrenta- mento dos problemas, uma vez que ações isoladas ten- deriam ao fracasso. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 61 As cidades precisam de Planos Educativos que sejam negociados pela coletividade e expressem a alma do lugar que os produziu. Segundo Heloísa Luck, estudos recentes apontam para o fato de que ações que privilegiam ora a metodologia do ensino, ora o domínio de conteúdos pelos professores, ora a melhoria das condições físicas e materiais da escola, não vêm conseguindo promover a melhoria da educação, porque geralmente elas são empreendidas isoladamen- te, atendendo a demandas e estimulações de momento, sem que os ganhos pedagógicos sejam significativos. Daí ser fundamental o preparo das equipes gestoras para lidar com a complexidade das questões educacio- nais, bem como com a diversidade de atores envolvidos nessas questões. Na dinâmica comunitária é que se en- contra a possibilidade de fazer acontecer projetos sobre os mais variados temas. Existem espaços, relações e dinâmicas sociais particulares a cada localidade. A sen- sibilidade do gestor é que permite explorá-los para implementar uma educação de melhor qualidade. É importante lembrar que o caminho trilhado por um município não serve de receita a outros municípios. Uma mesma ação não se reproduz da mesma forma em diferentes contextos. Dentro de suas peculiaridades, cada lugar se reinventa ao produzir sua própria receita. Portanto, podemos dizer que essas experiências não são replicáveis. Entretanto, os denominadores comuns entre elas nos apontam alguns caminhos nos quais po- demos apostar. O desafio da aprendizagem em leitura e escrita Em seus cinco anos de trajetória, o Programa Melho- ria passou por 1.037 municípios em todo o Brasil e se deparou com as mais diversas experiências educativas. Um aspecto tem se destacado entre os gestores educa- cionais brasileiros que participam do Programa: a es- colha pelo enfrentamento da baixa aprendizagem dos alunos em leitura e escrita. Em um estudo avaliativo, realizado pela equipe do Programa Melhoria, em 2004 — com uma amostra de 140 municípios, que participaram do programa entre 2002 e 2004, situados nos estados de Bahia, Goiás, Minas Ge- rais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe — apurou-se que, segundo os gestores dessas localidades, os baixos resultados escolares se devem, em primeiro lugar, às dificuldades na apropriação da leitura e da escrita, seguidas pelas práticas curriculares de que a escola faz uso — impróprias e ultrapassadas; à atitude das famílias e dos alunos com relação à forma- ção escolar; à formação dos professores e à escassez de recursos para a infra-estrutura escolar. No mesmo ano, em seminário de resultados, realiza- do com 105 municípios participantes do programa no Estado de São Paulo, essa perspectiva de entendimento em relação aos desafios educacionais se mantém, bem como a priorização da aprendizagem dos alunos em lei- tura e escrita como fator fundamental para a melhoria da educação. A maioria dos municípios elege a baixa aprendizagem em leitura como prioridade para enfrentar os baixos re- sultados escolares. Esses municípios, ao priorizarem os baixos resultados escolares, centralizam as intervenções na aprendizagem da leitura e da escrita de tal forma que, para os gestores, o sucesso escolar e o domínio da leitura são aspectos tão indissociáveis que não se pode falar de um sem, automaticamente, se reportar ao outro. Currículos que acolham as realidades locais Os currículos voltados para o âmbito das práticas escolares e para o da cultura e dos saberes produzidos pelas comunidades assumem papel fundamental. As ca- racterísticas ambientais, culturais e históricas singula- res de cada município se evidenciam por meio de uma perspectiva curricular que as acolhe e valoriza. Assim, quando os gestores apontam a necessidade de progra- mas curriculares adequados às realidades locais, fica sugerido que percebem o currículo também como um feixe de relações, de acolhimento da diversidade, de cuidado, de proteção e convivência, do saber do territó- rio e de sua gente. Muitos pontos positivos Os ganhos aqui vislumbrados pelos municípios dizem respeito às aprendizagens que os gestores dos 140 mu- nicípios que participaram do estudo avaliativo, bem como dos 105 que participaram do Programa no Estado de São Paulo, apontaram como significativas em sua trajetória como gestores, a partir do Programa: • a abertura de espaço para a participação da comu- nidade; • a definição de metas claras; • o olhar voltado para a potencialidade da cidade; • a elaboração de um currículo voltado para o local e para o global; • a aposta nas ações complementares à escola; • o investimento na formação de professores; • o diagnóstico, o acompanhamento e a avaliação das ações; • a sustentabilidade das ações; • a capacitação das equipes gestoras. A abertura de espaço para a participação da comunidade A nova arquitetura de articulações sociais busca o equilíbrio entre os diversos interesses, somando o má- ximo de proveito para o conjunto. Assim, a otimização de recursos, a partir das parcerias que se apresentam e que se consolidam, são imprescindíveis para o encami- nhamento e a continuidade das ações. As parcerias são como “indicadores de governabili- dade local”, pois são essenciais à sobrevivência das po- líticas públicas. Além de abrir espaço para a participação de diferentes segmentos nos rumos dessas políticas, elas trazem um aporte de recursos, sem os quais a manu- tenção ou o início de ações no setor público não seriam possíveis, em vista da escassez de recursos enfrentada pelas prefeituras. População e gestores vão encontrando saídas para a solução dos problemas educacionais. Por outro lado, o incentivo à participação popular, como forma de engajar os cidadãos de forma coletiva na luta pela qualidade de vida, é fundamental. A população é protagonista nesse processo de consolidação de um projeto de vida para a cidade, pois negociar expectati- vas e necessidades, responsabilizar-se pelas propostas e ingerir nas formas de operar as ações são habilidades imprescindíveis para o exercício qualificado da cidadania. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 63 A definição de metas claras A definição de metas claras é condição primeira, mas não suficiente. Sua implementação exige esforços múl- tiplos de mobilização, adesão/formação dos agentes edu- cacionais e busca de parceiros. Os municípios observados trazem à discussão aspectos de uma autonomia possível ou do exercício dos espaços de possibilidades para atuar; das possibilidades de articulação e negociação que precisam ser empreendidas pelos gestores para a concretização de seus planos, apontando para a intro- dução de novos valores, como participação, associati- vismo, pluralismo, planejamento estratégico, visão de longo prazo, novos padrões de comportamento político: transparência, controle social, ética e participação. Às metas claras, deve-se associar a preocupação com a continuidade das ações, além de compromisso com a população e os parceiros envolvidos nas ações visando ao bem comum. Nos municípios da amostra, essa von- tade política se manifestou, quase sempre, a partir de lideranças calcadas em uma profunda identificação afe- tiva e sentimento de pertencimento em relação à cidade, região e à cultura local. O olhar voltado para a potencialidade da cidade Esse olhar significa investimento na potencialidade educadora da cidade por meio da valorização da cultura local, do meio ambiente etc. Aqui se destaca a perspec- tiva dos gestores de olhar mais para o potencial do mu- nicípio do que para os seus entraves. Os municípios que conquistam saltos qualitativos na educação são aque- les que olham para as potencialidades. Quando se observam as ações propostas pelos ges- tores, chama a atenção o fato de olharem muito mais para o potencial local do que para os problemas. Assim, eles destacam os recursos do lugar, as pessoas, a histó- ria, o meio ambiente, os hábitos e a cultura local como potencialidades a serem exploradas no empreendimen- to de ações que serão apropriadas pelos munícipes. A elaboração de um currículo voltado para o local e para o global Todo currículo é erigido a partir de escolhas que refle- tem visões de mundo e de cultura, desejos e expectativas quanto a valores, posturas e atitudes. Abrir espaço para negociar essas perspectivas com a comunidade, os edu- cadores e os parceiros é também fazer uma escolha cur- ricular que possibilita o aprendizado da cidadania. A busca pela Melhoria da Educação inclui o reconhe- cimento e a valorização da identidade local; a busca de compreensão do próprio mundo — suas características climáticas, geográficas, políticas, culturais e sociais. Desse modo, alterar as perspectivas em relação ao currículo, no sentido de garantir aprendizagens mais significativas que promovam a convivência ética e produtiva com o lugar, traduz a necessidade de se respeitar os saberes e as competências que só o local produz. Por outro lado, reconhecer que, hoje, mesmo nas lo- calidades menos urbanizadas, o conhecimento produzido socialmente pela humanidade conecta as diversas for- mas de trabalho e de relações garante que a escola não perca de vista sua função. Assim, associar ao conhecimento da realidade local saberes que tradicionalmente cabem à escola socializar, como o uso proficiente da leitura e da escrita, é funda- mental para que as comunidades não fiquem restritas apenas ao seu microterritório e a seus recursos simbóli- cos. Portanto, o currículo deve combinar os saberes lo- cais com os saberes globais. A aposta nas ações complementares à escola A tarefa de educar não cabe somente à escola, que, sozinha, não tem como transmitir todos os conhecimentos e desenvolver as habilidades necessárias para o exercí- cio da cidadania. Portanto, novos atores se juntam a ela nessa tarefa e novos espaços educativos passam a ser revelados e potencializados. Nas várias experiências dos municípios, destacam-se as ações desenvolvidas fora da escola, mas complemen- tares a ela, no sentido de tentar potencializar espaços e ações que, tendo a preocupação com o desempenho Cadernos Cenpec 2006 n. 1 64 As características ambientais, culturais e históricas de cada município se evidenciam por meio de uma perspectiva curricular que as acolhe e valoriza. escolar dos alunos, exploram outros espaços educati- vos na cidade, como a estação de rádio, a biblioteca, o museu, o teatro; outras linguagens, como a artística, a radiofônica, a jornalística; outras fontes de conhecimen- to, como a própria comunidade; e outros educadores dentro da própria comunidade. O investimento na formação de professores Qualquer estratégia de melhoria da qualidade deve considerar o papel de adaptação que os professores exercem na execução dos currículos, ou mesmo na apro- priação de técnicas de ensino, quando passam por qualquer processo de formação. Essa “modelação” que os professores fazem não acontece no vazio, mas em função do contexto, facilitador ou não, de suas práticas. Desse modo, para alterar práticas curriculares e de en- sino, é importante considerar a formação docente e a sua participação, mas é igualmente importante considerar todo o arcabouço de condições necessárias para a altera- ção dessas práticas, como uma infra-estrutura escolar adequada, a valorização profissional, o acompanhamento do trabalho pedagógico por parte das equipes gestoras no apoio ao trabalho do professor, além da organização dos sistemas municipais de ensino no sentido de atender às necessidades de aprendizagem da população. Mas não é possível deixar de constatar que, na maio- ria das vezes, “as formações continuadas” informam so- bre grandes temas educacionais e pouco acrescentam à prática pedagógica cotidiana. Para que os programas de formação ganhem sentido e sejam apropriados pelos docentes — sem o risco de serem interessantes, mas distantes da prática —, é importante que considerem o contexto em que o docente atua, de forma que ele pos- sa adequar sua prática às necessidades de seus alunos. Ora, o que se observa é que esse professor ganha maior competência para o ensino quando aprende mais sobre seu aluno — sua condição de vida, cultura, valores etc. — e sua comunidade. O diagnóstico, o acompanhamento e a avaliação das ações O diagnóstico é sempre o ponto de partida para o início da elaboração de qualquer Plano de Ação, pois possibilita a compreensão da realidade, bem como a tomada de decisões quanto a intervenções adequadas dentro de um determinado contexto. Por outro lado, o compromisso com os resultados dos Planos de Ação Educativa em execução é fundamental. Para tanto, acompanhar e avaliar é tão importante quanto executar os Planos. Isso porque a avaliação nos permite saber até que ponto nossas decisões estão pro- movendo resultados em direção às mudanças desejadas, ou até que ponto essas decisões necessitam ser reorien- tadas. Assim como o diagnóstico, o acompanhamento e a avaliação fundamentam as intervenções e garantem melhores resultados. Da mesma forma que é importante para a comuni- dade e demais parceiros se responsabilizarem pelas ações, ao decidir por elas no diagnóstico e no planeja- mento das intervenções, é também importante que ela participe do acompanhamento e da avaliação dos resul- tados dessas ações, para que se aproprie dos projetos de educação para a cidade. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 65 A sustentabilidade das ações A continuidade das ações empreendidas num Plano de Ação Educativa precisa ser cuidada, de forma que possa sustentar os resultados obtidos. Por isso, quando elabo- radas e avaliadas conjuntamente pelo poder público e a comunidade, as ações de intervenção, visando melhorar a educação nos municípios, necessitam ter continuidade para além do tempo prescrito para as gestões municipais. Daí ser tão importante a participação da população na tomada de decisões, porque toda ação em educação exige um tempo mais ou menos elástico para produzir efeitos duradouros, o que requer o seu acompanhamen- to, avaliação e eventual redirecionamento. Dar continuidade às experiências iniciadas, para que produzam de fato as mudanças almejadas de forma du- radoura, é fundamental e requer compromisso político por parte de todos que participaram de sua elaboração e execução. Por outro lado, reavaliar continuamente es- sas ações, propondo rumos novos que aprimorem o caminho já percorrido, também é de vital importância. A capacitação das equipes gestoras Cada vez mais, faz sentido capacitar as equipes ges- toras dos municípios para atuar na gestão dos serviços públicos. No que diz respeito à educação, os gestores devem estar preparados para: • fazer a leitura fundamentada de sua realidade edu- cacional; • lidar com a diversidade de atores envolvidos no pro- cesso pedagógico — pais, comunidade, alunos, pro- fessores etc. — sensibilizando todos a se integrarem efetivamente nesse processo; • elaborar e acompanhar Planos de Ação Educativa com metas claras, assim como conhecer o processo pedagógico para poder acompanhar o trabalho dos professores e das escolas; • conhecer os trâmites e possibilidades para a captação de recursos nos diversos âmbitos governamentais, assim como a partir do estabelecimento de diversas parcerias privadas e públicas; • ter compromisso político com a população que os elegeu, prestando-lhe contas das ações, chamando-a a participar dos rumos do governo local, preparando o terreno para dar continuidade às ações projetadas conjuntamente. Essas são as lições que protagonizam os municípios que vêm participando do “Melhoria” e que, sem dúvida, apontam para novos olhares e para novas possibilidades a partir da educação, porque partem, sobretudo, das necessidades de aprendizagem das populações locais, não só extrapolando o espaço escolar, mas integrando-o a outros espaços educativos na cidade; contando com a contribuição que trazem as comunidades em relação à participação e à ampliação das perspectivas culturais e as novas possibilidades de socialização que aprofundam os laços de pertencimento no microterritório e também o conectam com o mundo global. Bibliografia BARTH, Jutta. Participação e desenvolvimento local. Porto Alegre: Su- lina, 2002. CENPEC — Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Raízes e asas: fascículos: 1; A Escola e sua Função social: 6; Como ensinar um desafio: 8; Avaliação e aprendizagem. São Paulo: Cenpec/Fundação Itaú Social/Unicef, 1996. DOWBOR, Ladislau. A Comunidade Inteligente: visitando as experiências de gestão local. In: SPINK, Peter; CACCIA BAVA, Silvio e PAULICS, Veronika (Orgs.). Novos Contornos da gestão local: conceitos em construção. São Paulo: Polis/Programa Gestão Pública e Cidadania/ FGV-Eaesp, 2002, p. 33-73. GADOTI, Moacir; PADILHA, Paulo Roberto e CABEZUDO, Alicia (Orgs.). Cidade Educadora — principios e experiências. São Paulo: Cortez/ Instituto Paulo Freire; Buenos Aires: Ciudades Educadoras Amé- rica Latina, 2004. LUCK, Heloisa. A Evolução da Gestão Educacional, a partir de mudança paradigmatica. http: // www.uol.com.br / novaescola/index.htm ?noticias/ jul 02 11/ NEVES, Gleisi Heisler et al. O município no Brasil — marco de referên- cia e principais desafios. In: Os municípios e as eleições de 2000. Cadernos Adenauer, n. 4, São Paulo, Fundação Konrad Adenauer, 2000, p. 9-33. Os municípios em busca da melhoria na educação. São Paulo: Cenpec/ Fundação Itaú Social/ Unicef, 2005. RIBEIRO, Vera Masagao (Org.). Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo: Global, 2003. SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. VÁRIOS autores. Melhoria da Educação no Município: um trabalho co- letivo. São Paulo: Cenpec — Área Gestão de Políticas Educacio- nais/ Fundação Itaú Social/ Unicef, 2003. v. 2, 3 e 4. VÁRIOS autores. Muitos lugares para aprender. São Paulo: Cenpec — Área Educação e Comunidade/Fundação Itaú Social/Unicef, 2003. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 67 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 Como tem Zé Vige como tem Zé Zé de Baixo, Zé de Riba Tesconjuro com tanto Zé Como tem Zé lá na Paraíba. (...) É Zé João, Zé Pilão e Zé Maleta Zé Negão, Zé da Cota, Zé Quelé Todo mundo só tem uma receita Quando quer ter um filho só tem Zé E com essa franqueza que eu uso Eu repito e se zangue quem quiser Tanto Zé desse jeito é um abuso Mas o diabo é que eu me chamo Zé... Letra de Jackson do Pandeiro, músico e cantor, natural de Alagoa Grande, PB, “brejo paraibano”. Incrustada na microrregião serrana de Piemonte da Borborema, no Estado da Paraíba, o município de Alagoa Grande — cujo primeiro nome foi Sertão do Paó — tem cerca de 30 mil habitantes e fica a 110 km da capital, João Pessoa. Com clima quente e úmido, nele há muitas cachoeiras e edificações de valor histórico — igrejas, casas, prédios públicos e engenhos — tombadas pela municipalidade. Entre elas está o Teatro Santa Ignez, terceiro mais antigo do Estado, construído em 1905. Alagoa Grande, Paraíba. O teatro revelou professores, alunos e cidadãos Ana Maria Falsarella Ana Guedes Pinto Eloísa de Blasis* Alagoa Grande, PB Dados do município População rural: 12.320 habitantes População urbana: 16.846 habitantes Índice de Desenvolvimento Humano: IDH 0,609 Índice de Desenvolvimento Infantil: IDI 0,417 (Unicef) Indicadores educacionais Analfabetismo na população acima de 15 anos: 67,1% Estabelecimentos públicos de educação: 122 Número de professores: 295 Total de matrículas no município: 8.590 Rendimento escolar no ensino fundamental municipal • Índice de aprovação: 64,0% • Índice de reprovação: 19,3% • Índice de abandono escolar: 16,7% • Taxa de distorção idade–série: 75,3% Fontes: INEP, Censo Escolar 2002; IBGE, Censo 2000; Unicef, 2002. RELATO DE PRÁTICA * Ana Maria Falsarella é pedagoga, doutora em Educação, pesquisadora da área de Gestão Educacional do Cenpec e professora no curso de pedagogia da Uniban-SP. Ana Maria Aparecida de Abreu Guedes Pinto é pedagoga, psicopedagoga e pesquisadora da área de Gestão Educacional do Cenpec. Eloísa Barbosa Oliveira de Blasis é pedagoga e pesquisadora da área de Gestão Educacional do CENPEC. Alagoa Grande 68 Terra natal do famoso ritmista Jackson do Pandeiro, a cidade abriga, ainda, a comunidade quilombola de Caina dos Crioulos, a 24 km do centro urbano, reconhe- cida pela Fundação Palmares. Por esses e outros moti- vos, é uma das mais belas opções turísticas do chamado “brejo paraibano”, o que não lhe exime de conviver com graves dificuldades sociais. As alternativas de trabalho são escassas na cidade, restritas quase que apenas ao comércio e à administração municipal. Em grau discreto, pratica-se a lavoura de subsistência — milho, feijão e mandioca — e a pecuária bovina, ovina e caprina. A cidade sedia um curso de pedagogia em regime especial para professores da rede pública e tem como principal veículo de comunicação a Rádio Rural Guarabira. Crianças e adolescentes apresentam 28 peças Bem cedo, a equipe gestora da educação de Alagoa Grande percebeu que os problemas educacionais do mu- nicípio compunham um círculo vicioso: evasão e repetên- cia geravam professores desmotivados, alunos desinte- ressados e pais distanciados da escola. Tudo isso, por seu turno, causava deficiências generalizadas no domínio, pelos alunos, da leitura e da escrita, origem dos crescen- tes índices de evasão e repetência escolar. A equipe sabia de antemão, também, que as verbas disponíveis para a educação eram poucas e que o currículo, distante da realidade local, era outra matriz de problemas. Era preciso romper com esse círculo vicioso. Mas onde estaria a saída? Logo ficou claro: estava no estímulo à leitura e à escrita que, dominada, mudaria o curso das coisas, como num jogo de dominó, derrubando outras falhas dela conseqüentes. Surgia então outra pergunta: como gerar interesse pelo aprendizado da leitura e da escrita? A resposta estava na própria cidade: a cultural local, ponto forte de Alagoa Grande. Foi quando surgiu a idéia de abrir as portas do Teatro Santa Ignez para as escolas e para a própria comunidade, um patrimônio histórico que estava, então, subutilizado. Afinal, por que não tornar a marca cultural da cidade aces- sível a toda a população? Era preciso democratizar um espaço considerado de elite. Nasceu assim a 1a Mostra Teatral de Alagoa Grande: professores e alunos foram convidados a participar do evento, permeado pelo estímulo à leitura e à escrita. A equipe gestora mostrou sua capacidade, ao explo- rar os potenciais da comunidade, articulando apoios e entusiasmando pessoas e instituições a contribuírem, fazendo o projeto acontecer. No governo municipal, obtivera, da Secretaria de Transportes, a locomoção dos alunos e, da Secretaria de Cultura, chancela para usar o Santa Ignez. Na comu- nidade, a primeira colaboração importante partiu da Rádio Rural Guarabira, que abriu sua programação para divulgar o acontecimento. Outros apoios logo se somaram, como o do Grupo de Teatro Zoar, voltado ao trabalho com crianças e jovens, que se incumbiu de promover oficinas de voz, dicção e interpretação. Instituições bancárias e do comércio fize- ram doações financeiras que permitiram a confecção dos figurinos e cenários. Depois de dois meses de trabalho intenso, enfim, es- tava tudo pronto: o que se viu a partir da grande noite de estréia foram 28 peças, tendo as crianças e adoles- centes da comunidade como protagonistas de uma tem- porada que agitou a cidade e deu o que falar durante uma semana inteira. Certo! Tudo muito bacana. Mas como foi que tudo isso contribuiu para estimular a leitura e a escrita entre os alunos? De muitas formas: primeiro, pelas pesquisas sobre arte cênica que eles tiveram que realizar, envolvendo o es- tudo de fábulas e temas sobre teatro; depois, pela elabo- ração dos próprios textos das peças encenadas e, ainda, por meio de exercícios nas oficinas de interpretação. O processo é, todo ele, riquíssimo ao aprendizado, que acontece de forma lúdica, interativa, envolvente. Sem pressão por notas ou posturas hierárquicas, logo eles estavam exercitando a escrita, a leitura e a criação, sem que isso fosse uma obrigação imposta. Símbolos comunitários são referenciais a todo cidadão. O uso do Teatro Santa Ignez, antigo espaço das elites locais, trouxe embutido um sentido especial de inclusão e pertencimento às crianças e jovens da comunidade, assim como o convívio entre os alunos da zona rural e da zona urbana e dos estudantes com os outros mem- bros da comunidade, como os artistas e os oficineiros. Nesse processo, puderam apreender várias regras de convívio social, como o respeito ao outro e ao ambiente, saber ouvir e preservar bens públicos — o teatro — etc. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 69 Foram muitas as aprendizagens, mas a principal delas talvez tenha sido o fato de as crianças terem ficado com mais vontade de ir à escola, mais compromissadas com as tarefas e responsabilidades do aprendizado, levando o professor a vê-las de outra maneira, a acreditar mais em seus talentos. A comunidade se aproximou da escola, elo saudável para a continuidade das ações, garantindo, inclusive, a permanência da criança nas atividades do projeto, além do período de aulas. Como destaca a Secretária Municipal de Educação, Maria Gorett Santos: “Houve uma ‘familiarização’ das escolas. Antes, quase nem havia reuniões, porque as famílias apareciam só para reclamações e os pais nem iam às escolas. Agora, se encantaram com o teatro. As mães catavam retalhos nas costureiras da cidade para produzir os figurinos dos filhos... Melhorou também a participação dos membros da sociedade. Antes, as pessoas não queriam participar de jeito nenhum; hoje, parceiros estão se oferecendo. Sur- giu, por conseqüência da Mostra de Teatro, até um mo- vimento na cidade, os Sábados Culturais: a cada 15 dias, há uma apresentação de teatro, dança e música, acompa- nhada de feira, com produtos típicos do município”. Como se vê, a educação ganhou adesões da popu- lação, passou a ser vista como responsabilidade de to- dos e as crianças e jovens mostraram que são capazes de aprender, quando isso se torna um prazer. Em Alagoa Grande, a equipe da Secretaria Municipal de Educação transformou dificuldades em possibilida- des e possibilidades em realidade. Os problemas eram muitos: equipe pequena face à amplitude das tarefas; a eterna falta de recursos; a redu- zida margem de autonomia diante das várias decisões a serem tomadas; formação insuficiente dos professores, resistência a mudanças; a dificuldade de envolvimento dos pais e da comunidade e, finalmente, a oposição po- lítica de partidos contrários ao que está no poder. A despeito disso tudo, o gestor municipal conseguiu colocar muitas ações em marcha, extrapolando até mes- mo os objetivos iniciais, movimento em que a aprendi- zagem do próprio gestor foi significativa. Ao lidar com a escassez de verbas, potencializou os recursos disponíveis e procurou apoio em outras instâncias — MEC e univer- sidade, por exemplo. O Programa Melhoria da Educação no Município pos- sibilitou ganhos, principalmente, ao promover a discus- são sobre os potenciais do município como Cidade Edu- cadora, conforme comenta Mônica de Fátima Silva C. Pereira, Diretora de Apoio Administrativo da Secretaria Municipal de Educação: “Com nossa participação no Programa Melhoria, aprendemos que é mais fácil aproximar escola e comu- nidade mobilizando-as por meio de áreas como a cultura, o esporte, a arte, o folclore e a história, e não apenas pelo currículo formal da educação”. O sucesso desse primeiro projeto tornou possível que, no seguinte, dedicado a Jackson do Pandeiro, ilustre filho da cidade, a Prefeitura fosse mais ágil e generosa na liberação de recursos, como informa a Secretária de Educação Maria Gorett: “Com a Mostra de Teatro, percebemos que as soluções não são imediatas. Foi um aprendizado. Não se tem so- lução pronta para o problema da leitura e da escrita. Agora, iniciamos nova fase. Traçamos nova Avaliação Diagnóstica, elegemos novo foco e traçamos novo Plano de Ação, ao qual chamamos ‘Um olhar sobre Alagoa Grande’. Nesse novo projeto, as escolas foram divididas por áreas, para estudar o nosso município, sua história, sua geografia e sua cultura. Toda a comunidade está participando. E até já estamos pensando no projeto de continuidade, para 2005: ‘Histórias, mitos e causos de Alagoa Grande’”. A experiência da cidade nos deixa uma lição funda- mental: na educação, as causas e as soluções dos pro- blemas estão sempre interligadas. Textos e depoimentos de apoio “A comunidade não tinha a menor idéia do que se passava dentro da escola. Era como se fossem dois mundos: a escola um e a comunidade outro. (...) Estávamos buscando formas de fazer com que os alunos gostassem da escola, mostrando para os Cadernos Cenpec 2006 n. 1 70 ...percebemos que as soluções não são imediatas. Foi um aprendizado. Não se tem solução pronta para o problema da leitura e da escrita. professores que não é preciso ficar só na sala de aula, ser só professor conteudista, mas abrir para atividades extracurriculares também. Daí veio o interesse por resgatar o passado, a cultura, quando começamos a ver resultados em eventos como, por exemplo, a Mostra de Folclore. Aí vimos que as crianças se envolviam... Mônica de Fátima Pereira, coordenadora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação (SME) de Alagoa Grande, PB. “ Tenho 12 anos e participei da apresentação da peça Brasil Negro, que me fez aprender muita coisa. Eu quero continuar a fazer peça de teatro. Aprendi a pensar, a falar alto, a raciocinar tudo na cabeça, a não ter vergonha quando for apresentar a peça. Aprendi a trabalhar em grupo, a não brigar com os colegas e a respeitar o próximo. O teatro me ajudou a melhorar minha leitura e escrita. Micherlaine Nascimento, aluna da Escola Muni- cipal de Ensino Fundamental Anna Elisa Sobreira, sobre a I Mostra de Teatro Estudantil, promovida em 2003 pela SME de Alagoa Grande, PB. “Na escola, já fazíamos trabalhos teatrais. Mas nunca tivemos oportunidade de mostrar para a comunidade. Essa Mostra Teatral nos deu chance de mostrar que somos capazes, que temos talento; e ver nossa peça se desenvolver, sermos elogiados, chamados para apresentar nosso trabalho em outras escolas. É reconhecimento de um bom trabalho, é a certeza que valeu a pena nosso esforço. Rosélia Targina dos Santos, aluna da 4a série da Escola Municipal de Ensino Fundamental Anna Elisa Sobreira, sobre a I Mostra de Teatro Estudantil, promovida em 2003 pela SME de Alagoa Grande, PB. “ O trabalho com oficinas propõe que o conheci- mento seja construído no e pelo grupo, nas funções de produzir os saberes e de aprendê-los. A con- cepção que embasa esse processo pressupõe tare- fas e responsabilidades que envolvem as dimen- sões individual e coletiva. O professor é aquele que acompanha o processo, sempre pronto a ajudar seus alunos a resolver os problemas. Essas premis- sas estiveram presentes durante todo o desenvolvi- mento da Mostra Teatral. Patrícia Oliveira da Silva, pesquisadora da SME de Alagoa Grande, PB. “Por trás da arte cênica, tivemos outro objetivo subjacente. No fundo, a gente estava querendo levantar a auto-estima das crianças, mostrar do que são capazes, que realmente podem fazer muito. Descobrir dentro delas qualidades e habilidades. A partir daí elas passam a se interessar pela escola e em aprender a ler e escrever. Valdéria Lima Alves Silva, coordenadora da equipe gestora do município de Alagoa Grande, PB. “O grande problema, na realidade, é a repetência. Qual a causa da repetência? A criança não lê e nem escreve. Assim, acaba perdendo o interesse pela escola e é reprovada. Se for reprovada, possivel- mente se evadirá. Se permanecer, vai sendo retida, gerando distorção série-idade. Aldenir Barbosa, integrante da equipe gestora do município de Alagoa Grande, PB. “As crianças e jovens mostraram que são capazes de aprender quando o aprender se torna um prazer. Junto com seus professores, com os gestores, com os parceiros, produziram ações ligadas à arte, à educação e à cultura. O pano de fundo era o ato de ler e escrever para a promoção da cidadania, o combate à pobreza cultural e à exclusão social. Aldir Barbosa de Souza, técnico da SME de Alagoa Grande, PB. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 71 Tenho 12 anos e participei da peça Brasil Negro. Quero continuar a fazer teatro. Aprendi a pensar, a falar alto, a raciocinar tudo na cabeça. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 O valor da resistência Não é por acaso que a cidade de Sobradinho tem o mesmo nome da famosa represa construída pela Com- panhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), no Rio São Francisco, norte da Bahia. Acontece que a cidade come- çou a se formar a partir da construção da barragem, ini- ciada em 1973. Foram justamente os acampamentos dos trabalha- dores que participaram da edificação da hidrelétrica que acabaram gerando o núcleo inicial da cidade. A Chesf, na verdade, pretendia retirar os trabalhadores dali ao final das obras e destruir o núcleo de moradias que foi se formando. Aconteceu, porém, que a população resis- tiu e permaneceu no local, acrescida por moradores do antigo distrito de Sobradinho, que se circunscrevia ao município de Juazeiro e que foi uma das diversas locali- dades dragadas pelas águas do reservatório. Outras pessoas foram, com o tempo, acorrendo para aquele lugar, em busca de novas oportunidades de traba- lho e acabaram se agregando a esses moradores originais. E assim, Sobradinho foi crescendo e ganhando cara de ci- dade. Acabou emancipada em 1989, com essa peculiarida- de de ser uma cidade nova, formada por novos morado- res, todos advindos de outras localidades, exceto pelas crianças nascidas ali mesmo. Em parte, isso gera dificul- dades em relação à identidade, pois todos experimentam a ausência do sentimento de pertencerem àquela terra. Por outro lado, sentem-se também no papel de constru- tores da cidade, participantes ativos de sua história. Sobradinho, Bahia. O encontro com a identidade perdida Ana Maria Falsarella Eloísa de Blasis Maria Guillermina Garcia* Sobradinho, BA Dados do município População rural: 1.713 habitantes População urbana: 19.609 habitantes Índice de Desenvolvimento Humano: IDH 0,684 Índice de Desenvolvimento Infantil: IDI 0,561 (Unicef) Indicadores educacionais Analfabetismo na população acima de 15 anos: 44,4% Estabelecimentos públicos de educação: 36 Número de professores: 262 Total de matrículas no município: 6.807 Rendimento escolar no ensino fundamental municipal • Índice de aprovação: 66,6% • Índice de reprovação: 14,4% • Índice de abandono escolar: 19,0% • Taxa de distorção idade–série: 76,6% Fontes: INEP, Censo Escolar 2002; IBGE, Censo 2000; Unicef, 2002. * Ana Maria Falsarella é pedagoga, doutora em Educação, pesquisadora da área de Gestão Educacional do Cenpec e professora no curso de pedagogia da Uniban-SP. Eloísa Barbosa Oliveira de Blasis é pedagoga e pesquisadora da área de Gestão Educacional do Cenpec. Maria Guillermina Garcia é psicóloga e assistente de pesquisa da área de Gestão Educacional do Cenpec. ESTUDO DE CASO Sobradinho 72 Atualmente, o município de Sobradinho conta com cerca de 22 mil habitantes e tem 5.251 alunos matricula- dos no ensino fundamental, atendidos por 262 docen- tes, além de 1.568 alunos matriculados no ensino médio, que reúne 59 docentes (IBGE, 2003). As princi- pais atividades econômicas locais são a pesca e a agri- cultura em condições de solo pouco propícias, con- siderando-se que seus arredores revelam uma paisagem de caatinga, típica do semi-árido brasileiro. A represa é a maior atração turística do município, com uma área de quatro mil quilômetros quadrados de espelho d ́água e capacidade de armazenamento de 34 bilhões de metros cúbicos de água. Nesse cenário, a população de Sobra- dinho busca sua identidade e a esperança de um futuro mais promissor para sua gente. Compromisso com a cultura Em Sobradinho, há grande empenho da Prefeitura para que a população aprimore seu padrão cultural. O Plano Educacional do Município foi elaborado coletivamente, com representantes da educação e da sociedade civil, em 2001. Ele já procurava garantir a infra-estrutura neces- sária à sustentação das ações pedagógicas das escolas, como transporte escolar, formação continuada para os professores, inclusão de horário coletivo de trabalho na jornada docente e incentivo ao estabelecimento de par- cerias. Hoje não existem mais professores leigos em So- bradinho e o município já instituiu um plano de carreira — cargos e salários — para seu magistério. A entrada do Programa Melhoria da Educação do Município em Sobradinho aconteceu em 2003, quando a equipe da Secretaria Municipal de Educação participou de um encontro em Juazeiro, Bahia. Os gestores sobra- denses logo perceberam que a participação no Programa significava muita responsabilidade, habilidade e empe- nho para envolver a comunidade e alimentar parcerias. A primeira providência adotada foi a programação de reuniões sistemáticas para pensar a educação munici- pal, envolvendo professores e parceiros já existentes. Houve, inclusive, preocupação com a continuidade do trabalho: as técnicas que coordenam o Programa são funcionárias de carreira da Prefeitura. Muitas alianças foram formadas, além da feita com o Programa Melhoria, por exemplo, com o IRPAA – Insti- tuto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (www.irpaa.org.br), o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a Colônia de Pescadores. A presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais, Juliana Maria Neto, considera “importante contribuir com os projetos da Secretaria de Educação, pois é pre- ciso conscientizar e educar os jovens para viver com qualidade nessa região, onde a maioria dos alunos são filhos de pescadores e de trabalhadores rurais”. Estabelecer parcerias foi, inclusive, uma ação que se alastrou pelas escolas. As equipes escolares aderiram à idéia e passaram a procurar parceiros em suas comu- nidades. Hoje, o Programa, batizado de Pmem, foi até instituído oficialmente pelo prefeito, com direito a sala, logotipo e três técnicas da SME especialmente designadas a acompanhá-lo. Segundo elas, a grande contribuição do Programa Melhoria foi a proposta de pensar as ações educacionais a partir de um foco, sem o qual corre-se o risco de as ações se perderem, por falta de objetividade. Sobradinho promove o acompanhamento estatístico dos resultados escolares e foi nesses resultados que se fundamentou o diagnóstico sobre a situação educacio- nal da cidade. O problema prioritário foi o da repetência e as ações voltaram-se para seu combate, tomando-se o cuidado de implementar projetos que envolvessem toda a comunidade, de forma articulada. Os gestores tinham claro que ações pontuais e propos- tas apresentadas de cima para baixo, sem envolvimento direto da comunidade, poderiam não trazer resultados. Tinham claro, também, que o envolvimento das pessoas devia partir de sua realidade, seus costumes, sua cultura. Destacamos três ações desenvolvidas em Sobradinho para combater a repetência. 1. Projeto Capacitação em Horário de Estudo Pedagógico Coletivo Antes do Programa Melhoria, a formação dos profes- sores acontecia com ações pontuais — isto é, por meio de palestras e eventos realizados por profissionais “trazidos de fora”. Essa prática mudou. Agora, as coordenadoras do Pmem apostam na própria capacidade para realizar a ca- pacitação dos professores, que passou a ser sistemática, dentro do horário coletivo de trabalho, sob a forma de ofi- cinas, oferecendo-se espaço, tempo e voz aos professores. Segundo as coordenadoras, nesse tipo de formação “o ponto forte é que não é um pacote pronto ao qual os professores têm que se adaptar, mas uma construção coletiva em que os professores participam de todo o Cadernos Cenpec 2006 n. 1 73 processo. Por isso está dando certo”. Nesses encontros, os temas sempre envolvem a prática pedagógica dos professores e o currículo. O Irpaa foi parceiro privilegiado, uma vez que um dos objetivos traçados para a capacitação foi o trabalho na linha de convivência com o semi-árido, mostrando-se aos alunos que, quando se sabe explorar, a região ofe- rece boas possibilidades de sustento. 2. Projeto Dia da Caatinga Esta proposta partiu e foi construída com os profes- sores. Consistiu em estudar com os alunos diferentes temas relacionados à caatinga, como alimentos, vege- tação, água, animais, personagens, costumes, danças e músicas. São temas relevantes, porque as tradições se perdem se não são cultivadas. Os temas trabalhados foram apresentados pelos alunos em um evento especial, em uma quadra pública coberta da cidade, mesma data em que se comemora o Dia da Caatinga. Todas as escolas montaram barracas com objetos típicos, como maquetes de cisternas, filtros caseiros, plantas e animais da região. Até duas galinhas e dois bodes foram levados à quadra, o que tornou as apre- sentações primorosas. Um grupo demonstrou como se dá a construção de cisternas, técnica importante para amenizar a escassez de água na região, enquanto outro destacou a criação de bode, mais adequada para a região que o gado bovino. Também houve danças típicas, música com instru- mentos regionais e pequenas peças de teatro sobre os costumes do semi-árido. Os pais ficaram entusiasmados com a apresentação. Uma mãe avaliou: “Acho muito im- portante meus filhos participarem, porque assim valori- zam os costumes da região”. 3. Projeto Leitura da Cidade Assim como os outros dois projetos, este também foi desenvolvido de forma participativa. Relacionado ao potencial educador do município, seu principal objetivo foi promover uma vivência coletiva que refletisse os de- sejos das pessoas que vivem na cidade, de forma a mobi- lizá-las e envolvê-las na “escrita de sua própria história”. A idéia foi, a partir da realidade dos alunos, aproxi- má-los do lugar em que vivem. Como Sobradinho é uma cidade muito nova, a maioria dos pais de alunos não nas- ceu lá. As coordenadoras do Pmem pensaram: “Talvez essa seja uma das razões da relação distante que muitos mantêm com a cidade”. Perceberam, com essa reflexão, a necessidade de mostrar às pessoas do lugar que não só pertencem como estão construindo a história do muni- cípio e que os espaços públicos pertencem a todos. A experiência começou com um concurso para esco- lher um hino para Sobradinho. O vencedor foi um mora- dor que se revelou poeta e que passou a divulgar o Hino de Sobradinho, em todas as escolas. A partir de então, as escolas, divididas por subtemas, promoveram visitas dos alunos a lugares selecionados como importantes para Sobradinho, ampliando o conhe- cimento deles sobre a história, cultura, características e artistas locais. Enfim, sobre como vive o povo da cidade. Registros foram elaborados, utilizando-se múltiplas linguagens, como escrita, fotografias, maquetes e dese- nho. Ao final foi organizado um evento na biblioteca pública, com a participação de todas as escolas da cidade — inclusive pais e comunidades —, para que os alunos apresentassem o resultado de seus estudos. Foi uma grande mobilização à qual compareceram em torno de quatro mil pessoas, o que tornou a experiência muito significativa para a comunidade. O Projeto Leitura da Cidade tem relação direta com o potencial educador do município. Duas questões esta- vam envolvidas: • a leitura e a escrita, isto é, ler a cidade, conhecê-la, apreendê-la, mostrar o que foi visto para os outros, com registros e depoimentos; • a apropriação da cidadania; o sentimento de perten- cer à cidade e perceber-se como construtor de sua história. Selecionamos o trabalho desenvolvido na Escola 24 de Fevereiro, dia da emancipação de Sobradi- nho, para ilustração. Colônia de Pescadores e Porto Chico Periquito foram os locais visitados por essa escola. No Porto Chico Peri- quito, praia de rio, local de lazer da população, existem barracas de comidas e bebidas. Os alunos fizeram um “acordo” com os barraqueiros. Plantaram mudas de árvores ao pé das barracas e coloca- ram placas de “não jogue lixo no rio e na praia”. Os donos das barracas responsabilizaram-se por seus cuidados. Segundo a diretora Rosimeire de Jesus Barros, “os alu- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 74 nos perceberam que, muitas vezes, não se conhece o lugar onde se vive”. Com esse trabalho puderam conhecer melhor a realidade local e criar vínculos com o espaço físico da cidade. Preocuparam-se com a situação do rio, com o mau uso da água, com o esgoto que não é tratado e com a poluição. Procuraram mostrar às pessoas, prin- cipalmente aos barraqueiros que estão sempre lá, como e por que se deve conservar o rio sempre limpo. A partir da visita à Colônia de Pescadores, os alunos fizeram um estudo sobre o uso do rio na agricultura e na pesca e sobre como as pessoas tiram dele seu sustento. Assistiram, inclusive, a uma palestra feita por uma pes- cadora que, com sua profissão, garante o sustento da família e puderam entender que é possível uma mulher assumir um ofício considerado masculino. A professora Josineide Rodrigues dos Santos destaca que o Projeto Leitura da Cidade mudou a visão dos alu- nos sobre Sobradinho. O mesmo aconteceu com relação ao gosto pela escrita: “Os alunos se sentiram valorizados nas suas produ- ções, pois a mostra que realizamos foi visitada por muitas pessoas e houve troca de experiências, o que repercutiu na sala de aula. As crianças passaram a se envolver com mais prazer nas atividades de leitura e escrita. Isso tam- bém acontece por estarem trabalhando conteúdos signi- ficativos, que fazem parte da sua realidade”. Um fato que merece destaque é a relação da atual gestão municipal com a ONG Projeto Sobradinho. A enti- dade trabalha com os alunos em horários opostos aos das escolas, desenvolvendo atividades esportivas, artísticas e culturais. Os coordenadores dessa ONG pertencem ao partido de oposição à atual gestão local. Nem por isso a ONG deixou de participar do Projeto Leitura da Cidade, incentivando os alunos das escolas a conhecerem seu trabalho. Assim, diferentes posições políticas não se transfor- maram em fatores impeditivos a um trabalho coletivo vol- tado para melhorar a educação na cidade. Sobradinho, município jovem e com população vinda “de fora”, na maioria, criou uma ação que está estimulando em seus habitantes a noção de pertencerem àquele lugar, apro- fundando laços e estabelecendo referenciais para uma identidade local — o que é da maior importância para qualquer comunidade. Textos e depoimentos de apoio O São Francisco lá prá cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia Do beato que dizia que o sertão ia alagar. O sertão vai virar mar Dá no coração O medo que algum dia O mar também vire sertão. Trecho da letra da canção “Sobradinho”, de Sá e Guarabira. “O Projeto Leitura da Cidade despertou os professores para o trabalho com os espaços da cidade, que fazem parte da vida dos alunos, fazendo desses espaços lugares de aprendizagem. Cleusa Gomes Sampaio, professora da Escola ” Municipal Maria Ribeira, de Sobradinho, BA. “O Projeto Leitura da Cidade mexeu positivamente com a auto-estima dos alunos. Os alunos do EJA puderam perceber a grande diversidade e a ‘mistura de culturas’ que existe na cidade. Quando conhece- mos é que podemos valorizar e investir no lugar. Mônica Lopes, professora do Centro Educacional ” Luiz Eduardo Magalhães, Sobradinho, BA “Na sala de aula, antes de realizar as visitas, os alunos estudaram diversas formas de fazer pesquisa e de registrá-la. Essa já foi uma experiência positiva, pois algumas dificuldades foram superadas, já que a leitura e a escrita estavam dentro de um contexto de interesse dos alunos. Tereza Cristina, professora da ” Escola Paulo Pacheco, de Sobradinho, BA. “O questionamento de ‘por que nossos alunos não estão aprendendo e, conseqüentemente, repetem’ levou os professores a perguntarem se um dos problemas não seria o currículo. E foi a partir daí que decidiram revê-lo, torná-lo adequado à realidade do aluno e, para isso, contam com a proposta da convivência com o semi-árido. Ione Queiroz, integrante do ” Programa Melhoria em Sobradinho, BA. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 75 compreensão do papel educativo da cida- de e a possibilidade de torná-la educado- ra implica a realização da utopia de, intencionalmente, transformarmos as relações e as formas da cidade em processo indistinguível e dialético de transformação da própria sociedade. A cidade como espaço de realiza- ção e concretização da produção ma- terial e simbólica dos seres huma- nos, em nossa época, abriga, em seu território, os frutos da interação das sociedades com seu patrimô- nio ambiental, cultural e urbano, bem como as desigualdades ori- ginárias das relações sociais que marcam este momento do capitalis- mo. Desigualdades que têm roubado dos cidadãos o direito à cidade. Nosso foco, o que nos orienta, quando fa- lamos em transformação, é discutir a cidade como direito, especialmente daqueles que não a têm como deveriam. Tempo e cidade Essa perspectiva, aparentemente óbvia, implica, entre- tanto, lançarmos nosso olhar para um horizonte mais amplo que o do atendimento às necessidades materiais imediatas — o que já se constitui, per si, em tarefa extre- mamente complexa e complicada em um país historica- mente dependente como o nosso — um horizonte que possa contribuir para que desvelemos o movimento de Cadernos Cenpec 2006 n. 1 77 Tempo, cidade, Selma Rocha* educação. ARTIGO * Selma Rocha é historiadora; foi secretária de Educação da Prefeitura de Santo André e chefe de gabinete da Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo. A absolutização e homogeneização do tempo e, por conse- guinte, das identidades e diferenças que se constituem num dos pilares de sustentação das desigualdades sociais. Com efeito, a globalização econômica como poten- cialização do processo de concentração do capital, de extensão e intensidade nunca antes conhecidas pela humanidade, instaura uma lógica segundo a qual o tempo presente é o único tempo real, esvaziando ou instru- mentalizando o passado e o futuro. É ao presente que os homens devem hipotecar o futuro e as energias. A cidade passa, dessa forma, à condição de lugar on- de o relevante é a sobrevivência, onde a fragmentação da percepção faz com que as relações e a paisagem urbana, apreendida pelo olhar, sejam guindadas à condição de espetáculo por meio de inúmeras formas de violência. Esse contexto, identificado por muitos como pós-mo- derno — que impõe situações e imagens percebidas de maneira rápida e fugaz, como uma sucessão de fatos e situações, sem nexo e sentido — ao reproduzir-se, termi- na por subtrair a percepção do movimento da história. “Esquecer o passado é negar toda efetiva experiência de vida; negar o futuro é abolir a possibilidade do novo a cada instante. Mais ainda, as idéias de justiça, liber- dade, alteridade, pensamento tornam-se abstrações va- zias no espaço e no tempo, a partir do momento em que qualquer ação já se sabe ‘eternamente feita e absoluta- mente irreparável”.1 A cidade pode constituir-se, pois, no lugar da morte da história. Se ousarmos, contudo, desconstruir a lógica que iguala o tempo à velocidade e o aprisiona nas tramas imperativas do mercado, teremos então a possibilidade de reconhecer e compreender outros tempos que são subordinados aos interesses que produzem, a cada dia, a desigualdade, a exclusão e a opressão de homens e continentes. Tempos que, mesmo domesticados pelo capital, sal- tam por meio da memória e sobrevivem de maneira si- multânea e recorrente nos cultos, nos mitos modernos e nas diversas experiências culturais que também defi- nem o ser da cidade. “As formações simbólicas (cantos, poemas, danças) e todas as manifestações litúrgicas desenrolam-se em um tempo existencialmente pleno. Mais rigorosamente: são essas formações que tornam o tempo existencial- mente pleno.” É um tempo que a presença humana qualifica. É um tempo no qual a ação dos afetos e da imaginação produz uma lógica própria, capaz de construções analógicas belamente ordenadas (...). Se a economia procede mediante um jogo que alinha os mecanismos da produção, da oferta e da demanda, dispondo-os em séries, logo, medindo-os (pois o tempo vale produção que, por sua vez, vale dinheiro), isto não significa que esta lógica seja a única regra interativa que aproxime estavelmente os homens em sociedade”.2 Tal constatação pode ser observada nas relações hu- manas que, ao formarem o ser humano, engendraram também o prenúncio das cidades. Cidade e tempo Assim, temos que os homens primitivos do paleolítico, antes mesmo de experimentarem a fixação em um terri- tório para gerar a produção de sua sobrevivência e su- perar a condição de coletores, já estabeleciam túmulos para o quais retornavam, “a fim de comungar com os es- píritos ancestrais ou de aplacá-los”.3 Também as cavernas se constituíram em lugar de re- torno dos homens e mulheres para a manifestação artís- tica e a realização de rituais. “Nesses antigos santuários paleolíticos, como nos primeiros túmulos e montes sepulcrais, encontramos, se existem, os primeiros indícios de vida cívica, prova- velmente muito antes de poder sequer suspeitar-se de qualquer agrupamento permanente em aldeias.(...) Ali, no centro cerimonial, verificava-se uma associação dedicada a uma vida abundante; não simplesmente um aumento de alimentos, mas um aumento do prazer so- cial, graças a uma utilização mais completa da fantasia simbolizada e da arte com uma visão comum de uma vida melhor e mais significativa, ao mesmo tempo em que esteticamente atraente (...) Com efeito, quem pode duvidar de que no próprio esforço de assegurar um su- primento abundante de alimento animal — se era essa Cadernos Cenpec 2006 n. 1 78 Da caverna à cidade, o homem foi instituindo práticas e relações sociais que permitiram maior domínio sobre o espaço e o tempo. realmente a finalidade mágica da pintura e do rito —, a própria representação da arte acrescentou algo tão essencial à vida humana quanto as recompensas car- nais da caça. Tudo isso tem a ver com a natureza da cidade histórica.”4 O lugar da cerimônia constitui-se, dessa forma, no espaço de interação entre passado e futuro, de encontro entre a vida e a morte, tão necessários à sobrevivência quanto a água e o alimento. Da caverna, como espaço de proteção física e espiri- tual, ao acampamento; da aldeia, onde o homem trans- forma a natureza por meio de instrumentos e constrói santuários, às cidades com seus templos, mercados e fortificações; o homem foi instituindo um corpo de prá- ticas e relações sociais que permitiram maior domínio sobre o espaço e o tempo, por meio dos transportes e da comunicação; o desenvolvimento da técnica e a am- pliação da produção agrícola; a sofisticação dos meios de troca; o surgimento de formas específicas de apropria- ção da produção, de organização da sociedade e configu- ração do poder do homem sobre o homem, seja por meio do controle do Estado ou da guerra. À medida que as sociedades se configuravam, as an- tigas cidades do Egito e da Mesopotâmia construíam re- presentações de si mesmas e explicações sobre o mundo dos homens e dos deuses, como forma de perpetuar a civilização humana. A temporalidade, as crenças, as idéias, os valores e a expressão estética deixaram mar- cas inigualáveis nos monumentos e nos templos. A cultura material e escrita deixada por essas civili- zações, não obstante as extraordinárias dificuldades in- terpostas pelo tempo e pelos homens, não deixa de con- tinuar inspirando as sociedades e desafiando o trabalho de arqueólogos e historiadores. Talvez, por isso, tenham eternizado a dimensão educativa de suas experiências. Mas foi na Grécia que a dimensão educativa da cidade tomou a forma de intenção educadora. A pólis grega foi um espaço onde, intencionalmente, realizou-se a educa- ção dos cidadãos. As várias cidades-estado, por sua autonomia, tinham como condição de existência a liberdade — “liberdade coletiva”, como demonstrou Glotz. Liberdade exercida em nome de um passado comum que tecia os laços entre os membros da cidade. “A terra sagrada da pátria é o recinto da família, os túmulos dos antepassados, os campos de que se conhe- cessem todos os proprietários, o monte aonde se vai cor- tar lenha, apascentar o rebanho ou recolher mel, os tem- plos onde se assiste aos sacrifícios, a acrópole aonde se sobe em procissão; é tudo o que se ama, tudo o que é motivo de orgulho, tudo o que cada geração quer deixar mais sedutor do que quando o recebeu. Uma cidade, uma única cidade — algumas vezes ínfima —, e é por isso que Heitor corre para a morte, é por isso que o es- partano considera o coroamento da ‘virtude’, ‘tombar na primeira fila’, é por isso que os combatentes de Sala- mina se lançam à abordagem ao som do peã e que Só- crates bebe a cicuta em respeito à lei”.5 Quando Atenas viveu o apogeu de sua vida política e cultural no século V a.C., o exercício da liberdade e, portanto, da soberania, pressupunha a igualdade, como condição para esse seu exercício.6 A isonomia, igualdade perante a lei, e a isêgoria, direito igual de falar na As- sembléia (Ekklesia), constituíram-se nos marcos de re- ferência da democracia, principal instrumento de defini- ção dos destinos da pólis. Apesar de o direito de cidada- nia ser limitado a poucos (mulheres, estrangeiros e es- cravos não eram cidadãos), a experiência democrática lançava sobre o futuro a perspectiva de solidariedade entre as gerações, à medida que faziam prosperar a ci- dade para os descendentes de antepassados comuns. Por ser a lei soberana a que reina em companhia da razão, o logos, os destinos da democracia ateniense e, portanto, da pólis, foram objetos de intensa reflexão por parte dos pensadores gregos. A filosofia se debruçou sobre as contradições e insuficiências da democracia e, ao fazê-lo, homens como Platão ou Aristóteles, em diferentes momentos da história, contribuíram para que a busca da verdade estimulasse o compromisso dos cidadãos com a pólis, no âmbito das escolas filosóficas ou na Ágora. Depois que o Império Romano do Ocidente desagre- gou-se e que a penetração dos chamados povos bárba- ros se fez presente nos territórios de gregos e romanos, foi nos mosteiros que a pólis sobreviveu: “O laço mais próximo entre a cidade clássica e a cidade medieval foi aquele então formado não pelos edifícios e costumes sobreviventes, mas pelo mosteiro. Foi no mos- teiro que os livros da literatura clássica foram transferi- dos de papiros em decomposição para o resistente per- gaminho; foi ali que a língua latina passou a ser falada na conversa diária e escapou um pouco à diversificação e mútua ininteligibilidade do italiano, do espanhol, do francês, do romeno, e de seus intocáveis dialetos regio- nais e variantes de aldeia; foi ali, pelo menos nas aba- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 79 dias beneditinas, que as práticas adiantadas da agricul- tura romana e da medicina grega foram conservadas, com uma correspondente elevação na produtividade e na saúde.”7 O desenvolvimento da cidade medieval, em muitos aspectos, superou a pólis no mundo ocidental. A maior parte de seus habitantes eram homens livres e, exceto em alguns casos, “morador da cidade e cidadão eram, agora, sinônimos”.8 Durante os dez séculos que configu- raram a chamada Idade Média, a Igreja, ao dominar todos os aspectos da vida medieval, tornou a fé e o cristianismo o critério supremo de verdade. O trabalho de demons- tração racional dessa verdade foi obra do conhecimento filosófico e da educação identificada com a persuasão. Os processos de trabalho e produção (que, ao ligarem o homem à terra, tornaram-no livre), o temor e a neces- sidade de proteção, as obrigações servis e a educação para a fé cristã configuraram uma dimensão de tempo, uma noção de ordem, de regularidade, uma ética (em que a disciplina interior e a noção de caridade tiveram destaque) e estética das cidades que tiravam da natu- reza e dos céus sua maior inspiração. O desenvolvimento do comércio e do capitalismo co- mercial — e todo o progresso técnico e científico que respondia às necessidades da economia e da burguesia nascentes — prepararam outras e novas cidades que, a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, começaram a abrigar relações e contradições muito pró- ximas à experiência que nos é mais imediatamente fa- miliar. A racionalização dos processos produtivos — por meio de uma divisão social do trabalho que aparta, definitiva- mente, o artesão de seus meios de produção — a for- mação do proletariado, a quem só resta a venda da sua força de trabalho, e o advento de novos padrões de pro- dução e consumo transformam a realidade das cidades européias. O tempo da vida social e o tempo interno do indivíduo passam a ser ordenados pelo tempo e pela lógica do trabalho e da tecnologia. Na primeira metade do século XIX, “as atividades urbanas haviam perdido qualquer vínculo com o tempo da natureza; de há muito se en- contram subordinadas ao tempo abstrato, ao dia impla- cavelmente dividido em 24 horas (...) o tempo abstrato e produtivo, o único capaz de constituir a sociedade dis- ciplinada de ponta a ponta”.9 Em Londres e Paris, no século XIX, a classe operária passa a conformar a multidão de pobres explorados que, ao integrar e redefinir a paisagem urbana, reeduca o olhar e a percepção dos homens e da cidade. A vida coti- diana, como indica Stella Bresciani, assume a dimensão de um permanente espetáculo. Espetáculo que atemoriza. O olhar da burguesia e dos governantes, ao relacionar a pobreza ao vício e à degradação humana, teme, na Ingla- terra, o contágio moral, e, na França, a ameaça política. Tal temor nada previa, contudo, da ameaça civilizatória que o desenvolvimento do capitalismo poderia repre- sentar, graças ao crescimento de extraordinárias forças produtivas e destrutivas. Se o desenvolvimento do capitalismo, desde o final do século XIX, propiciou concentração de capital, poder e conhecimento tais que levaram a humanidade a duas guerras mundiais, capazes de destruírem cidades e suas populações, as lutas da classe operária, desde a segunda metade do século XIX, as revoluções nacionais e socia- listas que marcaram o século XX e a experiência demo- crática contribuíram para que as cidades se tornassem espaços de profundos conflitos, mas também da con- quista e afirmação de direitos sociais, civis e políticos. Cidade e educação Mas o que pode nos reservar o século XXI se, nas ci- dades, verificamos a cada dia a tensão entre fazer so- breviver nossos direitos e a tentativa de destruí-los; se constatamos que “além da exploração dos homens havia algo pior: a ausência de qualquer exploração — como deixar de dizer que, não sendo sequer exploráveis, nem sequer necessárias à exploração, ela própria inútil, as mul- tidões podem tremer, e cada um dentro da multidão?”.10 Como lutar, nas cidades, para que os homens não se tornem “supérfluos”, quando as forças e os poderes que engendram as legiões de desempregados, miseráveis e abandonados em todo mundo parecem invisíveis às ci- dades e às próprias nações? Como fazer sobreviver o ambiente natural e urbano, os monumentos, os prédios, os espaços públicos, os arquivos, a memória e a história, se vivemos sob a tira- nia do presente, do imediato, do fugaz e do veloz? Ocorre que a “cidade tornou-se capaz de transmitir de geração a geração uma cultura complexa, pois pôde reu- nir não só os meios físicos, mas também os agentes hu- manos necessários para transmitir e aumentar essa heran- ça. Este continua sendo o maior dos dons da cidade”.11 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 80 As cidades — por deterem o potencial de registro da história dos homens e também por efetivamente a re- gistrarem — denunciam os fracassos de nossa civiliza- ção, mas pelos diferentes níveis de experiência que agregam, pela diversidade cultural que abrigam, pelos tempos distintos com os quais convivem e, sobretudo, por suas próprias contradições pode, como possibilida- de histórica, hospedar e promover movimentos de trans- formação que logrem conquistar e instituir mudanças es- truturais mais profundas. Dessa forma, a cidade pode se constituir no lugar on- de os direitos se materializem na criação de espaços e relações que instaurem e oportunizem outros tempos: da luta e realização do trabalho, do lazer e da contemplação, da troca de experiências, da recriação de valores, da efeti- vação da solidariedade, da mobilização da memória, da reconstituição da história, da afirmação de identidades, da discussão democrática de problemas e alternativas. É preciso, uma vez mais, evocar em nosso auxílio a experiência dos gregos — especialmente se considerar- mos que, hoje, somos homens e mulheres livres, deten- tores, em tese, todos, de direitos de cidadania. Se o fa- zemos, é porque a reflexão e o diálogo públicos para decidir os destinos da pólis não nos parecem superados como experiência histórica pela democracia representa- tiva. Ao contrário, eles podem e devem se aliar a ela. Sublinhe-se, contudo, que a discussão sobre os rumos da cidade deve implicar mais que a discussão da ação imediata. É preciso tornar visíveis os processos e mecanismos que se encontram subjacentes às suas principais contradições. Fundamentalmente, nisso reside a possibilidade edu- cadora da cidade. Muito além de trazer benefícios pon- tuais às populações — registre-se outra vez: não secun- dários —, as experiências de participação devem per- mitir que os cidadãos vejam os cidadãos, que os cida- dãos vejam a cidade, reconheçam seus problemas e compreendam sua história e as relações que a confor- mam. Referimo-nos à experiência de participação como processo de educação social e política que contribui para a auto-organização da sociedade, especialmente dos setores excluídos. Para tanto, é imprescindível que as várias identida- des presentes na vida urbana tenham, verdadeiramente, direito e espaço de expressão, manifestação, discussão e realização: as várias etnias, especialmente os negros; as várias classes, especialmente os pobres; os dois gê- neros, especialmente as mulheres; as várias gerações, especialmente as crianças e os idosos; os portadores de deficiências, os homossexuais, pessoas de todos os credos e religiões. É preciso que os interesses, necessidades e contra- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 81 dições se tornem claros e públicos. Falamos, pois, da instituição de espaços onde os conflitos se manifestem. Não devemos temê-los ou confundi-los com destruição, se a democracia nos inspirar como conduta política e como referência ética e, ainda, se não reduzirmos a ação política à mera estratégia de reprodução do poder, nos moldes da velha clientela. Referimo-nos a espaços que permitam tornar a cidade deste novo século um lugar onde o debate sobre o desen- volvimento econômico não esteja apartado das princi- pais questões relativas ao desenvolvimento humano e ecológico, e de tudo o que possa fazer sentido para a qualidade e realização do cidadão. Trata-se de estabe- lecer a negociação, propiciar o estabelecimento de com- promissos e a adoção de propostas, seja pelos poderes públicos, seja pelos vários segmentos da sociedade. Por outro lado, enfatizamos, a compreensão da cidade e dos cidadãos não poderá ser plena se não houver a valorização e a manifestação da memória como fenôme- no social e individual. A memória liberta o tempo e o torna, como afirma Alfredo Bosi, “reversível”. “A memória articula-se formalmente e duradouramen- te na vida social mediante a linguagem. Pela memória, as pessoas que se ausentaram fazem-se presentes. Com o passar das gerações e das estações esse processo ‘cai’ no inconsciente lingüístico, reaflorando sempre que se faz uso da palavra que evoca e invoca. É a linguagem que per- mite conservar e reavivar a imagem que cada geração tem das anteriores. Memória e palavra, no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo reversível. (...) O diálogo com o passado torna-o presente. O preté- rito passa a existir, de novo”.12 Entretanto, a memória só se realiza por meio da co- municação na vida em sociedade. Sem o domínio da linguagem, não há memória; se não há memória, não há história; se não há história, resta- nos o imperioso tempo e a lógica do mercado como os ordenadores da cidade e desfiguradores do humano. Tudo isso nos remete aos processos formais, que se pretendem educadores, na cidade. Tudo isso nos remete à escola e ao papel da educação. Desde logo, deixamos claro que a nossa preocupa- ção fundamental não se resume à garantia de vagas nos vários níveis e modalidades de ensino, ainda que, óbvio, esse direito inalienável dos cidadãos seja fundamental ou, ainda, a garantia de condições materiais que favo- reçam a permanência de alunos na escola. Isso porque entendemos que quantidade e qualidade da educação estão indissociavelmente ligadas. Ao falarmos em memória e linguagem, tocamos natu- ralmente em uma das questões centrais para a cidade, para a nação e para a civilização: situarmos ou redefinir- mos o papel social da educação. De pronto, e sem temermos a simplificação, afirma- mos que tal papel nada tem a ver com os processos de reprodução de informações e conhecimentos que remon- tam às necessidades do capitalismo desde a Revolução Industrial e que, de diferentes maneiras e formas, sobre- viveram como paradigmas em várias partes do planeta, inclusive no Brasil. As políticas de Estado — movidas que foram, de um lado, por outras prioridades econômicas que não a edu- cação e, de outro, pelos supostos interesses do merca- do — comumente, adotaram padrões de qualidade que, por seus supostos, visaram homogeneizar os conheci- mentos dos educandos para atender objetivos nem sem- pre relativos ao seu desenvolvimento e emancipação cognitiva e intelectual. Esse esforço de homogeneização tem envolvido a existência de currículos e processos de avaliação pré- determinados que — sem considerar a identidade de nossos alunos, suas experiências sociais e culturais, seus ritmos e tempos — estabelecem padrões que, quando não alcançados, levam à desqualificação e a se subesti- marem as potencialidades. Às vitimas do chamado “fra- casso escolar”, resta a evasão ou as chamadas ações compensatórias que nada compensam, mas naturalizam o fracasso e ainda atribuem sua responsabilidade ao alu- no ou à sua condição de pobreza. Por todo o exposto, parece-nos necessário indicar que compete à educação, e à escola como instituição, cons- truir conhecimentos e valores; criar e recriar a cultura e contribuir para que os alunos se percebam e se consti- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 82 As cidades denunciam os fracassos de nossa civilização, mas podem também promover movimentos de transformação estrutural da sociedade. tuam como sujeitos do processo educacional e da vida em sociedade. Isso implica desenvolver inúmeras capacida- des. Percepção, identificação, comparação, representação, abstração, generalização e comunicação são algumas delas, entre outras necessárias, para que as gerações que passam pela escola possam exercitar a reflexão, a criati- vidade e a elaboração dos pensamentos e das idéias de forma livre, crítica e responsável. Para tanto, em primeiríssimo lugar, é preciso tornar o educando o centro do trabalho educacional: investigando a sua identidade, compreendendo como apreende e re- presenta a realidade, como se comunica, como se movi- menta, como constrói sua cognição e sua afetividade. Tudo isso para que a escola possa identificar suas neces- sidades reais e ligá-las aos novos conhecimentos a serem explorados, em tantos campos quantos forem possíveis. Ao concebermos tal papel para a educação, supomos uma pedagogia que, além de dialógica, seja capaz de lidar com as características e ritmos de cada um. Uma pedagogia que redefina os processos de construção e realização do currículo e da avaliação; contribua para que se desvelem as relações de poder que lhe são subjacentes e concorra para que a dúvida, a curiosidade epistemo- lógica e a elaboração, nas escolas e espaços de gestão da política educacional, se tornem práticas sistemáticas e permanentes. Essa perspectiva, sumariamente indicada, novamente nos remete à cidade. Ao superar os mecanismos de pura reprodução, a escola pode lançar-se à incrível aventura de instigar o olhar e o pensamento; de promover o domínio da lingua- gem (ou das linguagens); de ensejar a criação, a comu- nicação e a expressão, e aproximar crianças, jovens e adultos da percepção e interação com o mundo e com os tempos que a cidade encerra. Homens que se edu- cam na escola e na vida da cidade talvez ousem não se tornarem supérfluos. A cidade pode também invadir a escola e os currícu- los. Contudo, não apenas para confirmar a pobreza ma- terial e cultural dos educandos, pois em muitos casos a compreensão da cidade e da vida das crianças no terri- tório tem função puramente instrumental: demonstrar o quanto lhes falta para ser. A cidade pode entrar na sala de aula para ensinar matemática, química ou biologia; ecologia e geografia; respeito e cooperação. Ela pode entrar para mobilizar os conhecimentos de maneira multidisciplinar e mostrar o quanto as ciências, ao se desenvolverem, tornaram possível tanto uma melhor compreensão da realidade, quanto fragmentação da percepção — e, ainda, a defesa da vida e o desencadear da morte. Entretanto, os cidadãos e a cidade podem também ser desvendados e descobertos no universo simbólico, cognitivo e afetivo de cada criança, jovem ou adulto por meio da educação. Talvez resida aí uma das primeiras possibilidades de realização do respeito na escola, na cidade; à cidade e aos cidadãos. No século XXI, talvez aí também se descubra o futuro da cidade. Referências bibliográficas 1 NOVAES, Adauto. Sobre tempo e história. In: Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 9. 2 BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 27. 3 MUNFORD, Lewis. A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 13. 4 MUNFORD, Lewis, 2004, p. 16. 5 GLOTZ, Gustave. A cidade grega. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1980, p. 24. 6 GLOTZ, Gustave, 1980, p. 108. 7 MUNFORD, Lewis, 2004, p. 271. 8 MUNFORD, Lewis, 2004, p. 344. 9 BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no Século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 18. 10 FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997, p. 16. 11 MUMFORD, Lewis, 2004, p. 614. 12 BOSI, Alfredo, 1992, p. 29. Bibliografia BOSI, Alfredo. O Tempo e os tempos. In: Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetácu- lo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1982. FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997. GLOTZ, Gustave. A cidade grega. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1980. MUMFORD, Lewis. A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 2004. NOVAES, Adauto. Sobre tempo e história. In: Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar. São Paulo: Martins Fontes, 2004. SEVCENKO, Nicolau. Perfis urbanos terríveis em Edgar Allan Poe. Cul- tura e Cidades. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 5, n. 8/9, p. 69-83, set. 1984/abr. 1985. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 83 Andando contra o vento, desafiando o sofrimento de um povo marcado pela desigualdade social e acreditando em suas potencialidades, o projeto Grãos de Luz e Griô é um grito de resistência e um incentivo para aqueles que, do sertão do Nordeste às periferias das grandes cidades, acreditam que um novo mundo é possível. E que a tarefa de interpretar e transformar esse mundo passa pela educação, cultura e pela participação da co- munidade na resolução dos seus problemas. A cidade A cidade de Lençóis, na Bahia, sofreu intensa crise econômica com o final do ciclo da extração de diamantes. A partir da década de 1980, muda sua vocação econômica e social para o turismo, por conta da sua exuberante be- leza natural. Essa mudança, associada a uma crise polí- tica na década de 1990, gerou impactos sociais e cultu- rais complexos a serem superados pela população local. Hoje, com aproximadamente 9.600 habitantes, a maioria das famílias vive na zona rural, em comunida- des ribeirinhas de rios poluídos por agrotóxicos das fazendas e pelos esgotos da cidade, sem infra-estrutura urbana e excluída das principais atividades econômicas do município. A organização social e o projeto Grãos de Luz e Griô A associação Grãos de Luz nasce de uma iniciativa as- sistencial para distribuir alimentos a famílias de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social na área urbana. Contando com o apoio de outras organiza- ções sociais locais e a partir de experiências pedagógicas Cadernos Cenpec 2006 n. 1 84 Lençóis, Bahia. Grãos de Luz e Griô Um personagem africano mobiliza a comunidade contando histórias Alexandre Isaac* Lençóis, BA Dados do município População rural: 2.514 habitantes População urbana: 6.396 habitantes Índice de Desenvolvimento Humano: IDH 0,614 Índice de Desenvolvimento Infantil: IDI 0,353 (Unicef) Indicadores educacionais Analfabetismo na população acima de 15 anos: 55,1% Estabelecimentos públicos de educação: 41 Número de professores: 120 Total de matrículas no município: 3.563 Rendimento escolar no ensino fundamental municipal • Índice de aprovação: 57,2% • Índice de reprovação: 13,0% • Índice de abandono escolar: 29,8% • Taxa de distorção idade–série: 72% Fontes: INEP, Censo Escolar 2002; IBGE, Censo 2000; Unicef, 2002. ESTUDO DE CASO * Alexandre Isaac é pesquisador do Cenpec das áreas de Educação e Comunidade e Currículo e Escola. Lençóis desenvolvidas na Universidade Federal da Bahia — Facul- dades de Psicologia, Educação e Dança — a organização passa a desenvolver oficinas educativas e culturais para crianças, adolescentes e jovens, envolvendo as famílias e a comunidade. A missão da organização Grãos de Luz é semear edu- cação e cultura para o fortalecimento da identidade bra- sileira, oferecendo atividades complementares à escola para crianças e jovens de sete a 24 anos, promovendo uma educação afetiva, cultural e ecológica, a partir dos princípios éticos de igualdade, liberdade, solidariedade, participação e diversidade. O trabalho desenvolvido pela organização influencia a política pública educacional, por meio da articulação com os Conselhos Municipais — Educação, Tutelar, dos Direitos da Criança e do Adoles- cente (CMDCA) — e com o próprio poder público — Secretarias de Governo e Educação. A importância do trabalho político-pedagógico da organização, influenciando a política pública municipal, foi verificada e confirmada em várias instâncias: • na discussão e apresentação do plano de cargos e sa- lários do magistério público de Lençóis; • na elaboração e execução da Lei Municipal que cria o Conselho Tutelar; • na elaboração e execução de plano emergencial de ação do CMDCA, aprovando três importantes projetos com recursos do Fundo da Criança e do Adolescente; • na criação e implantação do Prêmio Grãos e Griô pela Secretaria de Educação, em parceria com a organiza- ção Grãos de Luz, que premia projetos pedagógicos de educadores municipais que contribuem para a me- lhoria da qualidade do processo de ensino/apren- dizagem; • na construção do currículo de educação junto à co- munidade escolar e ao conselho de educação. O projeto Lá nos sertões da África, entre aldeias distantes, caminham homens e mulheres aprendendo e ensinando fatos históricos e culturais daquela região. São Griôs... ... quando o Griô chega nas aldeias, pais, mães e avós e as crianças sentam na roda. Está aberto o ritual do contador de histórias. O Griô (Griot em francês) é um personagem do noro- este da África, onde convivem as etnias bambaras, fulas, tucolores e dogons, que caminha entre as aldeias para contar e ouvir as histórias de seu povo, valorizando e preservando as tradições orais da cultura local. Quando um Griô morre, uma biblioteca se queima. O Projeto “Grãos de Luz e Griô”, valendo-se das tradi- ções afro-indígenas do povo de Lençóis, na Bahia, recriou esse personagem por meio da atuação dos educadores da Associação Grãos de Luz. O Velho Griô baiano caminha entre 19 escolas da zona rural e duas, da zona urbana, contando e ouvindo histórias, dançando e cantando as brincadeiras de roda. Essa atividade envolve as crianças, professores, pais, avós, os Griôs da cultura lençoense e o próprio velho Griô, que é um educador da Associação Grãos de Luz. Nos trabalhos desenvolvidos pela Grãos de Luz, as crianças, adolescentes e jovens, além de participarem das oficinas com o Velho Griô e os Griôs da cultura local, desenvolvem diversas atividades complementares à es- cola. As crianças de sete a 16 anos participam das ofici- nas de identidade, dança e música popular, artesanato de reciclagem e reutilização, artes visuais, brinquedos e brincadeiras. Os jovens acima de 16 anos participam do projeto de cooperativismo, do qual recebem uma bolsa de estudo para se dedicarem à formação em gestão, economia solidária, computação, design gráfico e inglês, além de participarem da cooperativa que produz e comercializa belíssimos artesanatos que valorizam a cultura popular e a natureza local — 50% da bolsa é proveniente da co- mercialização dos produtos e é definida e dividida cole- tivamente. Alguns trabalhos da cooperativa são produtos didáticos, distribuídos nas escolas municipais. O conteúdo pedagógico das histórias, músicas, dan- ças e brincadeiras revela uma concepção de aprendiza- gem que valoriza os aspectos cognitivos e afetivos, pro- movendo a sociabilidade, o senso crítico e a autonomia das crianças e adolescentes. Nas rodas de brincadeiras, as crianças aprendem, por meio de belas histórias, a va- lorizar as tradições orais, as discussões coletivas, a cuidar da natureza e a respeitar as diferenças de gênero, gera- ção e étnico-culturais. Todas as atividades desenvolvidas pelo Projeto Grãos de Luz e Griô contribuem para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças e adolescen- tes, envolvendo suas famílias, as escolas e a comunidade. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 85 Existe um reconhecimento público da importância da ação da ONG, tanto do ponto de vista do atendimento direto às crianças e adolescentes, quanto do papel de liderança que ela exerce junto às outras organizações sociais e ao poder público local. Esse reconhecimento extrapolou a cidade de Lençóis quando o projeto “Grãos de Luz e Griô” ganhou visibili- dade ao ser exibido em programas de televisão de grande audiência; ao ser reconhecido pelo próprio Unicef da Bahia, que selecionou o projeto entre os três melhores do Estado; ao ser selecionado pelo Instituto do Patrimô- nio Artístico Histórico e Cultural da Bahia (IPHAN) como um projeto de relevância em Educação Patrimonial; ao participar de diversas monografias de mestrado, douto- rado e disciplinas de universidades da região, do Brasil e até do Canadá; ao receber o primeiro lugar no Prêmio Itaú Unicef 2003 em todo o Brasil e, ainda, ao ser eleito pelo Ministério da Cultura como um dos Pontos de Cul- tura do Brasil. O projeto também tem representado o Brasil em Fes- tivais Internacionais de Artes Populares, como em Gua- rujá (São Paulo) e em La Coruña (Espanha). A vida como ela é... (a fala das pessoas) Aos educadores que resistem ao universo de faltas... E inventam, sonham e fazem um outro mundo. “— Vocês conhecem o Velho Griô ? — É lógico... Ele conta as nossas histórias... Ele aprende com a gente e com os mais velhos e depois conta de novo. — A brincadeira que ele aprende aqui ele apresenta em outro lugar, e assim por diante. Tamires (16), Itailma (17), Joelma (17), adolescentes ” das Oficinas Cooperativas do Grãos de Luz “— Aqui, na cooperativa, todos sabem fazer de tudo, apesar da divisão das tarefas. — A melhor coisa é a amizade do grupo e a convivência com os educadores. Luzinete (18), Leia (22), Bia (21), ” Raimundo (16), Joc (16). “ Somos filhos dos escravos Por isso somos bravos O poder me discrimina Eu tô aqui mais forte do que nunca Pare de fazer fumaça, Não leva a nada Não fique aí viajando, fumando essa parada. Cleber e Márcio, jovens da Oficinas Cooperativas ” Grãos de Luz e integrantes do grupo de hip-hop Muita Arte Reinando no Futuro (MARF). Cadernos Cenpec 2006 n. 1 86 “Leite, Leitura, Cultura. Poesia feita por Diego (11), estampada na sua própria camiseta. “A gente dava aula a partir dos livros que o governo mandava. A partir da formação Griô, tivemos a ousadia de realizar nossos próprios projetos. Com a formação Griô, aprendemos a trabalhar a afetividade e a racionalidade dos alunos. Com o Griô, deixamos cair as máscaras e nos encontramos nos expressando... Márcia Teles, autodenominada educadora griô. ” “A linguagem do velho, nas rodas de conversas e brincadeiras, é uma linguagem que a criança entende. Todas as crianças da cidade conhecem o Velho Griô. Wilma (29), professora de escola da ” comunidade rural. “Depois da formação Griô, descobri que precisamos de uma formação constante. Zenilda (33), professora de escola da ” comunidade rural. “O velho é um aprendiz ensinante, cria um acervo de histórias e vai da oralidade para a escrita. Marcio Caíres Chaves, Velho Griô e educador da ” Associação Grãos de Luz. “— O que vocês aprendem com o velho Griô? — Aprendi que a gente não precisa ter vergonha. — Aprendi a tocar zabumba, caixa, agogô, reco-reco. — Aprendi a pesquisar as comidas da gente. — Eu aprendi a cumprimentar as pessoas, prestar atenção e ouvir o silêncio. — Eu aprendo com o Griô, na escola, na capoeira, na biblioteca, no Reisado... E eu vou pra universidade. Na roda de conversa, a fala das crianças das ” Oficinas Grãos de Luz. “ Leite, Leitura, Cultura. Poesia feita por Diego (11), estampada na sua ” própria camiseta. Pactos e impactos A proposta político-pedagógica do projeto tem inegá- vel impacto junto ao seu público — crianças, adolescen- tes, comunidade e educadores da escola pública. A coe- rência do projeto com os objetivos da organização e com a política pública municipal, o histórico, os objetivos, a metodologia e os resultados do projeto Grãos de Luz e Griô revelam sua importância e relevância, mas sobre- tudo sua inovadora e criativa abordagem. À fala sincera das crianças e jovens e relatos dos edu- cadores e agentes locais envolvidos da Formação Griô, somam-se conversas esclarecedoras e animadas com moradores, pais e avós das crianças e adolescentes que relatam a experiência com encanto e valorização. Com poucos recursos humanos e financeiros, a Asso- ciação Grãos de Luz articula parcerias que envolvem toda a comunidade na tarefa de educar suas crianças e jovens. Associação Grãos de Luz e Griô Contatos: Telefones (75) 334 1040 e (75) 334 1719 graosgrio@yahoo.com.br www.graosdeluzegrio.org.br www.graosgrio.hpg.com.br Cadernos Cenpec 2006 n. 1 87 s idéias aqui expostas são devedoras de idéias de muitas outras pessoas. Elas as explicitaram em livros que li. Devo-lhes muito. Mas desejei, na forma como pensei em escrever este texto, mostrar minha própria elabora- ção de tantas idéias. Fica difícil indicar as fontes, mas elas existem, pois sou, como todas as pessoas, autor e resultado de múltiplas determinações — e agradeço por todas elas. Escolhi ser educador escolar porque sempre desejei fazer parte das múltiplas determinações na edu- cação de tantos cidadãos e assumi a responsabilidade por essa escolha. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 89 Escola e cidade Marcos Antônio Lorieri* que se educam A ARTIGO * Marcos Antônio Lorieri é filósofo da Educação e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Centro Universitário Nove de Julho (Uninove). 1. Educação e educação escolar Educação, num sentido amplo, é o conjunto de modi- ficações que ocorrem em qualquer pessoa, a partir das relações que estabelece com seus semelhantes e com outros seres, bem como com fatos ou situações. No caso das relações com outras pessoas, elas são sempre recíprocas: todos nos educamos uns aos outros. Essa maneira de entender nos faz pensar a educação como um processo, de alguma maneira constante, de “produção” dos seres humanos. Talvez se possa dizer que a educação é o processo de “fazeção” de seres humanos. Podemos pensar, por outro lado, que a educação é o conjunto de resultados consolidados em maneiras de ser das pessoas. Nesse caso, dizemos que uma pessoa tem uma educação assim, ou de outra forma. Há, na ver- dade, uma relação tensa, dialética, entre continuidades na maneira de ser das pessoas e modificações que vão sempre ocorrendo. A existência humana, na verdade, não é algo estático, ela “vai sendo”, está em devir, exatamente porque está inserida numa realidade em processo, numa história que ocorre em durações que estão sempre gestando modifi- cações. O que se pode afirmar é que, para certos movi- mentos do devir, nós, os seres humanos, podemos esco- lher direções ou sentidos: podemos intervir de algum modo, dadas as nossas possibilidades de consciência, de valoração e de vontade. É importante dizer que as modificações que resultam das relações mencionadas podem ser consideradas boas ou ruins. Há, portanto, entendimentos de educação para o bem ou para o mal e é, a partir daí, que se diz que uma pessoa é bem educada ou mal educada. Esse é um as- pecto que se relaciona à valoração da ação educacional ou de seus resultados e não será discutido aqui. O que nunca se pode declarar é que uma pessoa não seja edu- cada. O ser humano é um ser que está se educando sem- pre. Ele apresenta continuamente um “estado” educa- cional, uma possibilidade de modificação desse estado e modificações reais em tal estado. Saberes, condutas, emoções A existência humana, desenvolvida historicamente, acontece nas cidades, com todas as suas durações e mo- vimentos próprios. Há fatos e situações que são próprios da vida na cidade, assim como há maneiras de ser das pessoas que são desenvolvidas pelo fato de participarem da vida de uma cidade. Nas relações nas quais estamos envolvidos numa cidade, educamo-nos de uma maneira peculiarmente urbana, tornando-nos membros da pólis: cidadãos, membros e constituintes da cidade. Educação, num sentido mais restrito, é o conjunto de relações intencionalmente estabelecidas ou provocadas, tendo em vista modificações desejadas e buscadas na maneira de ser das pessoas envolvidas nessas relações. A educação escolar é um exemplo de educação no sentido mais restrito, uma vez que as relações estabe- lecidas entre educadores e educandos visam provocar modificações intencionais, em que pese o fato de ocor- rerem também modificações não intencionais. As modificações intencionais, buscadas na educação escolar, têm variado relativamente às épocas, às várias culturas e a outros fatores. Uma das modificações intencionais que permanece como alvo constante é a que diz respeito à aprendiza- gem de certos saberes: estabelecem-se intencionalmen- te certas relações, para que os educandos aprendam determinados conteúdos de saberes que não possuem... ou que os educadores julgam que eles não possuem. Trata-se de uma modificação do não saber algo para o saber algo. Parece também permanente, em todas as instituições educacionais escolares, a procura intencional pelas mo- dificações nas condutas ou nas atitudes dos educandos. Espera-se, intencionalmente, que eles passem a agir de certa forma ou consolidem formas de agir já assumidas em outras inter-relações, ou, ainda, eliminem algumas formas de agir consideradas não boas, ou inadequadas, pela intencionalidade da escola. Recentemente, ou talvez com mais ênfase, há uma busca nova, presente no discurso e nas práticas de muitas escolas. Trata-se de provocar, nos educandos, o do- mínio de procedimentos que facilitem a produção, por eles mesmos, de novos conhecimentos. Afirma-se que os educandos necessitam aprender a aprender, ou apren- der a pensar por eles mesmos de uma certa maneira. Alguns chamam isso de aprendizagem ou desenvolvi- mento da autonomia intelectual. Há, também, a procura — ainda tímida, mas proposta — da modificação da heteronomia moral para a autono- mia moral: pretende-se, ou se diz pretender, que crian- ças e jovens aprendam a decidir, por si próprios, como agir, depois que entendem por que devem agir de um modo e não de outro. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 90 Há, ainda, outras modificações desejadas a partir da intervenção educacional escolar. Trata-se de provocar nos educandos a sabedoria de lidar adequadamente com as emoções. Isso inclui saber utilizar esses “mó- veis” da ação humana a favor da própria realização e também controlar essa movimentação psíquica, ou psi- cofísica, tendo em vista algum tipo de equilíbrio pessoal e a convivência social. Pensando assim, pode-se afirmar que a educação escolar é um processo educacional intencional que visa, por parte dos educadores escolares e por meio das re- lações que estabelecem com os educandos, ao menos, as seguintes modificações: • do não saber certos conteúdos para sabê-los; • do não agir para uma forma de agir desejada, ou de uma maneira de agir para outra, considerada melhor; • de uma forma de proceder para aprender para outra, que seja a da produção de conhecimentos e do pen- sar por si próprio; • de uma forma de acatar regras de conduta para uma forma “decisória autônoma”, relativa a estas mesmas regras de conduta; • de uma forma de lidar com as emoções para outra, considerada adequada à satisfação pessoal e à con- vivência social. E mais: por ser um processo educacional intencional, ele envolve escolhas por parte dos educadores. Daí o fato de a educação escolar nunca ser neutra. E como está relacionada à “formação” de pessoas para viverem em uma sociedade, ela é política. Ela é uma forma de inter- venção intencional na maneira de funcionar da socieda- de, porque procura influenciar algumas formas de ser dos educandos que são julgadas “convenientes” para a sociedade, na qual a educação escolar está inserida. Pode parecer que as cinco modificações buscadas intencionalmente pela educação escolar — no saber, no agir, no aprender, no pensar, no emocionar-se —, algu- mas merecendo mais ou menos ênfase ou clareza, dêem conta suficientemente de tudo o que as relações escola- res produzem. Mas não dão! Talvez nem sejam essas, ou não somente essas, as modificações pretendidas. Há sempre mais mudanças que ocorrem nas pes- soas envolvidas nas interações escolares e pode haver outras modificações intencionais, que não as anterior- mente mencionadas. Porém, para efeito das considera- ções aqui propostas, levemos em conta um tipo de es- cola eminentemente urbana. Pensemos na escola edu- cadora (ela sempre o é), numa cidade educadora (ela também sempre o é). 2. Escola, cidade, educação A cidade é sempre educadora pelo fato de se constituir em um conjunto de pessoas em múltiplas interações, um conjunto de instituições, fatos e situações com as quais e nas quais as pessoas interagem, que comporta objetos próprios da vida urbana, propiciando interações específicas. Nós nos educamos nas interações que faze- mos: para o bem ou para o mal! A escola é uma instituição social, uma criação da humanidade, pois ela consegue gerir melhor o processo educativo dos mais jovens quando as várias formas de organização social já cresceram e se tornaram mais com- plexas. Cidades são arranjos humanos complexos e, nelas, há sempre escolas. E as escolas ganharam importância cada vez maior na vida das cidades. Na chamada Modernidade, também denominada de sociedade urbano-industrial, a instituição escola tem papel destacado como agência de educação. Ela educa para a cidade e é marcada pelas características da vida urbana, tendo em vista as suas necessidades. Essas ne- cessidades, a cada intervalo de tempo, ampliam-se e de- mandam mais das escolas numa velocidade que dificul- ta não só a adequação das escolas a elas, mas também um processo de avaliação mais rigoroso e crítico de tudo que é solicitado aos educadores escolares. Complexidade espaço-temporal que desafia e indica caminhos Nessa grande complexidade, estão presentes não apenas as dificuldades, mas também as inúmeras pos- sibilidades e desafios. A escola urbana é um universo de trocas, de relacionamentos, de encontros e desen- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 91 ...a cidade educa a escola e a escola educa a cidade. Na verdade, a escola é uma invenção da cidade. contros, de indicações de vida boa, de possibilidades de indicações não boas, de descobertas, de encobrimentos: é um lugar onde tudo o que é humano ocorre e pode ser objeto de reflexão. A proximidade dos atores escolares — uns com os outros, e de todos com o ambiente geral da escola — permite análises interessantes e instigantes. O humano acontece ali, de uma maneira singular, com muita inten- sidade nos espaços-tempo delimitados pela própria organização escolar. Quem vive o cotidiano escolar sai exausto dele, a cada dia, e não é por acaso. É uma experiência intensa que marca a vida das pessoas e as faz levar essas marcas para os outros relacionamentos nos quais se envolvem: nas famílias; nas festas; nas igrejas; nos clubes; nos ambientes de trabalho; nos momentos de lazer; nas brincadeiras, especialmente nas das crianças (quantas, talvez todas, acabam brincando de escolinha, em todos os demais espaços da cidade). Escola e cidade são mundos de tal modo imbricados, como são imbricados alunos, professores e pais. É um grande desafio saber identificá-los e circular por eles com a desenvoltura e a propriedade que a educação for- mal e informal exigem. Imbricados como são, determinam-se mutuamente: a cidade educa a escola e a escola educa a cidade. Na verdade, a escola é uma invenção da cidade. A escola é a cidade educando intencional e formalmente seus mem- bros para si mesma. As relações e inter-relações que ocorrem na cidade são educativas por si mesmas. A escola, dentro da cidade, promove relações desejadas, estudadas, intencionais: desejadas pela cidade, pela pólis! Nem sempre isso é muito consciente: daí certas desavenças entre a escola e a chamada “comunidade externa”. As exigências da cidade batem sempre à porta da escola. Na verdade, nem mesmo batem à porta: entram simplesmente pelo fato de os habitantes da escola serem os mesmos habitantes da cidade e de a escola estar na cidade e ser parte dela. O espaço político da escola — assim denominado porque é um espaço da pólis e para ela — tem especifi- cidades: são especificidades necessárias para a própria cidade e dela decorrentes. Daí a necessidade de seus gestores, aí incluídos todos os seus educadores, serem capazes de gerir de fato e com competência o seu acon- tecer, tendo como primeiro passo necessário o ouvir atento as demandas da pólis. Escola não é ilha: é lugar específico que deve fazer educação como parte de toda a educação da cidade. Não é mais possível que alguém pense e faça escola fazendo de conta que o todo da pólis não lhe diga respei- to. Isto é mesmo uma “falta de respeito” à necessidade humana básica da sociabilidade. Se tudo o que é humano diz respeito a todos os humanos, o social está aí incluí- do e, portanto, a cidade, a pólis. E, portanto, a escola que é sempre da pólis, na pólis e para a pólis. É por isso que dizemos que a educação é sempre um ato político. Claro está, nesta minha elaboração, o quanto devo a tantas idéias: e eu as encontrei nos meus caminhos nas cidades por onde andei, dentro, principalmente, de escolas. Cidades: verdadeiros ninhos de humanização e... de riscos de desumanização! Escolas: pedaços privilegiados desses ninhos! Que podem ajudar na humanização, mas podem, também, servir ao que desumaniza. Cabe-nos, como profissionais conscientes, evitar e afastar a desu- manização, ao menos naquilo que é da nossa responsa- bilidade e competência. Cadernos Cenpec 2005 n. 1 93 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 A escola pode ser e é um caminho, um “curso”, um percurso de tantas descobertas! Esse deve ser o seu curso, ou currículo. Como professor e diretor em escolas públicas e parti- culares na cidade de São Paulo — nas quais trabalhei com o Ensino Fundamental, Médio e Superior, quase ao mesmo tempo — vivenciei e vi vivenciarem incontáveis e intensas experiências humanas. Pensei, muitas vezes, sobre as conseqüências — para mim, para meus colegas educadores e para tantos educandos — de ter vivido ou estar vivendo tais experiências na escola. Quero relatar algumas impressões relativas a essas intensidades observadas e, refletindo sobre elas, contri- buir para que pensemos, ao menos, na enorme respon- sabilidade que é ser educador em escolas. Lembro-me de algo intenso que eram os olhos bri- lhantes de crianças em aulas, nas quais, pela mediação da palavra de professores e de conteúdos de estudos, descobriam novidades sobre o mundo, a natureza, os seres humanos, seus corpos, produções científicas e li- terárias. Crianças e jovens se maravilham com a maravi- lha do real de que fazem parte e do real que são. Na escola a gente é um cientista Um dia, em 1988, numa escola da cidade de São Paulo — e que cidade! — especificamente no bairro de São Miguel Paulista, conversávamos, as crianças de uma 3a série do Ensino Fundamental de uma escola pública, a professora da classe e eu, sobre o que é investigar: o tema havia surgido após a leitura de um pequeno texto. Alguns disseram que investigar era procurar saber; outros, que era fazer o mesmo trabalho do investigador de polícia (o pai de um dos alunos exercia essa profissão); outros, ainda, que era ser detetive, como nos filmes de mistério. A professora perguntou se, no dia-a-dia, todos nós investigávamos. As crianças disseram que sim, e deram exemplos bem prosaicos, como descobrir onde era o banheiro da escola nos primeiros dias de aula, ou de que forma conseguir do pai e da mãe algum dinheirinho para comprar um doce. Um aluno afirmou que usava pis- tas para descobrir certas coisas. Deu, como exemplo, ter utilizado o cheiro de comida para descobrir onde es- tava sendo servida a merenda escolar. Uma aluna aproveitou a idéia de pista para retomar a conversa sobre o detetive: “Ele é um pesquisador que utiliza pistas”, disse ela. Seguiram-se, então, vários exemplos de pistas que poderiam nos levar a saberes, os mais diversos. Foi nesse momento da aula que uma menina, com um brilho diferente nos olhos, “sacou” a sua descoberta: “O cientista é um detetive da natureza”. Eu lhe perguntei: “Como assim?”. E ela: “Cientista não é quem vive procurando saber sobre a natureza? Ele só pode procurar saber se seguir pistas!”. Houve um pouco de silêncio que logo consegui que- brar, emendando mais uma pergunta: “E você acha ne- cessário haver cientistas, isto é, pessoas que ficam pro- curando saber sobre a natureza?”. E ela: “É claro! Como é que a gente ia ter livros para estudar na escola se não tivesse cientistas?”. “Só para isto?”, perguntei. Alguém, não a menina, respondeu: “É claro que não. Os cientistas estudam e escrevem para outras pessoas estudarem e ficarem sabendo de muitas coisas”. Cadernos Cenpec 2005 n. 1 Detetives do conhecimento Marcos Antônio Lorieri* DEPOIMENTO * Marcos Antônio Lorieri é filósofo da Educação e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Centro Universitário Nove de Julho (Uninove). 94 A professora entrou na conversa e perguntou: “Mas por que as pessoas precisam ficar sabendo destas mui- tas coisas?”. Aí a conversa na sala ficou muito interessante. Estu- dar o que já foi produzido poderia ser, sim, muito útil para inúmeras coisas. As crianças sabem que o conhecimen- to é muito importante e que a escola é mesmo um bom lugar para “obtê-lo”. Um aluno que estava aparente- mente distraído disse: “Acho que na escola a gente é um cientista; as pistas são os livros e a gente vai lendo e per- guntando e vai sabendo de muita coisa; é legal!”. Nunca mais me esqueço desse momento e, principal- mente, do brilho nos olhos daquelas crianças. Vejo tam- bém esse brilho, com freqüência, nos olhos de alunos da graduação e da pós-graduação na escola chamada Universidade. A boa escola (e quem a faz são os professores com os alunos) é um lugar privilegiado para fazer brilhar a felicidade de descobrir tudo sobre tantas coisas. Escola boa é muito bom! A descoberta da felicidade da descoberta, e dos meios para se chegar a ela, é altamente educativa e repercute, certamente, na vida da cidade que tem cidadãos que aprenderam assim. Quantas descobertas podem ser fei- tas pelos moradores urbanos que as sabem fazer, e como, a partir dessas descobertas, tantos problemas da cidade podem ser mais bem encaminhados! Interações opressivas Mas a escola não é feita só para se saber sobre o que é descobrir e nem só para se ficar conhecendo o que tan- tos estudiosos descobriram. O trabalho com os conteú- dos do saber é uma grande e importante mediação de e para a vida de nossos alunos. Há outras mediações im- portantes que a vida na escola faz acontecer, por exem- plo, o encontro com pessoas diferentes daquelas com as quais nos encontramos em casa, no círculo de parentes- co, na vizinhança. Quantas descobertas interessantes e importantes as crianças, os jovens e os educadores fazem na escola ao se relacionarem com pessoas diferentes que têm maneiras diferentes de pensar, de agir, de valorar. Essas pessoas nos mostram outras possibilidades de encaminharmos nossas vidas que não veríamos se não estivéssemos nesse ambiente tão diversificado. Nesses relacionamentos, presentes no ambiente es- colar, pode-se perceber encontros e desencontros; e nota-se que é assim que as pessoas envolvidas apren- dem a lidar com eles. Alguns aprendem com pouca ajuda; outros necessitam de mais ajuda, de mais mediações. Os educadores da escola podem ajudar ou ser mediadores no aprendizado das crianças e jovens, principalmente quando há encontros desastrosos — nós os chamamos de desencontros! Numa das escolas em que trabalhei, vivenciei a seguin- te situação: andando pela escola — atividade necessária para todo diretor escolar — vi, pela janela, um adoles- cente atirar um pequeno objeto para o alto, atingindo uma lâmpada que se partiu e cujos pedaços caíram sobre seus colegas. Houve um pequeno tumulto que a professora da classe procurou contornar, satisfatoriamente. Em seguida, ela ponderou com os alunos sobre a inadequação dessa atitude e disse não ter visto quem havia feito aquilo. Ela esperava, porém, que o aluno em questão se apre- sentasse como o responsável pelo ocorrido e assumisse as conseqüências. Eu estava do lado de fora observando, mas não havia sido visto pelos envolvidos. O aluno que atirou o objeto levantou-se e disse à professora que o culpado era um outro, que ocupava uma carteira escolar bem à sua frente. A professora perguntou a esse aluno se era verdade e ele confirmou a acusação que o colega lhe fizera. A professora pediu-lhe, então, que se dirigisse à diretoria da escola para se explicar. Neste momento, dirigi-me à porta da sala e lhes co- muniquei que eu mesmo o acompanharia à diretoria para conversarmos. Na conversa, o aluno acusado injus- tamente confirmou-me a acusação do colega. Contei a ele que vira o colega que o acusara atirar o objeto que provocou a quebra da lâmpada e que não estava enten- dendo porque ele aceitava ser acusado injustamente. Para minha surpresa, ele me respondeu que esse colega e mais a sua turma só o aceitariam no grupo se ele fizes- se tudo o que eles queriam. Se ele rejeitasse a acusação, perderia a chance de participar do referido grupo. Ponde- rei sobre o inaceitável de tal situação, e ele concordou. Mas se confessou impossibilitado de reagir a ela. Pensei: “Uma pessoa sendo oprimida e educada para aceitar a opressão nas interações nas quais está envol- Cadernos Cenpec 2006 n. 1 95 vida”. Mas avaliei também que ela merecia mediações que a ajudassem a reverter essa situação. Perguntei se ele queria ou desejava reverter essa situação. Ele me respondeu, quase em prantos, que sim. Pedi-lhe que aguardasse alguns dias sem comentar nada com ninguém, deixando as coisas como estavam, por enquanto. Passei a observar discretamente suas outras interações: em várias, aceitava, constrangido, opressões. Por exemplo: na quadra de esportes, pedia para jogar como atacante no time de futebol. Os colegas da turma diziam que, se quisesse jogar, tinha que ser no gol. Ele “aceitava”. E assim em outras situações: “aceitava”...! Conversei com outros professores, a orientação edu- cacional da escola e, por fim, com os pais do aluno. Jun- tos, desenvolvemos um plano de ação para ajudá-lo e para ajudar os seus colegas a não se “educarem” como opressores. Na nossa concepção do que é o ser humano e a boa educação, não cabia permitir a (des)educação de jovens para se tornarem oprimidos ou opressores. Isso estava muito claro em nosso projeto educacional. Por isso, sabíamos que deveríamos agir, interferir, para que pudéssemos ajudar aqueles jovens a não serem pes- soas autoritárias, nem concordes com o autoritarismo sobre os outros ou sobre eles próprios. Há que haver, na pólis, na cidade, o repúdio a toda forma de autoritarismo e de exploração. Mas para que isto aconteça, é preciso educar as crianças e os jovens nessa direção, para essa finalidade. Nos discursos pe- dagógicos atuais, raramente se vê uma abordagem a respeito das finalidades da educação. Como faz falta a Filosofia na formação dos educadores! Pois bem: esse aluno estava, naquele ano, na 8a sé- rie do Ensino Fundamental; quando cursava a 2a série do Ensino Médio, já jogava futebol no ataque! E mais: de vez em quando, para colaborar com os colegas e por decisão própria, ele jogava também no gol! Foi um longo, mas va- lioso trabalho realizado numa escola desta imensa cida- de de São Paulo. E seus colegas, aprendizes de opresso- res, passaram a respeitá-lo muito. O trabalho foi feito com todos e nos pareceu que o aprendizado de todos foi ou- tro: pareceu-nos que aprenderam a não desejar a opres- são. Se foi mesmo, só a história deles, na cidade, dirá. Menoridade e maioridade cidadã Fui coordenador de uma experiência educacional de formação de futuras professoras para as séries iniciais do Ensino Fundamental. Era uma escola que pretendia ajudar a formar educadoras de escolas. Que grande e importante tarefa! Como os cursos de formação de pro- fessores — os educadores das escolas das cidades — deveriam merecer muito mais atenção de todos os cida- dãos! Menciono, dessa experiência, mais um fato. Recebemos como aluna uma jovem, entre dezenas de outras, que apresentava enormes dificuldades com a es- crita, a leitura e a matemática. Além disso, as colegas não queriam ficar perto dela porque, diziam, ela não tomava banho. Situação constrangedora para todos, especial- mente para a jovem. Os educadores da escola têm obri- gação de perceber tudo isso e ajudar a buscar soluções. A professora de matemática foi a primeira a propor ações de ajuda educacional. Desafiou a jovem a ser uma das melhores alunas de matemática e lhe ofereceu ajuda especial. A aluna aceitou. A professora de biologia en- controu uma maneira de trabalhar para o desenvolvi- mento da capacidade de leitura da aluna. Concomitan- temente, a partir dos textos, começou uma conversa sobre hábitos higiênicos: primeiro, o que deveria ser trabalhado com as crianças, nas escolas, quando ela fosse professora. Em seguida, veio a oportunidade de discutirem a necessidade de toda professora ser um exemplo para as crianças. Foi então possível identificar problemas que a jovem carregava consigo: desde as condições de pobreza nas quais vivia, até a falta de esclarecimento sobre higiene pessoal. Houve, em quatro anos, mobilização da comu- nidade escolar para ajudar essa e outras jovens na so- lução das suas dificuldades econômicas e na superação das dificuldades acumuladas no processo anterior de escolarização. Ela se tornou uma das melhores alunas do curso. Suas conquistas escolares a impulsionaram na busca de solu- ções para outras necessidades de sua família. Conforme ela mesma nos disse, sentira-se uma pessoa derrotada; agora, não mais. Formou-se professora e se casou com um engenheiro estrangeiro. Até onde sabemos, mora em outro país e está muito bem. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 96 Naquela escola em que trabalhávamos, não podía- mos desconhecer todos os problemas que envolviam a vida dessa e das demais jovens na cidade da qual faziam parte e com a qual interagiam numa situação de menori- dade: foram os professores da escola desta mesma cidade, inicialmente liderados pela professora de matemática, que reconheceram isso e ofereceram a elas mediações educacionais que puderam ajudá-las a se tornarem “maiores”, a saírem de uma menoridade cidadã injusta. Claro que o responsável pela mudança não foi só o trabalho educativo da escola, mas ele contou muito. Este meu texto, um relato de casos e um conjunto de reflexões, é uma oportunidade para dizer algo que julgo muito importante. Presenciei, nestes bem mais de 30 anos de vivências escolares, muitos percursos, cursos ou currículos serem percorridos por tantas crianças e tantos jovens, e vi, muitos deles, já adultos, atuando na vida de tantas cidades, afirmarem: “Que bom o que ti- vemos nas escolas por onde passamos!” Alguns também me contaram experiências que os marcaram negativamente — eles são minoria. Testemunhei e testemunho aqueles que foram ex- alunos tornarem-se doutores e mestres nas Universida- des. Outros dirigem escolas. Uns poucos são atores. Há ainda os que se transformaram em políticos, dentistas, médicos e engenheiros e, principalmente, em pais e mães. Eu e tantos colegas que trabalhamos juntos nas escolas somos formadores não só de habitantes das ci- dades, mas de seus co-construtores. E isso é uma enorme responsabilidade. Responsabi- lidade acrescida pela confiança que os cidadãos deposi- tam em nós, educadores. A escola parece ser o único lu- gar no qual pais e mães deixam seus filhos por quatro ou mais horas, todos os dias, confiando nos seus educa- dores. Essa é uma constatação que me emociona e me faz dizer a todos os educadores das escolas que nenhum deles pode jamais trair essa confiança eminentemente cidadã. A escola é da cidade e à cidade ela deve oferecer cidadãos educados da “melhor qualidade”, como diz Terezinha Azeredo Rios. Essa “melhor qualidade” na educação dos cidadãos é fator fundamental para me- lhorar a qualidade da cidade que todos queremos. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 97 Há que haver, na pólis, na cidade, o repúdio a toda forma de autoritarismo e de exploração. Mas para que isso aconteça, é preciso educar as crianças e os jovens nessa direção, para essa finalidade. Nos discursos pedagógicos atuais, raramente se vê uma abordagem a respeito das finalidades da educação. Como faz falta a Filosofia na formação dos educadores! odo mundo diz que a educação pública brasileira deve ser prioridade do País. De A a Z, de norte a sul, de leste a oeste, de políticos a políticas dos mais diversos lu- gares e cores do espectro brasileiro, isso é considerado um consenso. Tal visão é reforçada por pesquisas e es- tudos de universidades, das agências da ONU (em es- pecial, da Unesco e do Unicef), de institutos de pesqui- sa, de organizações e movimentos da sociedade civil que, em síntese, afirmam: se o País quer avançar em cidada- nia e desenvolvimento, deve garantir o direito à educa- ção para o seu povo. Mas se tudo isso é verdade, com a qual todos dizem que concordam, por que é tão difícil fazer com que a edu- cação pública seja assumida como uma política de Esta- do, com investimentos consistentes e de longo prazo? Por que é tão difícil fazer com que a educação saia do la- birinto que a condena a viver os dois lados de uma moe- da: “alívio da pobreza” — uma educação pública de baixa qualidade para os “pobres” — e “mercadoria” — continente promissor a ser explorado por grupos econô- micos nacionais e internacionais? Para além do aparente consenso de que a educação é fundamental, há muitas visões e perspectivas conflitan- tes, muitas das quais na contramão da educação de qua- lidade como direito humano fundamental. Um direito que sabidamente tem o poder “subversivo” de abrir portas e janelas para o acesso a outros direitos ao possibilitar o empoderamento1 de pessoas, grupos, coletivos e contri- buir para a formação de sujeitos de direitos. É sempre importante reconhecer os avanços locais, regionais e nacionais, as conquistas setoriais e os passos dados nas últimas décadas em relação à educação — a Cadernos Cenpec 2006 n. 1 99 Educação pública de qualidade Denise Carreira* Para além de um aparente consenso T ARTIGO * Denise Carreira é coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, jornalista e mestre em educação pela Universidade de São Paulo (USP). maioria resultante da pressão e da ação inovadora da so- ciedade civil e de várias gestoras e gestores públicos que buscaram fazer a diferença. Mas é inegável que a lógica que impõe à educação e às demais políticas sociais um lugar subalterno em relação às políticas de ajuste fiscal e a um modelo econômico “concentracionista” continua operando com desenvoltura. E essa lógica precisa mudar, para que possamos ter uma transformação estrutural, que viabilize as metas do Plano Nacional de Educação e os compromissos internacionais assinados pelo Brasil nas conferências da ONU, em Jomtiem (1990) e Dakar (2000), de forma que elas cheguem ao cotidiano da população. O Plano Nacional de Educação: uma lei fragilizada. Em fevereiro de 2005, a Comissão de Educação da Câ- mara dos Deputados do Congresso Nacional realizou a IV Conferência Nacional de Educação,2 com o objetivo de avaliar a implementação do Plano Nacional de Educação (PNE), lei aprovada pelo Congresso em 2001, que estabe- lece as metas a serem alcançadas pelo Brasil em 2011. Ao promover o evento, a Câmara cumpria sua obrigação le- gal, prevista no PNE, de realizar uma avaliação, em 2005, sobre o andamento do processo de implementação. Como base para a Conferência, a consultoria legislati- va da Câmara produziu uma avaliação técnica do PNE, apontando os avanços, os obstáculos e os desafios para o cumprimento das metas previstas.3 O estudo revelou que várias metas do PNE não serão cumpridas em 2011 sem que ocorra, entre outras providências, a revisão ur- gente do modelo de financiamento educacional do País. Se somente o aumento do financiamento não basta (ele deve possibilitar o desenvolvimento pleno de um conjunto articulado de políticas e estar ancorado em uma institucionalidade efetiva de controle social e de participa- ção da sociedade), sem ele não há base para a transforma- ção estrutural que almejamos e nem condições para a im- plementação das metas do Plano Nacional de Educação. Segundo estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP) e do Instituto de Pesquisas Econô- micas Aplicadas (IPEA), divulgado em 2003, para o cum- primento das metas, o Brasil deveria ampliar o investi- mento em educação dos atuais 4,6% para cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB). Não há “outra mágica” que permita o cumprimento das metas. Para a Campanha Nacional pelo Direito à Educação — articulação que congrega cerca de 200 redes e organiza- ções da sociedade civil, entre elas a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) — a manutenção dos vetos4 ao Plano Nacional de Educação pelo Congresso (com o apoio da área econômica do Go- verno Federal); a continuação do descumprimento da lei do Fundef; a manutenção da retirada de recursos da edu- cação por meio da Desvinculação das Receitas da União (DRU),5 que arranca por ano mais de três bilhões de reais; e a proposta do Fundo de Manutenção e Desenvolvimen- to da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) encaminhada pelo governo federal ao Congresso demonstram claramente que a mudança do modelo de financiamento não será tarefa fácil, exigindo muita pressão dos setores da sociedade comprometidos efetivamente com a melhoria da educação pública. Orçamento, superavit primário e desvinculação. Para muito além da retórica, o orçamento demonstra aquilo que é ou não prioridade para um governo. Um es- tudo encomendado pela Campanha sobre a situação do Orçamento Educação (ainda em fase de finalização) mos- tra que a execução orçamentária da função educação pelo governo federal apresentou queda entre 2002 e 2004. Em 2002, foram executados R$ 16,2 bilhões; em 2003, o mon- tante liquidado foi de R$ 15,2 bilhões e, em 2004, R$ 14,5 bilhões. Os recursos executados são aqueles que efetiva- mente foram gastos. Enquanto os valores executados da área educacional decresceram, as contas do governo federal apresentaram superavit primário de R$ 39,0 bilhões em 2002, R$ 41,9 bilhões em 2003 e R$ 49,4 bilhões em 2004. Entre 2002 e 2003, o valor do superavit primário representou aproxi- madamente duas vezes e meia o total executado na fun- ção educação e quase três vezes e meia o montante li- quidado no exercício de 2004. O superavit primário é gerado por meio de contenção de despesas, ajuste fiscal, arrocho e cortes de gastos so- ciais destinados ao pagamento dos juros da dívida públi- ca brasileira. Os mais de R$ 3,0 bilhões da educação, tragados pela DRU, também fazem parte do bolão do superavit. Em 2004, o governo brasileiro gerou superavit primário superior aos exigidos pelo próprio Fundo Mone- tário Internacional (FMI). Em 2005, o orçamento anual au- torizou o governo a realizar um superavit primário da or- dem de 4,25% do PIB, ou seja R$ 78,6 bilhões, sendo que desses, R$ 58,3 bilhões vêm da União. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 100 A mudança da política econômica é fundamental para que a educação e demais áreas sociais tenham mais re- cursos. É por isso que a Campanha integra outras articu- lações de movimentos como o Fórum Brasil Orçamento (FBO) e a Inter-redes, que visam propor alternativas ao modelo econômico vigente. No Fórum Social Mundial (Porto Alegre, janeiro de 2005), o FBO lançou a proposta da lei de responsabilidade social, para que o País assuma com afinco as metas sociais, tanto quanto acontece com a lei de responsabilidade fiscal. Vale a pena lembrar também que, “vira e mexe”, na última década, ressurge a proposta de desvinculação6 dos recursos da educação e da saúde, impulsionada pela área econômica de governos federais e estaduais, com a justificativa de que é necessário “desengessar os orçamentos”. Durante a negociação da reforma tributá- ria, em 2003, a Campanha, a Undime, o Consed e outras importantes organizações de educação tiveram que agir rápido no Congresso para que a proposta de desvincu- lação e de criação da DRE (Desvinculação dos Recursos Estaduais) não vingassem. Em 2004, o debate voltou à tona, conforme matéria do jornal O Estado de S. Paulo, e, em 2005, novamente, por meio de um documento do Banco Mundial, que reco- menda ao governo brasileiro a desvinculação, e da pro- posta de déficit nominal zero, do deputado Delfim Neto. Tudo isso exige que as entidades do campo educacional fiquem atentas para que não haja retrocesso. A vincula- ção é uma conquista histórica do povo brasileiro diante de um Estado que nunca priorizou devidamente o enfren- tamento da gigantesca dívida social do País. Acabar com a vinculação de recursos é fragilizar ainda mais o finan- ciamento das políticas existentes. O Fundeb: frustrações e incógnitas. O processo de construção da proposta do Fundeb, du- rante 2003 e 2004, expõe de forma clara as tensões para a mudança do modelo de financiamento do País e a falta que faz um Sistema Nacional de Educação que pactue regras de um regime de colaboração de fato. A Campanha entendeu a proposta de criação de um fundo único para o conjunto da educação básica como um avanço, desde que ele possibilitasse condições efetivas para a superação das principais deficiências do Fundef, sobretudo com re- lação às distorções entre níveis e modalidades (em espe- cial, a educação infantil e a educação de jovens e adultos). Para a Campanha, o novo Fundo também deveria ga- rantir o exercício do papel complementar e redistributivo da União, que no caso do Fundef ficou comprometido em decorrência do descumprimento da lei pelo governo FHC, desde 1998. Porém, a proposta de emenda constitucional (PEC) encaminhada pelo governo federal ao Congresso Nacional, em junho de 2005, frustra em muito as organi- zações, movimentos, redes e ativistas que atuam pelo di- reito à educação no País. Resultado de inúmeras disputas entre posições nem sempre comprometidas com a educação básica como in- teresse público — das quais se destacam o conflito MEC X Ministério da Fazenda, com relação ao volume da con- trapartida da União e a disputa Consed X Undime, refe- rente à entrada das creches — o texto encaminhado ao Congresso não responde aos desafios colocados na im- plementação do Plano Nacional de Educação (PNE) e se subordina à prioridade dada pelos governos às políticas de ajuste fiscal, em detrimento de políticas sociais que enfrentem as desigualdades do País. Entre as limitações da proposta, destacamos: A exclusão das creches Segundo o IBGE, somente 11,7% da população de zero a três anos têm acesso às creches. Avaliação técnica reali- zada pela Câmara dos Deputados no início de 2005 apon- tou que a meta do PNE de chegar a 50% de cobertura na educação infantil de zero a três anos em 2011 não será al- cançada, caso não ocorra uma mudança significativa das condições de financiamento da área, sob responsabili- dade constitucional dos municípios. Ao excluir as creches do Fundeb, o governo federal — respondendo a uma pressão de setores de governos estaduais, temerosos da gigantesca demanda reprimida por creches — enterra de vez a possibilidade de a meta ser alcançada e fere o conceito de educação básica, ex- cluindo aquela que seria parte de sua primeira etapa. Tal decisão tem impacto negativo na vida de milhões de crianças e de mulheres trabalhadoras, sobretudo, as de baixa renda. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 101 Para a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, somente com muita pressão da sociedade as mudanças necessárias ocorrerão. A não-definição de um Custo Aluno-Qualidade O texto da PEC desconsidera a exigência colocada pela legislação educacional de criação do custo aluno-quali- dade, referencial de valor mínimo de investimento por aluno que deveria ser a base para uma política de finan- ciamento sintonizada com a ampliação de acesso e da melhoria da qualidade da educação pública brasileira. Como o atual Fundef (Fundo de Valorização e Desen- volvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Ma- gistério), o novo Fundo não nascerá baseado em um custo aluno-qualidade, mas no custo aluno possível, de- corrente dos limites orçamentários do governo. Com as condições previstas na PEC, o valor mínimo do Fundeb inicial estaria em torno de R$ 800,00, supe- rior ao praticado hoje no Fundef (R$ 620,00), mas inferi- or ao valor mínimo legal do Fundef (R$ 984,00). Ou seja, o Fundeb nasceria com o valor mínimo abaixo do valor do Fundef, lei descumprida pelo governo desde 1998. É importante informar que a Campanha Nacional lan- çará no segundo semestre um estudo sobre o CAQ, com propostas de valores para cada nível e modalidade, resul- tado de três anos de pesquisa. A contrapartida insuficiente da União Apesar da alardeada vitória do Ministério da Educação sobre a área econômica, com relação ao aumento grada- tivo de recursos para o novo Fundo, totalizando ao fim de quatro anos R$ 4,3 bilhões (relativos aos recursos da educação seqüestrados pela DRU — Desvinculação de Receitas da União), o texto da PEC que chega ao Con- gresso suprimiu uma conquista fundamental, obtida nas negociações de dezembro de 2004 entre MEC, Consed e Undime: o percentual fixo de participação da União no novo fundo em 10%, eliminado por exigência da equipe econômica do governo federal. Em decorrência disso, as condições colocadas no texto atual da PEC levará a participação da União a che- gar ao máximo de 6,8%. Lembramos que a contraparti- da da União é fundamental para se alcançar um custo aluno mínimo compatível com os desafios da educação básica e para diminuir as perversas desigualdades re- gionais existentes no sistema educacional brasileiro. Alem disso, um artigo da PEC coloca em dúvida a real intenção do governo em aportar novos recursos para educação, ao afirmar que “a complementação da União será realizada mediante redução de outras despesas, inclusive redução de despesas de custeios, observando as metas fiscais e os limites das despesas correntes fixa- dos na lei de diretrizes orçamentárias” . Subentende-se em tal artigo a tese que deu base à gestão anterior de que o problema do financiamento edu- cacional se restringe somente a um problema de gestão e não de novos recursos. A Campanha mais uma vez afirma seu entendimento de que é necessário o aprimoramento dos processos de gestão democrática e de controle social (inclusive, na le- gislação do Fundeb), mas se fazem urgentes aportes de novos e significativos recursos que permitam o cumpri- mento do Plano Nacional de Educação, como já apontado por estudos do próprio governo. O Piso Nacional Salarial Profissional A primeira versão da PEC, elaborada pelo MEC, estipula- va em 80% o gasto dos recursos do Fundo para remune- ração do conjunto dos profissionais de educação (profes- sores, professoras e demais funcionários de escola). O texto que chega ao Congresso estipula esse percentual em 60% e o restringe somente ao pagamento dos profis- sionais do magistério em exercício efetivo. Além de não reconhecer a importância dos demais pro- fissionais de educação, tal restrição em 60% constitui grande obstáculo para a implementação do Piso Nacional Salarial Profissional, uma velha reivindicação da categoria e um dos requisitos para a elevação da qualidade do ensi- no, o qual ainda possibilitaria ao País sair da triste situação de apresentar uma das piores médias salariais do mundo. A Campanha e diversas organizações, movimentos e redes (entre eles, a Fundação Abrinq, o Movimento de Mu- lheres, a Confederação Nacional dos Trabalhadores, o Mo- vimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o Movimen- to Interfórum de Educação Infantil, a Undime e fundações empresariais) planejam, ao longo do segundo semestre, um processo de pressão sobre o Congresso Nacional para que este reveja, de forma criteriosa, o texto da PEC e a proposta da legislação complementar na perspectiva de colocar a educação básica — como interesse público — em primeiro lugar, para além do jogo de forças e disputas entre entes federados e os ditames de uma política eco- nômica que somente aprofunda as desigualdades sociais de nosso país. Todo brasileiro, toda brasileira, todas as organiza- ções, grupos e movimentos estão convidados a participar dessa mobilização, mostrando que a educação pública é uma prioridade para toda a sociedade (informações no www.campanhaeducacao.org.br). Cadernos Cenpec 2006 n. 1 102 A importância da participação de verdade É fundamental lembrar também que um dos principais problemas vivenciados pelas políticas públicas educacio- nais é a fragilidade dos mecanismos e espaços institucio- nais de controle social e de participação. Para o Fundeb, as medidas propostas a esse respeito ainda são muito genéricas e superficiais. É necessário extrair aprendiza- gens mais precisas da experiência do Fundef e aproveitar a formulação da legislação complementar, que regula- mentará a PEC do Fundeb, para aprofundar o tema e esta- belecer mecanismos mais efetivos.7 Para a Campanha, é urgente ampliar os espaços de participação e aprimorar a institucionalidade de controle social em educação: dos conselhos escolares ao conse- lho nacional de educação. Precisamos aprimorá-los para que a participação das comunidades e da sociedade civil na definição das prioridades seja efetiva. É necessário trazermos uma energia renovada, politizada, que leve es- ses espaços a superar um perfil burocratizado (presente na maioria) e contribuir para a melhoria da qualidade e do acesso à educação, para o monitoramento do PNE e dos Planos Municipais e Estaduais. Assim, a Campanha vem pressionando o MEC, desde 2004, pela retomada da Conferência Nacional de Educa- ção, uma conferência que mobilize e envolva não só insti- tuições, grupos e pessoas do campo educacional, mas do conjunto da sociedade, para discutir concretamente a educação que queremos para o País, o Sistema Nacional de Educação e a implementação do Plano Nacional de Educação e das demais leis que conquistamos. A Edu- cação foi a única grande área social que não realizou uma Conferência Nacional, entre 2003 e 2004, convocada pelo executivo federal, precedida de conferências municipais e estaduais. Queremos uma Conferência que contribua para o aprimoramento de todos os mecanismos e espaços de participação em educação. Participação entendida como partilha e democratização de poder, não como mera for- malidade, legitimação de propostas governamentais já existentes. A Conferência também pode contribuir para reaque- cer, na agenda da educação, a importância da elabora- ção democrática dos planos municipais e estaduais de educação, processo previsto no Plano Nacional de Edu- cação. Em jogo, está o desafio de que esses planos se- jam concebidos não como programas de governo, da gestão em exercício, mas como planos de Estado, tradu- zindo pactos e perspectivas mais permanentes para toda a sociedade. Entendemos que a elaboração dos PMEs e dos PEEs pode se constituir em oportunidade política ímpar para a explicitação, o debate e a negociação na esfera públi- ca das diferentes expectativas, projetos e visões sobre educação de qualidade, contribuindo para a ampliação do poder de influência da sociedade civil nas políticas públicas de educação. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 103 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 104 Algumas metas do PNE Meta Ampliar a oferta de educação infantil, de forma a atender a 30% da população de até três anos de idade em cinco anos e 50%, em dez anos (2011). Situação atual 11,6% da população atendida. Meta não cumprida. Meta Ampliar a oferta de educação infantil para atender a 60% da população de quatro a seis anos (ou quatro e cinco anos) em cinco anos e 80%, em dez anos. Situação atual 65% da população atendida. Meta cumprida. Meta Universalizar o atendimento a toda clientela do ensino fundamental, garantindo o acesso e a perma- nência de todas as crianças na escola, estabelecen- do, nas regiões em que se fizerem necessários, pro- gramas específicos, com a colaboração das três esfe- ras federativas. Situação atual Se considerarmos que a meta de universalização em cinco anos, tendo como base a situação de 2000, representava a necessidade de um acréscimo de 5,5% no atendimento até 2005, e que, decorridos quatro anos, o incremento é de apenas 2,7%, podemos afirmar que a meta prioritária do PNE para o ensino fundamental não será cumprida no pra- zo estabelecido. Meta Regularizar o fluxo escolar do ensino funda- mental, reduzindo em 50% as taxas de repetência e evasão, por meio de programas de aceleração de aprendizagens e de recuperação paralela durante o curso, garantindo aprendizagem efetiva. Situação atual A meta não revela quaisquer avan- ços significativos. A soma das taxas de rendimento no ano teve redução de 2,3%, passando de 22,7% para 20,4%. Note-se que nesses aspectos houve, inclusi- ve, acréscimo na taxa de abandono. Ainda mais tími- da foi a melhoria da ineficiência no fluxo. A redução em relação à soma de repetência e evasão foi de ape- nas 0,7%. Meta Assegurar a elevação progressiva do nível de desempenho dos alunos, mediante a implantação, em todos os sistemas de ensino, de um programa de monitoramento que utilize os indicadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e dos sistemas de avaliação dos estados e municípios que venham a ser desenvolvidos. Situação atual O maior desafio que se apresenta aos formuladores de políticas educacionais para o Ensino Fundamental refere-se aos sofríveis resulta- dos de aprendizagem, apresentados por estudantes brasileiros em avaliações nacionais e internacionais, a exemplo do PISA e do SAEB. Recente relatório de resultados do PISA-2003 — exame que avalia respos- tas de alunos de 15 anos em leitura, matemática e ciência — coloca o Brasil ao lado da Tunísia, Indo- nésia e México, entre os quatro piores resultados de um grupo de 41 países. Registre-se que houve me- lhores resultados do PISA entre 2000 e 2003. Meta Garantir os novos níveis de remuneração em todos os sistemas de ensino, com piso salarial pró- prio, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, assegurando a pro- moção por mérito. Situação atual O estudo do INEP/MEC, “Estatísti- cas dos Professores do Brasil”, apresenta tabela com- parativa dos rendimentos médios auferidos por al- guns grupos profissionais brasileiros que detêm grandes contingentes ou mesmo a totalidade de seus membros integrados no serviço público. (...) Os subgrupos integrantes do grupo profissional do magistério da educação básica são exatamente os que apresentam os mais baixos rendimentos entre todos os grupos incluídos. Fonte: Avaliação técnica do Plano Nacional de Educação, Con- sultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, Centro de Docu- mentação e Informação, Coordenação de Publicações, Brasília, 2004. Veja estudo completo em www.camara.gov.br Notas 1 Empoderamento é um conceito que emerge, nos anos 1970, do diá- logo entre várias áreas de conhecimento (psicologia, sociologia, política, economia, antropologia). Refere-se, em primeiro lugar, à percepção subjetiva de cada pessoa de estar em condições de tomar decisões e exercer poder. Tem sido assumido como conceito funda- mental em movimentos e organizações sociais comprometidos com a formação de sujeitos de direitos e com processos de transfor- mação social. 2 É importante registrar que, apesar de ter reunido mais de 1.500 pessoas de todo o país, a Conferência atraiu pouquíssimos parla- mentares federais, para além daqueles e daquelas historicamente comprometidos com a questão, o que infelizmente revela o lugar desvalorizado da educação pública na agenda do Congresso. 3 Disponível em www.camara.gov.br/internet/comissao/index/ perm/cecd/cecd_plan.HTM 4 Os vetos ao Plano Nacional de Educação, impostos pela área eco- nômica do governo Fernando Henrique Cardoso, em 2001, influíram nos artigos que tratam das condições de financiamento para a con- cretização das metas do PNE, em especial, do veto ao artigo que prevê o aumento do investimento em educação de 4,6% para 7% do PIB. Em seu programa de governo, o candidato Lula se compro- metia a derrubar os vetos. Estudo de 2003, realizado pelo INEP e IPEA, aponta que, na verdade, seria necessário o País aumentar o investimento a 8% do PIB para o cumprimento das metas do PNE. 5 A DRU (Desvinculação de Receitas da União) foi criada em 1994 pelo governo FHC com o nome de Fundo Social de Emergência e, depois, reeditado com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal e, finalmente, reeditado com o nome de Desvinculação dos Recursos da União. A DRU permite desvincular 20% de todo o orçamento da União, referente aos recursos da saúde, da educação, da assistên- cia e da previdência social. Assim, por meio da DRU, desde 1994, o governo retira dinheiro destinado a gastos sociais para outros fins — principalmente o pagamento da dívida. 6 Passando por várias fases de interrupção, a vinculação constitucional de recursos para a área de educação foi adotada pela primeira vez no Brasil em 1934, ressurgiu com a democratização de 1946, sendo reto- mada em 1983, com a aprovação da Emenda João Calmon. Em 1988, a Constituição ampliou a vinculação, determinando que a União apli- casse, anualmente, “nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Fe- deral e os Municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de im- postos” (excluídas as transferências) na manutenção e desenvolvi- mento do ensino, em seus diferentes níveis. 7 Essa fragilidade também esteve presente no processo de constru- ção da proposta do Fundeb. Apesar da realização dos colóquios e da teleconferência nacional (essa última proposta pela Campanha), entendemos que grande parte da equipe do MEC não assumiu “pra valer” que uma maior participação poderia se constituir em opor- tunidade de politização, aprimoramento da proposta e ampliação de sua força política. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 105 O que é a Campanha Nacional pelo Direito à Educação A Campanha Nacional pelo Direito à Educação foi lançada em 1999 por um grupo de organizações da sociedade civil, com o desafio de somar diferentes forças políticas pela efetivação dos direitos educa- cionais garantidos por lei, para que todo cidadão e toda cidadã tenham acesso a uma educação públi- ca de qualidade. Ela representa a ação articulada de 200 organizações e redes de todo o Brasil, incluindo sindicatos, movi- mentos sociais, organizações não-governamentais, universidades, grupos estudantis, juvenis e comuni- tários e muitas outras pessoas que acreditam que um país cidadão somente se faz com uma educação pública de qualidade. Em sua ação, a Campanha tem como foco a educação básica, mas sem perder de vista a educação como um todo. A Campanha é dirigida por um comitê nacional que representa importantes segmentos do campo educa- cional e possui comitês e pólos de ação em 13 esta- dos do Brasil. Atualmente, o comitê diretivo nacional é composto por Ação Educativa, ActionAid Brasil, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca/CE), Centro de Cultura Luiz Freire, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Edu- cação (CNTE), Movimento Interfórum de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), Movimento dos Trabalha- dores Rurais Sem-Terra (MST) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). As metas atuais da Campanha são: • derrubar os vetos ao Plano Nacional de Educação; • instituir o Custo Aluno Qualidade (CAQ) como base para a política de financiamento à educação; • cumprir a lei do Fundef; • estimular a elaboração democrática dos planos municipais e estaduais de educação; • realizar a Conferência Nacional de Educação, como processo ampliado de participação comprometido com a criação do Sistema Nacional de Educação. A Campanha Nacional integra a Campanha Latino- americana pelo Direito à Educação e a Campanha Global pela Educação. Ela atua por meio de estraté- gias de mobilização social, pressão sobre autorida- des (lobby), pesquisas, comunicação, articulação e Justiça (uso dos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais pela efetivação dos direitos conquis- tados na legislação). Para conhecer mais a Campanha, acesse o site: www.campanhaeducacao.org.br e/ou telefone para: (11)3151-2333, r. 133, 103 e 112. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 Introdução Os sistemas educacionais não têm conseguido alfa- betizar adequadamente. É o que revelam as avaliações externas, tanto em âmbito nacional quanto estadual. Muitos alunos terminam o primeiro ciclo do Ensino Fun- damental sem saber ler e escrever. Garantimos o acesso à escola, mas não à aprendizagem de todos. Buscando enfrentar essa situação, a Secretaria Mu- nicipal de Educação de Limeira desenvolve ações que têm como objetivo investigar, produzir informação, acompanhar, transformar práticas pedagógicas e disse- minar experiências bem-sucedidas de ensino da leitura e da escrita. Essas ações são organizadas em sete grupos: • monitoramento da aprendizagem; • formação inicial e continuada; • ampliação do atendimento à educação infantil; • visitas de acompanhamento; • disseminação de experiências bem-sucedidas; • organização do Plano de Referência Curricular; • recuperação paralela e enriquecimento curricular. Monitoramento da aprendizagem O diagnóstico é realizado por meio da avaliação da escrita, desde a educação infantil até a educação de jo- vens e adultos. Ele envolve o trabalho de observação dos conhecimentos que os alunos elaboram sobre a escrita, ou seja, como compreendem a escrita e de que forma representam graficamente a linguagem. Os da- dos são coletados em três momentos: março, junho e novembro. Após a coleta, os resultados são apresenta- Limeira, São Paulo. Indicações e propostas para uma boa política municipal de Educação Adriana Dibbern Capicotto* ESTUDO DE CASO Limeira, SP Dados do município População rural: 10.695 habitantes População urbana: 238.348 habitantes Índice de Desenvolvimento Humano: IDH 0,814 Índice de Desenvolvimento Infantil: IDI 0,669 (Unicef) Indicadores educacionais Analfabetismo na população acima de 15 anos: 17,3% Estabelecimentos públicos de educação: 161 Número de professores: 692 Total de matrículas no município: 41.748 Rendimento escolar no ensino fundamental municipal • Índice de aprovação: 95,0% • Índice de reprovação: 3,3% • Índice de abandono escolar: 1,7% • Taxa de distorção idade–série: 11,1% Fontes: INEP, Censo Escolar 2002; IBGE, Censo 2000; Unicef, 2002. * Adriana Dibbern Capicotto é coordenadora da área de Língua Portuguesa e Alfabetização do Centro Municipal de Estudos Pedagógicos de Limeira, SP. Limeira 106 dos às escolas e servem de ponto de referência para fazer a intervenção necessária, além de possibilitar a revisão do planejamento. Para a Secretaria, é um instru- mento de pesquisa que permite verificar a evolução do processo de aquisição da escrita pelos alunos da rede municipal, identificando dificuldades de ensino que podem ser trabalhadas em cursos de formação. Sistema de Avaliação da Rede de Ensino Municipal (Sarem) O Sarem foi concebido para avaliar, interpretar, pla- nejar e intervir. Ao conhecer os patamares de aprendi- zagem alcançados pelos alunos de um ano para o outro, torna-se possível analisar a adequação do projeto peda- gógico da escola para assegurar o sucesso da aprendiza- gem, verificar se as situações didáticas utilizadas estão cumprindo o seu papel e se a recuperação contínua está sendo eficaz. A proposta do Sarem procura uma nova forma de compreender a realidade de cada grupo, respeitando suas dificuldades e apostando em suas possibilidades. Para isso, cada turma estabelece suas estratégias, explo- ra seus recursos, cria seus itinerários. Percebemos que os índices de aprendizagem vêm aumentando, compro- vando que os dados fornecidos pelo Sarem são incor- porados à prática docente. Assim, o Sarem consolida-se como uma ação que visa a melhoria do ensino público municipal de Limeira. Formação inicial e continuada Muitos professores da rede municipal de ensino estão fazendo o curso de licenciatura plena por meio da parce- ria PEC Municípios — Formação Universitária. Sabemos, no entanto, que somente a formação inicial não é garantia de um ensino público com qualidade, pois, nos cursos oferecidos, nem sempre são aprofundados conteúdos específicos, como os referentes à alfabetização. Além disso, todo educador necessita refletir continuamente sobre o trabalho que realiza e buscar novos conheci- mentos. Sendo assim, o município investe em cursos de aperfeiçoamento contínuo, definindo o conteúdo de for- mação a partir dos resultados apresentados pelos alunos. Ampliação do atendimento à educação infantil O município atende 70% da demanda de zero a três anos, além de oferecer vagas para todas as crianças de quatro a seis anos. Garantir o acesso das crianças à Edu- cação Infantil é, certamente, assegurar maiores oportu- nidades para aprenderem e, com isso, oferecer uma aprendizagem mais ampla. Nessa faixa etária, a criança tem condição de entrar em contato com as diversas for- mas de representação — gestual, corporal, oral, escrita, e artística (música, artes plásticas, teatro) — e de ser desafiada a fazer uso delas. Desde muito cedo, os alunos manifestam interesse pela leitura e pela escrita ao tentar compreender seus significados e imitar os adultos escrevendo. Cabe à escola valorizar essa curio- sidade e interesse, propondo atividades interessantes. Visitas de acompanhamento A Secretaria, por meio do Centro Municipal de Estudos Pedagógicos (Cemep), acompanha o trabalho desenvol- vido pelos docentes, realizando visitas às unidades es- colares, orientações em horas de trabalho pedagógico coletivo (HTPC) e observações das práticas educativas desenvolvidas nas escolas. Essa ação oferece ao Cemep informações referentes ao desenvolvimento das orien- tações curriculares e às necessidades de cada unidade escolar. Disseminação de experiências bem-sucedidas Os docentes, anualmente, participam de um encontro de professores, organizado com a finalidade de promo- ver a troca de experiências bem-sucedidas. Esse evento reconhece as metodologias que proporcionaram melho- rias na aprendizagem e valoriza os profissionais que bus- caram novas soluções para enfrentar os desafios apre- sentados pela realidade escolar. Organização do Plano de Referência Curricular Todos os professores da rede municipal participaram da elaboração de um Plano de Referência Curricular (PRC), envolvendo a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos. Esse documento foi for- mulado a partir da análise dos Planos de Ensino de cada unidade escolar e resultou na definição de um rol de conteúdos por ano de escolaridade e para cada área do conhecimento. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 107 Esse Plano representa um grande avanço, pois hou- ve a proposição de objetivos e metas básicas para todas as escolas da rede municipal de ensino, sem tolher sua autonomia na busca de novos temas, metodologias e organização de situações didáticas. Esse instrumento apenas ofereceu um parâmetro quanto às expectativas relativas a cada ano de escolaridade. Recuperação paralela e enriquecimento curricular Estes projetos são elaborados pelas unidades esco- lares de acordo com suas necessidades e, depois, en- caminhados à Secretaria, que autoriza e faz o acompa- nhamento. A recuperação paralela caracteriza-se por procedimentos destinados ao atendimento dos alunos com dificuldades de aprendizagem não superadas no horário regular das aulas. São oferecidas de quatro a seis horas-aula, em ho- rário oposto ao das aulas regulares. O enriquecimento curricular é um projeto com aulas extras que possibili- tam a inserção do aluno no campo da informática, das artes, das atividades pré-desportivas, das línguas, dos jogos matemáticos e das habilidades de iniciação ao trabalho. Com esses projetos, os alunos têm condições de aprimorar suas habilidades. Educação de jovens e adultos Complementando essas ações, a Secretaria possui 47 classes descentralizadas para atender à educação de jovens e adultos, formada por um público que teve uma breve passagem pela escola ou não possui qualquer experiência escolar. A descentralização permite que os alunos possam freqüentar a escola próxima a sua resi- dência, diminuindo os índices de evasão escolar. Projeto Estudar pra valer! Em 2004, o projeto “Estudar pra valer!” veio enrique- cer as metodologias adotadas em Língua Portuguesa, apresentando propostas de leitura e produção de textos que se desenvolvem em torno de temas ou gêneros dis- cursivos, de modo que os atos de falar, escrever e ler na escola não percam seu caráter social. Além disso, a pro- posta de acompanhamento da aprendizagem dos alunos possibilitou-nos a reflexão sobre as atividades desenvol- vidas em sala de aula. Assim, ela nos deu um novo fôlego para continuar na busca por um ensino de qualidade. Estudar pra valer! O projeto “Estudar pra valer!”, desenvolvido pelo Cenpec com o apoio da Fundação Volkswagen, é voltado para o ensino de leitura e produção de textos nos ciclos iniciais do ensino fundamental. Consiste em: • assessoria para gestores de secretarias e departamentos de educação; • formação continuada de docentes e gestores das escolas; • acompanhamento do trabalho das escolas e da aprendizagem dos alunos. Um material de orientação para uso de professores e alunos dos quatro anos iniciais dá suporte ao trabalho em sala de aula. “Estudar pra valer!” foi desenvolvido com a rede municipal de ensino de Itanhaém, em 2002; nos anos de 2003-4, em São Carlos; e, em 2004, nos municípios de Cajamar, Bebedouro e Limeira. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 109 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 A utopia de um município voltado para as crianças Colocar as crianças em primeiro lugar? Muitos administradores públicos gostariam de rea- lizar esse sonho. Mas surgem diante deles tantas ou- tras “prioridades”, que fazem mais pressão do que as crianças de zero a seis anos! Essas “prioridades” aca- bam levando a maior fatia dos recursos, da propaganda e da imagem da administração, e as crianças ficam em segundo, terceiro, até último lugar. Outros pensam que isso é uma utopia, entendida como uma fantasia, uma coisa irrealizável. E relegam ao esquecimento a prioridade constitucional e o direito das famílias aos cuidados e à educação de seus filhos pequenos. Mas vem crescendo, a cada quatro anos, o número de prefeitos e prefeitas que encaram esse desafio. Eles tomam a decisão política de colocar a serviço da me- lhoria da qualidade de vida das crianças o melhor de seus esforços. Formulam, com as secretarias, outros órgãos públicos e organizações da sociedade civil, um programa municipal de atenção à criança. Juntos, con- cebem projetos inovadores e estratégias eficazes, e envolvem-se pessoalmente na coordenação das ações. Assim, surgem novas políticas e programas educa- cionais. Os indicadores de desenvolvimento infantil nesses municípios melhoram e as famílias estão se mostrando satisfeitas com o que o governo faz por suas crianças. É a utopia se tornando realidade... Eis o que escreveu Ary Siqueira, prefeito de Rio Negro (PR), sobre sua decisão de dar prioridade às crianças: “Temos realizado nossas utopias. Sonhamos, expo- mos nossos sonhos aos outros e os convidamos a nos ajudar a transformá-los em realidade. A partir do mo- mento que conseguimos sensibilizar e convencer as demais secretarias da administração pública, promove- mos a integração de ações interdisciplinares de atenção à criança, de modo a garantir seu pleno desenvolvimen- to, proporcionando-lhe acesso à educação e aos bens culturais, além de adequadas condições de saúde e assistência social, que se estendem também às famílias”. Assim entendida, a utopia é o sonho possível, na expressão de Paulo Freire. E essa utopia tem um papel muito importante na política. Ela é tão necessária quanto útil. Brilhando como um ideal, atrai o olhar do político e do administrador, encoraja-o nas decisões e o orienta na definição das ações. A utopia tem o poder de arregimentar energias, mobilizar sentimentos, su- perar dificuldades. Vale a pena ter a utopia de construir, no dia-a-dia, um futuro de maior justiça social, menor desigualdade, mais cidadania para as crianças. Quatro anos é pouco tempo para fazer tudo isso. Mas são quatro anos que podem ser lembrados como decisivos para as crianças. Suas marcas ficarão na his- tória do município. * Vital Didonet é professor com mestrado em educação, especial- ista em educação infantil, ex-consultor legislativo da Câmara dos Deputados e ex-vice presidente da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar. Membro do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq. Carta à Prefeita Carta ao Prefeito Uma cidade Vital Didonet* para a criança ARTIGO 111 Senhora Prefeita Senhor Prefeito Esta carta apresenta algumas idéias de como sua administração pode estar centrada nas crianças. A Cidade para a Criança pode ser a síntese de uma administração que coloca a infância e a adolescência como foco princi- pal das políticas públicas. A atenção à primeira infância é uma decisão política importante e fundamental para o desenvolvimento humano. Não seria maravilhoso que sua administração ficas- se registrada na história do município como aquela que soube escolher, como objetivo mais elevado, estrategi- camente mais eficaz, a atenção às crianças? Parece uma idéia sonhadora querer um município centrado na criança, uma política municipal pela infância que una todas as instituições do governo, as famílias, as organizações da sociedade. Parece utópico sonhar com um município onde as crianças sejam acolhidas, respei- tadas, atendidas em seus direitos. Mas, felizmente, um número cada vez maior de prefeitos e prefeitas vem pro- vando que esse sonho é possível. Estar entre esses ad- ministradores tem dado a muitos deles um sentimento de realização pessoal que compensa todos os esforços. Quanto mais perto o governo está da população, mais vizinho é de suas alegrias e sofrimentos, de seus pro- blemas e esperanças. Assim, mais rapidamente sente a presença e a urgência dos problemas. A dificuldade e a demora em obter respostas aumentam à medida que a solução passa do nível local para o estadual e, deste, para o nacional. A descentralização cria estruturas mais sensíveis para ouvir e se comprometer com a população local na busca de soluções para seus problemas concretos. Nas cida- des grandes e médias,o governo municipal cria regiões administrativas, promove o governo itinerante nas vilas, povoados e bairros, fazendo da proximidade com a po- pulação um elemento fundamental para as pessoas par- ticiparem das soluções. Essa estratégia pode inspirar respostas mais rápidas e mais apropriadas. Por que o município centraria na criança o foco de suas políticas? A(O) prefeita(o) teria argumentos sólidos para priorizar a criança na política municipal? Não se trata de uma decisão irresponsável, de uma falsa prioridade, de uma opção equivocada. Argumen- tos sociais, políticos, econômicos, éticos e científicos justificam essa prioridade. Quem decide fazer das crian- ças o centro das preocupações do governo toma a decisão mais acertada em política pública. Vejamos as razões que justificam essa decisão mu- nicipal. Uma razão científica No último século, várias ciências se debruçaram sobre a infância em busca do entendimento do adulto. Elas constataram que os primeiros anos de vida são cru- ciais para o desenvolvimento da pessoa, para a forma- ção da personalidade, para a construção da inteligência e das estruturas afetivas e sociais. A psicologia, a antropologia, a psicanálise, a socio- logia, a biologia, a neurociência fizeram descobertas fundamentais: a infância — zero a seis anos e, ainda mais intensamente, de zero a três anos — é o período da vida mais sensível a qualquer influência externa. Investir nessas idades é construir os fundamentos que vão sus- tentar a vida toda. Deixar de cuidar da criança é abrir um fosso de pro- blemas e sofrimentos que vai influir negativamente na sua trajetória como ser humano. As experiências infantis são decisivas, como bem sintetizaram estas duas afir- mações: “Tudo se decide até os seis anos”, “Tudo o que precisei saber na vida, aprendi no jardim de infância”.1 No entanto, nada é irreversível. Omissões e erros podem ser corrigidos e recuperados, mas é preciso saber que seus custos afetivos e econômicos são altos. Vale mais evitar que eles aconteçam. As políticas sociais voltadas à criança são formas de evitar os problemas. Mais do que isso, são formas de construir um futuro de justiça social e de paz, alicerçado sobre as bases de uma infância bem vivida. Uma razão social A criança vem ocupando um lugar cada vez mais des- tacado na sociedade. Até algum tempo atrás, ouvia-se dizer que criança era problema doméstico, assunto de mulher, tarefa da mãe... Hoje é diferente. A criança ga- nhou espaço no interesse de pesquisadores, cientistas, profissionais de diversas especialidades, dos meios de comunicação, de grandes organizações, da indústria, do comércio... Ela continua sendo tarefa da mãe, mas tam- bém missão do pai. É, ainda, assunto doméstico, mas, cada vez mais, de interesse público. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 112 O começo da atenção institucional à criança situa-se num fenômeno da urbanização. Desde o século XVIII, o trabalho extradomiciliar das mulheres vem forçando a sociedade e os governos a criarem instituições para atender crianças pequenas. Até então diluídas no con- junto da família como unidade de cuidado e educação, essas crianças passaram a ser motivo de preocupação. Com a saída dos pais para o trabalho, começaram a ficar sozinhas, estar sujeitas a acidentes, à desnutrição, a doenças e à morte. Creches, abrigos, “asilos”, jardins de infância etc. foram surgindo para atendê-las. Esse fenômeno continua na sociedade moderna e é muito forte no Brasil. Hoje, cerca de 35,5% das mulhe- res trabalham fora de casa. Onde não existe creche ou pré-escola, as mães se vêem forçadas a deixar seus bebês presos em casa, aos cuidados dos irmãos de seis, oito ou dez anos. Ou, então, a pagar uma vizinha para tomar conta deles. Quantas mães jovens têm que deixar seus filhinhos na casa dos pais! Para grande parte delas, a criança de até seis anos de idade, que deveria ser mo- tivo de alegria e esperança, é fonte de preocupação e angústia, conseqüência da falta de instituições que as ajudem a cuidar de seus filhos e a educá-los. Esse fenômeno ocorre em seu município? Se, para sobreviver e se desenvolver, a criança preci- sa da atenção cuidadosa dos adultos, é importante que os pais que ficam o dia fora de casa, no trabalho, tenham uma estrutura social de suporte para ajudá-los a cuidar de seus filhos e a educá-los. Por isso, a creche e a pré- escola são direitos sociais dos trabalhadores, homens e mulheres, conforme estabelece o artigo 7o, XXV da Constituição Federal. Nos municípios industrializados ou nos setores de co- mércio e serviços mais desenvolvidos, as necessidades de instituições de educação infantil são prementes. Os problemas — como acidentes graves e até fatais com as crianças pequenas que ficam sozinhas em casa ou aos cuidados de irmãos um pouco maiores — ocorrem cada vez com mais freqüência. Os trabalhadores e seus filhos sofrem com a falta de creche e pré-escola. O ritmo de urbanização de seu município e de cresci- mento do número de empregos determina o incremento da demanda por instituições de educação infantil. É im- possível dissociar os dois. argumento econômico O que se aplica na educação da criança gera uma taxa de retorno mais alta do que qualquer outro investi- mento. Pesquisas do Banco Mundial apontam: um dólar aplicado na educação infantil produz sete dólares de re- torno. Em outras palavras, se aplicamos mil reais na creche ou na pré-escola, a economia brasileira vai ganhar sete mil reais. As crianças que freqüentam a educação infan- til têm menos reprovação no ensino fundamental e isso também é um grande ganho econômico. argumento do direito Receber cuidados e educação na infância é um direito da criança. Está dito na Convenção dos Direitos da Crian- ça, na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Tal direito deve ser atendido com priori- dade absoluta, determina nossa Carta Magna (artigo 227). Em nenhum outro lugar, senão quando estabelece os direitos da criança, a Constituição usa a expressão “prioridade absoluta”. Essa forma de encarar a criança como cidadão e sujeito de direitos não é privilégio de nosso país. É um movimento presente no mundo, que começou no século passado. Na segunda metade do século XX, a humani- dade reconheceu e escreveu os direitos da criança, além de promover importantes reuniões mundiais para elaborar planos de ação e assumir compromissos em relação às crianças. No preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança, a ONU declarou que as nações devem à criança o melhor de seus esforços. Encarada sob o ângulo do direito, a educação infantil tem mais qualidade do que quando é oferecida apenas como resposta à necessidade das famílias ou da crian- ça. Supera a tentação ao assistencialismo e promove a cidadania. E, finalmente... Uma razão política O cidadão começa a formar-se na infância. A capaci- dade de pensamento crítico, de participação, de segu- rança emocional, de responsabilidade, e os valores da solidariedade, da cooperação, da paz e muitos outros começam a formar-se nos primeiros anos de vida. É ali que se lança a base de uma cidadania consciente, parti- cipativa e democrática. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 113 Em todo o mundo, há um interesse crescente em for- mular políticas para cuidar das crianças. Investir na in- fância passou a ser a decisão mais inteligente, a tarefa mais nobre, a prioridade número um. O retrato mais bo- nito de uma sociedade é aquele que mostra as crianças bem atendidas, com seus direitos assegurados. Por tudo isso, podemos afirmar que a atenção inte- gral à criança é uma decisão política inteligente. Passos para o Município fazer o melhor por suas crianças Decisão política O ponto de partida, certamente, é a decisão política. Ela dá sustentação a todas as iniciativas. Sem ela, as dificuldades se tornam insolúveis, as ações ficam lentas, as pessoas começam a desacreditar e tornam-se pes- simistas. Quando o(a) prefeito(a) demonstra que tomou a decisão, ele mobiliza todas as forças disponíveis no município, revela entusiasmo, acredita nos resultados. Compromisso político O compromisso é o ato de coerência com a decisão. Revela a sinceridade do que se diz. É a junção do coração com a inteligência. Da palavra com os atos. A decisão política, no entanto, não é um ato isolado e indepen- dente do dirigente municipal. É importante que os secre- tários de Governo e os técnicos compreendam o signifi- cado dessa opção e se comprometam com ela. Cada setor da administração pública tem algo a ver com as crianças. Se o(a) prefeito(a) fizer a cada um de seus secretários a pergunta: “Em que essa ação benefi- cia as crianças?”, estará induzindo-os a vislumbrarem as crianças em cada um de seus atos e a exigirem que os recursos sejam aplicados com o máximo de seriedade e eficiência. A criança força a ética na política pública. Mobilização da sociedade A sociedade tem um papel fundamental na garantia dos direitos da criança. Junto à família e ao Estado, ela deve assegurar, com absoluta prioridade, os direitos citados no artigo 227 da Constituição Federal. Como é que a sociedade pode fazer isso? A própria Constituição dá a resposta: por meio de suas organizações representa- tivas, participando da formulação das políticas para a infância e controlando as ações governamentais, nos ní- veis federal, estadual e municipal. Para tanto, foram previstos, na legislação, os Conse- lhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, os Con- selhos de Saúde, de Assistência Social, de Educação, de Alimentação Escolar, de Controle Social do Fundef etc. Alguns Conselhos têm representação paritária do gover- no e da sociedade. É um avanço sem precedentes em nossa história democrática. Mas a sociedade encontrou ainda outras formas de participar. Organiza-se em Organizações Não-Governa- mentais (ONGs), que são instituições privadas, sem ob- jetivo de auferir lucro, com finalidade filantrópica. Cer- tamente em seu município há uma, ou várias, dessas or- ganizações, integrada por voluntários que dedicam parte de seu escasso tempo a fazer o bem para os outros. Na área da educação infantil, existem milhares de ONGs no Brasil. Muitas delas recebem apoio do governo e de empresas para realizar suas ações. Além dessas ONGs, foram criados Institutos e Fun- dações por empresas, com a finalidade de atuar na área social. O capítulo Instituições informa sobre as mais ex- pressivas, no âmbito internacional e nacional, que atuam na área dos direitos da criança. Recentemente, foi aprovada uma lei que dispõe sobre as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP),2 que se aproximam bastante das funções do Estado na área dos direitos humanos, da saúde, da segu- rança alimentar e nutricional, da educação, da cultura e da assistência social e com as quais o governo pode fir- mar Termo de Parceria. Em diversos capítulos desse Guia, são relatados exem- plos de trabalho social desenvolvidos por ONGs e por Fundações e Institutos em favor das crianças de zero a seis anos. Se a participação da sociedade em políticas e ações que visam garantir os direitos da criança é um fenô- meno mundial, no Brasil ele não é menos expressivo. É importante que o governo municipal possa contar com a participação de ONGs, de Fundações, Institutos e OSCIPs para garantir os direitos de todas as suas crianças. Articulação com as políticas e programas nacionais e estaduais A autonomia do município não significa isolamento nem auto-suficiência. A organização político-administrativa Cadernos Cenpec 2006 n. 1 114 da República Federativa do Brasil define competências privativas, competências comuns e competências con- correntes para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Na área dos direitos da criança de zero a seis anos, todos têm competências: a. Competência da União Elaborar e executar o plano nacional de desenvolvi- mento social (Cf. art. 21, IX) e (privativa) legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (Cf. art. 22, XXIV). b. Competência comum de todos os entes Cuidar da saúde e da assistência pública e da proteção das pessoas portadoras de deficiência; proporcionar os meios de acesso à educação e à cultura; proteger o meio ambiente; promover programas de construção de mora- dias e melhoria das condições habitacionais e de sanea- mento básico; combater as causas da pobreza e os fato- res de marginalização, possibilitando a integração so- cial dos setores desfavorecidos (art. 22, II, V, VI, IX e X). c. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal Legislar sobre educação, cultura, desporto, proteção e defesa da saúde, proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência, proteção à infância (Cf. art. 24, IX, XII, XIV e XV). d. Compete aos Municípios Legislar sobre assuntos de interesse local; suple- mentar a legislação federal e estadual no que lhes cou- ber; manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar; prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da popu- lação (Cf. art.30, I, II, V e VII). Nos planos e programas da União e do Estado (PPA, orçamento anual, programas setoriais etc.), encontram- se recursos e linhas de cooperação técnica, aos quais o município deve recorrer para suplementar suas ações na garantia dos direitos da criança pequena. Para citar um exemplo concreto: O Presidente da República lançou o Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente durante a V Conferên- cia Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em Brasília, em dezembro de 2003. São 200 ações agru- padas nos quatro compromissos constantes do docu- mento “Um mundo para as Crianças”, aprovado na Seção Especial pela Criança, realizada pela ONU, em 2002: • promovendo vidas saudáveis; • provendo educação de qualidade; • protegendo-as contra violência, abuso e exploração; • combatendo HIV/Aids. Foram alocados R$ 55,9 bilhões para o Plano, com o objetivo de garantir o acesso aos serviços públicos de qualidade a mais de 60 milhões de meninos e meninas de zero a 18 anos, a partir de 2004. Vários ministérios, mais o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), estão envolvidos na sua execu- ção, e as ações serão coordenadas pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Uma rede de ONGs vai monitorar o cumprimento das metas. Os municípios poderão recorrer ao Governo Federal para obter apoio técnico e financeiro para suas ações, em consonância com as metas desse Plano nacional. Notas 1 Título de dois livros: DODSON, Fitzhugh. Tout se joue avant 6 ans. Paris: Marabout; e FULGHUM, Robert. Tudo que eu devia saber na vida aprendi no jardim-de-infância. São Paulo: Editora Best Seller, 1988. 2 As OSCIPs são regidas pela Lei Federal n° 9.790/99. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 115 Várias ciências constataram que os primeiros seis anos de vida são cruciais para a formação da personalidade, da inteligência e das estruturas afetivas e sociais. 1. Política Municipal pela Infância Os nomes podem variar: política municipal de de- senvolvimento infantil, política integrada de atenção à criança, ação política pela infância etc. É importante que todas as instituições governamentais e não-governamentais participem da formulação dessa política, para que ela seja global, integrada, abrangente, atenta aos direitos da criança e tenha a força política e social necessária para garantir continuidade, participa- ção na sua implementação e transformação social. Entre essas instituições, estarão, por exemplo, o Ga- binete do Prefeito, os órgãos municipais que cuidam da educação, da saúde, da assistência social, do meio am- biente, da habitação, do esporte e lazer, da cultura, do saneamento, do planejamento e fazenda e os institutos e fundações, o Ministério Público, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, os Conselhos de Educação, de Saúde e de Assistência Social, as orga- nizações não-governamentais, as empresas socialmente responsáveis etc. 2. Plano Municipal de Ação pela Criança É importante que todos os direitos da criança sejam contemplados neste Plano. Por isso, é preciso reunir os diversos órgãos que tenham alguma atribuição relativa à criança para que participem e, em conjunto, definam os objetivos, as metas, as ações, as estratégias, os recursos financeiros, o controle dos resultados. Um plano global e integrado é a melhor forma de ga- rantir que todos os direitos sejam atendidos e com mais eficiência. Se cada secretaria ou setor faz o seu plano separadamente e atua sem articulação com os demais, a criança é tratada com se fosse um conjunto de “caixi- nhas” (por exemplo, a saúde, a educação, a assistência, a cultura...). Se a opção municipal for pela elaboração de um plano que abranja a criança e o adolescente, é importante que nele fiquem explicitadas as ações voltadas à primeira infância. Isso facilita o acompanhamento e a avaliação dos resultados. Este plano engloba, de maneira sintética, os itens re- lativos à criança constantes dos planos setoriais, exigidos pela legislação, ou aqueles que o município elabora por iniciativa própria. 3. Planos Setoriais A partir do Plano Municipal de Ação pela Criança, cada setor elabora o seu plano específico, que é mais detalhado do que o global: • Plano Municipal de Saúde, exigido pela lei do SUS — Lei no 8.080, de 1990; • Plano Municipal de Educação, determinado pela Lei no 10.172/2001, com metas para dez anos; • Plano Municipal de Assistência Social, requerido pela LOAS, Lei no 8.742, de 1993; • Planos de desenvolvimento ambiental, de habitação, saneamento etc. Instâncias de Organização Social pela criança Para formular a política e os planos, o município conta com várias instâncias políticas e técnicas como: • Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente; • Conselho Municipal de Saúde; • Conselho Municipal de Educação; Cadernos Cenpec 2006 n. 1 Instrumentos para construir uma cidade da criança Vital Didonet* INSTRUMENTO DE GESTÃO * Vital Didonet é rofessor com mestrado em educação, especialista em educação infantil, ex-consultor legislativo da Câmara dos Deputados e ex-vice presidente da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar. Membro do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq. 116 • Conselho Municipal de Assistência Social; • Órgãos da administração direta (secretarias) e indi- reta (fundações, institutos); • Associações (ONGs e outras). A participação desses organismos está em consonân- cia com a Constituição Federal, em seu artigo 227, § 7o, combinado com o artigo 204, II: “A formulação das políti- cas de atendimento dos direitos da criança e do adoles- cente, bem como o controle das ações, deve contar com a participação da população por meio de suas organiza- ções representativas”. É importante, também, uma articulação estreita com a Câmara de Vereadores, uma vez que a esse poder cabe aprovar os Planos e seus orçamentos. Se houver entro- samento entre os Poderes, a tramitação legislativa se processa com mais rapidez e facilidade. Municípios pela criança Milhares de municípios já escolheram a criança como foco central de suas políticas. Os efeitos sobre a quali- dade de vida começam a aparecer — redução da mor- talidade materna e infantil, da morbidade na infância, da desnutrição, maior número de crianças em creches e pré-escolas, famílias com mais condições econômicas e ambientais de cuidar e educar seus filhos, mais brinque- dotecas, praças públicas pela cidade etc. E isso vem se tornando possível porque o governo municipal lidera um processo de articulação das institui- ções, a partir de uma visão integral e integrada da crian- ça como pessoa, cidadã e sujeito de direitos. Poder pú- blico e iniciativa privada se juntam para alcançar os ob- jetivos comuns. Aqui são apresentadas apenas algumas dessas ini- ciativas, que exemplificam ações possíveis, de alta qua- lidade e com resultados já confirmados. Por causa de sua força sinérgica, foram priorizadas aquelas iniciativas que integram ações setoriais, por meio da articulação dos vários órgãos, governamentais e da sociedade civil. O intercâmbio entre os municípios, em seminários, encontros, reuniões técnicas e pela Internet, tem poten- cial de ampliar muito o conhecimento das experiências, no território brasileiro. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 117 Milhares de municípios já escolheram a criança como foco central de suas políticas. Os efeitos sobre a qualidade de vida começam a aparecer: redução da mortalidade materna e infantil, redução da desnutrição, crescimento do número de crianças em creches e pré-escolas, melhores condições para as famílias cuidarem e educarem seus filhos, crescimento e melhoria de brinquedotecas e de praças públicas. Itens para prefeitas e prefeitos conferirem a aplicação da prioridade absoluta dos direitos da criança no conjunto das competências municipais • Elabora um plano municipal para a infância que integre os vários setores, abranja todos os direitos e seja participativo, envolvendo a sociedade. • Planeja a cidade para a criança: solicita ao secretário de Obras e do Meio Ambiente, da Educação ou da Cidade, a criação de espaços lúdicos, ambientes de lazer, lugares de convivência com a natureza para as famílias e as crianças. • Coordena o plano municipal pela infância, com liderança, espírito democrático e compromisso pessoal. • Estabelece diretrizes para a elaboração do Orçamento anual e do PPA, a fim de garantir a absoluta prioridade para os direitos da criança e do adolescente, conforme determina a Constituição Federal. • Cria e coordena um fórum municipal de acompanhamento e avaliação da política municipal para a infância. • Publica o Orçamento Municipal e sua execução, nos itens relativos aos direitos da criança. • Informa à população e às entidades municipais os problemas que afetam as crianças no município, as ações que estão sendo realizadas e seus resultados. • Solicita ao órgão municipal competente uma política de educação infantil e apóia a sua realização. • Apóia a elaboração e execução do plano municipal de saúde, segundo as diretrizes do Conselho Nacional, do Conselho Estadual e do Conselho Municipal de Saúde. • Apóia a elaboração e execução do plano municipal de assistência social, segundo as diretrizes do Conselho Municipal de Assistência Social. • Promove a maior qualificação dos diversos atores municipais dos direitos da criança, em seminários, cursos, oficinas, troca de experiências. • Chama ao Município programas nacionais e estaduais voltados para as crianças de zero a seis anos. • Reúne-se com prefeitos de municípios vizinhos para planejar e executar ações que possam ser mais bem desenvolvidas em conjunto. • Cria o Conselho Tutelar, dando-lhe condições adequadas de funcionamento. Apóia o Ministério Público na realização das eleições e na qualificação dos conselheiros. • Cria o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, garantindo-lhe meios de funcionamento. • Apóia as ações do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente na obtenção de recursos para o Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (contribuições de pessoas jurídicas e de pessoas físicas). • Cria e apóia o funcionamento dos Conselhos Municipais de Saúde, de Educação e de Assistência Social. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 118 • Desenvolve, com seus secretários de Educação, de Saúde e de Assistência Social, e outros com responsabilidades afins aos direitos da criança, uma política de apoio às famílias para que esses direitos sejam assegurados. • Visita freqüentemente o hospital e os centros de saúde para verificar o grau de satisfação das famílias quanto ao atendimento às gestantes, nutrizes e crianças. • Visita periodicamente as instituições de educação infantil (creches e pré-escolas), conversa com as crianças, os pais e os profissionais que ali trabalham. • Mantém programa radiofônico para as famílias, especialmente da zona rural, visando apoiar e fortalecer suas competências na garantia dos direitos da criança. • Envolve-se nas campanhas de vacinação, analisa os dados de cobertura vacinal no município, procura identificar as crianças ausentes e determina ações à Secretaria de Saúde para alcançar a meta de 100% de vacinação. • Estabelece como meta a entrega da certidão de nascimento a toda criança nascida em hospital do município e que nenhuma criança residente no município permaneça sem registro civil de nascimento. • Solicita medidas junto aos órgãos competentes (Ministério Público, Secretaria de Segurança Pública, Conselho Tutelar, Conselho Municipal da Criança e do Adolescente) para evitar casos de desaparecimento de crianças. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 119 Constituição Brasileira Artigo 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Educar numa cidade-estado ste artigo tem origem na experiência pessoal de um pesquisador e professor universitário que dirigiu, como Secretário Municipal da Educação da cidade de São Pau- lo, as 1.300 escolas e seus mais de 60 mil funcionários. Minha ação, em quase 15 meses de trabalho (dezembro/ 2000 a fevereiro/2002), abrangia desde o planejamento, a execução orçamentária, o projeto de formação dos edu- cadores (incluindo desde o faxineiro ou zelador até os professores e diretores), a manutenção e ampliação da merenda escolar (com 1,5 milhão de refeições diárias) até a compra de 14 mil computadores e a manutenção dos 1.300 prédios escolares... O atendimento da rede municipal de São Paulo inclui as escolas de Educação Infantil e Creches, assim como quase 600 escolas de Educação Fundamental, além de oito escolas de Ensino Médio, escolas de Educação Es- pecial para surdos e cegos e as atividades no âmbito da Educação de Jovens e Adultos (EJA) — curso de comple- mentação dos estudos para adultos, em períodos mais curtos, reconhecidos pelo Estado — em regime de “su- plência”. Entretanto, essa grandeza de números e essa multi- plicidade de problemas são ampliadas pela inserção dessa imensa rede escolar numa complexa rede urbana, com características especialmente adversas: a cidade- estado de São Paulo. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 121 Tecnologias da comunicação para Fernando José de Almeida* a cidade educativa E ARTIGO * Fernando José de Almeida é mestre e doutor em Educação pela PUC-SP; professor do curso de pós-graduação da Faculdade de Educação da PUC-SP; foi secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo. Homenagem a uma metrópole São Paulo “terra da garoa”. Esta era uma forma cari- nhosa com que se cognominava a cidade. A garoa se foi e se foi com ela também um certo carinho com que seus habitantes se dirigiam à cidade cinzenta. Foi-se a garoa, foi-se parte do carinho pela cidade. Hoje, megalópolis, ela é mais conhecida por sua violência, pela “enormidão” de seu espaço, pelo asfalto decepando as árvores, pelas massas famintas ocupando agilmente as esquinas, pelos carros que atropelam, pelas crianças pedintes nas ruas... Cabe aqui, neste breve artigo, retomar o caráter de metrópole desta terra. Mas não como qualquer mãe, e sim como aquela à qual se colocam sempre novos pro- blemas. E como ela responde a tais exigências! As exi- gências em relação às tecnologias da informação e da comunicação, de que trata este artigo, são as exigências das escolas públicas e da sociedade que as ladeia. Cidade-mãe: metro-pólis. Ela continua sendo nossa mãe e mãe para muitos que acorrem a ela, e são cente- nas de milhares a cada ano, buscando suas promessas e riquezas. Riqueza que existe e é mal distribuída. Os sonhos não são dela, mas daqueles que aqui aportam ou aterrissam. Ela é mãe e continua “mater, méter, metros-pólis”... O que São Paulo não perdeu foi seu caráter de abrigar as pessoas. E pode ir adiante nesta tarefa. O que fazem os governos e os programas democráti- cos da nossa República? Organizam as ações do Estado para que haja escolas, hospitais, eletricidade, água po- tável e esgotos, transporte, habitação e lazer... Na função de abrigar, está o compromisso de educar. A cidade, além de tudo, tem caráter educador. Cada vez mais os grandes centros urbanos se tornam agentes educadores, pois contêm enormes depósitos de cultura, saber, conhecimentos, técnicas, jogos de relações, es- paços de convívio, obras de artes em espaços públicos, locais de trabalho, instituições educativas que em muito extrapolam o que faz a escola... A cidade está aí, mas nem sempre a vemos em sua dimensão humanizante. Ítalo Calvino, em seu livro Mar- covaldo ou as estações na cidade, conta a história fanta- siosa de um personagem que vem do campo e descobre a cidade, extraindo dela muitas razões para existir. “Esse Marcolvaldo, tinha um olho pouco adequado para a vida da cidade: avisos, semáforos, vitrines, letrei- ros luminosos, cartazes, por mais estudados que fos- sem para atrair a atenção, jamais detinham seu olhar, que parecia perder-se nas areias do deserto. Já uma folha amarelecida num ramo, uma pena que se deixas- se prender numa telha, não lhe escapavam nunca: não havia mosca no dorso de um cavalo, buraco de cupim numa mesa, casca de figo se desfazendo na calçada que Marcovaldo não observasse e comentasse, descobrindo as mudanças da estação, seus desejos mais íntimos e as misérias de sua existência” (Calvino: 1997, p. 7). Esta cidade é, ao mesmo tempo, mãe e madrasta. Mas é preciso, como Marcovaldo, saber olhar para ela e apelar para as suas habilidades de mãe e educadora. O diálogo com as múltiplas faces, sob as quais se apre- senta a cidade e seus recônditos, é uma forma inteligen- te e responsável de se sobreviver nela e ir além. Jornais, folhetos, faixas, cartazes em postes, pipas nos fios dos postes, paróquias e muros mostram semanal- mente quantas atividades culturais, de lazer e de espor- tes estão disponíveis gratuitamente. É verdade que os campos de futebol de várzea minguam, comprados por empreendimentos comerciais e para asfaltamento, sem contar os preços dos terrenos. Além disso, há as ocupa- ções “grileiras”, que reduzem, a cada dia, as opções de lazer e convívio. O Estado tem se mostrado padrasto na criação das áreas públicas de lazer e cultura. Nada de cadeiras na calçada, como nas cidades do interior do país. As zonas Leste e Sul da cidade são as mais marcadas por essa omissão do Estado. A face criativa, educativa e artística do caldo de cultura de São Paulo está escondida pelas limitações e desconsiderações dos investimentos que nos solicitam a pensar em longo prazo, assim como o exigem os frutos da cultura e da educação. A cidade torna-se, portanto, um currículo vivo, o lugar de onde a escola absorve seus conteúdos, sua problemá- tica e sua polissemia. Por outro lado, a cidade mantém uma simbiose com a escola, porque por ela passam as críticas e as soluções de seus problemas, uma vez que nela estudam as gerações que comporão a direção da sociedade. É essa concepção de currículo que exige uma leitura do mundo — a cidade é o mundo em que as pessoas entram quase sem retorno — como queria Paulo Freire. O fato de a escola ter um projeto educativo para a cidade, do qual ela participa não como invólucro, mas como media- dora, é um ato político. O ato pedagógico é um ato polí- tico forte e freqüentemente escondido. Diz Paulo Freire: Cadernos Cenpec 2006 n. 1 122 “...quando discuto, enquanto educador, com um grupo de jovens, estou na ótica do pedagógico, pretendo con- vencer. Muito bem, mas convencer para quê? Para que este convencimento acrescente algo à luta pela busca de vitória de uma perspectiva de sociedade, aquela que me move... mas contribuir com este convencimento para que eles engrossem amanhã a luta pelo vencer, no sen- tido de mudar a história. Sou também político, portanto, e sou político na própria especificidade da pedagogia.” (Freire et al.: 1985, p. 31) Mas é fundamental que se compreendam as maqui- nações das organizações, das economias acumulativas e dominadoras para que se possa exercer uma prática pedagógica politicamente consistente. Os conceitos que a pedagogia trabalhava, até o fim do século XX, não são mais suficientes para explicar as contradições pelas quais a nossa sociedade passa. Quais são os novos desafios da educação na construção de uma sociedade mais justa? Os conceitos usuais das tecnologias na educação tam- bém não são mais adequados para compreender o que pode vir a ser a informática, por exemplo, aplicada à edu- cação com projeto pedagógico consistente. Já superamos a visão ingênua de que o uso do com- putador serve para facilitar o estudo dos jovens ou que sua finalidade é a auto-aprendizagem. Ao contrário, as novas modalidades de aprendizagem colocam novos e maiores desafios aos jovens estudantes. Nada de bara- tear ou infantilizar a tarefa de estudar, pesquisar e pro- duzir conhecimento! O desafio é maior ainda: proporcio- nar uma educação inclusiva e de qualidade. Mas como fazer isso? Primeiro, cabe-nos esclarecer o novo conceito de exclusão. Do conceito de exploração do trabalho para a vivência da exclusão. Ou a inclusão pela cultura. A teoria marxista tem como um dos pressupostos para a análise do modo de produção capitalista a explo- ração do trabalho. A extração da mais-valia é hoje quase uma “delicada” forma de exploração frente à nova for- ma de serem tratados os desempregados na sociedade capitalista de máxima organicidade e máximos resulta- dos. O que se faz em nível local e mundial é a violenta exclusão da própria sociedade, como uma espécie de morte em vida. Por ela, impede-se o acesso aos bens mínimos e se dizimam as populações não cidadãs numa sociedade em que só têm cidadania aqueles que conso- mem. Consumo e cidadania se identificam e se atraem. Os números mundiais de exclusão são cada vez mais ameaçadores para as populações e para os cidadãos comuns que a sentem na pele, por meio da fome e da falta de condições na saúde, ou são suas vítimas indiretas, sofrendo com a violência das guerras e das lutas intesti- nas dos grandes aglomerados urbanos de países “sub”. Nosso trabalho de educadores se desenvolve e se desenvolverá nesse cenário em que a luta não é contra a exploração do trabalho, mas, mais profundamente ainda, contra a exclusão social e humana, face mais mo- derna e mais cruel do modelo econômico hegemônico em que vivemos, neste começo de século XXI. Faremos, neste início, uma análise negativa do quadro social e educativo para posterior síntese propositiva. As cidades se partem, seja por sua capacidade celular de sobrevivência, seja pela indução de políticas estatais e governamentais de subsidiar a auto-sustentação, em nichos locais, evitando assim uma espécie de “contami- nação” popular em todas as áreas da urbs. Por que se trazem aqui tais considerações? Porque parece adequado que a forma de inclusão di- gital (e suas práticas correspondentes), defendida neste trabalho, seja feita segundo essa micropolítica de apro- veitamento das forças que já se instalaram na sociedade. Os aspectos educacionais, embutidos em nossa peri- feria e em seus sobreviventes, estão postos de maneira rude, mas clara. Os grupos se reúnem em torno de pe- quenas tarefas, de associações e do apoio a movimen- tos políticos ou religiosos cada vez mais “territorializa- dos”. As ONGs começam a desempenhar função organi- zadora por “decalque” das forças vivas dos quarteirões, dos conjuntos, das quadras, dos grupos de comércio local, dos jovens etc. Só na favela de Paraisópolis, em São Paulo, há mais de 70 movimentos sociais organizados e com forte atua- ção na solução dos problemas do bairro. Políticos, igrejas, organizações religiosas, de saúde, escolas e as próprias Cadernos Cenpec 2006 n. 1 123 A cidade é o mundo em que as pessoas entram quase sem retorno, como queria Paulo Freire. Administrações Regionais da Prefeitura quase nada podem fazer se não contarem com essas competências, lideranças e conhecimentos locais. O drama Hoje existem em torno de 400 mil jovens e adultos anal- fabetos da cidade de São Paulo. De que eles sofrem? Eles não têm acesso aos itinerários dos ônibus, às bulas de remédio, aos letreiros de filmes na TV, às contas de luz, à leitura da Constituição, aos direitos do cidadão ou do consumidor, à plataforma de seu partido político ou aos dados de seu contracheque... Seus netos, irmãos mais novos, amigos, filhos ou os transeuntes precisam ler para eles. Excluídos de uma conquista da humanida- de que data de 10 mil anos, a escrita, ainda guardam na sua “poupança negativa” mais uma nova forma de exclu- são: o analfabetismo nas novas tecnologias da comuni- cação, uma nova forma de escrita do mundo! Para eles, esta cidade não tem o sentido que poderia e deveria de fato ter. Lêem-na, mas não a escrevem. Passo básico para o início da conversa: inclusão digital. A inclusão digital — conceito, repito, que deve ser alar- gado para além de disponibilizar máquinas e acesso à rede mundial — e a superação da exclusão digital ne- cessitam da articulação das forças vivas da sociedade, seja para absorvê-las, seja para juntas criarem inovações, atendendo a seus projetos políticos e culturais. Passa-se por alguns questionamentos quando se trabalha com a inclusão digital em regiões carentes: estaríamos, nós, educadores, criando mais uma neces- sidade de consumo, trabalhando a favor dos produtores de máquinas e softwares? Será que estamos apenas mostrando da maneira mais cruel algo que eles nunca po- derão ter? E mesmo que alguns escapem desse mundo marginal por dominarem alguns instrumentais da tecno- logia, não estaremos oferecendo solução para a vida de apenas alguns deles, que serão exceções que confirma- rão a regra da exclusão? Milton Santos diz algo que ajuda a equacionar nos- sas dúvidas: “É necessário abrirmo-nos a outras soluções fundadas no tripé: Território, Cotidiano, Culturas. Gente junta, que cria trabalho, gente reunida é produtora de economia, criando, conjuntamente, economia e cultura. E sendo produtor de cultura (diria eu, também educação) é tam- bém produtora de política. O país de ‘baixo’ é uma fábri- ca de manifestações genuínas, repetitivas e autênticas. É aí que se encontra a riqueza da improvisação. Essas for- mas espontâneas, ou quase, tanto são alimentadas pelas tradições quanto pelas inovações. Esse mundo dos ho- mens lentos é que lhes permite fruir, gozar, ampliar a cultura territorializada, onde se dá a fusão entre o tempo Cadernos Cenpec 2006 n. 1 124 e lugar como expressão da vida em comunhão, na soli- dariedade e na emoção.” (Santos, M.: 2000, p. 37). Nossos grupos de pesquisadores e de formadores/ docentes têm sentido e se “pré-ocupado” com o que de fato as pessoas farão. São milhares de jovens e adultos, que se alfabetizam concomitantemente nos dois mundos — o das letras e da informática —, mas terão eles um projeto humanizador e inclusivo para a solução de seus problemas sociais? Ou, antes, poderão cair nas facilida- des de sempre se sentirem inferiores e nunca suficiente- mente dominadores do instrumental para uma verda- deira interferência na solução dos problemas locais. E, se eles se descuidarem, terão a maior parte de seu tempo tomado para dominar os malabarismos com a máquina e pouco tempo para investigar as possibilidades que a máquina oferece no sentido de equacionar seus mais elementares problemas. De novo, Milton Santos (2000, p. 36) aponta uma perspectiva: “Esse cotidiano que é a quinta dimensão do espaço, reúne as heranças, o presente fugaz e o futuro sonhado, permitindo que o pragmatismo da vida cotidiana, lem- brado por Agnes Heller,1 acabe sendo um pragmatismo existencial, movido pela emoção. Esse cotidiano apare- ce de um lado como coerência do grupo com seu entorno, como o meio, como o lugar, produzindo manifestações que, por essas raízes, são dotadas de força e, de outro, permite a produção da transgressão, isto é, a capacidade de não aceitar o estabelecido, tanto na idéia quanto na prática. Aliás, essa é a única forma de produzir o futuro.” Embora o texto de Milton Santos se refira ao lazer, sua aplicação à educação e à inclusão digital nas camadas populares é plenamente adequada. A instrumentalização desses grupos sociais para o uso dessas tecnologias co- meçará a fazer parte de seu arsenal de leitura e lutas. Sobre nossos alunos jovens e adultos que participam do ALFA-digital2 As nossas pesquisas nos mostram, neste ano e meio de trabalho de pesquisa na PUC-SP (de abril de 2001 a dezembro de 2002), que a primeira arma que os alunos adquirem com o acesso à tecnologia é a auto-estima. Os testemunhos são inúmeros e, com a estima recuperada (mesmo que em parte, pois o problema é muito maior), as conquistas foram: a maior disposição para virem às aulas, falarem mais, ouvirem melhor, falarem de si e com os outros, trazerem suas famílias simbolicamente e as ricas histórias de seus nomes e de vida. Trata-se daquilo que Silva (2003: p. 48) chama de autobiografia educativa. “Assim, uma pesquisa sobre a formação de adultos que resistem à alfabetização a partir da perspectiva au- tobiográfica pode ter esse efeito terapêutico. Ou seja, há efeitos de narcisação da pessoa, pois quem antes se acreditava incapaz pode descobrir as suas reais capaci- dades, substituindo uma antiga identidade do ser incapaz pela identidade de ser capaz. Portanto, a autobiografia educativa pode se tornar um excelente instrumento para atravessar o pior.” Os trabalhos de investigação que estão sendo desen- volvidos por oito mestrandos e doutorandos da PUC-SP sobre o ALFA-digital deverão se debruçar sobre os resul- tados, metodologias, êxitos, dificuldades e olhares teó- ricos sobre o seu desenvolvimento, que hoje é nosso projeto de ponta para a análise de prática de ações in- clusivas na área digital. Esse projeto complementa de modo estrutural as pro- postas feitas por muitas ONGs ou governos municipais, estaduais ou mesmo federal. No entanto, é importante esclarecer que o conceito de inclusão digital tem sido muito mal entendido e ainda falta muito para entendê-lo e para configurá-lo de maneira teoricamente sólida. Em geral, para a inclusão ou alfabetização basta — principal- mente para os oportunistas que visam sobretudo ao alar- gamento do mercado — ter domínio dos segredos dos teclados, do manuseio dos programas ou da lógica de funcionamento das máquinas, como a aprendizagem de programação. Um dos estudos mais clarividentes sobre esse tema en- contra-se no livro Letramento no Brasil, de Vera Masagão. A construção de uma diferente visão de alfabetização digital. Uma antevisão. Quais são as principais questões que o conceito de alfabetização apresenta a um novo conceito de mundo? O mundo mudou. O conceito de alfabetização mudou. A leitura deste mundo não pode ser feita com os mesmos instrumentos e códigos de mundos passados. No mundo da agricultura — com seu conceito de tem- po, sua ligação íntima com a terra, com os fluxos das estações e o ritmo dos plantios, com seu modo de tra- balhar, com o efeito de suas chuvas, das messes, das imprevisões — os instrumentos gerados para sua leitura Cadernos Cenpec 2006 n. 1 125 eram bem específicos. Os deuses ofereciam algumas explicações para as leituras. As artes ofereciam outras. As famílias e suas organizações, outras ainda. Os códigos de comunicação foram criados para dar conta de expli- car tal mundo e suas exigências concretas. Hoje, vivemos em um mundo fortemente marcado pela informação e seu tráfego. É nele que encontramos nosso trabalho. O mundo digital encurta distâncias, re- duz espaços, acumula dados, transporta imagens e sons à velocidade da luz, vive muito de imagens e fala menos a palavra oral. A tela é o cenário, e as cores, aos milhões, são seus atores fluidos e plásticos. Aquilo que pode vir-a-ser é mais cultivado do que aquilo que de fato é. A virtualidade da imagem e das relações quase substitui a realidade. Jogar xadrez com a máquina pode ser mais valorizado que jogar com um parceiro. O enxu- gamento dos postos de trabalho é o seu avatar. A racio- nalidade pura, as emoções icônicas, plastificadas e subs- titutivas são seu destino. Quais são os instrumentos de leitura deste novo mundo? Paulo Freire dizia que ler é tomar consciência. A lei- tura é, antes de tudo, uma interpretação do mundo em que se vive. Mas não é só a leitura que permite essa interpretação. É necessário também representá-lo pela linguagem escrita, falar sobre ele, interpretá-lo, escre- vê-lo. Ler e escrever, dentro dessa perspectiva, é liber- tar-se — leitura e escrita como prática de liberdade. Quais são os nossos instrumentos de leitura deste mundo, que atualmente é outro e tem na informática e nas novas tecnologias da comunicação novos modos de produção de vida, de relação de trabalho e de poder? Quais são os temas que dele emergem e que nos permitem escrever este mundo? O que tenho que aprender para saber lê-lo? Como problematizá-lo? Quais são seus códigos? Como domi- ná-los para a comunicação? Quais os problemas que traz dentro de si? Quais são os átomos de conhecimento que devemos dominar para termos uma alfabetização dentro da perspectiva freiriana?3 De que digitalidade estamos falando? Da digitalidade cidadã que se opõe ao digital servil, inocentemente maravilhado e docemente ingênuo. O mun- do das novas tecnologias da informação não se apresen- ta aos seus usuários docilmente, como se fosse um éden de facilidades e de libertação das tarefas repetitivas e rotineiras do ser humano. Essas novas tecnologias fazem parte de um mundo que deve ser conquistado por ações tecnológicas, educativas e políticas. No fundo, o mundo das informações e do conhecimento são espaços de lutas. Suas apropriações se dão por esforços organizados, in- tencionalmente construídos em planejamentos estraté- gicos sofisticados. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 126 Quais são os nossos instrumentos de leitura deste mundo, que atualmente é outro e tem na informática e nas novas tecnologias da comunicação novos modos de produção de vida, de relação de trabalho e de poder? Conceitos se completam com métodos Diferentes grupos de trabalho, na PUC-SP e alguns, fora dela, realizaram a construção de um método que nasceu da prática com alunos, professores do ALFA- digital e pesquisadores e docentes da universidade. O método foi construído a partir da vivência de cada um destes segmentos. Como se operaram essas vivências? A primeira consideração é que nada seria repassado para os alunos. As atividades, reflexões e aprendi- zagens seriam experimentadas por todos os elemen- tos dos grupos. • Cada um fala da própria experiência de exclusão di- gital e como se incluiu (ou porque pretende entrar) nesse mundo: medos, desejos, imaginários, sonhos, expectativas. Isto iguala a todos no que se refere a entrar em novos mundos cheios de promessas e res- trições, senhas, subsenhas e enigmas. A fala é o primeiro caminho da inclusão. A oralização é prévia e estruturadora do conhecimento. Vivê-la, principalmente em grupo, e partilhá-la é o início do processo de apropriação do mundo, seja ele digital ou não. Essas experiências foram feitas pelos docen- tes da PUC-SP, mestrandos, professores da rede e alunos do ALFA-digital. • Registramos todas as evoluções do trabalho. Os arquivos do computador nos permitem, com mais facilidade, registrar a evolução do que a turma pro- duziu, suas falas, dificuldades, o material que foi Mas as tecnologias não nasceram com o destino de democratizar o saber, distribuir cultura ou “rearrumar” democraticamente a economia. O ALFA-digital começa a trilhar este caminho? Dentro desta ótica realista, mas esperançosa — de que a tecnologia não é obra de um destino demoníaco, mas fru- to da história — foi levado adiante o projeto ALFA-digital. Sua perspectiva girou em torno de um projeto de ocupação estratégica de espaços em que as classes sociais e seus subgrupos se organizam. É dentro dessa perspectiva política que o ALFA-digital se apresenta. Ou seja, como parte de uma estratégia de governo, articulada com o projeto do Governo Eletrônico — coordenado, em 2001 e 2002, por Sérgio Amadeu Sil- veira — para criar mais espaços democráticos para uma gestão da cidade e da vida dos cidadãos de São Paulo. O Orçamento Participativo, o acompanhamento da gestão dos governantes, do andamento dos projetos na Câmara e o acompanhamento da execução orçamentária são exem- plos da viabilização da democracia por meios digitais. Gestão democrática só se dá com tecnologias de ges- tão, sejam elas tecnologias da consciência ou constituídas por recursos físicos. É a partir dessa ótica que se construiu o Plano conceitual e metodológico do ALFA-digital. Trata-se de um primeiro projeto indicativo para que os vários setores organizados da educação, ligados à área de alfabetização de jovens e adultos, discutam, propo- nham, reorganizem e construam diretrizes e programas lido, os disquetes das produções individuais, desde os primeiros contatos com o micro e suas discus- sões preparatórias. Nesse sentido, é importante frisar que quase ne- nhuma atividade foi levada para o dia de trabalho na máquina sem que tivesse, de alguma forma, sido antes discutida em sala. As atividades mais corriquei- ras e mobilizadoras eram tratadas diante da máqui- na, ou o que se fazia em sala: a história do próprio nome, sua terra de origem, as famílias, as tradições culturais, as receitas, as histórias, as profissões atuais, os sonhos, ou os temas por eles escolhidos, como as eleições (como votar em urna eletrônica) e o que isso significa, o debate sobre a ALCA... • Outro procedimento metodológico importante era saber trabalhar com o erro, usá-lo como instrumento para a apropriação do saber. A aceitação do erro é uma tarefa difícil, seja para os alunos, seja para nós, professores. Mas sobretudo para os alunos, pois suas experiências, quando flagrados em erro, foram muito negativas. De um lado, porque acreditam que, por serem adul- tos, não podem errar em coisa que as crianças lidam com tanta desenvoltura. De outro, porque o erro é tratado como descaso, desmazelo, burrice ou inferio- ridade... pelos professores. Por isso, o computador lhes trouxe uma grande contribuição, pois, aliado à nossa metodologia, não punia nem denunciava o erro. Eles gostam do computador porque sai tudo “certi- nho e organizado”, evitando aquele aspecto de gar ranchos e de confusão na organização das folhas de caderno. De outro lado, sentiram-se favorecidos, pois, ao apagar os erros, nada ficava registrado (ao con- trário das marcas que a velha borracha deixava nas folhas amassadas e manchadas). Além disso, o computador faz aparecer a “cobrinha vermelha”, denunciando que a palavra não está correta. Os professores disseram para eles que a “cobri- nha” não indica necessariamente erro, mas que o computador não conhece aquela palavra. Eles fica- ram muito aliviados e chegaram a revidar, dizen- do, orgulhosos: “Então sabemos mais palavras do que ele!”. O tratamento do erro é outro procedi- mento que é vital para este tipo de trabalho. • Troca contínua das produções entre a classe. • Leitura e escrita como tomada de consciência do mundo. No entanto, esta consciência crítica come- ça pela emoção: estou sendo privilegiado, vejo lo- go o que escrevo, posso levar para casa, tenho acesso ao mais moderno ícone da participação social — o computador. • Comemorava-se a síntese de cada grande unida- de com festividade e a publicação do que se fez. Dar valor, assim como valorização e avaliação — todas têm a mesma raiz etimológica — foi um dos cernes da avaliação realizada. para a apropriação democrática de mais um constructo tecnológico que historicamente deve ser humanizado: as tecnologias digitais. “Ter contato com a informação pode não gerar conhe- cimento”, reconhece Silveira (2001, p. 5), mas também não é suficiente termos projetos e programas pedagógicos para que a inclusão se faça, sem que haja acesso à rede. “É preciso inserir as pessoas no dilúvio informacional das redes e orientá-las sobre como obter conhecimento.” (Silveira: 2001, p. 21). O destaque na palavra “obter” diz respeito ao conceito equivocado que escapa do autor. Ele contém a idéia de que o acesso gera obtenção do conhecimento quase que por contato, e omite que não basta a disponibilidade em rede, pois não se deve esquecer que o conhecimento se constrói e não apenas se veicula. Por isso, é necessário também um processo inten- cional e educativo que acompanhe os procedimentos de aprendizagem significativa, mediados pela rede. O importante, como base dos novos projetos da cha- mada inclusão digital em sua fase “um”, é que a sociali- zação das redes (equipamentos, pontos de Internet e conectividade) é um direito, que alarga a cidadania e melhora as condições de vida. Há um momento importante do livro de Silveira (2001, p. 21-22), em que ele afirma: “...a proficiência em massa de pessoas para o uso de tecnologia da informação pode gerar a sinergia essencial para o desenvolvimento sustentado do país.” Essa parece uma posição lógica e historicamente cor- reta de se enfrentar o problema do desemprego estrutu- ral que decorre da função precípua das novas tecnolo- gias. A lógica precisa ser quebrada: o conhecimento gera melhoria das formas de produção, que gera novas mo- dalidades de trabalho, que, por sua vez, é mais exigente quanto às habilidades (especialização), que provoca a diminuição de postos de trabalho e, com isto, mais acu- mulação... e assim por diante. Está colocado o problema: há que se estranhar este mundo e não apenas louvá-lo, atribuindo todo o mérito a ele e o demérito para os desempregados que não o acompanham. Ele está construído para formar as crateras de desempregados e de inadaptados, que prestigiam ainda mais os que a ele conseguem se adaptar. O impor- tante é que construamos uma contrapolítica da acumu- lação-exclusão para a distribuição-inclusão. Para tanto, será fundamental dominar não apenas a produção de hard/software, mas também os mecanismos de difusão do pensamento e da lógica informacionais. A divulgação é conditio sine qua non, mas não sufi- ciente... Para isso, é necessário o debate social sobre as entranhas do modelo de produção, disseminação e apro- priação dos bens culturais disponíveis ou, ainda, os “produzíveis”. Esse debate educacional deve ser seguido de experimentos de sondagem da cultura local, o que viabiliza a documentação, amplificação sensorial dos produtos da cultura e sua conseqüente (ou não) sim- biose com a cultura “universalizante”. Ele propõe rom- per com o conceito de inclusão visto apenas como uma inclusão mercantil. Tal ruptura pode nos levar a uma re- versão da curva perversa da lógica da acumulação: quem já tem sempre terá mais. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 Bibliografia ALMEIDA, F. J. Quem educa o computador? São Paulo: Editora Paulus, 2005. BRISSAC DE SOUZA, Nelson. ARTECIDADE no 4, São Paulo, SESC-SP, 2002. CALVINO, Ítalo. Marcovaldo ou as estações na cidade. São Paulo: Com- panhia das Letras, 1997. FREIRE, Paulo et al. Pedagogia: diálogo e conflito. São Paulo: Cortez, 1985. GRAMSCI, Antonio. 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O Alfa Digital continua em algumas escolas e como linha de pesquisa e serviços do Programa de Pós-graduação em Educação, Currículo, PUC-SP. 3 Embora algumas tendências analíticas denominem de letramento este conjunto de propostas, de objetivos e de formação de habili- dades, chamaremos aqui esta aproximação inicial do mundo — dada pelo domínio dos códigos escritos e de algumas linguagens — de alfabetização. 128 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 129 O desafio estava lançado. E os participantes tinham um mês para cumpri-lo. O tema era simples: contar o que havia de bom no município em que vivem. Simples? Al- guns rapidamente decidiram contar sobre verdes vales, artesanato, indústria, gente que era parte daquela re- gião. Mas a maioria... Os participantes da Escola Estadual Luiz Marcar, de Barrinha, interior de São Paulo, escreveram: “Ao sentarmos para analisar o que deveríamos des- crever, quais eram as coisas boas de nossa cidade, perce- bemos que ainda não tínhamos parado para vê-la e que, durante muito tempo, ficamos olhando catálogos, propa- ganda e outras formas de divulgação de outros países, estados, cidades e regiões... Menos a nossa cidade. Talvez o cotidiano nos impeça de notar os detalhes que somen- te ela contém ou detém.” Quem aceitou o desafio direcionou o olhar para o que havia ao lado, na praça, na estradinha, na antiga casa do Correio, nos balaios espalhados por todos os cantos. Olharam, pensaram e, juntos, alunos e professores de escolas paulistas apontaram o que havia de melhor na cidade onde vivem. Eles participaram, em 2004, do projeto-piloto “As coisas boas da minha terra”, realizado a distância pelo Programa EducaRede,1 em parceria com a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo e com o envolvimento de 194 escolas, em 70 municípios paulistas. Em 2005, a parceria pretende atingir todas as escolas estaduais que possuam acesso à Internet com banda larga na sala de informática. O projeto capacitou educadores e alunos monitores das salas de informática para o uso da Internet, incentivando uma postura de autonomia diante dessa mídia e das práticas de colaboração e interação em meio virtual. Nesse trabalho, os participantes aprendem os recursos tecnológicos durante a realização das atividades nas escolas, que são convidadas a identificar, organizar e divulgar aspectos culturais relevantes da sua cidade. Utilizando os recursos da Internet disponíveis no Portal EducaRede — www.educarede.org.br —, o proje- to foi desenvolvido sob dois eixos: letramento digital e binômio local-global. Por meio do letramento digital no contexto escolar, ele se propõe a apresentar, difundir e operacionalizar os potenciais educativos da Internet, como pesquisa, comu- nicação, publicação e comunidades virtuais de colabo- ração e de aprendizagem. O binômio local-global compreende a inserção do mu- nicípio, do particular, na rede mundial de computadores. Trata-se da divulgação das peculiaridades culturais do território sob a ótica de seus habitantes. Os resultados, além de valorizarem a cidade e seu con- traponto com outras realidades, ainda estimularam o sen- timento de pertencimento ao município em que se vive. A metodologia proposta aponta caminhos para que o professor possa elaborar outros projetos com seus alunos. Relatam os participantes da Escola Luzia Baruque Kirche, de Santa Bárbara d’Oeste: “As coisas boas da minha terra” na rede mundial de computadores Márcia Padilha Lotito Jaciara de Sá Carvalho Alice Lanalice* Alunos e professores exercitam o olhar sobre a cidade onde vivem e desenvolvem juntos projetos com recursos da Internet, na sala de informática da escola. RELATO DE PRÁTICA * Márcia Padilha Lotito é historiadora e mestre em História. Jaciara de Sá Carvalho é jornalista e pesquisadora da área de Educação e Tecnologias do Cenpec. Alice Lanalice é pedagoga e coordenadora de projetos da área de Gestão Educacional do Cenpec. “Pudemos verificar a existência de lugares completa- mente desconhecidos pelo cidadão barbarense, inclusive por nós. Além disso, aprofundamos questões como: tra- balhar projetos, a importância do trabalho em equipe, a utilização de recursos virtuais...”. Passo a passo O projeto foi desenvolvido totalmente a distância, usando videoconferências e o ambiente de Comunidade Virtual do Portal EducaRede. Seus interlocutores nas es- colas foram os alunos monitores3 da sala de informática e professores responsáveis. Em outubro de 2004, houve o lançamento, por meio de uma videoconferência, realizada na Rede do Saber3. Nesse dia, as 194 escolas distribuídas nas suas localidades estudaram material impresso com as instruções básicas do projeto e conheceram o ambiente virtual de suporte à interação e publicação dos trabalhos. O primeiro passo foi denominado “Mão na massa” e consistiu na eleição das coisas boas do município, defi- nição de cronograma de trabalho e das atividades ne- cessárias para apresentação desse material (entrevis- tas, fotos, textos, pesquisas). Essas informações foram para o formulário do projeto na seção Comunidade Vir- tual do EducaRede. O passo seguinte foi a Organização dos dados cole- tados, com correção de textos e seleção de imagens, para publicação na seção Galeria de Arte do Portal. Finalmen- te, foi feito o preenchimento do formulário de avaliação na Comunidade Virtual. Como encerramento do projeto, as escolas se reencontraram em uma última videocon- ferência, no mês de novembro, na qual puderam falar sobre a experiência de suas escolas e ouvir uma avalia- ção devolutiva por parte da equipe do EducaRede. O período mais intenso das atividades — 34 dias — ocorreu no acompanhamento a distância, entre as duas videoconferências, e nele estiveram envolvidos: seis ca- pacitadores que acompanharam diariamente as escolas, dois coordenadores do EducaRede e os parceiros da Se- cretaria do Estado de Educação que atenderam pronta- mente às necessidades surgidas nas escolas. O acompanhamento a distância ocorreu por meio das ferramentas interativas do Portal e das orientações nas páginas da Comunidade Virtual. Foram realizados bate-papos abordando dúvidas gerais, com especialista, sobre o tema Cultura, e disponibilizado um Fórum de dis- cussão sobre o projeto. Tecnologia, educação e cultura O projeto “As coisas boas da minha terra” leva-nos a imaginar um triângulo que tem a tecnologia como base e a educação e a cultura como faces. A figura imaginária ilustraria a riqueza de ações que podem ser feitas a par- tir desse “trio”. Ações simples, locais, mas que podem influir na formação dos envolvidos, ajudando-os a com- preender sua realidade, nela se situar e transformá-la. Começando pela base dessa figura: a Internet foi o meio pelo qual os participantes do projeto puderam tornar conhecidas “as coisas boas” de suas cidades e conhecer também outras realidades tão vizinhas e tão diversas. Sem esse suporte de comunicação, dificilmente moradores de Fernandópolis, por exemplo, poderiam ver imagens da Festa da Mandioca de Hortolândia, quando são consumidas 15 toneladas da raiz. Estimulados a revelar essa e outras manifestações próprias dos municípios, os participantes absorveram a Tecnologia mais facilmente do que se estivessem fre- qüentando um curso apenas voltado para o aprendizado de ferramentas. Assim, além de incentivar a divulgação do município, o projeto cumpre a função de capacitar professores e alunos a usarem ambientes virtuais em seus trabalhos educacionais. “As coisas boas da minha terra” partiu da premissa de que a tecnologia não pode ser vista apenas pelo viés da homogeneização. Mas deve ser intencionalmente apropriada como um instrumento que intensifica trocas e divulga a cultura dos municípios, valorizando-a e pro- blematizando-a. Desse modo, a tecnologia publiciza e reafirma valores, fortalecendo raízes históricas e culturais, ao mesmo tempo que amplia repertórios, possibilitando que virtualmente se sobrevoe o mundo. Se, por um lado, educadores e alunos podem dispo- nibilizar dados a respeito da cultura de seu município para a Internet, por outro, também podem adquirir infor- mações de outras culturas. Essa troca — possibilitada pelo acesso ao “global”, àquilo que extrapola as fron- teiras de sua cidade — permite aos internautas fazerem comparações com o “local”, repensando-o, valorizando-o e criticando-o. Esse processo ainda proporciona aos professores exercitar novos olhares e, aos alunos, a capacidade crítica. É nesse ponto do triângulo imaginá- rio que enxergamos as faces da educação e da cultura. Essas faces, contudo, não aparecem no projeto so- mente durante o desenvolvimento de atividades em Cadernos Cenpec 2006 n. 1 130 meio virtual. Na busca pelas “coisas boas”, os alunos também visitaram pessoalmente os locais escolhidos para divulgar, conheceram pessoas com as quais jamais haviam imaginado conversar e descobriram a delícia de encontrar a cultura expressa nos sujeitos que a vivenciam, como relatam os participantes da Escola Estadual Profa Dilecta C. Martinelli, de Americana: “‘Oh, quanta saudade de minha Carioba querida, choro de desgosto em minha alma somente ao pensar que ela não mais existe.’ Frases como essa são extre- mamente comuns para os velhinhos que conversamos e que se decepcionaram quando viram o primeiro bairro de nossa cidade desaparecer. Para muitos, Carioba era ‘um pedaço do céu que Deus esqueceu na Terra’. Um bairro que surgiu ao redor de uma empresa têxtil. Em- pregados que fixaram vidas e mantiveram os mais ternos laços com seus companheiros e com a localidade. Havia um sentimento nacionalista neste local que, em deter- minado momento, chegou a ocupar um papel econômi- co e cultural mais importante que o próprio município.” Não bastava conversar com os antigos moradores de Carioba. Era preciso fazer chegar a outras pessoas a no- tícia do fim da existência daquele local. Os participantes decidiram divulgá-la por meio dos sentimentos e das lem- branças dos “velhinhos” que um dia a conheceram. E, para fazer isso, os alunos precisaram saber comunicar e transmitir as informações de modo que outras pessoas pudessem entender. Assim, a escola socializa o conhecimento produzido em seu interior. O aluno aprende a construir o seu conhe- cimento com o auxílio da mediação realizada pelo pro- fessor. Mas ele também precisa aprender a socializar esse conhecimento. Educação, cultura e tecnologia aparecem, em linhas gerais, no modo de expressar, de compreender e de divulgar essa construção. Notas 1 O Programa EducaRede é uma iniciativa da Fundação Telefônica, com coordenação executiva e gestão pedagógica do Cenpec, gestão de tecnologias da Fundação Vanzolini e infra-estrutura do Terra. 2 Alunos e professores oriundos de programa da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, em parceria com a empresa Microsoft. 3 A Rede do Saber é uma rede gestora de formação continuada para agentes educacionais, com capacidade para atender, ao mesmo tempo, 12 mil pessoas por dia, utilizando vários ambientes e abran- gendo todas as 89 Diretorias de Educação do Estado. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 131 O projeto “As coisas boas da minha terra” leva-nos a imaginar um triângulo que tem a tecnologia como base e a educação e a cultura como faces. A figura imaginária ilustraria a riqueza de ações que podem ser feitas a partir desse “trio”. Ações simples, locais, mas que podem influir na formação dos envolvidos, ajudando-os a compreender sua realidade, nela se situar e transformá-la. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 133 Enquanto educadora, a Cidade é também educanda. Paulo Freire Pode a cidade educar? A julgar pelos que defendem o conceito e a prática da “Cidade Educadora”, a resposta é sim. Esse conceito con- solidou-se no início da década de 1990, em Barcelona, na Espanha, onde se realizou o primeiro Congresso In- ternacional das Cidades Educadoras. Esse Congresso aprovou uma carta de princípios básicos que caracteri- zam uma cidade que educa. Várias cidades brasileiras são membros da Associação Internacional de Cidades Educadoras: Belo Horizonte (MG), Caxias do Sul (RS), Cuiabá (MT), Pilar (PB), Porto Alegre (RS), Piracicaba (SP), Alvorada (RS) e Campo Novo do Parecis (MT). Foi Porto Alegre, onde nasceu o Fórum Social Mundial, que deu a partida e integrou, desde 2001, o Movimento das Cidades Educadoras, iniciando uma nova caminhada nessa associação.1 Em outros países da América Latina, várias cidades aderiram ao Movimento, entre elas, Ro- sário (Argentina), Concepción (Chile), Medellin (Colôm- bia), Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), Quito (Equador), A escola na Moacir Gadotti* cidade que educa ARTIGO * Moacir Gadotti é professor titular da Universidade de São Paulo (USP), diretor do Instituto Paulo Freire e autor, entre outras obras, de: História das idéias pedagógicas (Ática, 1993), Pedagogia da práxis (Cortez, 1994), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas, 2000), Pedagogia da terra (Peirópolis, 2001) e Os Mestres de Rousseau (Cortez, 2004). León (México), Montevidéu (Uruguai). É a cidade, como espaço de cultura, educando a escola e todos que circu- lam em seus espaços, e a escola, como palco do espe- táculo da vida, educando a cidade numa troca de saberes e de competências. A cidade dispõe de inúmeras possibilidades educa- doras. A vivência na cidade se constitui num espaço cul- tural de aprendizagem permanente por si só, “esponta- neamente”: “há um modo espontâneo, quase como se as Cidades gesticulassem ou andassem ou se movessem ou dissessem de si, falando quase como se as Cidades proclamassem feitos e fatos vividos nelas por mulheres e homens que por elas passaram, mas ficaram, um modo espontâneo, dizia eu, de as Cidades educarem”.2 Mas a cidade pode ser “intencionalmente” educadora. Uma cidade pode ser considerada como uma cidade que educa quando, além de suas funções tradicionais — econômica, social, política e de prestação de serviços — exerce uma nova função cujo objetivo é a formação para e pela cidadania. Para uma cidade ser considerada educadora, ela precisa promover e desenvolver o prota- gonismo de todos — crianças, jovens, adultos, idosos — na busca de um novo direito, o direito à cidade educadora: “enquanto educadora, a Cidade é também educanda. Muito de sua tarefa educativa implica a nossa posição política e, obviamente, a maneira como exerçamos o po- der na Cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a política, a serviço de que e de quem a fazemos”.3 O que é educar para a cidadania? A resposta a essa pergunta depende da resposta a outra pergunta: o que é cidadania? Pode-se dizer que cidadania é essencialmente consciência de direitos e deveres e exercício da democracia: • direitos civis, como segurança e locomoção; • direitos sociais, como trabalho, salário justo, saúde, educação, habitação etc.; • direitos políticos, como liberdade de expressão, de voto, de participação em partidos políticos e sindi- catos etc. Não há cidadania sem democracia. O conceito de cidadania, contudo, é um conceito ambíguo. Em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão esta- belecia as primeiras normas para assegurar a liberdade individual e a propriedade. Nascia a cidadania como uma conquista liberal. Hoje o conceito de cidadania é mais complexo. Com a ampliação dos direitos, nasce também uma concep- ção mais ampla de cidadania. De um lado, existe uma concepção consumista de cidadania (direito de defesa do consumidor) e, de outro, uma concepção plena, que se manifesta na mobilização da sociedade para a con- quista de novos direitos e na participação direta da popu- lação na gestão da vida pública, por meio, por exemplo, da discussão democrática do orçamento da cidade. Essa tem sido uma prática, sobretudo no nível do poder local, que tem ajudado na construção de uma democracia participativa, superando os estreitos limites da democracia puramente representativa. Adela Cortina4 afirma que existem dimensões complementares, que se constituem em exigências de uma cidadania plena: • cidadania política — direito de participação numa comunidade política; • cidadania social — que compreende a justiça como exigência ética da sociedade de bem viver; • cidadania econômica — participação na gestão e nos lucros da empresa, transformação produtiva com eqüidade; • cidadania civil — afirmação de valores cívicos como liberdade, igualdade, respeito ativo, solidariedade, diálogo; • cidadania intercultural — afirmação da intercultura- lidade como projeto ético e político frente ao etno- centrismo. Na cidade que educa, todos os seus habitantes usu- fruem das mesmas oportunidades de formação, desen- volvimento pessoal e de entretenimento que ela ofere- ce. O Manifesto das Cidades Educadoras aprovado em Barcelona, em 1990, e revisto em Bolonha, em 1994, afirma que “a satisfação das necessidades das crianças e dos jovens, no âmbito das competências do município, pressupõe uma oferta de espaços, equipamentos e ser- viços adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural, a serem partilhados com outras gerações. O município, no processo de tomada de decisões, deverá levar em conta o impacto das mesmas. A cidade oferecerá aos pais uma formação que lhes permita ajudar os seus filhos a crescer e utilizar a cidade num espírito de respeito mútuo. Todos os habitantes da cidade têm o direito de refletir e participar na criação de programas educativos e culturais e a dispor dos instru- mentos necessários que lhes permitam descobrir um Cadernos Cenpec 2006 n. 1 134 projeto educativo, na estrutura e na gestão da sua cida- de, nos valores que esta fomenta, na qualidade de vida que oferece, nas festas que organiza, nas campanhas que prepara, no interesse que manifesta por eles e na forma de os escutar”. Nesse contexto, o conceito de “Escola Cidadã”5 ganha um novo componente: a comunidade educadora recon- quista a escola no novo espaço cultural da cidade, inte- grando-a a esse espaço, considerando suas ruas e pra- ças, árvores, bibliotecas, seus pássaros, cinemas, bens e serviços, bares e restaurantes, teatros, suas igrejas, empresas e lojas... enfim, toda a vida que pulsa na cidade. A escola deixa de ser um lugar abstrato para inserir-se definitivamente na vida da cidade e ganhar, com isso, nova vida. Ela se transforma num novo ter- ritório de construção da cidadania. A relação entre Escola cidadã e Cidade Educadora encontra-se na própria origem etimológica das palavras “cidade” e “cidadão”. Ambas derivam da mesma pa- lavra latina: civis, cidadão, membro livre de uma cidade a que pertence por origem ou adoção, portanto sujeito de um lugar, aquele que se apropriou de um espaço, de um lugar. Assim, cidade (civitas) é uma comunidade política cujos membros, os cidadãos, autogovernam-se, e cidadão é a pessoa que goza do direito de cidade. “Cidade”, “cidadão”, “cidadania” referem-se a uma certa concepção da vida das pessoas, daquelas que vivem de forma “civilizada” (de civilitas, afabilidade, bondade, cortesia), participando de um mesmo territó- rio, autogovernando-se, construindo uma “civilização”. Em Roma, esse conceito de sujeito da cidade era limi- tado apenas a poucos homens livres, cuja cultura era o reflexo do ócio e não do trabalho. O trabalho era reser- vado aos numerosos escravos. Esses eram sujeitos “su- jeitados”, submetidos e, portanto, não eram considerados cidadãos, não tinham os direitos de cidadania, não eram considerados civilizados, mas estrangeiros, bárbaros, não podendo usufruir dos benefícios da civilização. Temos uma Escola Cidadã e uma Cidade Educadora quando existe diálogo entre a escola e a cidade. Não se pode falar de Escola Cidadã sem compreendê-la como escola participativa, escola apropriada pela população como parte da apropriação da cidade a que pertence. Nesse sentido, Escola Cidadã, em maior ou menor grau, supõe a existência de uma Cidade Educadora. Essa apropriação se dá por meio de mecanismos criados pela própria escola, como o Colegiado Escolar, a Constituinte Escolar, plenárias pedagógicas e outros. Esse ato de sujeito da própria cidade leva para dentro da escola os interesses e necessidades da população. Esse é o “cenário” da cidade que educa, no qual as práticas escolares possibilitam qualificar o entendimento freireano tanto da leitura da palavra escrita quanto da leitura do mundo. A cidade que educa não aponta para soluções imediatas, mas para uma compreensão mais analítica e reflexiva, seja em relação aos problemas do cotidiano ou aos desafios do mundo contemporâneo. Quando a cidade educa? O movimento da Escola Cidadã, inicialmente muito centrado na democratização da gestão e no planejamento participativo, aos poucos ampliou suas preocupações para a construção de um novo currículo (interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural) e de relações sociais, hu- manas e intersubjetivas novas, enfrentando os graves problemas gerados pelo aumento da violência e da dete- rioração da qualidade de vida nas cidades e no campo. Uma década de inovação e de experimentação, com base numa concepção cidadã da educação e de cidade educadora, foi suficiente para gerar um grande movi- mento, uma perspectiva concreta para a escola pública, demonstrando que a sociedade civil está reagindo à ten- dência oficial neoliberal, a um modelo de internacionali- zação da agenda da educação, que segue a mesma “re- ceita” contida em “recomendações” de organismos inter- nacionais, como o Banco Mundial e o FMI. Tarso Genro6 destaca, entre as suas “21 teses para a criação de uma política democrática e socialista”, a neces- sidade de uma “nova cultura política, mais abrangente, de disputa hegemônica e de incorporação de novos agentes sociais”, e uma “nova esfera pública com orga- nizações locais, regionais, nacionais e internacionais, auto-organizadas”, rompendo a distância entre Estado e Cidadania. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 135 Temos uma Escola Cidadã e uma Cidade Educadora quando existe diálogo entre a escola e a cidade. A Cidade Educadora é, na verdade, a realização dos objetivos do próprio planejamento urbano, que são: a “promoção e a melhoria das condições de habitat, viabi- lizando uma vida saudável, social, material e espiritual- mente (cultura, educação e trabalho) para todos os muní- cipes... maior eficácia social e maior eficiência econômica do capital social, ou seja, do ambiente construído que é a cidade, distribuindo-se igualitariamente ou eqüitativa- mente os benefícios e o ônus dos investimentos urbanos, na perspectiva da busca da sociedade sustentável”.7 Quando é que podemos falar em cidade que educa? Podemos falar em cidade que educa quando ela busca instaurar, com todas as suas energias, a cidadania plena, ativa; quando ela estabelece canais permanentes de participação, incentiva a organização das comunidades para que elas tomem em suas mãos, de forma organizada, o controle social da cidade. Essa não é uma tarefa “es- pontânea” das cidades. Precisamos de vontade política e de uma perspectiva histórica. “A tarefa educativa das cidades se realiza também através do tratamento de sua memória, e sua memória não apenas guarda, mas reproduz, estende, comunica-se às gerações que che- gam. Seus museus, seus centros de cultura, de arte são a alma viva do ímpeto criador, dos sinais da aventura do espírito”.8 A cidade não educa sem a vontade do cidadão. “Por isso é importante afirmar que não basta reco- nhecer que a cidade é educativa, independentemente de nosso querer ou de nosso desejo. A cidade se faz edu- cativa pela necessidade de educar, de aprender, de ensi- nar, de conhecer, de criar, de sonhar, de imaginar que todos nós, mulheres e homens, impregnamos seus cam- pos, suas montanhas, seus vales, seus rios, impregna- mos suas casas, seus edifícios, deixando em tudo o selo de certo tempo, o estilo, o gosto de certa época. A ci- dade é cultura, criação, não só pelo que fazemos nela e dela, mas pelo que criamos nela e com ela, mas também é cultura pela própria mirada estética ou de espanto, gra- tuita, que lhe damos. A cidade somos nós e nós somos a cidade”.9 A cidadania precisa controlar, na cidade, o Estado e o mercado, perseguindo a utopia das cidades justas, produtivas, democráticas e sustentáveis que são aquelas que conseguem “romper com o controle político das elites locais e com as formas burocráticas, corruptas e clien- telistas de governar”,10 e estabelecem uma nova esfera pública de decisão não-estatal, como o “orçamento par- ticipativo” e a “constituinte escolar”, que já se tornaram emblemáticos nas gestões populares. Já saímos do puro terreno das propostas nesse campo e novas experiências vêm surgindo em diversas partes do País, levadas a cabo por diferentes partidos políticos, que criam novas relações, novas formas de gestão, novos espaços de negociação e estimulam a reapropriação das cidades por seus cidadãos. E não há segredo nisso. Bas- ta vontade política, apoiada numa ética que condene o segredo burocrático e estabeleça a transparência, que incorpore o conflito com práticas de negociação e que publicize a informação. Qual é o papel da escola na cidade que educa? O papel da escola (cidadã), nesse contexto, é contribuir para criar as condições que viabilizem a cidadania, por meio da socialização da informação, da discussão, da transparência, gerando uma nova mentalidade, uma nova cultura, em relação ao caráter público do espaço da cidade. Há uma concepção neoliberal da cidade que a con- sidera apenas como um mercado. Nesse caso, a peda- gogia neoliberal objetiva formar consumidores para o mercado. Há uma concepção emancipadora da cidade que já vem sendo defendida desde os anos 1970. Foi Edgar Faure, em seu Relatório preparado para a Unesco, no Ano Internacional da Educação (1970), e publicado em 1972 com o título “Apprendre a Être”, que utiliza pela primeira vez a expressão “cidade educativa”, referindo-se a um processo de “compenetração íntima” entre educa- ção e “vida cívica”. Para essa concepção da educação, o papel da escola é formar cidadãos. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 136 Na cidade que educa, o cidadão caminha sem medo, observando todos os espaços. Temos que aprender a nos locomover na cidade, caminhar muito por nossas ruas. Numa perspectiva transformadora, a escola educa para ouvir e respeitar as diferenças, a diversidade que compõe a cidade e que se constitui na sua grande riqueza. O cidadão da cidade educadora presta atenção ao dife- rente e também ao “deficiente”, ou melhor, ao portador de direitos especiais. Para que a escola seja espaço de vida e não de morte, ela precisa estar aberta para a diversidade cultural, étnica e de gênero, e às diferentes opções sexuais. As diferenças exigem uma nova escola. Escola científica e transformadora O grande desafio da escola numa cidade educativa é traduzir esses princípios em experiências práticas inova- doras, em projetos para a capacitação cidadã da popula- ção, para que ela possa tomar em suas mãos os destinos da sua cidade. Diante dos novos espaços de formação criados pela sociedade da informação, ela os integra e articula. Ela deixa de ser “lecionadora” para ser cada vez mais “gestora” da informação generalizada, cons- trutora e reconstrutora de saberes e conhecimentos so- cialmente significativos. Portanto, seu papel é mais de articuladora da cultura, de dirigente e agregadora de pessoas, movimentos, organizações e instituições. Na sociedade da informação, o papel social da escola foi consideravelmente ampliado. É uma escola presente na cidade e que cria novos conhecimentos, sem abrir mão do conhecimento historicamente produzido pela humanidade, uma escola científica e transformadora. As cidades, sobretudo as grandes metrópoles, estão chegando ao limite do suportável (violência, estresse, desemprego, falta de habitação, de transporte, de sa- neamento...), e hoje não têm outra alternativa a não ser se transformar radicalmente em “novas cidades”, em Cidades Educadoras. Caso contrário, elas estarão cami- nhando rapidamente para se transformar em espaços de extermínio, sobretudo dos jovens. A educação e a cultura não podem tudo porque exis- tem outros componentes que são os sociais, políticos e, sobretudo, econômicos. Mas a escola pode contribuir para a construção de uma sociedade saudável, tornan- do-se amiga e “companheira”, como dizia Paulo Freire, transformando-se num espaço de formação ético-política de pessoas que se querem bem e, por isso, têm legitimi- dade para transformar a vida da cidade. Qual é o papel do professor na cidade que educa? A cidade violenta e insustentável nos insere num clima de medo e de falta de esperança. Nossa força, como educadores e educadoras, é limitada. Nossas escolas são também produto da sociedade. Contudo, a esperança, para o professor, para a professora, não é algo vazio, de quem espera acontecer. Ao contrário, o professor encon- tra na esperança o sentido para a sua missão, que é a de transformar pessoas, dar-lhes nova forma, alimentando, por sua vez, as suas esperanças para que consigam cons- truir uma realidade diferente, um mundo novo, “menos malvado, menos feio, menos autoritário, mais democrá- tico, mais humano”,11 como costumava dizer Paulo Freire. Uma educação sem esperança não é educação. Educação, na cidade que educa, confunde-se com o próprio processo de humanização. Respondendo à ques- tão “como o professor pode tornar-se um intelectual na sociedade contemporânea?”, o grande geógrafo brasi- leiro Milton Santos, falecido em 2001, respondeu: “Quando consideramos a história possível e não ape- nas a história existente, passamos a acreditar que outro mundo é viável. E não há intelectual que trabalhe sem idéia de futuro. Para ser digno do homem, qual seja, do homem visto como projeto, o trabalho intelectual e educacional tem que ser fundado no futuro. É dessa forma que os pro- fessores podem tornar-se intelectuais: olhando o futuro”.12 Para isso, precisamos de uma pedagogia da cidade. Em primeiro lugar, precisamos aprender com a cidade. Paulo Freire dizia que o primeiro livro de leitura é o mun- do.13 Para aprender com a cidade, precisamos ler o mun- do. Em geral, nós a ignoramos, estreitamos muito nosso olhar e não a percebemos, e algumas vezes até a escon- demos, damos as costas para não ver certas coisas que acontecem nela. Não queremos olhar certas coisas da cidade para não nos comprometermos com elas, pois o olhar nos compromete. Vejamos nosso comportamento nos semáforos, quando somos abordados por meninos e meninas de rua. Nossa defesa é não olhar nos olhos deles e delas. Na cidade, buscamos tornar muitos seres invisíveis; isso acontece até em nossas próprias casas, quando a mos- tramos aos visitantes, mas não apresentamos a empre- gada ou a faxineira que ali trabalham. Passamos por elas como se fossem seres transparentes. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 138 Precisamos de uma pedagogia da cidade para nos ensinar a olhar, a descobrir a cidade, para poder apren- der com ela, dela, aprender a conviver com ela. A cidade é o espaço das diferenças. A diferença não é uma defi- ciência. É uma riqueza. Existe uma prática da ocultação das diferenças, também decorrente do medo de ser to- cado por elas, sejam as diferenças sexuais, culturais etc. Em geral, a nossa pedagogia dirige-se a um aluno médio, que é uma abstração. O nosso aluno real, contudo, o aluno concreto, é único. Cada um deles é diferente e precisa ser tratado em sua individualidade, em sua subjetividade. Uma pedagogia da cidade serve também para a escola construir o projeto político-pedagógico de uma “educação na cidade”.14 Na cidade que educa, o cidadão caminha sem medo, observando todos os espaços. Temos que aprender a nos locomover na cidade, caminhar muito por nossas ruas. Deixar o carro em casa e caminhar. Não ver a cidade apenas por meio de fotos e vídeos. Para isso, é importante uma educação cidadã para o trânsito e para a mobilidade. Precisamos de mapas, de guias. Precisa- mos saber onde a gente se encontra. Como sujeitos da cidade, necessitamos nos sentir cidadãos. A cidade nos pertence e, porque nos pertence, participamos da sua construção e da sua reconstrução permanente. Precisamos conhecer os equipamentos culturais da cidade. Qualquer programa que tenta interconectar os espaços e equipamentos é fundamental, pois desco- nhecemos a nossa própria cidade ou subutilizamos as suas potencialidades. Precisamos empoderar educacio- nalmente a todos os seus equipamentos culturais. A ci- dade é o espaço da cultura e da educação. Existem mui- tas energias sociais transformadoras que ainda estão adormecidas por falta de um olhar educativo sobre a ci- dade. Esse é o objeto da pedagogia da cidade. Florestan Fernandes15 costumava repetir que a escola não educava para a cidadania, era a estrutura de poder no Brasil, arcaica e mantida pela classe dominante, que barrava a consciência crítica do povo. Essa estrutura polí- tico-social e econômica ainda é dominante. Mas a mesma sociedade que cria essa estrutura cria também a sua rea- ção. O que foi socialmente construído pode ser socialmen- te desconstruído e reconstruído. A contradição social exis- te. Por isso, encontramos motivos para ser otimistas. Um deles é o surgimento de movimentos de renovação peda- gógica, como o da Escola Cidadã e o da Cidade Educado- ra. Eles não têm apenas a mesma identidade do ponto de vista etimológico. Eles apontam para o mesmo projeto de futuro, para a construção de uma sociedade educadora- educanda, humanizada, emancipada e solidária. Notas e referências bibliográficas 1 Sobre o conceito e a experiência das “Cidades educadoras”, veja: GADOTTI, Moacir; PADILHA Paulo Roberto; CABEZUDO, Alicia. Cidade educadora: princípios e experiências. São Paulo: Cortez/ IPF, 2004. E, também, TOLEDO, Leslie; FLORES, Maria Luiz Rodri- gues e CONZATTI, Marli. Cidade educadora: a experiência de Porto Alegre. São Paulo: Cortez/IPF, 2004. 2 FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993, p. 23. 3 FREIRE, Paulo, 1993, p. 23. 4 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo: hacia una téoria de la ciudadanía. Madrid: Alianza, 1997. 5 Em 1993, o Centro de Pesquisas para Educação e Cultura de São Paulo (Cenpec), com o apoio do Unicef, escolheu 15 experiências significativas de municípios, cujas políticas educacionais promo- viam “a democratização da gestão escolar com participação da comunidade para fortalecê-la como o centro das decisões” (Cenpec. A democratização do ensino em 15 municípios brasileiros. São Paulo: Cenpec/Unicef, 1993, p. 13). Essas experiências revelaram um novo movimento de inovação na base da sociedade, ainda no final da década de 1980, precedendo o movimento pela Escola Cidadã do início dos anos 1990. 6 GENRO, Tarso. O novo espaço público: 21 teses para a criação de uma política democrática e socialista. Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 9/6/1996. 7 CARVALHO, Pompeu Figueiredo de. In: BRAGA, Roberto; CARVALHO, Pompeu Figueiredo de (orgs.). Estatuto da cidade: política urbana e cidadania. Rio Claro: Unesp, 2000, p. 42. 8 FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993, p. 24. 9 FREIRE, Paulo, 1993, p. 22. 10 BAVA, Sílvio Caccia. A reapropriação das cidades. Cadernos Le Mon- de Diplomatique, Porto Alegre, Fórum Social Mundial, 2001, p. 18. 11 GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José E. (Orgs). Educação de jovens e adultos: teoria, prática e proposta. 2. ed. ver. São Paulo: Cortez/ Instituto Paulo Freire, 2000, p. 17 (Guia da escola cidadã, v. 5). 12 SANTOS, Milton. O professor como intelectual na sociedade con- temporânea. In: Anais do IX — Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe). v. III. São Paulo: 1999, p. 14. 13 FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura da pala- vra, leitura do mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 14 Em 1991, refletindo sobre suas propostas para a cidade de São Paulo, Paulo Freire escreveu um belo livro com esse título (Educa- ção na cidade. São Paulo: Cortez, 1991). 15 GADOTTI, Moacir. Uma só escola para todos: caminhos da autono- mia escolar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 139 Como sujeitos da cidade, necessitamos nos sentir cidadãos. A cidade nos pertence e, porque nos pertence, participamos da sua construção e da sua reconstrução permanente. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 140 Das cinzas da ditadura para uma cidade do conhecimento Em 2004, passei seis meses em Barcelona, onde fui estudar Gestão de Cidades, suas políticas e programas. Barcelona é uma cidade que renasceu das cinzas de uma ditadura pesada de 40 anos, com muita morte e muita opressão. Opressão política, de identidade cultural, opressão da língua... Na década de 1980, quando a democracia se instalou, as lideranças socialistas que assumiram a gestão da cidade começaram a reintegrá-la e a recompor o sentido da cidadania. Aporta-se, para as discussões de governo, toda a experiência de trabalho de base nos bairros e asso- ciações de moradores, que foram espaços de resistência e onde havia muito conhecimento acumulado sobre a realidade local, com forte posicionamento ideológico e desejo de reconstrução. A base de uma Cidade Educadora nasceu, desde então, com muita participação popular, das associações de moradores, que se organizam, pautam seus proble- mas, se capacitam e negociam com a administração pública. Hoje, se comparamos com a nossa realidade, podemos dizer que Barcelona tem políticas públicas descentralizadas, integradas e participativas. As políticas urbanas e sociais, a educação e a cultura, integradas, dialogam com um plano estratégico que busca alcançar um objetivo urbano: ser uma cidade do conhecimento. As bases da Cidade Educadora se apóiam na crença de que a cidade é um espaço educador. E, para que o exercício da cidadania ocorra, o indivíduo necessita de informação e de meios para participar da construção desse espaço coletivo, para que ele seja de fato um espaço público, um espaço com memória e história, conhecida e reconhecida por seus atores. Um território com dimensões humanas, desenhado para ser ocupado por seus cidadãos. Um espaço físico com dimensões e funções que permitem ao usuário sentir-se parte dele e responsável por ele. Por isso, a intervenção urbana e as obras físicas têm que dialogar com as ações e interven- ções sociais e culturais. Um dos maiores e primeiros investimentos feitos em Barcelona, nos anos 1980, foi a criação e disseminação de uma rede de bibliotecas e centros cívicos e culturais nos bairros. O intuito era o de investir em informação e em campanhas educativas e cívicas como um meio pedagó- gico de se trabalhar a educação de massa para todos, o tempo todo. Para isso, as diretrizes e ações no campo da cultura e da educação caminham juntas e interagem com as políticas econômicas. Com uma boa programação cultural, uma boa comunicação de massa e tendo como base os valores humanos e de cidadania, a cidade pode receber visitantes, turistas, que aquecem a economia e projetam também a cidade no exterior. Todos ganham com isso, pois essa articulação foi pen- sada e negociada num longo e vasto trabalho de plane- jamento estratégico, em que participaram os diversos atores sociais: políticos, organizações do terceiro setor, empresários e trabalhadores. O plano estratégico de Barcelona e região metropoli- tana constituiu-se em um processo de mobilização que hoje, além de processo, é uma entidade que cuida especi- ficamente de fazer valer e monitorar o seu desempenho. O mais interessante é que se reconhecem, nas equipes da administração pública, nas organizações comerciais e nos sindicatos de trabalhadores, a presença das dire- trizes e o norteamento definido no plano estratégico. O plano estratégico de Barcelona educadora Ana Maria Wilheim* DEPOIMENTO * Ana Maria Wilheim é socióloga, consultora especializada em advocacy, mobilização e comunicação no terceiro setor. Foi superintendente e assessora da presidência da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e membro do Conselho Diretor do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife). Cadernos Cenpec 2006 n. 1 141 Outro importante investimento no plano das obras fí- sicas e urbanas foi a construção de meios e vias de aces- so, ou seja, conectividade com os bairros mais isolados, como conjuntos habitacionais populares de trabalha- dores, construídos nos anos duros da ditadura, isolados dos centros urbanos e dos serviços públicos, panorama este muito conhecido por nós, brasileiros e paulistanos. Se acreditarmos que os processos de formação do indi- víduo ocorrem sob a influência do seu meio, da família e da escola, devemos dar mais importância para os efeitos da comunicação e do relacionamento que a cidade estabelece com seus diversos usuários, a começar pelas crianças. Uma cidade que se comunica de forma pedagógica com suas crianças certamente se comunica bem com a maioria da população. O aluno que freqüenta a escola está inserido numa cidade, num bairro, num determinado contexto histórico e socioeconômico que influenciam seu modo de pensar e de se relacionar com a comunidade. Valorizar esses elementos externos no processo de for- mação e aprendizagem das novas gerações nos parece de extrema importância. Levar educação, cultura e esporte para as áreas dis- tantes dos centros urbanos e fazer a conexão dessas áreas com os centros urbanos, dando à população aces- so aos circuitos dos museus e aos circuitos da cultura, é parte fundamental da agenda de uma cidade educadora. Compartilhar projetos comuns Extrato da entrevista da Secretária Geral da Associação Internacional das Cidades Educadoras, Sra. Pilar Filgueras Bellot, de Barcelona, Espanha, concedida a Og Roberto Dória e Ana Maria Wilheim. Em Barcelona, o processo de transição de uma Cida- de Educativa para uma Cidade Educadora começou no momento em que Barcelona era candidata às Olimpía- das. O então prefeito Pascal Maragall tinha a intenção de apresentar Barcelona como a cidade candidata e de uma forma bastante profunda e consistente. Ele pretendia utilizar essa candidatura como uma oportunidade para que a cidade desse um passo à frente em muitos setores, de modo bastante articulado, tanto no urbanístico, quanto no social, cultural e es- portivo. Maragall queria que a organização dos jogos fosse uma oportunidade para desencadear um grande processo de transformação em termos de gestão e de política urbana e também de envolvimento dos cida- dãos em todo o processo. Eu acredito que realmente os jogos olímpicos foram uma amostra desta coesão da cidadania com um projeto comum. Essa coesão se traduziu em comportamentos va- riados; por exemplo, a apropriação por parte dos cida- dãos dos novos espaços públicos que se foram cons- truindo na cidade. É importante dizer que houve muita preocupação no sentido de dar dignidade aos bairros mais desfavo- recidos e conectar bairros que, até então, estavam se- parados por vias de trens ou por fábricas. Houve uma transformação radical e isso teve como conseqüência uma mudança de atitude em termos gerais. Os cidadãos se apropriavam das novas propostas de forma patente e se sentiam muito satisfeitos com a evolução da cidade. Compreendiam tanto o que estava acontecendo que foram capazes de agüentar meses de obras pesadas, porque sabiam que isso os conduziria a uma situação melhor. O mesmo sucedeu com o esporte. Deram muita aten- ção à questão de formação de jovens, proporcionando esporte aos distritos e construindo ginásios esportivos, ou seja, havia uma ação sinérgica que conduzia todos em direção a um projeto global. Então, nesse marco, o prefeito também teve vontade de conectar tudo isso com a educação, visando à formação da cidadania. Portanto, as condições para a constituição da Cidade Educadora estavam dadas e eram bastante favoráveis. Eu tinha lido coisas sobre Cidade Educativa já em uma obra editada, em 1972, pela Unesco, que se inti- tulava Aprender a ser. Apesar de o livro ser centrado na educação formal, havia o capítulo “Cidade Educati- va”, que era muito sugestivo e abria realmente outro horizonte. Sabe como é quando se tem a convicção de que as coisas tendem por esse caminho? Cadernos Cenpec 2006 n. 1 143 Cultura definição do termo cultura é uma tarefa complexa e só pode ser feita no âmbito de uma discussão teórica, o que não faz parte dos objetivos deste trabalho. Entre- tanto, mesmo sem entrar a fundo nas controvérsias con- ceituais, assumimos que o termo cultura se refere a diferentes fenômenos, todos eles ligados aos modos de existir dos inúmeros grupos humanos, modos esses que são específicos e diversos entre si. Por que educação e Maria Alice Setubal cultura? Maurício Érnica* ARTIGO * Maria Alice Setubal é Diretora-Presidente do Cenpec, socióloga, mestre em Ciências Políticas pela USP e doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP. Maurício Érnica é antropólogo, professor universitário e colaborador em diversos projetos do Cenpec. A Cadernos Cenpec 2006 n. 1 144 Para nós, interessam mais de perto duas caracterís- ticas da vida cultural.2 Primeiro, consideramos que a vida humana só se realiza no interior de uma dada socie- dade. Logo, o que cada indivíduo é, deve ser, acha que é, quer ser e pode ser relaciona-se com as atividades da vida social, das quais ele participou ao longo de sua bio- grafia. Em segundo lugar, entendemos que a sociedade é lógica e historicamente anterior aos indivíduos e, por- tanto, é só na relação com os outros e com o meio que as pessoas se formam como pertencentes a uma cultu- ra. É apenas assim que os homens podem compreender o mundo no qual vivem e desenvolver a consciência de si mesmos. Com base nesses pressupostos, podemos afirmar que o termo cultura diz respeito, por exemplo: • ao modo como a natureza é transformada para pro- duzir os meios de vida; • às regras que orientam a produção, a distribuição e o uso desses meios de vida; • à maneira pela qual o corpo é educado para as práti- cas sociais; • a como se definem os papéis sociais e é organizada a participação nas atividades da sociedade; • à regulamentação das trocas matrimoniais e dos laços de parentesco; • à organização dos atos de tomada de decisão sobre os rumos da vida coletiva; • à representação dos elementos sobrenaturais e da vida religiosa; • ao modo como são contadas as histórias do grupo; • à maneira como são festejados e celebrados os mo- mentos significativos das biografias individuais e das coletividades; • a como são educadas as novas gerações, entre tantos outros aspectos. Uma primeira conseqüência disso é que, assim como uma pessoa precisa de muitas outras para se constituir, uma cultura também não se forma isolada e fechada nela mesma. Ao contrário, a relação com os outros grupos é essencial para a constituição do nosso grupo. Como afirma Lévi-Strauss, “(...) a diversidade das culturas não deve ser conce- bida de uma maneira estática. Esta diversidade não é a de uma amostragem inerte ou de um catálogo frio. (...) Jamais as sociedades humanas estão sós; quando pare- cem mais separadas, ainda o é sob forma de grupos ou feixes. (...) Por conseguinte, a diversidade das culturas Tanto nas dimensões da vida social fortemente marcada pela escrita, quanto naquelas em que os saberes são tradicionalmente transmitidos oralmente, há um patrimônio do qual devemos nos apropriar. humanas não nos deve levar a uma observação fragmen- tadora ou fragmentada. Ela é menos função do isolamen- to dos grupos que das relações que os unem”.3 Desse modo, a relação com o diferente constitui um espaço de troca e de conflitos nos quais os grupos de- finem e reelaboram as práticas sociais formadoras do seu modo de existir. Essa relação de troca funciona como o principal motor do desenvolvimento das culturas. Assim, não há como definir um momento de pureza cul- tural, nem uma origem autêntica e sem relações com um mundo cultural exterior. Todos os grupos humanos se fa- zem com influências externas. O isolamento e a tentativa de manter uma cultura estática e fechada em si mesma representam o seu empobrecimento. Há muitas outras conseqüências a serem tiradas des- sas idéias. Neste momento, nos interessam apenas aque- las diretamente implicadas com a questão da educação. Educação e patrimônio cultural Entendemos o conceito de educação de uma maneira ampla, como os diversos processos que os grupos hu- manos elaboram e elaboraram para fazer com que as novas gerações aprendam os saberes que são social- mente valorizados. As sociedades modernas, fortemente influenciadas pela vida urbana, elegeram a escola como espaço privi- legiado da atividade educacional. No entanto, a escola não é o único ambiente do qual a educação é parte inte- grante. Os saberes selecionados pela escola constituem uma parcela do patrimônio considerado necessário aos novos membros de uma sociedade e não esgotam o conjunto dos saberes socialmente valorizados e que devem ser ensinados. Ao longo da nossa vida, existem outros conhecimentos importantes para a efetivação da vida cultural. O mundo do trabalho é repleto de saberes ensinados e aprendidos quando nos engajamos em suas ativida- des. O modo de tecer uma rede, de lidar com o gado, de escrever diferentes gêneros de texto, de falar em certas situações, de se relacionar com as pessoas em alguns contextos são saberes importantes, mas geralmente não resultam de um aprendizado formal. Isso vale tam- bém para as atividades realizadas nos espaços domés- ticos, na vida religiosa, nas celebrações populares, nas formas de brincar e de praticar esportes. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 145 Trabalhar com cultura implica considerar os processos de produção, circulação e apropriação dos elementos culturais e dos discursos que os interpretam e os valorizam. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 146 Tanto nas dimensões da vida social fortemente mar- cada pela escrita, quanto naquelas em que os saberes são tradicionalmente transmitidos oralmente, há um pa- trimônio do qual devemos nos apropriar. Caso contrário, corremos o risco de exclusão das atividades nas quais esse conhecimento é solicitado. As várias maneiras de desenvolver a atividade educacional são fundamentais para que o patrimônio cultural, herdado de antepassados, seja transmitido para as novas gerações. As atividades educacionais e o patrimônio cultural de um grupo estão profundamente interligados. A própria noção de educação, tal como a entendemos, pressupõe a definição de saberes considerados socialmente rele- vantes e que constituem o patrimônio a ser transmitido. Existe um olhar para a vida cultural e uma seleção daquilo que deve ser ensinado que antecedem a ativi- dade educacional propriamente dita. Para além dos sa- beres intelectuais e escolares, como ler e escrever difer- entes gêneros de texto e realizar operações matemáti- cas em situações diversas, ensina-se, também, a olhar para a própria história e a valorizar determinados pro- dutos do trabalho humano e grupos sociais, como im- portantes, belos e valiosos ou, ao contrário, como sem prestígio, sem importância, feio ou sem valor. O termo patrimônio cultural4 diz respeito aos legados das gerações anteriores que se emendam com as vidas de todas as pessoas. Esses legados fazem com que as pessoas sejam da maneira como são, formam os modos de falar, vestir, comer, morar, festejar, construir, rezar e casar. Pela transmissão do seu patrimônio cultural, os membros de um grupo se reconhecem nas gerações an- teriores e nos outros integrantes. Por meio da partilha de um patrimônio cultural comum, as pessoas se sentem pertencentes a um lugar, a um grupo, a uma história. Podemos afirmar que a própria natureza é um elemen- to do patrimônio cultural. Para os paulistas, por exemplo, os rios Tietê e Paraíba do Sul, as serras da Cantareira e do Mar, são de fundamental importância para sua for- mação histórica e, em decorrência, para a sua memória. Uma outra dimensão do patrimônio cultural refere-se às manifestações imateriais, ou seja, a todos os saberes de como fazer objetos e realizar atividades. São exem- plos desse conjunto o saber fazer um prato de culinária, dançar, cantar, representar um espetáculo teatral, brin- car, construir, namorar e acariciar, dentre tantos outros. Um terceiro grupo de elementos é aquele que mais usualmente se considera como patrimônio: os objetos e as edificações, como esculturas, malhas urbanas, cami- nhos pelo território, utensílios, ferramentas, máquinas, panelas, livros de fotografias, documentação de tabeliões e da administração pública e tudo o mais que é produto material do saber-fazer humano. Existe uma seleção de elementos da natureza, da cultura material e do saber-fazer para definir aquilo que constitui o patrimônio cultural de um grupo. Essa sele- ção constrói uma determinada leitura do passado e dos aspectos que devem ou não ser lembrados no presente, criando representações sobre personagens, saberes e obras que acabam por influenciar o próprio desenrolar da história. A construção das representações sobre o que é o patrimônio cultural de um grupo é feita a partir de uma disputa simbólica para eleger e representar personagens, lugares, saberes e obras, tendo como resultado a fixa- ção dos elementos pelos quais os seus membros deve- rão se identificar e ser reconhecidos. A partir desses argumentos, acreditamos que o con- junto das atividades educacionais da sociedade — e, nesse sentido, a escola tem um papel decisivo — confi- gura uma das dimensões mais importantes na qual a definição do patrimônio se dá. Mais ainda, a própria se- leção dos elementos de patrimônio de um grupo educa as novas gerações. As discussões sobre o patrimônio permitem que um legado ganhe lugar no presente e seja reproduzido na contemporaneidade. Esse mesmo legado também pode ser associado ao atraso, à precariedade e a tudo aquilo que se deseja afastar. Nessas discussões, algumas parce- las de nossas histórias podem ganhar espaço no presen- te ou, ao contrário, serem reprimidas e desvalorizadas. Trabalhar com cultura implica considerar os processos de produção, circulação e apropriação dos elementos culturais e dos discursos que os interpretam e os valo- rizam. Portanto, um problema que emerge é o da comu- nicação cultural, relativa ao conteúdo daquilo que é comunicado e ao fato de que a apropriação dos elemen- tos culturais e dos discursos sobre eles é heterogênea e está, em boa medida, fora do controle direto dos produ- tores.5 Segundo Roger Chartier, os bens simbólicos estão estreitamente vinculados às demais relações econômicas, sociais e políticas, ou seja, são influenciados por essas dimensões e interferem no modo como elas existem. Estamos orientados pelo desafio contemporâneo de fortalecer práticas culturais que incorporem a experiência do convívio com o diferente, oferecendo meios inusitados para a construção do novo. Sendo assim, pretendemos valorizar as experiências culturais que foram reprimidas ou esquecidas, e lutar para que elas sejam reconhecidas como riquezas que constituem nossa formação plural. Notas 1 Este texto foi elaborado a partir das várias discussões ocorridas entre a equipe do Projeto Terra Paulista. 2 Ver a Introdução a Terra Paulista: histórias, arte, costumes. SE- TUBAL, Maria Alice (coord.). Projeto Terra Paulista: histórias, arte, costumes. São Paulo: Cenpec/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. 3 LÉVI-STRAUSS, Claude (1952). Raça e história. In: Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. 4 Ver MARINS, Paulo César Garcez. Patrimônio cultural. São Paulo: Editora Mindem/Escolas Associadas, 2003; e LEMOS, Carlos Al- berto Cerqueira. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasi- liense, 1981. 5 Ver CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Re- gime. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Unesp, 2004. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 147 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 148 Ao longo de sua atuação, a cultura sempre foi um tema presente nas atividades desenvolvidas pelo Cenpec. A experiência consolidada em quase duas décadas de tra- balho levou a organização a inaugurar, em 2004, a área de Educação e Cultura, que trata de articular as noções de cultura, identidade e patrimônio cultural na efetivação de uma educação voltada para a cidadania. As diretrizes da área Educação e Cultura do Cenpec, cujo “material de trabalho” é constituído pelas diferen- tes dimensões da vida cultural, foram definidas a partir das premissas relacionadas no texto “Por que Educação e Cultura?”. Essas proposições refletem o compromisso do Cenpec de estabelecer um diálogo com o patrimônio cultural brasileiro, atuando de modo interdisciplinar na integração entre educação e cultura. A formação de cidadãos participativos na sociedade brasileira implica a maneira de relacionar educação e cultura. O fortalecimento de diferentes grupos e de suas culturas possibilita uma maior atuação e participação para se alcançar uma educação de qualidade na defesa dos direitos e na formulação de reivindicações. Acredi- tamos que o reconhecimento das diferenças é condição para se alcançar uma maior igualdade social. Os objetivos, princípios, foco e ações, descritos em seguida, orientam o trabalho inaugural da área Educação e Cultura do Cenpec, o projeto Terra Paulista: histórias, arte, costumes. Objetivos 1. Discutir e integrar as noções de cultura, identidade e patrimônio cultural como os fundamentos para a concretização de uma educação para a cidadania, apoiada no tripé: educação, cultura e proteção social. Partimos do pressuposto de que o direito à educa- ção e à proteção social deve estar articulado a uma po- lítica cultural fundamentada no reconhecimento das di- ferenças, da heterogeneidade das pessoas e dos grupos, numa política social e econômica de promoção da igual- dade de direitos e de redistribuição da riqueza material e simbólica socialmente gerada. A cidadania tem, como princípios, o direito, o dever e a participação nas instâncias de decisão sobre os rumos da coletividade. Portanto, ela apenas se realiza efetiva- mente com a afirmação, no espaço público, dos diferentes patrimônios dessa coletividade. Ou seja, a cidadania im- plica acesso aos meios para que os diferentes grupos sociais possam fazer circular e reproduzir sentidos, va- lores e costumes, recolocando no tempo e no espaço os laços formadores dos sujeitos, que os ligam a histórias, pessoas, lugares, processos e estruturas sociais. A construção de relações cidadãs, marcadas pelo re- conhecimento da diversidade, requer a afirmação, se- gundo a qual, as identidades são construídas e transfor- madas ao longo do tempo, e se fundamentam no reco- nhecimento da partilha de elementos de patrimônio, no reconhecimento daquilo que enlaça nossas biografias, na percepção de que temos, como parte de nós, traços cul- turais que os outros também têm. Somos um país mestiço, São Paulo é um estado mes- tiço. Reconhecer a diferença como algo intrínseco a cada um de nós é admitir que incorporamos características, valores ou costumes de grupos europeus, asiáticos, indígenas, africanos e de outras regiões do Brasil. Articu- lar o reconhecimento da diferença com a promoção da igualdade de direitos é perceber essas diferenças com os mesmos valores e direitos com os quais fazemos cir- cular os modos de atribuir sentido ao mundo e ocupamos os espaços sociais: públicos, virtuais e, especialmente, na mídia. Um diálogo com o patrimônio cultural brasileiro CENPEC ÁREA EDUCAÇÃO E CULTURA 2. Contribuir para a inclusão de elementos do patri- mônio cultural, material e imaterial e das questões relativas ao patrimônio natural na seleção dos conteú- dos a serem transmitidos pela escola e por outras instâncias educacionais. Uma vez que a escola tem um papel central na trans- missão dos saberes socialmente valorizados, cabe de- bater como os diferentes elementos do patrimônio são integrados ao seu funcionamento. De que maneira as escolas incorporam as manifesta- ções culturais e artísticas dos grupos negros; as diversas modalidades de festas religiosas e profanas; os múlti- plos aspectos da cultura caipira, sertaneja ou cabocla; os modos de vida e as histórias de protagonistas das camadas populares? Como é pensada a questão do meio ambiente no que se refere aos cuidados com a natureza e ao seu papel para a organização da vida social? Uma rediscussão sobre os olhares para a nossa his- tória e cultura e os seus protagonistas e sobre o meio ambiente permite a abertura de espaço e condições para que esses conteúdos sejam trabalhados, nas atividades educacionais, como parte legítima e valorizada do nos- so patrimônio. 3. Valorizar as culturas locais por meio do conhecimento do seu patrimônio, do seu saber fazer e da escuta dos sujeitos protagonistas dessas manifestações, respei- tando as diferentes temporalidades históricas, a diver- sidade e a pluralidade cultural. Ao mesmo tempo, con- tribuir para o diálogo entre esses valores e os princípios universais para a construção efetiva da democracia. A valorização do diferente envolve a consideração da diversidade, resultando na inclusão dos diferentes legados culturais na vida pública, com igual importância e valor. Valorizar a diferença é dar espaço aos sujeitos locais e buscar entender suas histórias, costumes e manifes- tações artísticas, de modo a valorizá-las, estabelecendo relações com seu entorno, com a própria região, com outras regiões e com o contexto mundial. 4. Articular o passado e o presente por meio do conhe- cimento do processo de formação histórica, reco- nhecendo o passado como integrante da história de cada um, com marcas culturais que permitem a cons- trução de laços de identidade e o sentimento de per- tencimento a uma cultura e a um lugar. O estudo do passado possibilita a compreensão e a ressignificação do presente e o reconhecimento de su- jeitos, grupos, valores e processos sociais como inte- grantes e formadores do presente. Por exemplo, permite reconhecer e valorizar a origem indígena do paulista ou o papel das mulheres paulistas ao longo da história, além da presença desses legados na sociedade contemporânea. A história permite estabelecer relações entre os cos- tumes e valores integrantes da nossa trajetória coletiva com outros processos históricos e com elementos forma- dores da história de cada um. Trata-se de viver um espaço de pertencimento, no qual a modernidade não consiste em começar tudo de novo, iniciar do nada, mas em sen- tir-se enraizado, pertencendo, apropriando e reelaboran- do a herança das gerações anteriores. O grande e neces- sário desafio é ser moderno a partir dos legados que nos formam, legitimando a contemporaneidade. 5. Contribuir, por meio do conhecimento de uma dada região e de sua articulação com as questões nacio- nais e globais, para o desenho de políticas públicas mais adequadas e próximas das realidades nas quais se atua. Levando-se em conta as histórias, os valores e os cos- tumes que conformam as diferentes regiões e suas re- lações com o todo, é possível desenhar projetos e po- líticas públicas mais adequados à realidade na qual se intervém. 6. Contribuir para fortalecer, na opinião pública, repre- sentações sobre a formação sociocultural do Estado de São Paulo, reconhecendo, nas múltiplas e diversas experiências constituintes do patrimônio, elementos passíveis de atualização no presente e no futuro. Os modos de olhar para a história e de selecionar os saberes socialmente valorizados são definidos a partir das modalidades de transmissão desses conhecimentos. Portanto, esse debate deve acontecer entre um público amplo, ao mesmo tempo conhecido e difuso. O debate ocorre com os sujeitos específicos e também se volta a discursos conhecidos e estruturados que são referências legitimadas para os modos de pensar a his- tória. Como exemplos dessas referências, temos a repre- sentação da São Paulo quatrocentona e bandeirante, como a locomotiva do Brasil, terra do progresso e tantos outros discursos, presentes em nosso cotidiano. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 149 Princípios • Inclusão do patrimônio cultural das diferentes ca- madas e grupos sociais no acervo que compõe o patrimônio cultural brasileiro. • Respeito às diferentes temporalidades históricas e pluralidade cultural que convivem, muitas vezes, no mesmo espaço e tempo. • Valorização das diferenças culturais e mestiçagens. • Desconstrução de uma visão preconceituosa em relação a personagens importantes da história brasileira. • Revisão da história oficial que se perpetuou com mistificações e atos de discriminação e violência. Foco A inclusão social é considerada, na relação educa- ção e cultura, como princípio norteador para se alcançar a melhoria da educação pública e o aprimoramento das políticas sociais. Nesse sentido, considera-se fundamen- tal a inclusão dos diferentes legados dos patrimônios natural, material e imaterial, de modo que a instância local esteja articulada com as instâncias mais abrangen- tes, como a regional, nacional e global. Para a inclusão desses legados, são valores centrais o seu reconheci- mento e a sua valorização, considerando-os iguais no direito de difundir seus sentidos e modos de vida. Ações • Conhecimento, reconhecimento e divulgação dos diferentes espaços educativos. • Formação continuada dos agentes culturais, sociais e educacionais. • Construção de metodologias de trabalho. Meios de atuação • Elaboração de projetos com alcance amplo, de modo a difundir essas idéias por meio de diversos supor- tes, como livros, documentos, revistas, exposições, Internet, CD-ROM, entre outros. • Participação em diferentes eventos e busca de apoio nas diferentes mídias para concretização dessa di- vulgação. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 150 Coleção Terra Paulista Os paulistas em movimento Bandeiras, monções e tropas Açúcar, café, escravos e imigrantes A vida nas fazendas paulistas A vida caipira em São Paulo Permanência no tempo Famílias paulistas Múltiplos arranjos Moradias dos paulistas Das fazendas às vilas operárias Costumes no interior paulista Alimentação e vestuário A formação da metrópole A capital e as relações com o interior A literatura do interior Causos, contos e romances Artes plásticas e artesanato Cores e formas do interior As celebrações populares Festa, dança e música Vale do Médio Tietê Vale do Paraíba volume 1 volume 2 volume 3 volume 4 volume 5 volume 6 volume 7 volume 8 volume 9 volume 10 vídeos Cadernos Cenpec 2006 n. 1 151 Histórias, arte, costumes. Ao investigar, registrar e valorizar o patrimônio cul- tural do interior paulista, não pretendemos propor uma volta ao passado e muito menos definir as tradições, os costumes e os valores paulistas como os melhores e mais corretos. Longe disso, o nosso intuito é estimular um olhar crítico — e, ao mesmo tempo, humanizado — para a formação sociocultural do interior paulista. Esse olhar nasce da percepção de que, na repre- sentação hegemônica sobre o Estado de São Paulo, valorizara-se o moderno, o industrial, o urbano, o século XX republicano ou as raízes bandeiristas do período colonial. Com essas idéias, o passado pau- lista tornou-se sinal do atraso e da desordem; o rural passou a simbolizar o precário. O homem simples e todo o seu vasto legado cultural de raízes imemoriais foram representados como a negação da modernidade, a antítese da civilização e do progresso. Esses legados, no entanto, não desapareceram. Eles continuam a se reproduzir, ora fortes e intensos, ora enfraquecidos e residuais. Outras experiências e modos de existir, integrantes da história dos paulistas, não entraram, sobretudo, naquilo que não coube na representação de São Paulo como uma locomotiva do progresso. Tanto nas investigações sobre o passado quanto nos registros de aspectos da vida cultural do presente, pretendeu-se a compreensão dos diferentes modos de viver dos paulistas de diferentes regiões. O que eles fazem? O que pensam sobre si e sobre os outros? Como olham para sua própria história? Procurou-se pelos protagonistas dessa história e pelo seu olhar sobre o que fazem. Protagonistas hu- manizados e, portanto, pessoas comuns. Nossa preocupação constante foi no sentido de olhar para a história a partir desses personagens. Assim, a diversidade cultural paulista foi um tema cen- tral e sempre presente nos vários grupos culturais que povoaram e definiram a gente paulista, e nos diferen- tes influxos que marcaram sua história. São tropeiros, bandeirantes, monçonenses, fazen- deiros, sitiantes, escravos, indígenas, religiosos, colo- nos, camadas médias urbanas, empresários, imigrantes estrangeiros e migrantes de outras regiões do Brasil que se relacionaram, entraram em conflito, fizeram acordos e definiram o legado paulista que nos formou. Fazem parte de nossa formação influências de outras regiões do Brasil e de povos asiáticos e europeus — ibé- ricos, italianos, franceses, ingleses e outros —, além das marcas do desenvolvimento econômico e político norte-americano. A terra paulista, mostrada nos produtos do projeto, é uma terra plural, feita por gente muito diferente. Feita por pessoas que têm em si mesmas — em suas ambigüidades, riquezas e contradições — a expressão dessa diversidade. Valorizamos toda essa diversidade e pluralidade de experiências e de legados formadores do imenso patri- mônio cultural paulista. Para nós, a configuração dos modos de ser paulista não é algo cristalizado e nem a idealização de uma época da história isolada e pura, como a marca de uma pretensa originalidade. É desse modo que pretendemos responder ao desa- fio contemporâneo de fortalecer práticas de convívio com o diferente, reconhecendo no seu passado e no seu presente um acúmulo de experiências possíveis de enriquecer as nossas vidas e fornecer novas possi- bilidades para a construção do futuro. Por meio do olhar para a história e da investigação sobre nós mesmos, o diferente e os traços específicos podem ser reconhecidos como nossa riqueza. A valo- rização de nosso patrimônio e a abertura para novas influências podem ser a chave para darmos conta de um imenso desafio contemporâneo: recolocar o tradi- cional na modernidade e, ao mesmo tempo, transfor- mar essas tradições com os outros tantos legados que se apresentam a nós. Portanto, é dessa maneira que a área Educação e Cultura do Cenpec pretende intervir no debate público sobre a história e o patrimônio cultural. E, se assim fazemos, é porque entendemos todo o potencial des- sa ação na formação de representações sobre toda a sociedade e, por extensão, sobre o que deve ou não ser ensinado e reproduzido na história. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 152 Aconteceu em Lagoa Santa, município da grande Belo Horizonte, Minas Gerais. Enquanto, no Brasil, muitos movimentos sociais lutavam para fazer o País alcançar as metas definidas pela campanha Educação para Todos, pequenas iniciativas locais se constituíram em farol im- portante para fomentar a participação e a melhoria da situação educacional de crianças e adolescentes. Cada um fez a sua parte, mas aqui vamos relembrar uma ação empreendedora de jovens da cidade de Lagoa Santa que, de fato, conseguiram fazer uma grande dife- rença! Tudo começou quando o meu pai trouxe alguns folhe- tos falando sobre a educação em Minas Gerais. Eu estava com 14 anos e fiquei impressionado ao ler que Minas era o segundo Estado em índice de repetência e evasão escolar, perdendo apenas para o Piauí. Indignado ao saber que um lugar tão rico e grande estava em um ranking tão triste como este, decidi agir. Chamei o amigo Egle de Souza Medeiros, que foi um grande aliado nessa caminhada. Decidimos elaborar dois questionários. Um deles foi entregue à Secretária de Edu- cação da cidade. Nele havia perguntas sobre repetência e evasão no município. O segundo, tentamos entregar em escolas estaduais, mas apenas duas se comprome- teram a responder. Quando procuramos a Secretaria de Educação da cidade para pegar as respostas, ficamos sa- bendo que eles haviam perdido o questionário e nos dis- seram que não teriam tempo para responder a um novo. Sem as informações de que precisávamos, decidimos ir atrás daqueles dados por conta própria. Escolhemos Lagoa Santa, Minas Gerais. Um pacto pela Educação Eloi Marcelo* Lagoa Santa, MG Dados do município População rural: 2.475 habitantes População urbana: 35.394 habitantes Índice de Desenvolvimento Humano: IDH 0,783 Índice de Desenvolvimento Infantil: IDI 0,674 (Unicef) Indicadores educacionais Analfabetismo na população acima de 15 anos: 17,5% Estabelecimentos públicos de educação: 41 Número de professores: 258 Total de matrículas no município: 8.846 Rendimento escolar no ensino fundamental municipal • Índice de aprovação: 93,2% • Índice de reprovação: 3,6% • Índice de abandono escolar: 3,2% • Taxa de distorção idade–série: 60% Fontes: INEP, Censo Escolar 2002; IBGE, Censo 2000; Unicef, 2002. * Eloi Marcelo é jornalista. MEMÓRIA Lagoa Santa um bairro de Lagoa Santa, muito pobre, o Morro do Cru- zeiro, e fomos, de porta em porta, perguntando às pes- soas se elas tinham ou conheciam alguma criança de sete a 15 anos que estivesse fora da escola. Encontra- mos dez crianças. Os motivos de elas estarem sem estu- dar eram os mais variados. Tentamos fazer a matrícula pelos pais, mas fomos impedidos. Procuramos o promo- tor de justiça que, sensibilizado com nossa ação, não apenas matriculou aquelas crianças, mas decidiu criar o Conselho Tutelar, em Lagoa Santa. O Conselho teve uma enorme importância para nós, pois facilitou o trabalho de localizar crianças fora da escola. E essa ação nós batizamos de “Arrastão Cívico”. Esse trabalho acabou sendo divulgado na mídia estadual e nacional. Acabei sendo convidado pelo Presidente da República, na época, o Sr. Fernando Henrique Cardoso, que queria conhecer o projeto e a nossa iniciativa. Foi nesse mesmo período que recebemos o apoio do Unicef que nos motivou a criar uma ONG que se chamou Pacto de Lagoa Santa pela Educação. Com recursos e já como uma ONG, tínhamos agora o apoio de outros colegas. O nosso trabalho foi crescendo e percebemos que não bastava colocar as crianças na escola. Tínhamos que ajudar aquelas que já estavam estudando, mas que tinham alguma dificuldade. Cria- mos uma sala de reforço escolar em um espaço cedido por uma igreja. Nós mesmos dávamos as aulas. Foi um período em que todos aprenderam muito, pois compar- tilhamos histórias e procurávamos ensinar com o pouco que sabíamos. Nessa época, conhecemos dois mestres e amigos, chamados Antônio Carlos Gomes da Costa e Alfredo Go- mes da Costa. Foram eles que nos ensinaram sobre Pro- tagonismo Juvenil. Descobrimos que tudo aquilo que já fazíamos tinha uma definição e todo um embasamento teórico que serviu de mapa para nossa caminhada. Em 1996, nossa iniciativa já contava com outros 120 jovens que ajudavam nos trabalhos do Pacto de Lagoa Santa pela Educação. Graças a essa ajuda, realizamos o Arrastão Cívico em toda a cidade e localizamos 120 crian- ças fora da escola. Conseguimos trazer de volta à sala de aula 103 delas. Paralelamente, prosseguimos com as aulas de reforço e ficávamos muito felizes ao ver os re- sultados surgirem. Crianças que nunca tinham lido uma linha sequer ficavam felizes por compartilhar conosco o momento em que conseguiam ler, sozinhas, uma simples frase. Nos dois anos que se seguiram, realizamos o Arrastão Cívico sempre no início do ano. Em cada família que hou- vesse uma criança fora da escola, era feito um registro e nós acompanhávamos o desempenho dela durante o resto do ano. Da mesma forma, era feito com aquelas crianças que passavam pela sala de reforço. Em 1998, veio a nossa maior vitória: conseguimos zerar o número de crianças fora da escola. Uma con- quista que contrariou aqueles que acreditavam que não seríamos capazes de mudar a realidade de nossa cidade. Pois fomos! E acabamos “contaminando” outros jovens com este espírito de mobilização e protagonismo juve- nil. Comecei a dar várias palestras, por todo o Brasil, para multiplicar e motivar essa e outras experiências entre os jovens. Até hoje, sempre que convidado, tenho um grande prazer em contar essa vivência para jovens e educadores que estão cheios de vontade de fazer algo, mas não sabem como, nem por onde começar. Foi pensando assim que o nosso trabalho ganhou um novo sentido. Começamos a contar nossa história a outros jovens e esses foram criando seus próprios projetos. Lembro-me de um caso, em especial, em que consegui- mos mobilizar quase cinco mil adolescentes, de cinco cidades próximas à região do descobrimento do Brasil. Lá, os adolescentes deram o nome de Pacto do Sítio do Descobrimento pela Educação. Foi algo muito bonito, ver tantos jovens trabalhando em prol de suas comunidades. Em uma oportunidade semelhante, pude contar a minha experiência de mobilização social em um encontro regional de educadores promovido pela Fundação Itaú Social, Unicef e Cenpec e, em um segundo momento, sen- sibilizar educadores e jovens a participarem do Prêmio Itaú-Unicef. Para mim, particularmente, foi motivo de muito orgulho poder ver que um trabalho que começou com dois adolescentes, que mal sabiam o significado do termo Protagonismo Juvenil, podia ser reconhecido e tomado como exemplo em um dos maiores prêmios do Brasil nessa área. Em 1999, deixei a coordenação do Pacto de Lagoa Santa pela Educação para assumir outros desafios. Fui convidado por Viviane Senna para colaborar em alguns programas do Instituto Ayrton Senna. Tenho muito cari- nho por toda a equipe do Instituto. Lá, pude aprender muitas lições e conviver com outros tantos jovens que provaram que, quando a gente quer algo para nossas vidas, temos que correr atrás e, por mais difícil que seja, podemos fazer toda a diferença. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 153 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 154 Enquanto trabalhava com os programas do Instituto Ayrton Senna, as experiências vividas à frente do Pacto de Lagoa Santa pela Educação serviam de base para outras ações. Foi um período muito enriquecedor e de muito aprendizado. Enquanto isso, fiz a faculdade de jornalismo tão sonhada durante toda a minha adoles- cência. Formei-me jornalista e decidi deixar o Instituto Ayrton Senna para encarar o desafio de trabalhar como repór- ter em uma emissora de TV de Belo Horizonte. Essa foi, com certeza, uma das decisões mais difíceis da minha vida, porque tive que abrir mão de um trabalho apaixo- nante para encarar um desafio ainda maior: o de fazer da minha profissão uma ferramenta de sensibilização e multiplicação de ações educacionais. Escrevendo este pequeno relato, pude relembrar al- guns ensinamentos que experimentei ao longo dessa tra- jetória. E um, em especial, me fez refletir sobre o quanto temos que incentivar nossa juventude. Certa vez, Viviane Senna me contou que tudo na vida depende de duas coisas: das oportunidades que temos e das decisões que tomamos. Acredito que, se queremos mudar algo em nosso País, o caminho é o da juventude, dando oportunidades e criando condições para que os jovens decidam como encontrar caminhos e seguir adiante. Tudo começou quando o meu pai trouxe alguns folhetos falando sobre a educação em Minas Gerais. Eu estava com 14 anos e fiquei impressionado ao ler que Minas era o segundo Estado em índice de repetência e evasão escolar, perdendo apenas para o Piauí. Indignado ao saber que um lugar tão rico e grande estava em um ranking tão triste como este, decidi agir. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 155 No ano de 1990, a campanha “Educação para Todos” foi lançada durante a Conferência Mundial Educação para Todos, em Jomtien, Tailândia. Tratava-se de uma ampla iniciativa, estimulada, organizada e apoiada pelas grandes agências internacionais: Unesco, Unicef, PNUD e Banco Mundial. Numa concepção ampliada de educação, a campa- nha, expandida para muitos países, inclusive o Brasil, estabeleceu metas importantes a serem alcançadas em dez anos de mobilização social e política: 1. acesso universal à Educação Fundamental Básica; 2. redução das taxas de analfabetismo adulto; 3. expansão dos programas de desenvolvimento in- fantil; 4. melhoria dos resultados de aprendizagem, assegu- rando pelo menos 80% das aprendizagens essen- ciais; 5. ampliação dos serviços de educação básica e ca- pacitação para jovens e adultos; 6. disseminação de informações relevantes para a po- pulação por diversos meios, a fim de melhorar sua qualidade de vida. No mesmo ano, a Convenção Mundial pela Infância, realizada pelo Unicef em Nova Iorque, ratificou as pro- postas e propósitos de Jomtien relativas à educação de crianças e adolescentes. No Brasil, um forte movimento de participação so- cial culminou na promulgação da Constituição Federal de 1998, que assegura, no seu Artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a cola- boração da sociedade, visando ao pleno desenvolvi- mento da pessoa, seu preparo para o exercício da ci- dadania e sua qualificação para o trabalho.” Os índices de evasão, exclusão e repetência escolar mostravam a necessidade de se lutar por mudanças na política pública de educação que promovessem a per- manência de todas as crianças e adolescentes na es- cola, sinalizando que a sociedade precisava se mover nessa direção, articulando-se às ações de governo. Inúmeros movimentos e organizações sociais em todo o Brasil assumiram essa bandeira e desenvolve- ram ações efetivas, objetivando o ingresso, regresso e sucesso das crianças na escola. Paralelamente, outra onda de mobilização logrou aprovar uma nova lei que regulamenta o Artigo 227 da nova Constituição brasileira: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, fundado na doutrina de prote- ção integral, reconhece a prioridade do atendimento da criança como sujeito de direitos, em condição pe- culiar de desenvolvimento. O ECA garante o direito à educação para todas as crianças e adolescentes, assegurando-lhes: • igualdade no acesso; • ser respeitado pelos educadores; • contestar critérios avaliativos; • organização e participação; • escola gratuita próxima da residência; • informação aos pais sobre o processo pedagógico. Indica ainda, como dever do Estado, a garantia do ensino fundamental gratuito, desde a creche e pré-es- cola, o ensino noturno e a oferta de programas suple- mentares de educação, além do atendimento aos por- tadores de deficiência. Em 1996, é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que incorpora os dispositi- vos e garantias já indicados pela Constituição Federal e pelo ECA, como destacamos: LBD. Art. 2o. A educação, dever da família e do Es- tado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno de- senvolvimento do educando, seu preparo para o exer- cício da cidadania e sua qualificação para o trabalho LDB. Art. 5o. O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organiza- ção sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo. Olhando em retrospecto, podemos constatar que avançamos muito em nossa política educacional, mas há ainda muito a ser feito. O acesso universal à Educação Fundamental foi a meta com melhores resultados, mas a redução das taxas de analfabetismo adulto avançou pouco e, especialmente, a qualidade da educação ga- nha hoje um sentido de urgência cívica — nossas crian- ças precisam aprender e ter sucesso efetivo na escola. Movimentos e pactos precisam brotar em todos os municípios brasileiros para fazer da educação uma prioridade não apenas retórica, mas de engajamento e articulação local intensa e intencional entre os órgãos do governo e todas as instâncias e sujeitos protagonistas das cidades do Brasil, principalmente os jovens. Há leis para a educação, faltam ações. REDE BRASILEIRA DE CIDADES EDUCADORAS Carta das Cidades Educadoras Proposta definitiva, novembro de 2004. As cidades representadas no 1o Congresso Interna- cional das Cidades Educadoras, que teve lugar em Bar- celona em novembro de 1990, reuniram, na Carta inicial, os princípios essenciais ao impulso educador da cidade. Elas partiam do princípio que o desenvolvimento dos seus habitantes não podia ser deixado ao acaso. Esta Carta foi revista no III Congresso Internacional (Bolonha, 1994) e no de Gênova (2004), a fim de adaptar as suas abordagens aos novos desafios e necessidades sociais. A presente Carta baseia-se na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), na Declaração Mundial da Educação para Todos (1990), na Convenção nascida da Cimeira Mundial para a Infância (1990) e na Declaração Universal sobre Diversidade Cul- tural (2001). preâmbulo Hoje mais do que nunca, as cidades, grandes ou pe- quenas, dispõem de inúmeras possibilidades educado- ras, mas podem estar igualmente sujeitas a forças e inér- cias deseducadoras. De uma maneira ou de outra, a cida- de oferece importantes elementos para uma formação integral: é um sistema complexo e, ao mesmo tempo, um agente educativo permanente, plural e poliédrico, capaz de contrariar os fatores deseducativos. A cidade educadora tem personalidade própria. Inte- grada no país onde se situa é, por conseqüência, interde- pendente do território do qual faz parte. É igualmente uma cidade que se relaciona com o seu meio envolvente, outros centros urbanos do seu território e cidades de ou- tros países. O seu objetivo permanente será o de apren- der, trocar, partilhar e, conseqüentemente, enriquecer a vida dos seus habitantes. A cidade educadora deve exercer e desenvolver essa função paralelamente às suas funções tradicionais (eco- nômica, social, política de prestação de serviços), tendo em vista a formação, promoção e o desenvolvimento de todos os seus habitantes. Deve ocupar-se prioritariamen- te com as crianças e jovens, mas com a vontade decidida de incorporar pessoas de todas as idades, numa forma- ção ao longo da vida. As razões que justificam esta função são de ordem so- cial, econômica e política, sobretudo orientadas por um projeto cultural e formativo eficaz e coexistencial. Estes são os grandes desafios do século XXI: • primeiro, “investir” na educação de cada pessoa, de maneira que seja cada vez mais capaz de exprimir, afirmar e desenvolver o seu potencial humano, assim como a sua singularidade, a sua criatividade e a sua responsabilidade; • segundo, promover as condições de plena igualdade para que todos possam sentir-se respeitados e serem respeitadores, capazes de diálogo; • terceiro, conjugar todos os fatores possíveis para que se possa construir, cidade a cidade, uma verdadeira sociedade do conhecimento sem exclusões, para a qual é preciso providenciar, entre outros, o acesso fácil de toda a população às tecnologias da informa- ção e das comunicações que permitam o seu desen- volvimento. As cidades educadoras, com suas instituições educa- tivas formais, suas intervenções não formais (de uma in- tencionalidade educadora para além da educação formal) e informais (não intencionais ou planificadas), deverão colaborar, bilateral ou multilateralmente, tornando reali- dade a troca de experiências. Com espírito de coopera- ção, apoiarão mutuamente os projetos de estudo e inves- DOCUMENTO Cadernos Cenpec 2006 n. 1 156 timento, seja sob a forma de colaboração direta ou em colaboração com organismos internacionais. Atualmente, a humanidade não vive somente uma etapa de mudanças, mas uma verdadeira mudança de etapa. As pessoas devem formar-se para uma adapta- ção crítica e uma participação ativa face aos desafios e possibilidades que se abrem graças à globalização dos processos econômicos e sociais, a fim de poderem inter- vir, a partir do mundo local, na complexidade mundial, mantendo a sua autonomia diante de uma informação transbordante e controlada por certos centros de poder econômico e político. Por outro lado, as crianças e os jovens não são mais protagonistas passivos da vida social e, por conseqüên- cia, da cidade. A Convenção das Nações Unidas de 20 de Novembro de 1989, que desenvolve e considera constran- gedores os princípios da Declaração Universal de 1959, tornou-os cidadãos e cidadãs de pleno direito ao outor- gar-lhes direitos civis e políticos. Podem associar-se e participar, em função do seu grau de maturidade. A proteção das crianças e jovens na cidade não con- siste somente em privilegiar a sua condição. É preciso ca- da vez mais encontrar o lugar que na realidade lhes cabe, ao lado dos adultos que possuem, como cidadãos, a sa- tisfação que deve presidir a coexistência entre gerações. No início do século XXI, as crianças e os adultos parecem necessitar de uma educação durante toda a vida, de uma formação sempre renovada. A cidadania global vai-se configurando sem que exista ainda um espaço global democrático, sem que numero- sos países tenham atingido uma democracia eficaz res- peitadora dos seus verdadeiros padrões sociais e cultu- rais e sem que as democracias de longa tradição possam sentir-se satisfeitas com a qualidade dos seus sistemas. Nesse contexto, as cidades de todos os países devem agir desde a sua dimensão local, como plataformas de expe- rimentação e consolidação de uma plena cidadania de- mocrática e promover uma coexistência pacífica, graças à formação em valores éticos e cívicos, o respeito pela plu- ralidade dos diferentes modelos possíveis de governo, estimulando mecanismos representativos e participati- vos de qualidade. A diversidade é inerente às cidades atuais e prevê-se que aumentará ainda mais no futuro. Por essa razão, um dos desafios da cidade educadora é o de promover o equilíbrio e a harmonia entre identidade e diversidade, salvaguardando as contribuições das comunidades que a integram e o direito de todos aqueles que a habitam, sentindo-se reconhecidos a partir da sua identidade cul- tural. Vivemos num mundo de incerteza que privilegia a pro- cura da segurança, que se exprime muitas vezes com a negação e uma desconfiança mútua. A cidade educadora, consciente deste fato, não procura soluções unilaterais simples, aceita a contradição e propõe processos de co- nhecimento, diálogo e participação como o caminho ade- quado para conviver com a incerteza. Confirma-se o direito a uma cidade educadora, que deve ser considerado como uma extensão efetiva do di- reito fundamental à educação. Deve ser produzida, então, uma verdadeira fusão da etapa educativa formal com a vida adulta, dos recursos e do potencial formativo da ci- dade com o normal desenvolvimento do sistema educa- tivo, trabalhista e social. O direito a uma cidade educadora deve ser uma ga- rantia relevante dos princípios de igualdade entre todas as pessoas, de justiça social e de equilíbrio territorial. Ela acentua a responsabilidade dos governos locais no sentido do desenvolvimento de todas as potenciali- dades educativas que a cidade contém, incorporando, no seu projeto político, os princípios da cidade educadora. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 157 I. O direito a uma cidade educadora 1 Todos os habitantes de uma cidade terão o direito de desfrutar, em con- dições de liberdade e igualdade, os meios e oportunidades de formação, entretenimento e desenvolvimento pessoal que ela lhes oferece. O di- reito a uma cidade educadora é pro- posto como uma extensão do direito fundamental de todos os indivíduos à educação. A cidade educadora re- nova permanentemente o seu com- promisso em formar nos aspectos, os mais diversos, os seus habitan- tes ao longo da vida. E para que isto seja possível, deverá levar em conta todos os grupos, com suas necessi- dades particulares. Para o planejamento e governo da cidade, tomar-se-ão as medidas necessárias, tendo por objetivo su- primir os obstáculos de todos os ti- pos, incluindo as barreiras físicas que impedem o exercício do direito à igualdade. Serão responsáveis tanto a administração municipal quanto outras administrações que têm uma influência na cidade. E os seus habitantes deverão igualmen- te se comprometer neste empreen- dimento, não só no nível pessoal co- mo por meio das diferentes associa- ções às quais pertençam. 2 A cidade deverá promover a educa- ção na diversidade para a compreen- são, a cooperação solidária interna- cional e a paz no mundo. Uma educa- ção que deverá combater toda a for- ma de discriminação. Deverá favore- cer a liberdade de expressão, a diver- sidade cultural e o diálogo em condi- ções de igualdade. Deverá acolher tanto as iniciativas inovadoras como as da cultura popular, independente- mente da sua origem. Deverá contri- buir para a correção das desigual- dades que surjam da promoção cul- tural, devido a critérios exclusiva- mente mercantis. 3 A cidade educadora deverá encora- jar o diálogo entre gerações, não so- mente como fórmula de coexistên- cia pacífica, mas também como pro- cura de projetos comuns e partilha- dos entre grupos de pessoas de ida- des diferentes. Estes projetos deve- rão ser orientados para a realização de iniciativas e ações cívicas, cujo valor consistirá precisamente no ca- ráter intergeracional e na exploração das respectivas capacidades e va- lores próprios de cada idade. 4 As políticas municipais de caráter educativo devem ser sempre enten- didas no seu contexto mais amplo, inspiradas nos princípios de justiça social, de civismo democrático, da qualidade de vida e da promoção dos seus habitantes. 5 Os municípios deverão exercer com eficácia as competências que lhes ca- bem em matéria de educação. Qual- quer que seja o alcance dessas com- petências, elas deverão prever uma política educativa ampla, com caráter transversal e inovador, compreen- dendo todas as modalidades de edu- cação formal, não formal e informal, assim como as diferentes manifesta- ções culturais, fontes de informação e meios de descoberta da realidade que se produzam na cidade. O papel da administração muni- cipal é o de definir as políticas locais que se revelarão possíveis e o de avaliar a sua eficácia, assim como de obter as normas legislativas oportu- nas de outras administrações, cen- trais ou regionais. 6 Com o fim de levar a cabo uma atua- ção adequada, os responsáveis pela política municipal de uma cidade de- verão possuir uma informação pre- cisa sobre a situação e as necessi- dades dos seus habitantes. Nesse sentido, deverão realizar estudos que serão sempre atualizados e di- vulgados. E serão criados e mantidos sempre abertos canais de comunica- ção permanentes com os indivíduos e os grupos, que permitirão a for- mulação de projetos concretos e de política geral. Da mesma maneira, o município, frente aos processos de tomada de decisões em cada um dos seus do- mínios de responsabilidade, deverá levar em conta o seu impacto edu- cador e formativo. Princípios Cadernos Cenpec 2006 n. 1 158 II.O compromisso da cidade 7 A cidade deve saber encontrar, pre- servar e apresentar sua identidade pessoal e complexa. Esta a tornará única e será a base de um diálogo fecundo da cidade com ela mesma e com outras cidades. A valorização dos seus costumes e suas origens deve ser compatível com os modos de vida internacionais. Poderá assim oferecer uma imagem atraente sem desvirtuar o seu enquadramento na- tural e social. Deverá promover o conhecimen- to, a aprendizagem e a utilização das línguas presentes na cidade como elemento integrador e fator de coe- são entre as pessoas. 8 A transformação e o crescimento de uma cidade devem ser presididos por uma harmonia entre as novas neces- sidades e a perpetuação de constru- ções e símbolos que constituam re- ferências claras ao seu passado e à sua existência. O planejamento urba- no deverá considerar as fortes reper- cussões do ambiente urbano no de- senvolvimento de todos os indiví- duos, na integração das suas aspira- ções pessoais e sociais e deverá agir contra toda segregação das gera- ções e pessoas de diferentes cultu- ras, que têm muito a aprender umas com as outras. O ordenamento do espaço físico ur- bano deverá estar atento às neces- sidades de acessibilidade, encontro, relação, jogo e lazer e de uma maior aproximação à natureza. A cidade educadora deverá conceder um cui- dado especial às necessidades das pessoas com dependência no plane- jamento urbanístico de equipamen- tos e serviços, a fim de lhes garantir um enquadramento amável e respei- tador das limitações que podem apresentar sem que tenham que re- nunciar à maior autonomia possível. 9 A cidade educadora deverá fomen- tar a participação cidadã com uma perspectiva crítica e co-responsável. Para isso, o governo local deverá ofe- recer a informação necessária e pro- mover, na transversalidade, as orien- tações e as atividades de formação em valores éticos e cívicos. Deverá estimular, ao mesmo tem- po, a participação cidadã no projeto coletivo, a partir das instituições e or- ganizações civis e sociais, tendo em conta as iniciativas privadas e outros modos de participação espontânea. 10 O governo municipal deverá dotar a cidade de espaços, equipamentos e serviços públicos adequados ao desenvolvimento pessoal, social, moral e cultural de todos os seus habitantes, prestando uma atenção especial à infância e à juventude. 11 A cidade deverá garantir a qualida- de de vida de todos os seus habi- tantes. Isso significa um equilíbrio com o ambiente natural, o direito a um ambiente sadio, além do direito ao alojamento, ao trabalho, aos la- zeres e aos transportes públicos, entre outros. Deverá promover ati- vamente a educação para a saúde e a participação de todos os seus ha- bitantes nas boas práticas de desen- volvimento sustentável. 12 O projeto educador explícito e implí- cito na estrutura e no governo da cidade, os valores que ela encoraja, a qualidade de vida que oferece, as manifestações que organiza, as cam- panhas e os projetos de todos os ti- pos que prepara, deverão ser objeto de reflexão e de participação, gra- ças à utilização dos instrumentos necessários que permitam ajudar os indivíduos a crescer pessoal e cole- tivamente. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 159 III. Ao serviço integral das pessoas 13 O município deverá avaliar o impac- to das ofertas culturais, recreativas, informativas, publicitárias ou de outro tipo e as realidades que as crianças e jovens recebem sem qualquer intermediário. Neste caso, deverá empreender, sem dirigis- mos, ações com uma explicação ou uma interpretação razoáveis. Vigia- rá a que se estabeleça um equilíbrio entre a necessidade de proteção e a autonomia necessária à descoberta. Oferecerá, igualmente, espaços de formação e de debate, incluindo os intercâmbios entre cidades, para que todos os seus habitantes possam assumir plenamente as inovações que elas geram. 14 A cidade deverá providenciar para que todas as famílias recebam uma formação que lhes permitirá ajudar os seus filhos a crescer e a apreen- der a cidade, num espírito de res- peito mútuo. Nesse sentido, deverá promover projetos de formação destinados aos educadores em geral e aos indivíduos (particulares ou pessoal pertencente aos servi- ços públicos) que intervêm na cida- de, sem estarem conscientes das funções educadoras. Atenderá igual- mente para que os corpos de segu- rança e proteção civil que dependem diretamente do município ajam em conformidade com estes projetos. 15 A cidade deverá oferecer aos seus habitantes a possibilidade de eles ocuparem um lugar na sociedade, dar-lhes-á os conselhos necessários à sua orientação pessoal e profissio- nal e tornará possível a sua participa- ção em atividades sociais. No domí- nio específico das relações escola- trabalho, é preciso assinalar a relação estreita que se deverá estabelecer en- tre o planejamento educativo e as ne- cessidades do mercado de trabalho. Para este efeito, as cidades deve- rão definir estratégias de formação que tenham em conta a procura so- cial e colaborar com as organizações sindicais e empresas na criação de postos de trabalho e de atividades formativas de caráter formal e não formal, sempre ao longo da vida. 16 As cidades deverão estar conscientes dos mecanismos de exclusão e mar- ginalização que as afetam e as mo- dalidades que eles apresentam, as- sim como desenvolver as políticas de ação afirmativa necessárias. Deverão, em particular, ocupar-se dos recém- chegados, imigrantes ou refugiados , que têm o direito de sentir, com toda a liberdade, que a cidade lhes pertence. Deverão consagrar todos os seus esforços no ato de encora- jar a coesão social entre os bairros e os seus habitantes, de todas as con- dições. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 160 17 As intervenções destinadas a resol- ver desigualdades podem adquirir formas múltiplas, mas deverão par- tir de uma visão global da pessoa, de um parâmetro configurado pelos in- teresses de cada uma delas e pelo conjunto de direitos que a todos as- siste. Toda a intervenção significati- va deve garantir a coordenação entre as administrações envolvidas e seus serviços. É preciso, igualmente, en- corajar a colaboração das adminis- trações com a sociedade civil livre e democraticamente organizada em instituições do chamado setor terciá- rio, organizações não-governamen- tais e associações análogas. 18 A cidade deverá estimular o asso- ciativismo como modo de participa- ção e co-responsabilidade cívica, com o objetivo de analisar as inter- venções para o serviço da comuni- dade e de obter e difundir a informa- ção, os materiais e as idéias, permi- tindo o desenvolvimento social, mo- ral e cultural das pessoas. Por seu lado, deverá contribuir na formação para a participação nos processos de tomada de decisões, de planeja- mento e gestão que exige a vida as- sociativa. 19 O município deverá garantir infor- mação suficiente e compreensível e encorajar os seus habitantes a se in- formarem. Atenta ao valor que signi- fica selecionar, compreender e tratar a grande quantidade de informação atualmente disponível, a cidade edu- cadora deverá oferecer os recursos que estarão ao alcance de todos. O município deverá identificar os gru- pos que necessitam de uma ajuda personalizada e colocar à sua dispo- sição pontos de informação, orien- tação e acompanhamento especiali- zados. Ao mesmo tempo, deverá prever programas formativos nas tecnolo- gias de informação e comunicação, dirigidos a todas as idades e grupos sociais, a fim de combater as novas formas de exclusão. 20 A cidade educadora deverá oferecer a todos os seus habitantes, como objetivo cada vez mais necessário à comunidade, formação sobre os va- lores e as práticas da cidadania de- mocrática: o respeito, a tolerância, a participação, a responsabilidade e o interesse pela coisa pública, seus programas, seus bens e serviços. ••• Esta Carta exprime o compromisso assumido pelas cidades que a subs- crevem com todos os valores e prin- cípios que nela se manifestam. Defi- ne-se como aberta à sua própria re- forma e deverá ser adequada aos aspectos que a rápida evolução so- cial exigirá no futuro. Fonte: Câmara Municipal de Lisboa http://www.cm-lisboa.pt/?id_categoria=91&id_item=9171 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 161 Cadernos Cenpec 2006 n. 1 162 Sites • Internacional Association of Educating Cities www.bcn.es/edcities/ O site da Associação Internacional de Cidades Educadoras tem versões em inglês, castelhano, francês e catalão. Oferece para consulta artigos temáticos, lista das cidades-membros e ins- truções de como se associar, dicas de eventos, banco de dados com relatos de experiências, links afins e a íntegra da “Declaração de Barcelona”, adotada no I Congresso Internacional, realizado em 1990, e revisada em 1994. • Rede Brasileira de Cidades Educadoras www.cidadeseducadorasdobrasil.palegre.com.br Na página da Rede Brasileira de Cidades Educadoras, é possível consultar o histórico da orga- nização, com sede em Porto Alegre, conhecer as cidades que participam do projeto e vários documentos relacionados ao tema. • Projeto “A cidade que aprende”, da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre www2.portoalegre.rs.gov.br/smed/ O site da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre conta sobre o projeto “A cidade que aprende”, cujo objetivo é criar múltiplos espaços de aprendizagem concebidos e vividos pelos diversos atores sociais. Algumas fontes para ampliar o Mosaico conhecimento e a sensibilidade Beatriz Levischi, jornalista, oferece algumas alternativas para quem quiser ampliar sua visão e seu pensamento sobre o tema das Cidades Educadoras. Isso pode ser feito diretamente nos sites ou livros que ela indica, ou por meio dos filmes, que propõem um refinamento na sensibilidade de ver e interpretar uma realidade que, na maioria das vezes, nos passa despercebida. Com esta seção, pretendemos oferecer aos leitores fontes para além dos textos que publicamos. E elas podem estar numa exposição, num site, num filme, numa música, enfim, em qualquer lugar, ao nosso redor. Ao mesmo tempo, desejamos instigar os leitores a buscarem, eles mesmos, suas novas fontes. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 163 • O estatuto da cidade www.estatutodacidade.org.br O Estatuto da Cidade é uma lei inovadora, sancionada em 10 de julho de 2001, que abre possi- bilidades para o desenvolvimento de uma política urbana, com a aplicação de instrumentos de reforma das cidades direcionados a promover a inclusão social e territorial nas cidades brasi- leiras. O site tem propostas de cursos, kits para as cidades, banco de experiências e possi- bilita o download da lei. Livros Escola sem sala de aula Ricardo Semler, Gilberto Dimenstein & Antonio Carlos Gomes da Costa Editora Papirus, 2004 Nesta obra, o jornalista Gilberto Dimenstein, o empresário Ricardo Semler e o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa pretendem semear a noção de “escola sem sala de aula”, dis- cutindo as transformações necessárias à educação do nosso tempo. Semler conta a experiên- cia da Escola Lumiar, criada para promover uma educação democrática que privilegie a liber- dade e a autogestão do conhecimento. Costa narra o desenvolvimento da instituição escolar como a conhecemos, propondo que retomemos o conceito grego de formação integral do ser humano e suas várias dimensões. E Dimenstein, mentor do livro, aborda a relação entre a teo- ria e a prática e entre os universos da comunicação e da educação, além de comentar a ini- ciativa do Bairro Escola, uma das ramificações do Projeto Aprendiz. Cidade educadora — Princípios e experiências Moacir Gadotti, Paulo Roberto Padilha & Alicia Cabezudo Editora Cortez, 2004 Este primeiro volume da coleção “Cidades Educadoras” traz uma série de textos sobre o que é, qual a importância e como construir uma Cidade Educadora, além de relatar experiências desenvolvidas na América Latina desde a “Declaração de Barcelona”, adotada no I Congresso Internacional, em 1990, e revisada em 1994. Apresenta, ainda, a íntegra da “Declaração de Rosário”, firmada pelos prefeitos, superintendentes e chefes de governo integrantes do Conselho de Mercocidades, em 2003, além de informações sobre a Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE). A coleção é uma iniciativa do Instituto Paulo Freire e da Oficina Regional das Cidades Educadoras da América Latina, e foi lançada durante o Fórum Mundial de Educação de São Paulo, em 2004. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 164 A cidade como projeto educativo Carmen Gomez-Granell & Ignácio Villa Editora Artmed, 2003 O livro apresenta atividades educativas que pretendem despertar, nos jovens, a consciência de sua capacidade para intervir nos acontecimentos futuros das comunidades em que vivem, nas relações entre os países e na conservação do planeta Terra. Os autores dissertam sobre os elementos essenciais que inspiram os chamados “Projetos Educativos de Cidade” (em que Barcelona foi pioneira), movimentos que envolvem não só as escolas, mas também econo- mistas, arquitetos, empresários, aposentados, artistas e cidadãos em geral. Para assumir o papel de Cidade Educadora, além da participação de todos, é essencial também reformular comportamentos, hábitos e espaços de interação, favorecendo a educação integral. Filmes Narradores de Javé Direção: Eliane Caffé. Atores: José Dumont, Matheus Nachtergaele, Nélson Dantas, Rui Resende, Gero Camilo, Luci Pereira. Brasil, 2003 O vilarejo fictício de Javé está prestes a desaparecer, inundado pelas águas da represa de uma enorme hidrelétrica. Na tentativa de evitar a tragédia, a comunidade local decide escrever os grandes acontecimentos de sua história, justificando assim a preservação do povoado. Antonio Biá (José Dumont), o único adulto alfabetizado de Javé, passa então a recuperar a me- mória dos moradores a partir de cinco diferentes versões, muitas vezes incompatíveis entre si, transpondo-as para o papel. A ironia reside no fato de Biá ter sido expulso anteriormente da cidade por inventar fofocas para aumentar a circulação de cartas e manter o funcionamento da agência dos Correios em que trabalha. O “livro da salvação” (como é chamado pelos habitantes de Javé) mescla ficção e realidade, ilustrando a ausência de imparcialidade do historiador. O filme conta, ainda, com a partici- pação do ator Matheus Nachtergaele, conhecido pelos longas Cidade de Deus, O Auto da Com- padecida, Central do Brasil e O que é isso Companheiro. A língua das mariposas Direção: José Luís Cuerda. Atores: Fernando Fernán Gómez, Manuel Lozano, Uxía Blanco, Gonzalo Uriartez. Espanha, 1999. Numa pequena cidade espanhola, Moncho (Manuel Lozano) inicia sua vida escolar e descobre com o velho professor, Don Gregório (Fernando Fernán-Gomes), o prazer de aprender, admirar e explorar a natureza, experimentando os sentidos e sentimentos. O diferencial do mestre é demonstrado logo no início do filme, quando aparece na casa do aluno para se desculpar pela humilhação que o fizera passar em frente aos colegas, ainda que sem intenção, em seu primeiro dia de aula. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 165 A história alterna o relato da ascensão do regime militar espanhol sobre os republicanos, con- victos na crença de que só a liberdade pode levar à verdadeira felicidade, e a curiosidade infantil de Moncho, muito mais preocupado em entender os mistérios da natureza, como a existência de língua nas mariposas e a estranha química sexual que aproxima as pessoas. O tempero da vida Direção: Tassos Boulmetis. Atores: Georges Corraface, Ieroklis Michaelidis, Renia Louizidou, Markos Osse, Tassos Bandis. Grécia e Turquia, 2003. Assistir O Tempero da Vida, de Tassos Boulmetis, requer um outro jeito de olhar. Hora de deixar de lado o padrão videoclipe das produções hollywoodianas, com trilha sonora frenética e mil efeitos especiais, para apreciar a fotografia e os silêncios, a princípio desconfortáveis, que induzem a imaginação a criar. Vencida a primeira “barreira”, resta abrir a mente, sem conceitos pré-concebidos, para uma produção turco-grega e embarcar na jornada repleta de gostos e aromas sobre os experimen- tos culinários de Fanis Iakovidis (George Corraface), professor de astrofísica na Universidade de Atenas, para temperar a vida dos que o cercam. Deportado ainda pequeno com sua família da Turquia, quando as turbulências com a Grécia começaram a acentuar-se, o menino Fanis (Markos Osse) não se adapta à escola grega e é fora dela que aprende as lições mais valiosas. Seu mestre, o avô Vasilis (Tassos Bandis), mostra-lhe que tanto a vida quanto a comida reque- rem um pouquinho de sal para se tornarem mais saborosas. E aproveita a versatilidade dos temperos para lhe ensinar Astronomia e Geografia. Ora o garoto é convidado a experimentar, refletir e dizer o planeta ou astro correspondente (“Pimenta é quente e queima, refere-se ao Sol, que tudo vê, portanto, vai bem em todos os pratos”), ora é induzido a lembrar que o orégano é produzido em Acrópole, cheirando o cartão postal do lugar, antes mergulhado em um barril da iguaria. Descobrimos, então, que os molhos apuram o gosto com relação a exageros, evitando que a conversa “esquente”. Que as sobremesas são o epílogo para os contos de fadas. E que às vezes devemos usar os temperos errados para provar um ponto de vista: “Os fortes deixam as pessoas introspectivas, já a canela faz olhar nos olhos” — ainda que misturada às almôndegas. Assim, o paralelo entre a culinária e a existência, típico da cozinha turca (que envolve, além do olfato e do paladar, também o som e a visão), vai sendo traçado por todo o filme, uma comédia nostálgica e agridoce. Até Fanis perceber que esquecera de adicionar um pouquinho de tem- pero à sua própria vida. A obra, de 2003, recebeu oito prêmios nacionais (melhor filme, direção, roteiro, fotografia, edição, som, música e direção artística) e ganhou o People ́s Choice Award, no Thessaloniki Internacional Film Festival. Atualmente, é a indicação oficial da Grécia para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2005. Cadernos Cenpec 2006 n. 1 166 Ano I Número 1 Primeiro semestre de 2006 Cadernos Cenpec é uma publicação do Cenpec — Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Rua Dante Carraro, 68 05422-060 — São Paulo — SP Brasil Telefax: (55) (11) 2132 9000 cenpec@cenpec.org.br www.cenpec.org.br Os artigos assinados não representam necessariamente o ponto de vista do Cenpec. As opiniões e idéias expressas neles são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Presidência Maria Alice Setubal Diretora Presidente Ricardo Campus Caiuby Ariani Diretor Vice-Presidente Diretores Administrativos Lydia Maria Queiroz Ferreira de Magalhães Tereza Maria Macedo Soares de Araújo Conselho de Administração Antonio Carlos Caruso Ronca Bernardete Angelina Gatti Hélio Mattar Maria Alice Setubal Michael Paul Zeitlin Ricardo Campos Caiuby Ariani Conselho Fiscal Reginaldo José Camilo Rebecca de Castro Filgueiras Raposo Coordenação Coordenadora Geral Maria do Carmo Brant de Carvalho Assessoria da Coordenação Isa Maria F. R. Guará Maria Ângela Leal Rudge Coordenadora Administrativo-Financeira Maria Aparecida Acunzo Forli Cadernos Cenpec Cadernos Cenpec 2006 n. 1 167 Créditos desta edição Organização e Coordenação Isa Maria F. Rosa Guará Comitê Editorial Ana Regina Carrara Eloísa de Blasis Fernando Almeida Fernando Rios Isa Maria F. Rosa Guará Maria do Carmo Brant de Carvalho Conselho Editorial Âmbar de Barros Antonio Matias Bernadete Gatti Fernando Almeida Fernando Rossetti Gilda Portugal Gouveia Isa Maria F. Rosa Guará Marco Aurélio Nogueira Maria Alice Setubal Maria do Carmo Brant de Carvalho Vera Masagão Colaboram nesta edição Adriana Dibbern Capicotto Alexandre Isaac Alice Lanalice Âmbar de Barros Ana Guedes Pinto Ana Maria Falsarella Ana Maria Wilheim Antonio Sérgio Gonçalves Denise Carreira Elói Marcelo Eloísa de Blasis Fernando José de Almeida Ivana Boal Jaciara de Sá Carvalho Lucia Helena Nilson Márcia Padilha Lotito Marco Aurélio Nogueira Marcos Lorieri Maria Alice Setubal Maria do Carmo B. de Carvalho Maria Guillermina Garcia Maria José Reginato Ribeiro Maria Julia Azevedo Marilda Ferraz Ribeiro de Moraes Maurício Ernica Moacir Gadotti Selma Rocha Silvia Alderoqui Vital Didonet Redação Consultor Fernando Almeida Redator Fernando Rios Revisão e preparação de textos Dora Helena Feres Sylmara Beletti Projeto gráfico, editoração eletrônica Homem de Melo & Troia Design Fotos Isabel D ́Elia (debate) Leonardo Wen João Kulksár (consultor) Tiragem 5.000 exemplares Cadernos Cenpec / Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. – N. 1 (2005) — São Paulo: CENPEC, 2005 ISSN 1808-9631 Semestral 1. Educação 2. CENPEC CDD 370 Bibliotecária: Tânia Maria Bueno de Paula CRB: 5758-8

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Leitura e escrita

Biografia: a tessitura da vida

Nesta edição dos Cadernos Docentes, do programa Escrevendo o Futuro, confira uma série de oficinas que se organizam em torno das biografias e minibiografias, tendo como ponto de partida um sobrevoo por alguns gêneros do espaço biográfico.

Os Cadernos Docentes são materiais de orientação para a prática destinados a professoras e professores de Língua Portuguesa que, estruturados de forma sistemática a partir da noção de sequência didática, propõem um trabalho com os gêneros textuais, com o objetivo de desenvolver a aprendizagem da leitura e da escrita por estudantes. Esses materiais foram organizados em oficinas para que professoras e professores desenvolvam com suas turmas atividades com os gêneros Poema, Memórias literárias,Crônica, Documentário e Artigo de opinião. São, portanto, seis Cadernos Docentes elaborados, originalmente, para o trabalho com estudantes desde o 5o ano do Ensino Fundamental até a 3a série do Ensino Médio, da seguinte forma: Caderno Poetas da Escola : atividades do gênero poema desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 5o ano do Ensino Fundamental I. Caderno Se bem me lembro : atividades do gênero memórias literárias desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6o e 7o anos do Ensino Fundamental II. Caderno Biografia desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 6o e 7o anos do Ensino Fundamental II. Caderno A ocasião faz o escritor: atividades do gênero crônica desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 8o e 9o anos do Ensino Fundamental II. Caderno Pontos de vista: atividades do gênero artigo de opinião desenvolvidas preferencialmente para estudantes do 9o ano do Ensino Fundamental II . Caderno Olhar em movimento : cenas de tantos lugares: atividades do gênero documentário desenvolvidas preferencialmente para estudantes da 1a e 2a séries do Ensino Médio. Diálogos com a BNCC Na página inicial de cada oficina, são apresentados seus objetivos e dicas de preparação para os temas e atividades que serão trabalhados com as turmas de estudantes. Também encontramos ali uma seleção de habilidades para o componente de Língua Portuguesa, mapeadas na Base Nacional Comum Curricular e acionadas no desenvolvimento de cada oficina, indicando como cada proposta se aproxima das expectativas anunciadas pela BNCC. A seguir, apresentamos o mapeamento completo das habilidades e competências da BNCC realizado para as atividades presentes no Caderno BIOGRAFIA: a tessitura da vida, que traz abordagens didáticas para o gênero biografia. O espaço biográfico e seus gêneros Biografias autorizadas ou não, autobiografias, testemunhos, memórias, histórias de vida ou relatos de experiência pessoal, diários íntimos, correspondências, cadernos de notas, autoficções, entrevistas midiáticas, biografias romanceadas ou romances biográficos, entrevistas, testemunhos, talk shows e reality shows, gifs biográficos e uma série de outras novas formas narrativas que se desenvolvem no ambiente midiático e tecnológico, são exemplos de gêneros que atuam no que Leonor Arfuch (2010) define como espaço biográfico – aquele no qual o foco está no falar de/escrever sobre si (como os diários íntimos e as autobiografias) ou sobre o outro (como as biografias), com a intenção de representar o mais fielmente possível fatos da realidade concreta de sua vida. Todos os gêneros ligados a esse espaço biográfico têm a dupla função de ser fonte de informação e de memória. Por meio deles, nós, leitoras e leitores, podemos conhecer as vidas que se apresentam em forma de testemunho ou de relatos em terceira pessoa, que podem ter o potencial de sintetizar uma época, um lugar, uma instituição ou uma visão de mundo (GONÇALVES & SILVEIRA, 2021). O Caderno Docente Biografia: a tessitura da vida propõe uma sequência didática que se organiza sobretudo em torno das biografias e minibiografias, tendo como ponto de partida um sobrevoo por alguns gêneros do espaço biográfico. Material produzido pelo programa Escrevendo o Futuro

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Podcast
Relações Étnico-Raciais e de Gênero na Educação

Línguas e literatura indígena na escola

O quarto episódio do podcast Educação na ponta da língua te convida para uma conversa com escritores indígenas sobre o universo das línguas e da literatura indígena nas escolas. Ouça agora!

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Oficinas
Juventudes

Juventudes em diálogo

Entre em contato com oficinas para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, que valorizam direitos, escolhas, diversidade e escuta, fortalecendo o protagonismo juvenil na escola e na vida.

1 Juventudes em diálogo Oficinas para discutir direitos, diversidade e engajamento social das juventudes 2 3 Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. Falar sobre juventudes é falar sobre pluralidade, potência e desafios. É reconhecer que as(os) jovens ocupam um lugar central na construção de uma sociedade mais justa, democrática e igualitária — e que a escola precisa ser um espaço onde suas vozes, vivências e saberes sejam respeitados e valorizados. As oficinas reunidas neste material, voltadas aos anos finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, caminham nessa direção, e visam contribuir para promoção do protagonismo juvenil e de uma escuta sensível às suas demandas. Cada oficina é composta por um guia inicial que apresenta tudo o que você precisa saber antes de colocá-la em prática: os materiais necessários, as finalidades da atividade, o público a que se destina, o espaço onde pode ser realizada e a duração estimada. Nosso objetivo é que esse material sirva como um roteiro de apoio, mas que também inspire adaptações, novas ideias e conexões com os contextos e necessidades de cada grupo de estudantes. As propostas aqui reunidas são fruto de experiências desenvolvidas pelo Cenpec em projetos e programas voltados à educação pública, sempre em diálogo com a comunidade escolar. São atividades que valorizam a diversidade cultural, promovem a participação ativa das(os) jovens e fortalecem sua autonomia frente às decisões sobre a própria vida. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Balé para meninas e futebol para meninos 5 Oficina 2 - Futebol letrado 12 Oficina 3 - Pelo direito de dizer Sim ou Não 17 Oficina 4 - O território, as profissões e o mundo de hoje 22 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Balé para meninas e futebol para meninos • Folhas de papel sulfite. • Filipetas de cartolina com as frases a serem usadas na oficina. • Filipetas de papel sulfite com os dizeres Concordo e Discordo. • Pincéis atômicos. • Lápis de cor. • Canção João e Maria, de Chico Buarque de Holanda. • Aparelho de som. • Compreender que os comportamentos relacionados às questões de gênero são definidos culturalmente e, portanto, passíveis de mudanças. • Debate sobre os papéis tradicionalmente atribuídos aos meninos e às meninas em nossa sociedade. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Reconhecer, questionar e desnaturalizar os estereótipos de comportamentos específicos de meninos e meninas. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, parque ou outro ambiente onde se possa ouvir música e conversar. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 6 “Meninas são doces, tranquilas, compreensivas, cuidadoras por serem forjadas pela natureza à maternidade. Já os meninos são indisciplinados, fortes, aventureiros e esportistas. Meninas brincam de boneca, querem ser bailarinas e são inclinadas à área de humanas. Meninos jogam bola, sonham em ser super-heróis e são melhores em exatas” Quantas vezes não ouvimos frases como essas? Embora soem tão fora de moda nos dias de hoje, expressam visões estereotipadas ainda muito presentes em nossa sociedade. A escola e outros espaços educativos, como integrantes da esfera social, não ficam isentos de juízos de valor e comportamentos impositivos excludentes pautados nessas visões sobre sexo e gênero. Início de conversa “Desde o nascimento, recebemos influências sociais que nos condicionam a assumir uma divisão de papéis e a aceitá-los como verdade. As meninas têm um enxoval rosa, recebem presentes delicados, bonecas e utensílios de cozinha. Os meninos têm um enxoval azul, cor escolhida pela sociedade moderna para representar o masculino. Além disso, eles recebem brinquedos que estimulam a criatividade e, sobretudo, a agressividade, uma vez que, nas brincadeiras, desempenham o papel de heróis fortes e invencíveis.” Capa do livro. Foto: reprodução Foto: Pixabay SILVA, J. S. F.; GOME S, A. F. Resenha sobre o livro Como se ensina a ser menina: o sexismo na escola (São Paulo: Moderna, 2003), de M. Moreno. A proposta desta oficina é identificar e discutir essas opiniões e comportamentos entre adolescentes e jovens, com o objetivo de desenvolver um olhar crítico sobre aquilo que se costuma considerar “natural” ou inevitável: será mesmo que toda menina sonha ser bailarina? E se ela quiser ser astronauta, pode? 7 Na prática Sugestão de encaminhamento Brinquedos, brincadeiras e gênero: uma reflexão necessária Receba as(os) estudantes com folhas de papel sulfite espalhadas pela sala, pincéis atômicos e lápis de cor, ao som da canção João e Maria, de Chico Buarque de Holanda. Peça que usem as folhas para desenharem brinquedos e/ou brincadeiras infantis porque irão fazer uma reflexão sobre esse assunto. Após aproximadamente 20 minutos, cada estudante deve mostrar o seu desenho. Nesse momento, você pergunta a quem está apresentando a sua produção se o brinquedo ou a brincadeira retratada é para meninas, meninos ou para os dois e por quê. Conforme a resposta, separe as produções em pilhas diferentes. Conforme forem falando, registre em cartazes os nomes dos brinquedos e/ou das brincadeiras e as justificativas dadas para classificá-las como de meninos, de meninas ou de ambos. Faça três cartazes: • Brinquedos e/ou brincadeiras indicadas para meninos; • Brinquedos e/ou brincadeiras indicadas para meninas; • Brinquedos e/ou brincadeiras indicadas para ambos os gêneros. Depois que todas(os) apresentarem as suas produções e justificativas, chame a atenção para os cartazes e inicie um debate sobre as diferenças apontadas entre os brinquedos e/ou brincadeiras atribuídas às meninas, aos meninos ou a ambos: • Por que esses brinquedos e/ou brincadeiras foram identificados como de meninas, meninos ou para os dois gêneros? Acham que é isso mesmo? E se? Se a pilha que contém os desenhos de brinquedos e/ou brincadeiras que servem tanto para meninos como para meninas for significativa em relação às demais - somente para meninos e somente para meninas -, chame a atenção da turma. Isso pode significar que houve avanços no modo de pensar da nossa sociedade ou que as(os) estudantes já pararam para refletir sobre essa questão. Mas, se a pilha de brinquedos e/ou brincadeiras para ambos os gêneros for pequena, estimule-as(os) a começarem a pensar sobre o assunto. Concordam ou Discordam? Em seguida, proponha uma nova atividade. Disponha dois cartazes no chão. Em um deles está escrito Concordo e no outro Discordo. Passe uma caixa com papeizinhos em que também está escrito Concordo e Discordo para que as(os) estudantes sorteiem. Diga a elas(es) que você mostrará algumas frases escritas em cartolina (uma por vez) para, então, cada participante se deslocar em direção a um desses dois cartazes, conforme o indicado pelo papel sorteado - Concordo ou Discordo -, mesmo que esse não seja o seu real posicionamento sobre o tema. 8 A partir de cada frase, será possível discutir e questionar alguns mitos e preconceitos veiculados cotidianamente, além de promover o exercício da argumentação e da experimentação ao defenderem diferentes pontos de vista, mesmo que não concordem com eles, frente a uma mesma questão. As(Os) integrantes dos dois grupos - em torno do cartaz Concordo e do cartaz Discordo - terão um tempo para conversar e combinar entre si os argumentos que devem utilizar para defenderem a posição assumida. Após alguns minutos, troque as posições e elas(es), então, devem defender a posição contrária à argumentação anterior. Indicamos algumas frases que expressam visões arraigadas em nossa cultura, mas você pode escolher outras mais pertinentes ao contexto do trabalho ou que melhor se adequarem aos seus objetivos. Frases 1 - Balé e futebol são adequados para meninas e meninos, sem diferenciação. 2 - O menino que usa rosa é gay. 3 - Homens não levam jeito com crianças, por isso há tão poucos professores na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. 4 - É natural que os meninos mexam com as meninas que vestem shorts curtos ou saias curtas. 5 - Existem poucas mulheres citadas nos livros de História, pois elas não tiveram participação importante nos acontecimentos relevantes do país. 6 - Engenharia e robótica são carreiras para homens. 7 - O homem não chora. 8 - Loira é burra. Ao final, proponha que as(os) estudantes se sentem em círculo e inicie uma conversa, retomando cada frase da atividade anterior e os seus argumentos. Aproveite os próprios argumentos utilizados pelas(os) adolescentes para problematizar as questões. Seguem também algumas possibilidades de problematização: Balé e futebol são adequados para meninas e meninos, sem diferenciação. Problematização possível: Por que não? Futebol exige força e condicionamento, que são bons para ambos os gêneros, cada um na proporção adequada; então mulheres podem ser perfeitamente jogar com mulheres, que têm a mesma compleição física. O balé também exige força e condicionamento, além da sensibilidade, o que também é bom, para os dois gêneros. Já ouviram falar do dançarino russo Mikhail Nikolaévich Baryshnikov entre outros? Sugira que pesquisem sobre ele na internet. 9 O menino que usa rosa é gay. Problematização possível: Quem definiu essa alegação? Há alguma lei dizendo isso? Onde? De onde vem essa afirmação? Já pararam para pensar? Homens não levam jeito com crianças, por isso há tão poucos professores na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Problematização possível: Por que não? Levam jeito sim. Podem pensar em alguns exemplos? Será que não deveríamos avaliar as condições de trabalho e a remuneração precária das(os) professoras(es)? Em nossa cultura, apesar das mudanças, ainda se atribui aos homens a responsabilidade maior de sustentar a família. É natural que os meninos mexam com as meninas que vestem shorts curtos ou saias curtas. Problematização possível: Será mesmo? As pessoas são donas do próprio corpo. Se não estão infringindo as leis, que direito alguém tem de invadir a vida alheia? Existem poucas mulheres citadas nos livros de História, pois elas não tiveram participação importante nos acontecimentos relevantes do país. Problematização possível: Será verdade? Ou será que esses livros de História têm sido escritos por homens até muito recentemente? Ou por homens que não valorizam a participação das mulheres? E se? Se houver embate ou discordância com as problematizações, não insista. O que se pretende não é a imposição de argumentos, mas sim levantar questões para as(os) adolescentes e jovens pensarem. Ontem e hoje: costumes em transformação Em seguida, pergunte se, por acaso, as(os) estudantes têm em casa fotos antigas com as pessoas da família e o que podem observar nelas. As roupas e os penteados com que foram fotografadas se parecem com os usados atualmente? Não! Certamente mudaram e essas transformações podem ser percebidas, correto? Peça que as(os) participantes identifiquem as mudanças observadas. Se considerarmos outros momentos da História, veremos que os costumes e os comportamentos das pessoas mudam e muitas situações que não eram toleradas antes, passaram a ser aceitas, como: • As mulheres votarem; • As mulheres usarem calças compridas; 10 Já ouviram as pessoas mais velhas fazerem referência aos exemplos acima? A aceitação do novo não é simples. Ela ocorre a partir de um processo lento e em meio a preconceitos; em alguns momentos, com sérias discriminações. Muitas vezes, não temos noção de quanta luta foi necessária para as mulheres conseguirem votar ou usar calças compridas, e os homens conseguirem usar cabelos compridos ou colocar brincos. Parece até que sempre foi assim. Seria interessante as(os) estudantes pesquisarem: às vezes, pode demorar gerações até que um novo comportamento seja aceito pela sociedade. Para explicitar o peso do comportamento que se reproduz “naturalmente” em um determinado meio cultural sobre grupos mais fragilizados da sociedade, projete para as(os) adolescentes o curta-metragem Vida Maria, animação produzida por Márcio Ramos, em 2006. A animação demonstra que em determinados contextos socioeconômicos e culturais como o sertão nordestino, ainda cabe exclusivamente à mulher os trabalhos domésticos e a criação das(os) filhas(os), sem a possibilidade do rompimento com o “eterno” ciclo de pobreza. Apesar de essa situação estar se transformando nos últimos tempos, a partir da atuação de movimentos sociais organizados, ela ainda está presente na vida rural brasileira e mesmo em áreas periféricas de grandes centros urbanos. Da mesma forma, outros grupos sociais como as(os) negras(os), as(os) indígenas, as(os) LGBTQIAPN+ e as(os) migrantes pobres sofrem pressões que dificultam e impedem, muitas vezes, essas pessoas de saírem das condições de vida opressivas em que se encontram para terem acesso a uma existência digna, podendo realizar os seus sonhos e ser felizes. Gênero & Sexo “Diferenciação biológica, diferenciação social. De modo geral, opomos o sexo, que é biológico, ao gênero (gender, em inglês), que é social. […] As sociedades humanas, com uma notável monotonia, sobrevalorizam a diferenciação biológica, atribuindo aos dois sexos funções diferentes (divididas, separadas e geralmente hierarquizadas) no corpo social como um todo. Elas lhe aplicam uma “gramática”: um gênero (um tipo) “feminino” é culturalmente imposto à fêmea para que se torne uma mulher social, e um gênero “masculino” ao macho, para que se torne um homem social.” Acesse em: MATHIEU, Nicole-Claude. Sexo e gênero. In: HIRATA, H. et al (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. Editora UNESP : São Paulo, 2009, p. 173–178. PARA APROFUNDAR • Os homens usarem cabelos compridos; • Os homens colocarem brincos etc. 11 Atividade Extra É possível aplicar uma enquete junto às famílias das(os) adolescentes para identificar comportamentos que há dez anos eram rechaçados e, atualmente, são aceitos como naturais. Também é plausível organizar uma pesquisa para identificar a participação de homens e de mulheres em profissões tradicionalmente vistas pela sociedade como pertencentes a somente um gênero. Como essas(es) profissionais lidam com isso? Por exemplo: homens dançarinos e mulheres aviadoras. As(Os) estudantes podem levantar quais as profissões gostariam de pesquisar. O estudo pode ser realizado em diferentes períodos históricos e professoras(es) de História e de Geografia podem cooperar muito. Conteúdos na web Cruzada Antiprincesas - Boneca na mochila - Acesse em GROSSI, M. P. Identidade de gênero e sexualidade, [s.d] - Acesse em Referências LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997 (Coleção Educação pós-crítica); GROSSI, M. P. Identidade de gênero e sexualidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. Organize grupos mistos de meninas e de meninos e peça para avaliarem a oficina: • O que discutiram é novo para elas(es) ou já haviam lido ou participado de algum debate sobre o assunto? • O que a oficina trouxe de elementos para refletirem sobre os papéis sociais dos homens e das mulheres em nossa sociedade? Hora de avaliar Para ampliar 12 Voltar para Oficina 2 o sumário Futebol letrado Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Máquina fotográfica e/ou celular. • Gravador de áudio (opcional). • Notícias, reportagens e crônicas esportivas publicadas em jornais, revistas, livros e sites. • Promover rodas de debate sobre práticas esportivas das(os) jovens, as suas preferências, valores, crenças e aspirações a respeito do esporte, bem como os problemas que vivenciam e percebem em seu cotidiano e por meio da mídia. • Identificar as principais fontes de informação das(os) estudantes sobre o tema, perceber e problematizar os enfoques, os posicionamentos e as diferentes linguagens (verbais, imagéticas, sonoras etc) utilizadas. • Pesquisar a linguagem corrente entre os grupos desportivos da comunidade, observando as suas formas de comunicação, as variantes e as expressões locais. • Propiciar rodas de leitura sobre esportes para ampliar o repertório da turma. • Produzir, individual e coletivamente, textos de vários gêneros e em diferentes suportes, com base nas discussões e nas pesquisas desenvolvidas. • Projeto de educomunicação relacionado aos esportes, explorando gostos, atividades e conhecimentos prévios das(os) jovens, e envolvendo-as(os) em práticas sociais de leitura, escrita e oralidade. • Promover a participação na cultura letrada e o protagonismo juvenil por meio de atividades educomunicativas relacionadas aos esportes. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Quadra e sala de atividades na escola ou centro esportivo. • 4 encontros de 1h30 a 2h cada. 13 Início de conversa Como ampliar o letramento das(os) adolescentes e jovens por meio dos esportes, explorando diferentes linguagens e mídias? O Projeto Sintonia Cidadã mostra! A inspiração vem de São Miguel Paulista, distrito da zona leste do município de São Paulo. A iniciativa da Fundação Tide Setubal, em parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (SMDET), nasceu em 2011, como um embrião de ações de letramento desenvolvidas no Núcleo de Comunicação Comunitária São Miguel no Ar (NCC). Os encontros ocorriam três vezes por semana, com a participação de 15 jovens, a fim de promover o letramento por meio da educomunicação, estimular práticas esportivas da localidade e preparar as(os) estudantes para trabalhos em eventos esportivos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. No vídeo produzido pelo Cenpec, em 2014, o educomunicador José Luiz Adeve (Cometa), a estudante Heloísa Cardoso e o estudante Rodrigo Sousa Silva relatam como foi participar desta iniciativa transformadora. Acesse em Na prática Sugestão de encaminhamento Levantamento de conhecimentos prévios Esta oficina relaciona esporte e práticas de letramento, dialogando com as reflexões e ações apresentadas no vídeo sobre o Projeto Sintonia Cidadã. Promova uma roda de conversa estimulando as(os) estudantes a falar sobre as suas práticas, preferências, valores, ideias e dificuldades acerca do esporte. Você pode incentivar a participação com perguntas: • De quais esportes vocês mais gostam? • Quais praticam? • Do que gostam e do que não gostam nessas práticas? Por quê? Identificação e ampliação de repertório cultural Questione onde as(os) estudantes costumam assistir aos eventos e jogos esportivos e se informar a respeito: • Programas de TV; • Rádio; • Jornais; 14 • Revistas; • Sites. Peça que as(os) participantes tragam notícias, reportagens, crônicas esportivas e/ou imagens. Você também pode sugerir que façam anotações sobre programas esportivos de rádio, TV ou Internet aos quais costumam assistir. Estimule-as(os) a observar as linguagens utilizadas nos diferentes veículos: • A articulação entre as várias modalidades - som, imagem, escrita; • Os níveis da linguagem - mais ou menos formal; • As expressões utilizadas - termos técnicos do futebol, gírias, jargões esportivos e expressões que caracterizam determinada(o) comentarista ou locutora(or). Matemática no futebol O segundo gol de Richarlison de Andrade, jogador da seleção brasileira de 2022, na partida contra a Sérvia pela Copa do Mundo, encantou o planeta e promete ficar para a história do esporte. A beleza do chute de voleio inspirou diversos memes, entre eles, o que explica o movimento de corpo do jogador pela sequência de Fibonacci. Trata-se de uma espiral presente em formas da natureza, como caracóis, conchas, vegetais e criações humanas, como obras arquitetônicas e pinturas. A descoberta feita pelo matemático italiano Leonardo Fibonacci (1170-1250) revela uma sequência de números que formam a proporção áurea, conceito visual muito difundido nas artes visuais por ser harmônico aos olhos humanos. PARA APROFUNDAR Imagem: Reprodução / Twitter Rodas de debate Com base no levantamento realizado na atividade anterior, escolha coletivamente alguns temas a serem discutidos nas rodas de debate. Como referência, você pode assistir com as(os) participantes a algumas mesas-redondas veiculadas na TV, rádio ou Internet, observando as principais características desses programas. Problematize questões relacionadas aos temas escolhidos. Por exemplo: • Perigos dos esportes de alto rendimento; • Exploração de algumas modalidades pela mídia e pela publicidade; 15 • Investimentos públicos para a realização de eventos esportivos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos; • Preconceito, discriminação e racismo no cotidiano dos esportes. Estabeleça alguns combinados para organizar o debate: • Definir um tema orientador; • Ouvir e respeitar o momento da fala das(os) colegas; • Respeitar as diferentes opiniões e argumentações (é importante ressaltar que um debate só é possível se houver posicionamentos distintos e até mesmo divergentes sobre determinado tema); • Compreender que a oposição deve se manter no nível das ideias, sem extrapolar para a vida pessoal das(os) participantes; • Entender que se pode mudar de opinião ao longo do debate, em razão de uma(um) participante ser convencida(o), total ou parcialmente, pelos argumentos da outra parte (ressalte que essa é uma das grandes riquezas da discussão democrática: possibilitar que cada pessoa conheça diferentes pontos de vista sobre determinado tema para repensar as suas crenças, ideias e posturas). Divulgação dos textos Após as discussões e as leituras, proponha às(aos) participantes que elaborem, individualmente ou em grupo, textos escritos e orais. É interessante atrelar a escrita a uma finalidade comunicativa: pode ser um texto que ficará exposto no mural da escola, uma crônica publicada em um blog, um post compartilhado via redes sociais ou uma notícia que circula em papel pela comunidade. Um aspecto fundamental é a definição do público-alvo: • Quem são as(os) possíveis leitoras(es) ou espectadoras(es): colegas da escola, a comunidade escolar, o bairro? Com base nessa definição, você pode propor que pesquisem o perfil do seu público: • Práticas e preferências esportivas; • Veículos comunicativos que costumam acessar; • Linguagem corrente etc. Defina com elas(es) as características e as possíveis formas de divulgação dos textos: • Gêneros - notícia, reportagem, crônica, narração; • Linguagens articuladas à escrita - áudios, vídeos, fotos, ilustrações; • Suportes - impresso (jornal, revista), digital (blog, rede social), epigráfico (cartaz, mural), rádio, TV comunitária etc. 16 Conteúdos na web O paraibano José Lins do Rego, autor de obras clássicas como Menino de engenho, Doidinho e Fogo morto, escreveu mais de 1.500 crônicas esportivas entre 1945 e 1957. Saiba mais na matéria do jornal Tribuna do Norte - Acesse em O artigo Crônica esportiva brasileira: histórico, construção e cronista, de Felipe R. da Costa, Amarílio Ferreira Neto e Antonio J. G. Soares, foi publicado na Revista Pensar a Prática, da Universidade Federal de Goiás (UFG) - Acesse em Saiba mais sobre o Núcleo de Comunicação Comunitária São Miguel no Ar (NCC) O Núcleo de Comunicação Comunitária São Miguel no Ar (NCC) desenvolve ações educomunicativas para atuar no espaço público, como a rádio e a TV de rua São Miguel no Ar e o jornal A Voz do Lapenna. Também realiza atividades em escolas locais, sempre por meio da construção coletiva. Acesse o blog para saber mais em O jornal A Voz do Lapenna foi criado, organizado e escrito por jovens do Núcleo de Comunicação Comunitária São Miguel no Ar (NCC). Acesse a notícia em e assista ao vídeo em Segundo o educador José Luiz Adeve, conhecido como Cometa e envolvido no projeto Intermídia Cidadã: “Os jovens do Intermídia Cidadã, lá do Jardim Lapenna, seguiram seus caminhos, porém deixaram um legado e uma experiência de que educar é mais do que aprender e ensinar, é saber intervir. Como disse o geógrafo Milton Santos: ‘O homem não vê o universo a partir do universo, o homem vê o universo desde um lugar’. Olhando para o território sob a perspectiva dos direitos, desejamos, sempre, que a comunidade torne-se protagonista da sua luta por direitos, verdadeiros agentes transformadores da própria história.” Para ampliar Saiba mais sobre o Sintonia Cidadã O sucesso do Sintonia Cidadã entusiasmou as(os) participantes, que em 2012 criaram como desdobramento o Intermídia Cidadã. Além de trabalhar as linguagens de comunicação, o Intermídias discute temas como: novas formas comunicativas do habitar, participação comunitária e conexão escola, território e TV Digital, buscando promover a consciência crítica, a cidadania e a percepção de novos caminhos de vida pessoal e coletiva. PARA APROFUNDAR 17 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Pelo direito de dizer Sim ou Não • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Duas caixas. • Tiras de papel. • Canetas. • Desenvolver consciência sobre o papel da sexualidade e o significado da maternidade/paternidade no contexto de um projeto de vida. • Proposta de reflexão sobre a importância do senso crítico e da responsabilidade na decisão sobre a iniciação sexual. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Cuidar do seu corpo e ter autonomia de decisão sobre a própria vida. • Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 18 Início de conversa Segundo o Censo Escolar da Educação Básica de 2015, no Brasil, 34,5% dos estudantes de 13 a 15 anos, do sexo masculino, já tiveram relação sexual alguma vez, enquanto, entre as meninas da mesma idade o percentual era de 19,3%. Um estudo do Ministério da Saúde sobre o comportamento sexual no Brasil, realizado com 8 mil pessoas em 2009, mostrou que 35,4% das(os) brasileiras(os) fizeram sexo antes dos 15 anos de idade. A mesma pesquisa traz outro dado alarmante: 39,1% da população entre 15 e 24 anos não usou preservativo na primeira relação sexual. No Censo de 2010, apurou-se que as faixas etárias de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos, concentram, respectivamente, 17,7% e 27% da taxa de fecundidade do país. Esse quadro, que em grande parte é o reflexo de comportamentos de sexo desprotegido, encontra reforço na feminização da epidemia de Aids, mais presente entre as mulheres mais jovens. Dados do Ministério da Saúde indicam que 170 mil casos notificados de Aids no Brasil correspondem a portadoras(es) de 13 a 19 anos de idade. O número equivale a 30% dos casos notificados de Aids no país, considerando todas as faixas etárias. Além disso, a gestação na infância e adolescência tem como um de seus efeitos a evasão escolar. De acordo com a pesquisa Cenário da Exclusão Escolar no Brasil (UNICEF/Cenpec, 2021), mais de 4 mil das meninas entre 6 a 10 anos e mais de 71 mil entre 15 e 17 anos não frequentavam a escola em 2019 por motivo de gravidez. Acesse a pesquisa Cenário da Exclusão Escolar no Brasil (UNICEF/Cenpec, 2021) em Qual educadora(or) pode ficar alheia(o) a esse quadro alarmante? Olhando esses dados, é impossível que não nos perguntemos qual é nosso papel e a nossa responsabilidade nesse cenário. Se é fato que as novas gerações estão começando a sua vida sexual cada vez mais cedo, muitas vezes sem proteção e até mesmo sofrendo violência sexual, e estão por isso sujeitas(os) à maternidade /paternidade precoce e à Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), alguma coisa tem de ser feita. E sabemos que é só pela Educação que podemos mudar tal situação. Cabe a nós, na família, na escola e/ou na OSCIP, proporcionar informações e momentos de reflexão às(aos) adolescentes em relação ao seu projeto de vida: • O que eu quero para o meu futuro? Como será a minha vida daqui a alguns anos? Ter claro o projeto de vida ajuda a pensar em curto, médio e longo prazos, e a compreender a importância de prevenir uma gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis, na busca da realização do seu projeto. A maternidade/paternidade precoce exige adiamento e, muitas vezes, renúncias desses projetos de vida. É igualmente importante discutir as responsabilidades da maternidade/paternidade para com as(os) filhas(os) geradas(os), o que exige independência financeira para garantir a sua sobrevivência e maturidade psicológica e afetiva para prover a elas(es) o desenvolvimento saudável a que têm direito. 19 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: colocando o assunto em pauta Este é um tema delicado, mas que precisa entrar na roda das(os) adolescentes. Comece dizendo isso mesmo e pergunte se as(os) participantes têm conhecidas(os) que se tornaram recentemente mamães e papais. Qual seria a idade delas(es)? Se trouxerem em pauta a maternidade/paternidade de adolescentes como elas(es), peça para contarem um pouco como o casal está vivendo e se sentindo após o nascimento do bebê: alegrias, desafios e dificuldades. Depois de alguns depoimentos, coloque na roda duas caixas de cores diferentes e diga que na primeira as(os) adolescentes devem colocar três filipetas, com três motivos - um em cada filipeta - que julgam serem mais frequentes para se tomar a decisão de iniciar a vida sexual e, na segunda caixa, três filipetas, com três motivos - um em cada filipeta - considerados por elas(es) mais frequentes para não se iniciar sexualmente. Oriente para que façam uma coisa por vez: quando todas(os) tiverem escrito os motivos para se iniciar a vida sexual, passem aos motivos para não iniciar ainda a vida sexual. A seguir, peça que formem grupos de três ou quatro adolescentes e passe as duas caixas para que cada grupo tire três filipetas de cada uma delas. Então, proponha que discutam os motivos expostos a favor de se assumir ter ou não ter relações sexuais, emitindo as suas opiniões a respeito de tais motivos. E se? E se algumas das filipetas retiradas tiverem sido produzidas por uma(um) das(os) participantes? Não há problema, cada adolescente pode assumir ou não a autoria, o importante é que se sintam à vontade para conversarem no grupo. Deixe-as(os) discutir por aproximadamente 30 minutos e abra a roda para que socializem as reflexões dos grupos. É importante que a opinião de todas(os) seja respeitada. A seguir, distribua na roda alguns registros de casos reais de adolescentes, com nomes fictícios, que trazem dúvidas, curiosidades e receios antes da primeira relação sexual (veja abaixo). Leia os casos e peça para as(os) participantes manifestarem se concordam ou não com eles e por quê. Antes da primeira vez (alguns relatos de adolescentes, com nomes fictícios) “Outro dia, uma amiga me contou que o garoto com quem ela estava de rolo queria transar e ela, de um lado, tinha medo de ir com ele e, de outro, tinha medo de perdê-lo. Eu falei que, para mim, um cara que forçava logo na primeira semana não devia estar querendo nada sério.” Inaiá, 16 anos. “Nos dias de hoje a gente tem de usar camisinha desde a primeira vez. Nunca se sabe o que pode acontecer, né? Agora, eu acho super errado só o cara ter que comprar a camisinha. Os dois precisam dividir porque o preço é muito alto.” José Luís, 17 anos. “Acho que a primeira vez de um garoto não pode ser com a namorada. O ideal é ser com uma garota que já tenha experiência. Daí, quando o cara for com a namorada, já praticou e não vai acontecer de falhar. E, se for a primeira vez da namorada, então, melhor ainda.” Leo, 16 anos. 20 “Eu gostaria que a minha primeira vez fosse com a minha namorada. Acho que com ela rolaria mais carinho e excitação.” Pedro, 15 anos. “Eu e minhas amigas falamos muito sobre virgindade. Acho que nossos maiores medos são: medo de a vida não ser mais a mesma, medo de o cara só estar tirando vantagem, medo de perder o namorado, medo da gravidez e da dor.” Juliana, 14 anos. “A primeira vez tem que ser muito especial, até já imaginei como gostaria que fosse. A cena é assim: os dois aparecem num quarto, a única luz é a do luar entrando pela janela. Eles se beijam, deitam e o resto fica por conta da imaginação. Eu sei que existem poucas chances de que seja assim, mas de uma coisa eu faço questão: tem que ser com a pessoa que eu mais ame nesta vida. Não importa lugar nem nada, apenas que seja de uma forma bem natural e que os dois queiram por conta própria, sem forçar a barra. Bom seria também se ele pusesse a camisinha sem que eu tivesse de falar nada.” Taís, 15 anos. “O meu maior medo é de brochar. O que é que a menina vai pensar de mim? E se ela sair por aí falando que eu falhei?” Luís, 15 anos. No caso de discordâncias, elas deverão ser debatidas no coletivo de forma respeitosa. Não se pretende chegar a uma conclusão, mas promover o diálogo atencioso e a reflexão sobre o tema. Para isso, é importante que as(os) adolescentes justifiquem os motivos favoráveis ou contrários à decisão de se ter ou não ter relação sexual nessa etapa da vida. Avise que na continuidade da oficina será projetado um filme sobre adolescentes como elas(es), que têm as mesmas dúvidas e angústias. É um filme nacional, lançado em 2011, que se chama Desenrola. Acesse o trailer em Há também o filme As melhores coisas do mundo, lançado em 2010, da diretora Laís Bodanzky, com as participações de Paulinho Vilhena, Caio Blat, Denise Fraga, Zé Carlos Machado e do cantor Fiuk, que pode ser visto e comentado na oficina. Veja o trailer em Segundo encontro: Desenrola (assistindo e debatendo o filme) Retome as discussões já realizadas sobre o assunto na oficina, orientando-as(os) a assistir ao filme tendo tais discussões como pano de fundo. Após a projeção, forme grupos para debater: • A relação de Priscila com Rafa; • A relação de Priscila com Caco; • A relação de Priscila com Boca; • Os depoimentos das meninas para a pesquisa sobre virgindade; • O uso próprio e impróprio do celular; • A gravidez de Tisi, irmã do Rafa. Não há respostas certas nem conclusões, mas é importante que, em suas reflexões, as(os) adolescentes manifestem atitudes que representem a valorização do seu corpo e o respeito para consigo e para com as outras pessoas. 21 Ao final do debate sobre o filme Desenrola, peça para cada participante escrever uma frase sobre o que pensa, agora, em relação à iniciação sexual e enviar uma mensagem para as(os) colegas. Cada uma(um) lerá as suas reflexões e mensagens. Atividade extra As(Os) participantes podem ser estimuladas(os) a formar grupos de discussão, com a participação de educadoras(es) para debater questões próprias do seu universo. Nessa formação, elas(es) devem ter protagonismo, desde sobre a forma de funcionamento dos grupos e a sua periodicidade, até sobre os temas a serem debatidos e as(os) especialistas que gostariam de convidar para aprofundar as conversas. Seria interessante rodiziar os locais de reunião, dando oportunidade para mais adolescentes participarem. A Unidade Básica de Saúde (UBS) da comunidade pode ser uma excelente parceira, contribuindo com o seu pessoal técnico, sua experiência e equipamentos. A participação de uma universidade também é muito bem-vinda ao projeto, pois além de dar consistência aos debates pode promover um fluxo de comunicação com as(os) adolescentes, abrindo a possibilidade para elas(es) conhecerem e usufruírem das oportunidades que essa instituição oferece. As(Os) educadoras(es) sociais e as(os) professoras(es) podem organizar um ciclo aberto de cinema com filmes sobre questões da juventude e convidar, a cada dia, uma(um) especialista para discutir o tema com as(os) adolescentes. Referências UNESCO Brasil. Juventude e sexualidade. Org. Miriam Abramovay, Mary Garcia Castro e Lorena Bernadete da Silva. Brasília, 2004. Hora de avaliar Para ampliar 22 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 O território, as profissões e o mundo de hoje • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Câmera fotográfica. • Folhas de papel pardo. • Canetas. • Entrar em contato com diferentes opções profissionais do mundo contemporâneo para formar, gradativamente, um repertório de informações que subsidiem futuras escolhas. • Experiência de aproximação das profissões existentes no território Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Conhecer características de algumas profissões e o que é necessário para exercê-las. • Aprender a procurar informações sobre as profissões em fontes adequadas e confiáveis. • Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, sala de informática e território. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 23 Escolher uma profissão na adolescência não é fácil. É um passo fundamental para a pessoa ingressar no mundo adulto, no qual se terá acesso a uma série de situações interessantes. Em contrapartida, essa escolha envolve novas responsabilidades. É uma situação que gera ansiedade, angústia e medo, pois coloca a(o) adolescente em um contexto que exige, ao mesmo tempo, autonomia e responsabilidade. Envolve também uma jornada de autoconhecimento e de conhecimento de mundo, pois exige identificar, simultaneamente, o que a pessoa gostaria de ser e fazer em sociedade. Desta forma, é preciso voltar-se para dentro de si, assim como buscar fora de si, no mundo do mercado, informações sobre as profissões existentes. A escolha profissional representa um desafio que envolve diversos fatores: • Expectativas da família; • Custo da formação e local dos estudos; • Gostos, desejos e habilidades; • Oportunidades de mercado; • Características das profissões (por exemplo, conhecimentos, atividades e local onde são realizadas). Além disso, valores veiculados na mídia, dando destaque a profissões “da moda”, influenciam as(os) adolescentes. Esses fatores, associados à quantidade de informações veiculadas a respeito do mundo do trabalho, às vezes levam a(o) adolescente a adotar critérios de escolha mais voltados para questões externas, como prestígio e dinheiro, do que para os seus interesses, anseios e aspirações. Afinal, é mais fácil para ela(e) desenvolver um conhecimento razoável sobre as profissões do que sobre si própria(o). A questão, portanto, envolve ter autoconhecimento para fazer um bom uso das informações obtidas a seu favor. Por isso é importante criar espaços de reflexão nas escolas e nas instituições educacionais, e de debate entre as(os) colegas, uma vez que o grupo é referência importante para a(o) adolescente. É necessário oferecer oportunidades de se conhecerem melhor e refletirem sobre as possibilidades profissionais que têm em mente, planejando o seu futuro. É reconfortante saber que, apesar da escolha ser pessoal, existem pessoas ao seu redor dispostas a apoiá-la(o) e a incentivá-la(o) para que faça essa escolha de forma consciente. É preciso considerar ainda que o contexto onde vive a(o) adolescente influencia fortemente a sua escolha. Segundo Dulce Whitaker: “adolescentes com alto poder aquisitivo têm uma preocupação maior com a realização pessoal que adolescentes de famílias economicamente desfavorecidas e de classe média, os quais demonstram maior preocupação com o padrão financeiro, embora direcionado à satisfação pessoal.” Início de conversa 24 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: as profissões do nosso território Proponha uma conversa inicial sobre as profissões que as(os) adolescentes conhecem. Peça que pensem nos percursos que fazem durante a semana, pelo território, para irem à escola ou à instituição educacional, ao dentista, ao futebol. Por onde passam, com quais profissionais entram em contato direto ou indireto? Peça que relacionem as profissões das pessoas com quem interagem nesses percursos ou mesmo aquelas profissões que veem em placas ou cartazes de casas comerciais, construções, consultórios. Conforme forem falando, registre na lousa ou em um cartaz. Depois, peça que relacionem outras profissões das quais tiveram conhecimento por revistas, filmes, internet ou simplesmente por terem ouvido falar e que gostariam de conhecer melhor. Após o registro, peça para observarem bem o cartaz ou a lousa, lerem as profissões relacionadas e tentarem, coletivamente, separar aquelas que exigem certificação de conclusão de estudo das que não exigem. Depois, solicite que tentem identificar se os certificados exigidos são de nível médio de ensino ou de nível superior. Em seguida, peça que escolham quatro dentre as profissões relacionadas que exigem diploma e sobre as quais têm mais interesse e curiosidade em conhecer. Ao pesquisar melhor essas quatro ocupações, elas(es) devem aprender a procurar informações sobre as outras profissões e adquirir mais autonomia para fazer novas pesquisas. Para o estudo inicial, forme duplas para pesquisar, na internet, as profissões escolhidas pelo grupo. Apresente os sites abaixo para as(os) adolescentes investigarem o que caracteriza as quatro profissões, quais as exigências de estudo para ingressar no exercício de cada ocupação profissional, a remuneração média das(os) profissionais e a atual demanda do mercado. • Guia do Estudante - Acesse em • Pesquisa salarial (Empregos) - Acesse em • Blog do Enem (Guia de Profissões: como escolher o curso superior) - Acesse em E se? Se as(os) adolescentes tiverem dificuldades em identificar as profissões que exigem certificação de estudos, oriente que consultem na internet e socializem com o grupo. Dê aproximadamente 50 minutos para a pesquisa e depois abra a roda para socializarem e complementarem as informações encontradas a respeito de cada uma das quatro profissões selecionadas, para estabelecerem um panorama dos principais aspectos de cada uma. Aproveite o momento e projete o vídeo A difícil fase dos adolescentes de escolher uma profissão, que apresenta algumas dicas importantes sobre a escolha da ocupação profissional. Acesse em 25 Chame a atenção para a diferença entre os cursos técnicos, cursos tecnológicos, cursos de bacharelado e os de licenciatura. Como continuidade do estudo, sugira que as(os) adolescentes façam novas pesquisas em casa, na sala de informática, no telecentro ou em uma lan house. Segundo encontro: preparando a mesa redonda com profissionais do território No segundo encontro, proponha às(aos) participantes a realização de uma mesa-redonda, com duração aproximada de 40 minutos, com a presença de profissionais do território. O objetivo é entender os ofícios que exercem, para além das características conhecidas e das exigências de ingresso, para as(os) adolescentes entrarem em contato com as dificuldades mais frequentes que as profissões apresentam, assim como as gratificações e o leque de possibilidades de atuação que oferecem. O grupo poderá definir, por exemplo, quatro profissionais a serem convidadas(os) para o evento, podendo ser das mesmas profissões que pesquisaram ou de outras. Além disso, as(os) adolescentes devem definir a data do evento e quem fará o convite às(aos) profissionais. Ajude o grupo a executar essas tarefas, começando pela escrita do convite, como localizar as(os) convidadas(os) e como abordá-las(os) - identificando a instituição, marcando um horário possível para entregar a carta-convite, combinando a data, o local e o horário do evento. Como forma de preparação da turma para a mesa-redonda, use a técnica do remador. Forme quatro grupos e distribua uma folha de papel pardo para cada um deles. Cada folha terá o nome de uma das quatro profissões que serão objeto de discussão na mesa-redonda. Os grupos devem relacionar nessas folhas as perguntas que gostariam de fazer à(ao) respectiva(o) profissional. Dê 10 minutos para discutirem e selecionarem as perguntas e "reme" as folhas pelos grupos, para adicionarem novas questões sem repetir as que já foram apontadas. Faça isso três vezes, de forma que cada grupo preencha as quatro folhas. Exponha as quatro folhas e, em conjunto, façam uma triagem das perguntas para selecionar algumas (quatro ou cinco), fundindo ou eliminando outras, sempre em consenso. Reescrevam as perguntas selecionadas em um cartaz que ficará exposto no decorrer da mesa- -redonda, para direcionar a discussão. Sugira que o grupo que entrou em contato com as(os) convidadas(os) as(os) recebam e combine com as(os) adolescentes quem deve fazer as perguntas selecionadas e registradas nos cartazes a cada profissional, quem deve tirar fotos ou filmar e quem deve agradecer a presença das(os) convidadas(os) em nome da turma. Sugira que durante as falas das(os) profissionais, anotem o que considerarem importante. Terceiro encontro: mesa-redonda No dia marcado, a mesa-redonda seguirá os combinados. Cada convidada(o) deve ter 10 minutos para responder às questões apresentadas. Após a realização do evento e a saída das(os) convidadas(os), organize, no coletivo, as informações mais importantes das respostas dadas às questões formuladas e faça a avaliação da oficina. 26 Atividade extra Uma proposta interessante é criar um guia de profissões escolhidas pelo grupo, escrito, ilustrado e digitalizado pelas(os) adolescentes para divulgarem na escola, na instituição educacional, na comunidade e/ou nas redes sociais. As(Os) educadoras(es) e gestoras(es) também podem organizar algumas visitas a universidades públicas, a cursinhos gratuitos e locais de trabalho para que as(os) adolescentes possam presenciar as(os) profissionais atuando. Outra visita interessante é ao Centro de Integração Empresa e Escola (CIEE), para as(os) participantes entenderem como funciona a oferta e a adesão a estágios. Além disso, junto com a(o) professora(or) de Língua Portuguesa e de outras(os) educadoras(es) que se engajem, as(os) adolescentes podem ler cadernos de empregos dos grandes jornais para analisarem as principais ofertas de trabalho no mercado: a que profissões elas estão relacionadas e qual formação exigem. Essas informações devem ser discutidas, considerando-se os desejos e sonhos de cada adolescente. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Educação profissional técnica de nível médio integrada ao Ensino Médio. Documento base. Brasília, dez. 2007 - Acesse em: LARA, Luciane D.; ARAÚJO, Maria Carolina S. O adolescente e a escolha profissional: compreendendo o processo de decisão. Arquivos de Ciências da Saúde da Unipar, Umuarama, v.9(1), jan./mar., 2005 - Acesse em FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Guia de auxílio à escolha profissional para adolescentes e jovens. São Paulo, 2011; WHITAKER, Dulce. Escolha da carreira e globalização. São Paulo: Moderna, 1997. Cada adolescente deve avaliar a oficina, desde o seu início, identificando as aprendizagens obtidas e explicitando o que sentiu falta na atividade, trazendo, desta forma, elementos para futuras oficinas que deem continuidade a este tema muito importante nessa faixa etária. Hora de avaliar Para ampliar 27

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Família, comunidade e território

Convivência e relações na escola

No terceiro episódio do Educação na ponta da língua, você ouvirá um bate-papo sobre a importância de uma boa convivência para prevenção e combate à violência na e contra a escola. Confira!

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Criança, arte e imaginação

As crianças aprendem criando, brincando e interagindo. Entre em contato com oficinas para a Educação Infantil, que respeitam tempos, interesses e modos de se expressar no mundo desde os primeiros anos da vida.

1 Criança, arte e imaginação Oficinas para desenvolver a criatividade desde os primeiros anos 2 3 Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Viver uma infância plena é um direito de toda criança. Cabe à escola, à família e à sociedade como um todo garantir condições para que meninas e meninos possam brincar, imaginar, explorar, se expressar e aprender em ambientes que respeitem seus ritmos, interesses e modos próprios de ser. As oficinas aqui reunidas, voltadas à Educação Infantil, foram organizadas com base em uma concepção de criança como sujeito de direitos e de aprendizagens, que se desenvolve nas interações com o outro, com o ambiente e com as múltiplas linguagens. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As atividades foram desenhadas para apoiar o trabalho das educadoras e educadores no planejamento de experiências didáticas que favoreçam a compreensão dos conceitos e a aplicação dos saberes no cotidiano das(os) estudantes, respeitando seus ritmos e contextos. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Conhecendo o corpo e se reconhecendo na arte 5 Oficina 2 - Conhecendo e representando a(o) outra(o) pela arte 8 Oficina 3 - Rememorando vivências pela arte 13 Oficina 4 - Criança, natureza e arte 16 Oficina 5 - Corpo brincante, espaço e audiovisual 20 Oficina 6 - Histórias de brincar 23 Oficina 7 - Contando e recontando histórias 27 Oficina 8 - Desenhando histórias 30 Oficina 9 - Contemplando a natureza 34 Oficina 10 - Brincando de Arte Rupestre 37 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Conhecendo o corpo e se reconhecendo na arte • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor. • Tapetinhos. • Hidratante corporal (hipoalergênico). • Trabalhar o autocuidado e a expressão da criação artística. • Ampliar a percepção de si e da(o) outra(o). • Prática de consciência corporal e produção de autorretrato a partir de uma animação. Esta é a primeira de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR • Habilidades EI01EO05 e EI02EO01. 6 Na prática Sugestão de encaminhamento Início de conversa Na Educação Infantil, devemos criar oportunidades para que as crianças ampliem a percepção de si mesmas e da(o) outra(o). Nessas experiências, elas podem construir a sua autonomia e o senso de autocuidado, bem como interdependência com o meio. Nesta oficina, a criança reconhece o seu corpo e expressa as suas sensações em momentos de relaxamento e descanso. Ela também é convidada a expressar as suas percepções por meio da criação de um desenho. Corpo e consciência Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Você pode criar uma nuvem de palavras em um quadro e registrar as respostas à medida que cada criança se expressa. Dessa forma, todo o grupo pode visualizar as respostas. Leia as palavras pausadamente. A seguir, peça às crianças que se deitem nos tapetinhos. Forneça hidratante corporal (hipoalergênico) para todas as crianças e peça-lhes que massageiem uma parte do próprio corpo, como os braços e/ ou as pernas. Neste momento, disponibilize uma música relaxante. A nossa sugestão é Flute and Harp Concerto in C Major, K. 299: II. Andantino Opole P.O., de Wolfgang Amadeus Mozart. Acesse em Após 5 a 10 minutos de relaxamento, oriente que se espreguicem e se sentem. Pergunte-lhes: • Como vocês estão se sentindo? Incentive a participação de todas(os) e registre as respostas em outra nuvem de palavras. Compare as nuvens. Ao final, fale sobre a importância do autocuidado e da percepção de si. Linguagens expressivas da arte Em seguida, assista com a turma à animação Alike (Daniel Martínez Lara & Rafa Cano Méndez, 2015). Após a exibição do curta-metragem, explore as características sensoriais do filme: • Expressão de emoções por cores e gestos; • A importância da música e da criatividade. 7 Deixe que as crianças expressem livremente as suas ideias. Em seguida, distribua folhas de papel sulfite e lápis de cor e peça às crianças que façam um autorretrato. Elas devem produzir garatujas, e com as crianças você pode refletir sobre a riqueza presente em suas expressões. Garatuja. Imagem: Commons.wikimedia Nesse momento, você pode explorar a riqueza das expressões não figurativas e reconhecer as forças de representação que comunicam e podem ser compreendidas através dos seguintes aspectos: • Percepção sensível no traço, na pressão e na movimentação do gesto; • Composição dos espaços e das cores escolhidas. Incentive a troca dos desenhos entre as crianças e deixe-as expressar as suas ideias sobre os desenhos das(os) colegas. Se julgar apropriado, faça um mural com as produções. 8 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 2 Conhecendo e representando a(o) outra(o) pela arte • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor. • Trabalhar a expressão da criação artística por meio do olhar da criança nas obras de Henri Matisse e Pablo Picasso. • Prática de consciência corporal, escultura corporal e produção de desenho. Esta é a segunda de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Dirigir à expressão artística o olhar de encantamento da criança para o mundo. • Habilidades EI03CG01 e EI03TS02. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 9 Início de conversa As obras de Matisse e Picasso são a base para a investigação do “olhar da criança”, que visualiza o mundo com encantamento. Os artistas buscavam na fluidez e na expressividade do gesto esse olhar infantil. Nesta oficina, propõe-se um trabalho de produção artística e consciência corporal com base nas obras desses artistas. Na prática Sugestão de encaminhamento O olhar da criança Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Oriente as crianças a fazerem um exercício de respiração para acalmar a mente e ativar os sentidos. Foto: Greyerbaby/Pixabay Invenção do teatro. Foto: Otterbein University Theatre & Dance dos Estados Unidos/Wikipedia Ao chegar ao encontro, peça-lhes que expressem o estado delas por meio de uma escultura corporal. Você pode perguntar: • Como vocês estão agora? Alegres? Animadas(os)? Cansadas(os)? Com sono? • Vamos brincar de contar isso como se a gente não pudesse falar? • Como fazemos? Que tal usarmos as mãos, os braços e o rosto para mostrar? 10 Após a apresentação da escultura corporal, peça às crianças que inspirem e expirem. Prossiga com um aquecimento, com movimentos leves e circulares dos pulsos, quadris e tornozelos. Proponha um instante de silêncio e pergunte como estão se sentindo. Após o aquecimento, divida a turma em trios e sugira para uma das crianças de cada grupo expressar o seu estado por meio de uma escultura corporal. As outras duas crianças registram o que observaram em um desenho no papel sulfite. Ao final, oriente o compartilhamento dos desenhos. Pergunte: • Como foi desenhar a(o) colega? O que você observou? Atente-se ao traço livre e à fluidez dos desenhos das crianças. Criar criança Agora, apresente imagens de obras do artista francês Henri Matisse (1869-1954). Incentive as crianças a perceberem como as obras são uma forma de expressão no mundo. Henri Matisse. A dança, 1909. Imagem: Wikipedia Pergunte: • O que essas pessoas estão fazendo? Após expressarem as suas ideias, pergunte se as crianças gostam de brincar de roda e incentive-as a dar as mãos e dançarem livremente. Obra baseada em A dança. Foto: Wikipedia Crianças dançando. Foto: Yann/Wikipedia 11 Para ampliar o diálogo, apresente obras do artista espanhol Pablo Picasso (1891-1973), contemporâneo de Matisse e com quem compartilhou o encantamento do olhar da criança. Picasso dizia: “Quando eu tinha 15 anos, sabia desenhar como Rafael (pintor renascentista Rafael Sanzio), mas precisei de uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças.” Foto: Wikiart Selecione previamente algumas obras de Picasso para que as crianças explorem com você. No vídeo Pablo Picasso: a collection of 855 works, há vários exemplos de obras em que o olhar da criança se faz presente. Pause o vídeo e dê tempo para expressão livre de ideias. Complemente com a cena do vídeo Watch Picasso Draw a Face, que mostra o artista pintando em tempo real, evidenciando a sua gestualidade fluida e expressiva. As obras de Matisse e de Picasso permitem traçar as similaridades entre os processos de criação das crianças e dos artistas, além de refletir sobre as relações entre a expressão, o gesto e a consciência. “Toda criança é um artista. O problema é como manter-se artista depois de crescido.” Pablo Picasso Após apresentar a cena de Picasso desenhando um rosto, peça às crianças que façam um autorretrato. Solicite que compartilhem o desenho com as(os) colegas. Sugestão de leitura: Com olhos de criança, do artista francês Henri Matisse (1869-1954) “Criar é próprio do artista; onde não há criação, a arte não existe. Mas seria enganoso atribuir este poder criador a um dom inato. Em matéria de arte, o criador autêntico não é apenas um ser dotado; é um homem que soube ordenar para sua finalidade todo um facho de atividades cujo resultado é a obra de arte. É assim que, para o artista, a criação começa na visão. Ver isso já é uma operação criadora, que exige esforço. Tudo o que vemos na vida diária sofre mais ou menos a deformação produzida pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível numa época como a nossa, em que o cinema, a publicidade e as revistas nos impõem cotidianamente um fluxo de imagens prontas que são um pouco, na ordem da visão, o que é o preconceito na ordem da inteligência. O esforço necessário para se desvencilhar disso exige uma espécie de coragem; e esta coragem é indispensável ao artista que deve ver todas as coisas como se as tivesse vendo pela primeira vez; é preciso ver toda a vida como quando se era criança; e a perda dessa possibilidade vos retira a de vos exprimir de uma maneira original, isto é, pessoal.” PARA APROFUNDAR Conteúdos na web Abordagem triangular para o ensino das culturas e artes visuais, de Ana Mae Barbosa e Fernanda Pereira da Cunha (org.). São Paulo: Cortez, 2012 - Acesse em Para ampliar 12 O uso da abordagem triangular nas salas de aula - Acesse em Referências Inteligências múltiplas: a teoria na prática, de Howard Gardner. Porto Alegre: Artmed, 1995. Segundo o psicólogo estadunidense, precisamos individualizar a Educação ao invés de ensinar as mesmas coisas, da mesma maneira, “para todas(os)”. É preciso conhecer cada educanda(o), para favorecer oportunidades de aprendizagem de maneira a fazer sentido para elas(es). Outro aspecto importante é a “pluralização”, isto é, ensinar o que é importante de diversas formas; O pêndulo didático, de Rosa Iavelberg. In: SILVA, Dilma de Melo de (org.) Interdisciplinaridade, transdisciplinaridade no estudo e pesquisa da arte e cultura. São Paulo: Terceira Margem, 2010. 13 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 3 Rememorando vivências pela arte • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor. • Giz de cera. • Trabalhar a expressão artística com base em vivências e aprendizados. • Prática de consciência corporal e produção de desenho com base em vivências e aprendizados. Esta é a terceira de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Promover a capacidade de expressar vivências e aprendizagens explorando linguagens artísticas. • Habilidades EI03EF01 e EI03EF06. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 14 Início de conversa Na Educação Infantil, é importante criar um ambiente onde as crianças possam expressar ideias, desejos e sentimentos sobre as suas vivências. Nesta oficina, as crianças podem manifestar sentimentos sobre uma vivência de aprendizado. Na prática Sugestão de encaminhamento Resgatando aprendizados Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Em seguida, apresente o vídeo Dança da máscara, do Palavra Cantada, e acompanhem a dança dos personagens. Acesse em Ao final do vídeo, pergunte: • Como estão se sentindo? • O que mudou? Neste momento, explore as vivências de aprendizado. Pergunte: • O que aprenderam na semana passada (ou no mês passado)? • Quem ensinou? • Onde aprendeu? • Aprendeu sozinha(o)? Após a partilha, peça às crianças que façam, em duplas, um desenho narrativo sobre a vivência de aprendizado. Ao final, solicite que narrem o desenho para uma(um) colega. Desenho de criança. Foto: ZoomViewer/Wikipedia 15 Rememorando vivências Apresente às crianças a animação Umbrella (2020). A obra, dirigida por Helena Hilario e Mario Pece, conta a história de uma menina que visita um orfanato e conhece um garotinho que sonha ter um guarda-chuva amarelo. Após a exibição, pergunte: • O guarda-chuva amarelo desperta memórias do passado. Quais serão elas? • O que aprendemos com as outras pessoas? Peça às crianças que narrem uma vivência semelhante à apresentada na animação: • O que aprenderam dessa vivência? Conteúdos na web Bambeia: documentário de 2003 dirigido por Renata Meirelles e David Reeks, apresenta as etapas da confecção de um pião, realizada por três meninos de uma comunidade ribeirinha da Amazônia. Acesse em Para ampliar 16 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 4 Criança, natureza e arte • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas A3 ou de tamanho maior. • Lápis de cor. • Massa de modelar (pode ser argila ou massa de modelar caseira). • Trabalhar a expressão da criação artística por meio de fruição de elementos naturais (sons e imagens) e obras de arte. • Prática de consciência corporal e expressão artística a partir de fruição de elementos naturais, em diálogo com obras de Friedensreich Hundertwasser, Hilma af Klint e Joseph Beuys. Esta é a quarta de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Promover a expressão livre da criança por meio de desenhos e esculturas, considerando a integração com a natureza. • Habilidades EI03TS02 e EI02EF06. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 17 Início de conversa Nesta oficina, as crianças reconhecem o ambiente onde estão e o integra em suas criações. Partimos de vídeos e imagens estáticas (fotos, ilustrações) de elementos da natureza e da fruição de obras que trabalham a integração da natureza para a expressão livre das crianças por meio de desenhos e esculturas. Primeiro encontro: a natureza e eu Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, a partir de um elemento da natureza, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Faça uma pesquisa na Internet e apresente às crianças uma série de imagens que representam a natureza. Explore com elas as imagens escolhidas por você: a quais elementos da natureza elas se referem? Terra seca, vendaval, tempestade, furacão. Incentive as crianças a expressarem os seus sentimentos. Você pode criar uma nuvem de palavras em um quadro e registrar as respostas à medida que cada criança se expressa. Dessa forma, todo o grupo pode visualizá-las. Leia as palavras pausadamente. Agora, solicite que as crianças fechem os olhos e ouçam sons da natureza por alguns minutos. Para isso, selecione previamente um vídeo ou áudio com sons da natureza. Acesse um exemplo Após 5 a 10 minutos de audição, peça às crianças para expressarem o que ouviram. Como elas se sentem agora? Incentive-as a manifestar o seu estado atual a partir de um elemento da natureza. Você pode iniciar dando exemplos, como: • Agora eu me sinto como a água de um lago; • Estou me sentindo como uma pedra bem grande. Faça uma pesquisa na Internet e apresente às crianças uma série de imagens de animais. Explore com elas as imagens escolhidas por você e permita que as crianças expressem o estado atual com movimentos livres. Segundo encontro: a natureza na expressão de três artistas Apresente e explore com as crianças as obras do artista austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928-2000), que retrata, reflete e manifesta uma relação respeitosa e integrada com a natureza. Na prática Sugestão de encaminhamento 18 O artista, arquiteto e ativista ambiental austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928-2000) deu forma a um projeto ecológico e estético de vida possível, que retrata, reflete e manifesta uma relação respeitosa e integrada com a natureza. Segundo o artista, em sua teoria das cinco peles, a realidade é percebida em 5 camadas que se sobrepõem: 1. Epiderme/derme; 2. vestuário/roupas; 3. Habitação/casas; 4. Meio social/identidade; 5. Biosfera/planeta. PARA APROFUNDAR Mais sobre o artista • A fábrica de cinco peles: Hundertwasser e o caminhar contemporâneo, dissertação de Bianca Bernardo Barros - Acesse em • Obras de Friedensreich Hundertwasser na WikiArt - Acesse em Wikimedia Após apresentar o trabalho de Hundertwasser, pergunte às crianças: • Como a natureza aparece nas obras deste artista? • O que você vê, percebe e sente? Peça às crianças para pegarem lápis de cor e uma folha de papel. Elas devem observar o local onde estão. Encontram-se em meio à natureza ou em casa? Como estão inseridas nesse ambiente? Oriente-as a criar um desenho que simboliza a sua inserção no ambiente da sala de aula ou em casa. Ao final, incentive-as a apresentar os desenhos e deixe-as se expressarem livremente. Em seguida, passe para uma observação das obras da artista sueca Hilma af Klint (1862-1944). Apresente o vídeo com algumas das produções de Klint. Acesse em Faça pausas para que as crianças expressem as suas ideias sobre as produções artísticas. As obras de Hilma af Klint enfatizam a criação e a estruturação por meio de imagens não figurativas, de conteúdos, saberes e visões de mundo ainda não sistematizados formalmente. Elas abrem a possibilidade de criar outras realidades, outros mundos possíveis. Incentive as crianças a falarem sobre a obra. • Quais elementos elas reconhecem? A partir desse reconhecimento, incentive-as a desenharem o ambiente onde estão com formatos geométricos. Ao final, peça para elas apresentarem as suas produções. Neste momento, prossiga com uma nova atividade. Com a massa de modelar ou argila, oriente as crianças a produzirem um objeto que traduza o ambiente onde estão. • De que forma elas sentem o espaço? Hilma af Klint/Wikimedia 19 Ao final, peça a elas que apresentem a criação. Faça perguntas que explorem as formas e as cores utilizadas. O artista alemão Joseph Beuys (1921-1986) acreditava que a arte estava em todo lugar, presente na vida. A arte pode ser entendida como um processo integrado à vida e podemos reconhecer a realidade onde estamos inseridos como uma “massa de modelar”, com a qual podemos interagir autoral e criativamente. Joseph Beuys/Wikimedia Conteúdos na web Arteiros das Cinco Peles: oficina inclusiva para crianças de 5 a 10 anos com deficiência e/ou sofrimento psíquico. Integrando as Artes Visuais, a Dança e a Kundalini Yoga, a proposta é desenvolver o corpo criativo e o pensamento estético por meio de atividades lúdicas e criativas inspiradas na concepção das Cinco Peles de Hundertwasser. Acesse em Para ampliar 20 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 5 Corpo brincante, espaço e audiovisual • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Trabalhar a expressão corporal e o reconhecimento do espaço infantil por meio de fotografia e/ou vídeo. • Prática de consciência corporal, expressão por meio de fotografia e/ou vídeo. Esta é a quinta de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • (Re)conhecer, explorar e representar espaços e formas de brincar. • Habilidades EI03EF01 e EI02ET01. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 21 Início de conversa Nesta oficina, as crianças reconhecem o espaço do brincar na sala de atividades e em casa. • Quais as diferenças entre esses ambientes? • Quais tipos de brincadeiras elas fazem? Pela fotografia e/ou vídeo (ambiente remoto), as crianças expressam as suas ideias e os seus sentimentos sobre os espaços e as suas brincadeiras. Quais são as qualidades que a(o) educadora(or) pode atribuir à “educação a distância” para tornar essa modalidade um espaço virtual educador? Ao escutar as crianças falarem sobre a realidade delas, pode-se entender o contraste entre os ambientes criados pelas pessoas adultas e aqueles construídos espontaneamente pelas crianças. A escuta levará a uma reflexão sobre as necessidades das crianças em relação ao movimento, materiais e propósitos que os espaços possibilitam. Preparação para a oficina Em um encontro anterior, oriente as crianças a fazer um vídeo ou uma fotografia com o celular e o auxílio de uma pessoa adulta, mostrando os ambientes onde costumam brincar em casa: playground, parquinho, sala, quarto, quintal etc. Na prática Sugestão de encaminhamento Escultura corporal e/ou expressões faciais. Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Você pode criar uma nuvem de palavras em um quadro e registrar as respostas à medida que cada criança se expressa. Dessa forma, todo o grupo pode visualizá-las. Leia as palavras pausadamente. Após o registro das palavras, oriente as crianças a expressarem o seu estado por meio de uma escultura corporal ou expressões faciais. Você pode utilizar o vídeo Careta, do Palavra Cantada, como ponto de partida. Brincar em casa e na sala de atividades Agora peça às crianças que inspirem e expirem. 22 • Como se sentem? Novamente, solicite que falem uma palavra e componham uma escultura corporal ou expressões faciais. Você pode registrar as palavras. Pergunte: • Onde você brinca na sua casa? Deixe que as crianças narrem os ambientes e as brincadeiras. Em seguida, apresente os vídeos e/ou as fotografias produzidas previamente pelas crianças com o auxílio de uma pessoa adulta. • Quais são os ambientes onde elas brincam em casa? Playground, parquinho, sala, quarto, quintal etc. • Quais são as brincadeiras que fazem nesses ambientes? • Quais são os materiais que utilizam: terra, areia, gravetos, tecidos etc? • Quais são os objetos que utilizam? (Incentive-as a perceber os móveis, objetos e os seus tamanhos, formas e cores); • Com quem brincam? Neste momento, peça a elas que descrevam as brincadeiras que fazem na sala de atividades. • Como são os móveis e os objetos que elas utilizam? • Com quem brincam? Retome a narração sobre os ambientes em casa e pergunte: • Quais são as diferenças entre os ambientes em casa e a sala de atividades? Ao final, deixe que expressem como queriam que fosse o espaço da sala de atividades ou em casa. • Vocês gostam mais de brincar em casa ou na sala de aula de atividades? Por quê? Registre as ideias que as crianças expressarem e integre-as, na medida do possível, nos espaços educativos. 23 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 6 Histórias de brincar • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor. • Livros (físicos ou PDFs) de contos maravilhosos e histórias de tradição oral. • Tapetinhos. • Compartilhar experiências e expressões artísticas. • Prática de consciência corporal, narração de histórias e produção de desenho. Esta é a sexta de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Promover a expressão e o cruzamento de linguagens tendo como eixos a corporalidade, a cultura do brincar e o faz-de-conta. • Habilidades EI03TS02 e EI02EF06. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 24 Início de conversa Na Educação Infantil, a criança tem o direito de brincar em diferentes espaços e tempos para ampliar e diversificar a sua criatividade e as suas experiências sensoriais, corporais, sociais e cognitivas. Nesta oficina, a narração de histórias cria o clima para a brincadeira. Brincar e pertencer Observe quais espaços as crianças ocupam e como desenvolvem as suas brincadeiras. • Quais brinquedos e materiais utilizam? • Como esses espaços ficam após a presença das crianças? Esse é um momento de reflexão para que os espaços sejam cada vez mais acessíveis às crianças em seu processo de brincar. Acolhimento Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Escolha um lugar seguro para as crianças ficarem descalças ou disponibilize tapetinhos. Oriente-as a formar um círculo. Junto com elas, movimente suavemente as articulações em rotação dos dedos dos pés, tornozelos, joelhos, quadril, ombros, cotovelos, pulsos, pescoço e mandíbula. Acesse algumas propostas para esses movimentos em Ao final, faça inspirações e expirações suaves. Depois, pergunte: • Como você está se sentindo agora? Deixe que as crianças se expressem livremente. Com que história eu vou? Escolha um conto de tradição oral para narrar ou ler. Nossa sugestão para esta oficina é o conto O flautista de Hamelin. Acesse em Na prática Sugestão de encaminhamento 25 Mas, como já sabia Sherazade, no mundo maravilhoso das narrativas há mil e uma histórias e possibilidades. A sua escolha é livre! Assim como há inúmeras histórias, também existem vários jeitos de narrar, entre eles destacam-se: • Explorar diferentes vozes para os personagens; • Usar expressões faciais e gestos; • Cantar cantigas ou criar efeitos sonoros em alguns momentos; • Utilizar brinquedos e outros objetos que enriqueçam a narração; • Interagir com as crianças por meio de perguntas e brincadeiras relacionadas ao enredo. Esses são alguns recursos possíveis. O blog Leiturinha oferece outras dicas, confira em Caso escolha ler o conto selecionado para esta oficina, é importante: • Fazer uma leitura tranquila, com emoção e ritmo que acompanhe cada momento da história; • Apresentar às crianças as imagens do livro, desde a capa e o sumário até as imagens internas, conforme a narrativa avança; • Explorar as características dos personagens. Você sabe qual é a diferença entre ler e contar uma história? Confira no canal Circularte Educação, com a pedagoga, contadora de histórias e atriz Edi Fonseca. Acesse em PARA APROFUNDAR Ao final da narração, peça às crianças que recontem a história com as suas próprias palavras. Depois pergunte: • Qual o personagem que você mais gostou? E eu com isso? Desenhando a história Na história de O flautista de Hamelin, o flautista toca e leva os ratos que infestavam a cidade até o porto, onde se afogaram. A proliferação dos ratos foi gerada pelo acúmulo de lixo. Muitos objetos que usamos no cotidiano podem ser utilizados para outras finalidades. Você pode perguntar às crianças com quais objetos cotidianos elas costumam brincar: caixas de papelão e embalagens plásticas, entre outros. Caso tenha escolhido outro conto, procure fazer perguntas que estimulem as crianças a relacionar a história com o cotidiano de brincadeiras delas. O vídeo A casa, o corpo e eu (2013), da Escola Casa Redonda, apresenta situações em que as crianças compartilham brincadeiras e o espaço de brincar. Acesse em Solicite às crianças que façam um desenho sobre a história que ouviram. Elas podem escolher uma cena, um personagem etc. Ao final, promova uma exposição das produções no mural da sala. 26 Reflexões sobre arte e educação “O espaço primeiro é a natureza. A natureza viva e a sua riqueza de formas que permite às crianças um amplo espectro de experiências, de movimentações corporais, de sensações e percepções. Bichos, plantas, cores, cheiros, sensações táteis, pedrinhas etc. Um espaço que permita a elas liberdade de movimento. Então, a gente pode pensar em dois espaços: um espaço externo, onde a natureza se faz presente, e que é um recurso insubstituível nessa faixa de idade; e o espaço interno, onde estão disponibilizados materiais e objetos que foram reconhecidos ao longo desses anos, a partir das solicitações das crianças: determinados materiais para que elas pudessem realizar as suas expressões. Brinquedos, instrumentos de verdade, madeiras, muitos caixotes, fantasias, tecidos, um espelho baixinho, almofadas, um espaço aconchegante e materiais para as expressões artísticas. Um espaço bem estruturado ajuda muito. E tem que ser belo.” PIRES, Carolina. O essencial no ser e a poesia dos sentidos e dos significados: reflexões sobre arte e educação em contextos destinados à primeira infância. 2012. Dissertação (Mestrado) – ECA, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. PARA APROFUNDAR 27 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 7 Contando e recontando histórias • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor. • Livros (físicos ou PDFs) de narração de histórias, contos de fadas ou relatos de tradição oral. • Tapetinhos. • Trabalhar a expressão da criação artística e o compartilhamento de experiências. • Práticas de “corpo e consciência” e de contação de histórias. Esta é a sétima de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Promover a escuta, a narração e o reconto de narrativas. • Habilidades EI02EF06, EI03EO06 e EI03EF06. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 28 Início de conversa Na contação de histórias é importante estabelecer os critérios de escolha das produções selecionadas. Entre os diversos tipos de histórias para crianças, pode-se escolher as de tradição oral, histórias de autora(or) e histórias recolhidas por pesquisadoras(es) como os Irmãos Grimm, na Europa, Câmara Cascudo, no Brasil, Idries Shah, no Oriente, e família Kouyaté, na África etc. Segundo Toumani Kouyaté, compositor e cantor que transmite a sua cultura pela tradição oral, para eleger a história a ser contada, deve-se responder a 3 perguntas: • É verdade o que você vai dizer? • Você tem um bom motivo para dizer o que deseja? • Este é o melhor momento para dizer? Essas perguntas evidenciam o papel educativo das histórias e revela que, nas culturas tradicionais da oralidade, a(o) contadora(or) de histórias é, na verdade, a(o) educadora(or), a(o) guardiã(o) dos saberes. Foto: reprodução Acolhimento Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Escolha um lugar seguro para as crianças ficarem descalças ou disponibilize tapetinhos. Oriente-as a formar um círculo. Junto com elas, alongue braços e pernas suavemente. Ao final, faça inspirações e expirações suaves. Depois, pergunte: • Como você está se sentindo agora? Deixe que as crianças se expressem livremente. Escutando, recontando e desenhando histórias Escolha um conto de fadas ou uma história de tradição oral. Uma sugestão para esta oficina é o conto João Sortudo, dos Irmãos Grimm, narrado para a série Quarentena de Histórias, produzida pela Companhia de Teatro da Unidade de Cultura de Jundiaí. Acesse em Você pode utilizar o vídeo como base e explorar as palavras e as imagens mostradas. Na prática Sugestão de encaminhamento 29 Confira algumas dicas de narração • Leia a história diversas vezes até ter intimidade com ela e confiar na sua força; • Separe a história em oito frases, depois em quatro frases até chegar a uma frase, a síntese da história; • Encontre o clímax da narrativa para que dele se escolha o tom do encadeamento de cada palavra; • A intimidade que se tem com a história a ser contada define os tons de voz e os movimentos corporais a serem usados. Aumente ou diminua o tom de voz: fale rápido, devagar, bem baixinho. Essas variações ao longo da narrativa prendem a atenção da criança; • As crianças podem ouvir histórias sobre diversos temas. Não é necessário modificar o final, retirar momentos de dificuldades, sofrimentos ou apuros dos personagens. PARA APROFUNDAR Pergunte às crianças se entenderam a história e incentive-as a recontá-la com as suas próprias palavras. Observe como as paisagens e as imagens da história ressoam em cada criança. Em seguida, apresente o vídeo mais uma vez e peça às crianças para desenhar os animais que surgiram ao longo da história. Após desenharem, pergunte a elas se conhecem alguma história em que um dos animais é personagem. Elas podem responder Os três porquinhos. Então, convide as crianças a contar a história de Os três porquinhos para a turma. Conteúdos na web O vídeo Griot Toumani Kouyaté canta uma história no Arte do Artista pode inspirar boas práticas da narração de histórias, sobretudo de tradição oral - Acesse em Documentário Keita, o legado do Griot - Acesse em Referências As façanhas do incomparável Mulá Nasrudin, de Idries Shah. Roça Nova, 2011; Contos de animais do mundo todo, de Naomi Adler, 2001. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2001; Contos de fadas. Edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2013; Contos maravilhosos infantis e domésticos (1812-1815), de Jacob e Wilhelm Grimm. São Paulo: Ed. 34, 2018; O livro das árvores, de Jussara Gomes Gruber. São Paulo: Global, 2006. Para ampliar Apresente o vídeo para as crianças. Observe a síntese da história, sem detalhes exagerados. A narração precisa respeitar a imaginação da(o) ouvinte. 30 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 8 Desenhando histórias • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor. • Tapetinhos. • Trabalhar a manifestação da criação artística, narração coletiva e expressão por meio de desenho. • Práticas de “corpo e consciência” e de contação de histórias a partir de ilustrações. Esta é a oitava de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Promover a expressão oral e artística das crianças por meio de ilustrações de contos de fadas. • Habilidades EI03TS02 e EI03EF05. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades ou espaço aberto. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 31 Início de conversa Muitos contos de fadas atravessaram gerações e ainda ocupam o imaginário infantil. A partir de uma ilustração de um conto de fadas bastante conhecido, as crianças podem recontar a história de forma coletiva ou reproduzir em desenho uma cena marcante. Na prática Sugestão de encaminhamento Acolhimento Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Escolha um lugar seguro para as crianças ficarem descalças ou disponibilize tapetinhos. Oriente-as a formar um círculo. Junto com elas, faça giros das articulações, dos dedos dos pés até o pescoço. Ao final, faça inspirações e expirações suaves. Depois, pergunte: • Como você está se sentindo agora? Deixe que as crianças se expressem livremente. Explorando a ilustração e recontando a história Oriente as crianças a se sentarem em círculo e apresente a ilustração que você selecionou sobre uma história bastante conhecida por elas. Permita que explorem a imagem e observem os personagens, os gestos, as formas e as cores. Professora lê uma história para as crianças. Foto: Charmain Z. Brackett/Wikipedia 32 A seguir, trazemos uma sugestão de ilustração para esta oficina: a cena em que Cinderela experimenta o sapatinho perdido no baile. Ilustração de Sarah Noble Ives para o conto Cinderela. Aquarela, pena e tinta (c. 1912). Imagem: Wikimedia Commons A partir dessa ilustração, você pode perguntar: • Quem são os personagens? • Onde estão? • O que está acontecendo na cena? • A cena da ilustração lembra alguma história que você conhece? Qual? Agora, faça a narração de Cinderela. Para narrar, deve-se ouvir o que “a história pede”. Você pode usar mais imagens e uma trilha sonora como apoio, se julgar necessário. Também é possível usar bonecas(os) e outros objetos, como talheres, brinquedos, legumes e frutas para representar os personagens. Esses mesmos objetos podem ser utilizados para dar ritmo e sonoridade de acordo com os acontecimentos que estão sendo narrados. Depois, peça à turma que reconte a história, dividindo-a em partes entre as crianças. Mãos que (re)contam a história Peça às crianças que desenhem uma parte da narrativa que acabaram de ouvir e recontar. Desenho de criança. Foto: Pxhere 33 É possível dividir a história em partes e resumi-la em uma frase: • Cinderela varrendo a cozinha; • As filhas da madrasta no baile; • Cinderela na carruagem etc. Após a produção, as crianças podem narrar a cena escolhida por meio do desenho que fizeram. Conteúdos na web A Vida secreta das fraldas/The secret life of diapers, da contadora de histórias e bonequeira Andi Rubinstein: peça que recebeu o prêmio de melhor atuação/manipulação no Festival de Teatro para Crianças, na Sérvia. O espetáculo conta a história de uma mãe envolvida na tarefa diária de lavar e passar inúmeras fraldas de pano. Ao se entregar a esse trabalho, ela sai da realidade por alguns instantes e cria seres mágicos que contam a sua própria história - Acesse em Para ampliar 34 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 9 Contemplando a natureza • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite ou papel canson. • Cola branca. • Pincéis. • Esponjas. • Folhas de árvore. • Café. • Temperos em pó. • Trabalhar a expressão artística pela apreciação dos elementos da natureza. • Atividades em conexão com os elementos da natureza. Esta é a décima primeira de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arte-educação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Promover nas crianças a expressão artística, a contemplação da natureza e a exploração de suas formas, cores e texturas. • Habilidades EI02TS02 e EI03TS02. • Educação Infantil. • Pátio, jardim, parque, sala de aula, sala de atividades, biblioteca ou centro cultural. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 35 Início de conversa “A natureza ama se esconder” Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático – 550-480 a.C. Em contato com a natureza e os seres que nela habitam, as crianças se encantam e exploram as suas formas, cores e texturas. Nesta oficina, vamos promover o contato com a natureza e a livre expressão. Na prática Sugestão de encaminhamento Acolhimento Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Coloque uma trilha sonora com sons da natureza ou escolha um local aberto (jardim, parque etc) para levar as crianças. Caso a opção seja pela trilha sonora, selecione um trecho de 3 a 5 minutos para o relaxamento delas. Acesse uma sugestão de vídeo com sons da natureza em Escolha um lugar seguro para as crianças ficarem. Oriente-as a permanecer em pé e prestarem bastante atenção aos sons da natureza. Com elas, faça inspirações e expirações suaves, sentindo o ar entrar e sair dos pulmões. Depois, pergunte: • Como você está se sentindo agora? Deixe que as crianças se expressem livremente. Explorando a natureza com Arte Previamente, providencie os materiais para o trabalho com elementos da natureza: cola branca, copinho com água, copinho com temperos coloridos e pó de café, folhas de árvore caídas no chão, folhas de papel sulfite (ou canson), esponjas e pincéis. Sobre uma mesa forrada, coloque os materiais à disposição das crianças. Misture previamente, em potinhos separados, 1 colher de sobremesa com cola branca e 1 colher de chá com temperos e café. Coloque água em outros potinhos para a limpeza dos pincéis. Oriente as crianças a explorarem as folhas, as suas cores, as nervuras e os formatos. Se possível, disponibilize folhas de vários formatos e cores. 36 As crianças podem mergulhar as folhas nos potinhos com a cola e fazer uma colagem na folha de sulfite (ou canson), ou ainda decalcar a folha, formando um desenho. Ao final, exponha as produções no mural da sala. Conteúdos na web A seguir, indicamos alguns vídeos como fontes de inspiração para a consciência do papel fundante da natureza em nosso ser. A partir dessas sugestões, a proposta é enfatizar as práticas pedagógicas e de atividades que favoreçam o contato das crianças com a natureza. Waapa: documentário dirigido por David Reeks, Paula Mendonça e Renata Meirelles, 2017. O curta-metragem propõe um mergulho na infância do povo Yudja (Parque Indígena do Xingu/MT) e nos cuidados presentes em seu crescimento. O brincar, a vida comunitária e as influências de uma relação espiritual com a natureza apresentam-se como elementos que organizam o corpo-alma dessas crianças - Acesse em Projeto Território do Brincar - 3º Região - Território Indígena Panará, Pará: o projeto Território do Brincar é um trabalho de escuta, intercâmbio de saberes, registro e difusão da cultura infantil. É coordenado pela educadora Renata Meirelles e pelo documentarista David Reeks e correalizado pelo Instituto Alana - Acesse em Ewé de Òsányìn - o segredo das folhas: essa animação, baseada no mito Yorubá de Òsányìn, o orixá das folhas, conta a história de uma criança que nasce com folhas em seu corpo. Na escola, as outras crianças a discriminam e ela foge para mata! Na caatinga, encontra seres encantados de tradições indígenas e negras e caminha numa aventura de autoconhecimento e de descoberta sobre a importância da preservação ambiental - Acesse em Diálogos do Brincar #2 - Criança e Natureza, com Gandhy Piorski: neste diálogo, o filósofo do brincar Gandhy Piorski fala sobre a importância de a Educação integrar e promover a relação da criança com a natureza. “É preciso que os seres humanos conheçam a língua da natureza, a sua forma de se comunicar, de produzir nova vida, nascer e morrer”, afirma Piorski - Acesse em Para ampliar 37 • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite ou papel canson. • Tinta guache. • Tapetinhos. O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR DURAÇÃO Oficina 10 Brincando de Arte Rupestre • Trabalhar a expressão artística e a consciência das características corporais. • Prática de pintura em guache ou giz de cera. Esta é a décima segunda de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arte-educação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Explorar práticas de “corpo e consciência” e linguagens expressivas da Arte, por meio de apreciação da Arte Rupestre. • Habilidades EI03TS02 e EI03EO05. • Educação Infantil. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca ou centro cultural. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 38 Início de conversa Na Educação Infantil, a criança entra em contato com a realidade pelo corpo e pela expressão das suas características. A apreciação da Arte Rupestre e da atividade lúdica possibilita que a criança construa uma representação de si mesma no mundo. Na prática Sugestão de encaminhamento Acolhimento Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Escolha um lugar seguro para as crianças ficarem descalças ou disponibilize tapetinhos. Oriente-as a formar um círculo. Com elas, faça inspirações e expirações suaves para acalmar a mente. Depois, pergunte: • Como você está se sentindo agora? Deixe que as crianças se expressem livremente. Eco das primeiras pinturas Comece a atividade apresentando um exemplo de Arte Rupestre. Sugerimos a utilização de uma pintura localizada na Espanha, na Caverna de El Castillo, retratada na imagem abaixo: Pintura rupestre localizada na Caverna de El Castillo, na Espanha. Foto: Wikipedia 39 Após a exibição da imagem, pergunte: • O que está representado na rocha? Disponibilize, então, folhas de papel sulfite (ou papel canson), potinhos com tinta guache, água e pincéis. Peça às crianças que façam um desenho semelhante ao da imagem, orientando-as a espalmar a mão sobre a folha e pintar o contorno com a tinta guache. Deixe as folhas secarem. Crianças pintando uma parede com as mãos. Foto: Wikipédia Após a secagem, entregue as folhas às crianças para que expressem os seus sentimentos sobre o desenho. É uma oportunidade de respeitarem as características do seu corpo e dos corpos das outras pessoas. Conteúdos na web As terras e as telas de Lira Marques: o vídeo apresenta obras da artista Lira Marques, natural do Vale do Jequitinhonha (MG). As produções podem ser fonte de inspiração para outras atividades relacionadas à Arte Rupestre - Acesse em Para ampliar 40

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Alfabetização e letramento no pós-pandemia

No segundo episódio do podcast Educação na ponta da língua, vamos falar com professoras especialistas em alfabetização, que conversam sobre suas práticas em sala de aula, política pública e os desafios do pós-pandemia. Confira!

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Tecendo a cultura das infâncias

Ofereça às(aos) estudantes oficinas para reconhecer o brincar como linguagem essencial das infâncias. As propostas são voltadas à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, com foco no direito de ser e aprender brincando.

1 Tecendo a cultura das infâncias Oficinas para valorizar o brincar nos processos de desenvolvimento infantil 2 3 Viver uma infância plena é um direito de toda criança. Cabe à escola, à família e à sociedade como um todo garantir condições para que meninas e meninos possam brincar, imaginar, explorar, se expressar e aprender em ambientes que respeitem seus ritmos, interesses e modos próprios de ser. As oficinas aqui reunidas, voltadas à Educação Infantil e aos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental, foram organizadas com base em uma concepção de criança como sujeito de direitos e de aprendizagens, que se desenvolve nas interações com o outro, com o ambiente e com as múltiplas linguagens. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As atividades foram desenhadas para apoiar o trabalho das educadoras e educadores no planejamento de experiências didáticas que favoreçam a compreensão dos conceitos e a aplicação dos saberes no cotidiano das(os) estudantes, respeitando seus ritmos e contextos. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Brincadeira tem história 5 Oficina 2 - Brinquedoteca para todo mundo 9 Oficina 3 - A arte de cuidar(-se) 17 Oficina 4 - Jogos e brincadeiras na praça 20 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS ESPAÇO DURAÇÃO Oficina 1 Brincadeira tem história • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Barbante. • Tapetinhos. • Prática de consciência corporal e brincadeiras tradicionais. Esta é a nona de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca ou centro cultural. • 2 encontros de 1h30 cada. FINALIDADE EXPECTATIVA BASE NACIONAL COMUM ETAPA DE ENSINO CURRICULAR • Explorar as linguagens expressivas das crianças por meio de trava-línguas e das brincadeiras “cama de gato” e “elefante colorido”. • Desenvolver a expressividade, a comunicação e a sociabilidade entre as crianças por meio do brincar espontâneo. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Habilidades EI02EO06, EI02ET07, EI02CG01 e EI02CG05. Voltar para o sumário 6 Na prática Sugestão de encaminhamento Início de conversa Na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental há lacunas nas justificativas e nos fundamentos para o brincar na infância. É importante ampliar esses conteúdos, situando o brincar como elemento vital de aprendizado expressivo e estruturante. O brincar espontâneo precisa ser ainda mais valorizado entre educadoras(es), que acabam se responsabilizando pelas escolhas de materiais e pela organização geral das brincadeiras. Nesta oficina, sugerimos atividades que envolvam o brincar espontâneo por meio de trava-línguas e das brincadeiras “cama de gato” e “elefante colorido”. Acolhimento Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Escolha um lugar seguro para as crianças ficarem descalças ou disponibilize tapetinhos. Oriente-as a formar um círculo. Com elas, faça inspirações e expirações para liberar tensões e acalmar a mente. Depois, pergunte: • Como você está se sentindo agora? Deixe que as crianças se expressem livremente. Vivenciando brincadeiras tradicionais Em seguida, peça que as crianças digam quais as brincadeiras de que mais gostam. 1. Cama de gato Pergunte se elas conhecem a brincadeira cama de gato. Acesse um tutorial da brincadeira Divida a turma em duplas e disponibilize pedaços de barbante com as pontas unidas por um nó. Explique que cada criança deve trançar o barbante entre os dedos, formando um “X”. A(O) colega pegará o “X” e fará um novo trançado. Se julgar necessário, demonstre a brincadeira com uma das crianças. Circule entre as duplas. Deixe que brinquem livremente. 7 A abelha abelhuda abelhudou as abelhas. O bode bravo berra e baba na barba. Dorme o gato, corre o rato e foge o pato. José junta jabuticabas na jarra. Pedro pregou um prego na porta preta. O rato roeu a roupa do rei de Roma. Sabia que o sabiá sabia assobiar? Alô, o tatu taí? Não, o tatu não tá. Você também pode ouvir com as crianças a canção É hora de brincar, do Mestre P, em ritmo de Rap. A obra faz parte do CD-livro Pé de palavra. Acesse em Acompanhe a letra da canção com as crianças. 2. Trava-línguas O trava-línguas é uma brincadeira que contribui para o desenvolvimento da dicção na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Apresente alguns trava-línguas: 8 Promova a participação coletiva, deixando as crianças brincarem com a sonoridade das palavras. Se julgar apropriado, apresente imagens com alguns elementos dos trava-línguas (abelha, bode, gato, rato, pato, jabuticaba etc) e explore as cores e as formas desses elementos. Você também pode trazer uma canção do seu repertório em que apareçam esses elementos. 3. Elefante colorido Fale para as crianças: • Elefante colorido! Elas, então, perguntam: • Que cor? E você responde: • Eu quero a cor… Neste momento, você deve indicar uma cor. Então, as crianças precisam buscar objetos que tenham a cor indicada. Elas têm 10 segundos para apresentar os objetos. Enquanto isso, você bate palmas em contagem regressiva. Ganha quem localizar mais objetos. A cada cor, oriente-as a contar o número de objetos localizados. Conteúdos na web O brincar é a linguagem da criança, é a forma como ela aprende, conhece e experimenta o mundo, a(o) outra(o) e a si mesma. Construa um repertório com brincadeiras resgatadas por você. As(Os) educadoras(es) mais velhas(os) costumam ser protetoras(es) das brincadeiras e dos brinquedos tradicionais e podem ser uma fonte de aprendizado e troca. No vídeo Apresentação de Chico dos Bonecos, o educador Francisco Marques demonstra, na prática, as brincadeiras com as crianças e as(os) familiares - Acesse em No vídeo Percursos da Arte na Educação, Chico dos Bonecos (Francisco Marques) reflete sobre o papel da brincadeira na Educação Infantil e para além dela - Acesse em O documentário Caramba, carambola: o Brincar tá na escola!, produzido pelo Itaú Social com base no projeto Brincar, do Cenpec, é uma fonte de depoimentos de educadoras(es) e pesquisadoras(es) da infância e de imagens de contextos considerando o brincar não apenas como linguagem da infância, mas também como forma de estar em contato consigo - Acesse em Para ampliar 9 O QUE É MATERIAIS ESPAÇO DURAÇÃO Oficina 2 Brinquedoteca para todo mundo • Folhas de papel kraft. • Retalhos de tecido. • Elásticos. • Cola. • Sucata. • Baús para guardar adereços. • Confecção de brinquedos para um espaço público da comunidade. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Sala de atividades, pátio, praça ou outro espaço público. • 4 encontros de 1h30 cada. FINALIDADE EXPECTATIVA ETAPA DE ENSINO • Valorizar a prática de ações visando ao bem comum. • Desenvolver o protagonismo pessoal e de equipe em prol do bem comum. • Aprender a trabalhar em equipe, respeitando a maioria e negociando decisões. • Respeitar o espaço público como local de cidadania a que todos têm direito. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Voltar para o sumário 10 Início de conversa Segundo Maria Lúcia Medeiros, ex-coordenadora do Projeto Brincar (Cenpec), pedagoga e especialista em cultura da infância: “A brincadeira é uma necessidade própria do ser humano. O brincar brota espontaneamente na criança, que desde bebê brinca com as próprias mãos, depois com objetos, explorando o mundo de forma própria, sem regras. É uma ação de autoconhecimento que permite fazer relações, reflexões e determinar coisas importantes para toda a sua vida. É por meio da brincadeira que ela cria, imagina, constrói imagens e memórias, se desenvolve corporal, cognitiva e emocionalmente.” Para além da escolarização como transmissão de conteúdos, experimentar jogos e brincadeiras promove a socialização, a comunicação, a relação com os espaços, a exploração do corpo, da criatividade e da memória. Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI, Resolução CNE/CEB nº 5/09) destacam a importância de um currículo que articule “as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral das crianças”. Em seu artigo 4º, as Diretrizes definem a criança como: Foto: Wanderley Francisco da Silva Pessoa/MEC “Sujeito histórico e de direitos, que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura”. “Brincar cotidianamente de diversas formas, em diferentes espaços e tempos, com diferentes parceiros (crianças e adultos), ampliando e diversificando seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua criatividade, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sociais e relacionais”. Na etapa da Educação Infantil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento: 1. Conviver; 2. Brincar; 3. Participar; 4. Explorar; 5. Expressar; 6. Conhecer-se. O direito de brincar é assim definido na Base: Embora seja um direito prioritário para crianças pequenas, a brincadeira é uma atividade presente e importante em qualquer idade. Seja na escola, seja em outros espaços, criar momentos e ambientes para brincar e explorar as possibilidades corporais em conjunto com a imaginação, permite uma aprendizagem rica e dinâmica, que articula as diferentes possibilidades e formas de conhecimento. BRASIL, 2009 BRASIL, 2017 11 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: conversas preliminares e planejamento de ações Crianças gostam de brincar e a brincadeira é fundamental para o seu desenvolvimento porque, além do prazer e da recreação, permite a elas se relacionarem com a realidade em que vivem para conhecê-la, compreendê-la e expressar os sentimentos e ideias que desenvolvem em relação a ela. Interação pessoa adulta e criança. Foto: acervo Educação & Participação/Cenpec Do que a sua turma gosta de brincar? Quais são os seus brinquedos e brincadeiras preferidas? Vamos investigar? Faça uma roda de conversa e comece um levantamento com as crianças. E se? Se as crianças citarem apenas jogos virtuais, insista nos jogos coletivos, sem uso do computador. Pergunte do que precisam para realizar as brincadeiras de que falaram: bola, peteca, boneca(o), joguinhos de montar, quebra-cabeças, roupas de bruxa, princesa, leão, caçador, robô? O que mais? Pergunte também onde as crianças brincam: • Na rua? • Em casa? • Na casa de amigas(os)? • Na escola ou na instituição educacional? E quando vão a algum lugar, como a UBS (Unidade Básica de Saúde) ou o CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), acompanhando a família, e precisam esperar pelo atendimento? É possível brincar para se distrair enquanto aguardam? E se nesses lugares houvesse um baú com brinquedos para brincar enquanto esperam a sua vez? Seria legal? 12 E no parquinho da praça, onde só há brinquedos para as crianças menores? E na banca de jornais da outra pracinha? E aqui na escola ou na instituição educacional? Seria legal ter também alguns baús de brinquedos para serem usados, por exemplo, na entrada ou no recreio? Se as crianças gostarem da ideia, proponha que lancem uma campanha na escola ou na instituição educacional para montar alguns baús de brinquedos que elas mesmas deverão confeccionar. Se outras turmas aderirem à proposta, elas podem montar uma brinquedoteca comum para a escola e outra para uma instituição pública da comunidade, como a UBS (Unidade Básica de Saúde). O que acham? Cada turma decidirá quais brinquedos devem ficar para a escola ou instituição educacional e quais serão doados e para qual espaço público. Você, educadora(or) deve falar antecipadamente com as(os) gestoras(es) da escola ou da instituição educacional e com as(os) colegas de trabalho, tanto para convidá-las(os) a participar do projeto quanto para contar com a autorização prévia da equipe gestora. Esse passo é muito importante para não frustrar as(os) pequenas(os). Havendo adesão, o projeto a ser realizado será de todas(os). Planejem o desenvolvimento do trabalho, juntas(os): • O tempo de duração do projeto; • As propostas dos brinquedos a serem confeccionados; • As orientações a serem dadas para as crianças. Será importante também investigar qual o local mais adequado para instalar a brinquedoteca, que deverá abrigar os brinquedos, de forma organizada e com fácil acesso. E se? Se nem todas(os) as(os) educadoras(es) quiserem participar do projeto, organize-o com que aderir. Como o convite às outras turmas será feito pelas(os) estudantes, peça às(aos) colegas que as(os) recebam carinhosamente e, por ocasião da visita, ajudem-nas(os) na sua missão. Então, organize com a sua turma algumas comissões: • Uma para falar com as(os) gestoras(es) da escola ou da instituição educacional a fim de solicitar a autorização para realizar a campanha; • Outras para falar com as demais turmas da escola ou da instituição educacional, cujas(os) educadoras(es) aderiram à proposta. Lembre-se de misturar as crianças maiores com as menores, assim como as crianças mais tímidas com as mais expansivas, de modo a equilibrar as comissões e garantir que as ações aconteçam. É importante que todas as crianças tenham algum nível de participação e ninguém fique de fora. Mesmo que algumas apenas acompanhem quem tem mais facilidade para se comunicar, já estarão participando. Oriente que escrevam os nomes das(os) integrantes de cada comissão em um cartaz específico e exponham o conjunto dos cartazes na sala. A primeira ação será da comissão que contatará as(os) gestoras(es). Após a obtenção da autorização, as demais comissões devem visitar as outras turmas para convidá-las a participar da campanha e solicitar que tragam material de sucata, a fim de construírem os brinquedos. Mas, antes de tudo, faça um planejamento com as crianças e ensaiem as ações das comissões. Esse 13 exercício ajudará a conversa que terão com as outras turmas, dando-lhes segurança para agir, falar, sugerir e orientar. Depois, sim, podem combinar o dia das visitas. Começando o planejamento, peça que relacionem os brinquedos que poderiam montar: • Bonecas(os) de palha ou de pano? • Bolas de meia? • Quebra-cabeças com cartolina? • Jogos da memória com figuras coladas em cartolina ou madeirinhas? • Caixas com roupas usadas para teatro? O que mais? Relacione as sugestões em um cartaz e afixe-o na sala. Será que alguém já fez algum brinquedo antes? Se sim, poderia ensinar as(os) outras(os) participantes? E que tal convidar mamães, papais, titias, titios, vovós ou vovôs para ensinar a construir alguns? As crianças farão a consulta com as(os) familiares e trarão as respostas em uma data combinada. Quando o fizerem, relacione os nomes das(os) familiares ajudantes em outro cartaz. Agora, a pergunta: para onde doar os brinquedos? • Parque infantil da praça? • UBS (Unidade Básica de Saúde)? • CRAS (Centro de Referência da Assistência Social)? Deixe que levantem várias possibilidades, que argumentem e escolham. A condição fundamental é que seja um espaço público, para que qualquer criança que o frequente possa usufruir dos brinquedos. Determinada a escolha, é importante que uma comissão faça uma visita com você à instituição receptora, para elaborar a proposta às(aos) gestoras(es) do local e trazer a resposta à turma. Segundo e terceiro encontros: oficinas de brinquedos em ebulição Nesse momento, as salas de atividades e o pátio se transformam em oficinas de brinquedos artesanais. Será interessante que cada turma consulte os materiais arrecadados e escolha o que podem fazer com eles, considerando a relação inicial de brinquedos que fizeram no primeiro encontro. Podem ser confeccionados brinquedos repetidos, o que é bom porque várias crianças podem brincar ao mesmo tempo com petecas, bolas, bonecas(os) etc. Brinquedoteca. Foto: acervo Educação & Participação/Cenpec Brinquedos prontos, cada turma fará, com a ajuda das(os) educadoras(es), a divisão entre os que ficam na brinquedoteca da escola ou instituição educacional e os que serão doados. 14 E se? Se as(os) familiares se voluntariaram para ensinar e ajudar as crianças a construírem alguns brinquedos, converse e oriente para que não façam a atividade pelas crianças, apenas ensinem e acompanhem, cuidando para que elas exerçam a sua criatividade e habilidade. A oficina deve ser pedagógica também para as famílias. Quarto encontro: eis a brinquedoteca! É hora de organizar a brinquedoteca da escola ou da instituição educacional, cujo local já deverá estar pronto para recepcioná-la. Oriente as crianças a formarem cantinhos de brinquedos iguais: o cantinho das petecas, das bolas, das(os) bonecas(os) etc. A organização das turmas para essa tarefa fica a cargo das(os) educadoras(es). Também é o momento de organizar, da mesma forma, os brinquedos a serem doados, colocando juntos os iguais, em uma mesma caixa ou saco plástico. Como as turmas decidiram separadamente para qual instituição doar, cada uma deve organizar, com a ajuda da(o) educadora(or), a forma como será realizada essa entrega, além de combinar a agenda para a doação com a instituição receptora. Após as entregas, que tal marcar um dia de celebração na escola ou na instituição educacional? Com direito a salgadinhos, docinhos e refrigerantes, além da presença de representantes dos diferentes espaços públicos para onde foram doados os brinquedos. Seria uma ótima oportunidade para as crianças vivenciarem o reconhecimento da comunidade à qual pertencem, pelo seu empenho em contribuir com a população. Elas merecem! Projetos comunitários: infância, convivência e formação democrática Entre os valores considerados prioritários no desenvolvimento das crianças em uma sociedade democrática estão: a cidadania, a convivência com o diferente, o respeito à pluralidade, a solidariedade e o bem comum. Para as crianças se apropriarem desses valores é importante que vivenciem situações concretas capazes de implicar a prática dos mesmos. A partir de experiências como a elaboração e a realização conjunta de projetos comunitários, as crianças podem construir maneiras mais aprofundadas de perceber a realidade, de interagir com as outras crianças e outros grupos sociais, assim como de avaliar diferentes possibilidades de ação e de tomar decisões fundamentadas na solidariedade. As interações que as crianças estabelecem entre si em todo o processo do projeto PARA APROFUNDAR Jogos coletivos. Foto: acervo Educação & Participação/Cenpec 15 comunitário, desde a sua configuração, favorecem a manifestação de saberes já adquiridos em sua vida e a construção de novos conhecimentos, compartilhados com as(os) demais participantes do grupo. Na relação com as(os) colegas, as crianças aprendem que participar de um grupo envolve assumir algumas posições, como concordar com as(os) demais participantes ou contraporse a elas(es), mostrar-se dependente ou independente, líder ou seguidora(or). Tais relações interpessoais são situações de crescimento pessoal. No entanto, as relações que as crianças estabelecem entre si não são sempre harmoniosas, elas envolvem também rivalidade e conflitos. Dessa forma, disputas e oposições são situações frequentes nessas interações, mas precisamos considerar que elas são também instâncias de aprendizagem. É lidando com tais situações que as crianças podem se apropriar da condição de suportar frustrações, superar ressentimentos e reconhecer que nem sempre ganham. Ao participar de um grupo, as crianças aprendem a trabalhar os seus impulsos, a internalizar regras, adaptando o seu comportamento a um sistema de controle e sanções. Aprendem também a ser sensíveis ao ponto de vista da(o) outra(o), a cooperar e a desenvolver uma variedade de formas de comunicação para expressar ideias, sentimentos e conflitos. Como as escolhas do grupo são resultado da discussão de considerações e propostas diversas das(os) participantes, as crianças assimilam as ideias das outras, fazem-se ouvir e negociam soluções. A interação com as instituições da comunidade onde vivem também é muito importante porque ajuda a ampliar o leque de relacionamentos com outros grupos sociais, propiciando conhecer novas formas de procedimento e outras regras e maneiras de pensar e agir, que favorecem a observação, a reflexão e, consequentemente, a ampliação da sua visão de mundo. Construir uma brinquedoteca para outras crianças da comunidade é uma atitude de cidadania, pois no alcance das suas possibilidades estão agindo para transformar minimamente o seu espaço, ajudando a conscientizar, com o seu gesto, outras pessoas para as quais essas questões e valores passam despercebidos. Abrir os olhos e os ouvidos para o que está acontecendo com a(o) outra(o) e com o ambiente à nossa volta é condição de humanização e de cidadania. Finalizado o projeto da brinquedoteca, faça uma avaliação da oficina com as crianças. • O que significou para cada uma produzir os brinquedos com as próprias mãos? • E o que representou para elas doar os brinquedos para outras crianças brincarem? • Quais sentimentos vivenciaram? • Consideram que aprenderam alguma coisa com essa atividade? O quê? Atividade extra É possível organizar uma grande oficina de confecção de brinquedos em espaço público, envolvendo Hora de avaliar Para ampliar 16 crianças e famílias da comunidade, culminando em uma feira de trocas do que for produzido. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação a Distância. Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício na Educação Infantil. Brasília, 2005. (Coleção Proinfantil) - Acesse em ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil. Brasília, 2017 - Acesse em Texto sobre a importância da brincadeira, de estudantes do curso de pós-graduação oferecido pela UFRRJ em parceria com a Prefeitura Municipal de Mesquita - Acesse em 17 O QUE É MATERIAIS ESPAÇO DURAÇÃO Oficina 3 A arte de cuidar(-se) • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor. • Tapetinhos. • Prática de consciência corporal e compartilhamento de situação de cuidado com animais. Esta é a décima de uma série de 12 oficinas baseadas nos Encontros de Estudos em Arteeducação e Experiências Híbridas na Formação de Educadores da Infância. Publicada originalmente no site Território de Formação em Arte (Cenpec). • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca ou centro cultural. • 1 encontro de 1h30. FINALIDADE EXPECTATIVA ETAPA DE ENSINO • Abordar a importância do autocuidado e do cuidado com a(o) outra(o), considerando a criação artística por meio do desenho. • Desenvolver noções sobre autocuidado e cuidado com a(o) outra(o) por meio de expressões artísticas. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR • Habilidade EI02ET03. Voltar para o sumário 18 Início de conversa Na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental é importante expressar o autocuidado e o cuidado com a(o) outra(o). Neste sentido, as crianças são convidadas a perceber a relação entre o ser humano e o seu ambiente a partir de uma obra de arte que explora essa inter-relação. Para elas, a exploração de linguagens expressivas da arte é importante, por meio da apreciação de obras de arte e do compartilhamento de situações de cuidado. Na prática Sugestão de encaminhamento Acolhimento Inicie a oficina com um mapeamento das características do grupo. Peça a cada criança que expresse, em uma palavra, o seu estado ao chegar à aula ou ao encontro. Pergunte: • Como você está chegando à aula (ou ao encontro) hoje? Escolha um lugar seguro para as crianças ficarem descalças ou disponibilize tapetinhos. Oriente-as a formar um círculo. Com elas, faça inspirações e expirações suaves para acalmar a mente. Depois, pergunte: • Como você está se sentindo agora? Deixe que as crianças se expressem livremente. Explorando uma obra de arte Apresente a imagem ao lado e incentive as crianças a descobrirem as figuras presentes (prédios, pessoas, carros etc) na obra do artista austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928- 2000). Explore as cores, as formas e as inter-relações entre as figuras e o entorno. Observe as linhas orgânicas, a proporção das figuras e as relações entre os elementos. © Friedensreich Hundertwasser. The 30 days fax painting (1994), de Friedensreich Hundertwasser. Técnica mista. 19 Autocuidado e cuidado com outros seres Agora, converse com as crianças sobre a necessidade do autocuidado e do cuidado com os seres que estão no nosso ambiente, pois tudo está interligado. Pergunte: • Você tem um animal de estimação? • Como você cuida dele? Exemplos de animais de estimação Deixe as crianças expressarem os cuidados de higiene, alimentação, gestos de carinho, ternura e segurança com os animais de estimação. Conteúdos na web É importante perceber que o desenvolvimento cognitivo ocorre pela consciência do corpo, pela pele, a camada que nos separa da realidade. O artigo O corpo para além de si e da arquitetura: as cinco peles de Hundertwasser, de Victor Delaqua, explica a teoria das cinco peles, de Friedensreich Hundertwasser, e a relaciona de forma aplicada em um projeto arquitetônico do artista - Acesse em Para ampliar 20 O QUE É MATERIAIS ESPAÇO DURAÇÃO Oficina 4 Jogos e brincadeiras na praça • Cordas. • Bolas de gude, de meia, de plástico e de couro. • Redes, piões e petecas. • Jogos de dama e xadrez. • Outros objetos disponíveis para brincadeiras. • Instrumentos musicais ou objetos que podem ser utilizados para percussão (latas, baldes, pedaços de madeira para serem usados como baquetas e/ou garrafas de água com sementes variadas). • Alto-falante, aparelho de som e músicas de ciranda. • Encontro de gerações, no qual as pessoas mais velhas aprendem brincadeiras com as mais novas, e as mais novas aprendem com as mais velhas. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Sala e praça próxima à escola ou instituição educacional. • 2 encontros: 1 na sala (1h30) e 1 na praça (2h). FINALIDADE EXPECTATIVA ETAPA DE ENSINO • Valorizar manifestações lúdicas de todas as épocas, reconhecendo que as brincadeiras são bens culturais a serem preservados porque constituem patrimônio imaterial de um povo. • Conviver bem com pessoas de diferentes gerações, compartilhando o que sabem e colaborando com a aprendizagem de todas(os). • Usufruir de logradouros públicos. • Educação Infantil, anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental. Voltar para o sumário 21 Início de conversa Fortalecer a relação da escola ou da instituição educacional com as famílias é um objetivo quando se tem como perspectiva a Educação Integral de crianças e de adolescentes. Convidar pais, mães, outras(os) familiares e moradoras(es) da região para compartilhar as suas experiências culturais com as crianças e as(os) adolescentes faz parte do trabalho educacional nessa direção. Essa iniciativa possibilita conhecer e integrar as práticas culturais locais à ação da escola ou instituição educacional e estreita vínculos entre os diferentes espaços pelos quais as crianças e as(os) adolescentes circulam. Da mesma forma, é importante que as crianças e as(os) adolescentes brinquem em outros espaços públicos do território, como praças, parques e clubes municipais. Essas experiências ampliam o seu repertório cultural, ao mesmo tempo que divulgam e valorizam os equipamentos sociais dos quais a comunidade dispõe, tornando-os verdadeiros espaços de convivência democrática e de aprendizagem. Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: fazendo a proposta Na roda de conversa, fazendo o acolhimento do dia, desafie as(os) participantes a falarem, cada uma(um), o nome de uma brincadeira, sem repetir a citada pela(o) colega. Proponha várias rodadas até esgotar o repertório do grupo. Esse deverá ser um momento descontraído e divertido. Talvez algumas pessoas inventem nomes de brincadeiras que não existem, apenas para não deixar a roda parar. Lembre-as(os) de que o importante é recuperar o maior número de brincadeiras possível. Registre todas as contribuições. Pergunte com quem aprenderam as brincadeiras indicadas, a fim de valorizar as contribuições da família para ampliar o repertório do grupo. Em seguida, convide-as(os) a aprender mais brincadeiras e ensinar as que já sabem para outras crianças e adolescentes da escola ou instituição educacional e para as suas famílias. Então, proponha: • Que tal organizar uma manhã ou tarde de brincadeiras e jogos na praça entre as crianças, as(os) adolescentes e as pessoas adultas? Dê um tempo para o grupo discutir e trazer novas ideias. O passo seguinte é iniciar as ações concretas, pois há muito trabalho pela frente, a saber: • Conversar com a direção da escola ou instituição educacional para autorização e providências; • Definir local e público; • Verificar se há necessidade de comunicação à subprefeitura local; • Fazer convites para as pessoas; • Planejar o grande dia. 22 Organize junto com o grupo a melhor maneira para a realização do evento, considerando todas as atividades, antes e durante o encontro. O grupo poderá se dividir em comissões: • Comissão de comunicação - produz os convites e os cartazes, pois não se pode esquecer da propaganda. Os convites e os cartazes devem informar qual é o evento, a data, o local, o horário e lembrar as(os) interessadas(os) a trazer objetos das brincadeiras que ensinarão; • Comissão de produção - providencia os materiais necessários para o dia do evento; • Comissão de música - responsabiliza-se pela trilha sonora do evento. Sugestões: apresentações musicais, oficinas de criação de instrumentos, encontros para improviso musical, seleção de músicas para tocar no dia e/ou parceria com alguma rádio local; • Comissão de registro - fotografa, filma as brincadeiras e entrevista as pessoas no dia do evento. Também é interessante filmar o making off do encontro, mostrando os preparativos para o grande dia; • Comissão de divulgação - planeja como e onde distribuir os cartazes e os convites. Afixar cartazes convidativos em estabelecimentos comerciais próximos à escola ou à instituição educacional é uma boa sugestão. E que tal chamar algumas pessoas das famílias para participar das reuniões de planejamento conjunto? Para a realização do evento, é importante recolher algumas informações: • Número mínimo de pessoas presentes no dia para ensinar as brincadeiras; • Algumas brincadeiras a serem propostas pelas pessoas adultas, adolescentes ou pelas crianças; • Materiais para desenvolvê-las e como providenciá-los; • Número aproximado de grupos mistos de crianças, adolescentes e pessoas adultas, além de maneiras de se distribuírem pela praça. Para considerar todos esses detalhes, é necessária a visita prévia das crianças, adolescentes e pessoas adultas à praça onde será realizado o evento. Também devem pensar em como acolher o público e estimular a sua participação, ensinando outras brincadeiras que conhecem. Para facilitar a organização, cada grupo de brincadeiras deve contar com uma dupla de coordenadoras(es): uma pessoa adulta e uma criança ou adolescente. A dupla é responsável por circular entre os grupos e oferecer suporte, se necessário. Um alto-falante é bem-vindo para a comunicação com todas(os) que estão na praça. Uma(um) das(os) familiares que seja desinibida(o) e comunicativa(o) pode assumir o papel de locutora(or) para animar o encontro, dando informações sobre o que está acontecendo nos grupos e anunciando os serviços ofertados pelos equipamentos sociais públicos do território, além de dar a palavra para as(os) participantes - crianças, adolescentes e adultas(os) - opinarem sobre o evento. Pode-se organizar uma comissão de adolescentes para percorrer a praça, fazendo uma pesquisa de opinião com as pessoas, enquanto estiver ocorrendo o encontro. A pesquisa pode conter alguns itens que ajudem a avaliar o evento e trazer sugestões para os próximos. 23 Segundo encontro: tomando a praça com brincadeiras No dia do evento, o grupo organizador deve chegar à praça bem antes do público convidado, para arrumar, sem atropelos, os espaços e os materiais das brincadeiras. Cada grupo de brincadeiras fica no local combinado com as(os) respectivas(os) coordenadoras(es). À medida que as(os) convidadas(os) forem chegando, podem escolher livremente o seu grupo. A qualquer momento, as pessoas podem variar de grupo, participando das outras brincadeiras oferecidas na praça. A dupla coordenadora inicia uma conversa, se apresenta, pede para as pessoas se apresentarem, explica o objetivo do encontro e diz que vai ensinar algumas brincadeiras. Quem conhecê-las pode ajudar nessa etapa e, depois, quem quiser pode ensinar outras brincadeiras. Mas há uma regra: é preciso alternar brincadeira de adulta(o) com a de criança ou adolescente. É só começar. E se? E se o público ficar tímido? Nesse caso, a dupla coordenadora continua a conversa e as perguntas sobre as brincadeiras de que gostam (para as crianças e adolescentes) e de que gostavam de brincar (para pessoas adultas), deixando o público falar até sentir que o clima ficou descontraído. Também é interessante se propor a ajudar a(o) voluntária(o) a ensinar a brincadeira. Se ela(e) não gostar de falar em público, por exemplo, poderá explicar a brincadeira para as(os) coordenadoras(es) e estas(es) para o grupo participante. Durante todo o encontro, o alto-falante irradia a festa, informa onde o público pode tomar água e oferece avisos sobre os serviços da região aos presentes: campanhas do posto de saúde, época próxima de matrículas em escolas, futuras festas do bairro etc. Por fim, anuncia o fim da manhã ou da tarde de brincadeiras, convidando todas(os) para uma grande ciranda. Após o encontro, de volta à organização, faça uma roda específica com o seu grupo para conversar sobre as impressões que tiveram: • Gostaram do evento? • Do que mais gostaram: de aprender ou de ensinar? • Não gostaram de alguma coisa? De quê? • Como foi a participação das famílias? • Quais brincadeiras aprenderam? • O que funcionou bem? • O que não funcionou? • O que mudariam? Hora de avaliar 24 E se? Se a pesquisa não foi realizada durante o encontro, organize com elas(es) uma pequena enquete com as mesmas perguntas da pesquisa, para se informarem da opinião das famílias a respeito do evento. Atividade extra É possível sugerir a produção de um livro com todas as brincadeiras que aconteceram na praça. A publicação pode ser patrocinada por comerciantes ou empresárias(os) da região, com direito a festa de lançamento da obra, na mesma praça. Outra ideia é produzir um vídeo com as filmagens realizadas no dia e com os preparativos para o evento. A exibição deste vídeo pode ser o mote para um novo encontro na organização ou na praça onde foi realizado o primeiro evento. Conteúdos na web Brincando na Corte - Referências BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2002; Cenpec; REDE GLOBO. Artes do festejar e do brincar. São Paulo/Rio de Janeiro, 2001 (Coleção Amigos da Escola: A arte é de todos, Caderno 6) - Acesse em Cenpec. Projeto Brincar. O brinquedo e a brincadeira na infância, 2009 (Cyrce Andrade, Marina Célia Dias, Maria Lúcia Medeiros, Zoraide Faustinoni da Silva); IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional): patrimônio cultural - Cavalo-marinho - Acesse em SILVA, E. R. Vamos brincar de preservar? As brincadeiras infantis como patrimônio imaterial - Acesse em Esse é o momento de apresentar os resultados da pesquisa de opinião pela comissão específica, caso ela tenha acontecido. Para ampliar 25

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Matemática e Ciências

Caminhos sustentáveis pela Ciência e Matemática

Trabalhe com oficinas que unem investigação, ação e consciência socioambiental. As propostas em Matemática e Ciências atendem estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.

1 Caminhos sustentáveis pela Ciência e Matemática Oficinas para desenvolver competências socioambientais com base em investigação e ação 2 3 Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. Explorar o mundo, levantar hipóteses, investigar, experimentar. Essas são ações fundamentais para o desenvolvimento do pensamento científico e matemático desde os primeiros anos escolares. Quando bem orientadas, tornam a aprendizagem mais significativa, despertando a curiosidade e o prazer em descobrir. Com esse espírito investigativo e formativo, organizamos este conjunto de oficinas temáticas sobre Matemática e Ciências, voltado aos anos finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As atividades foram desenhadas para apoiar o trabalho das educadoras e educadores no planejamento de experiências didáticas que favoreçam a compreensão dos conceitos e a aplicação dos saberes no cotidiano das(os) estudantes, respeitando seus ritmos e contextos. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Você sabe o que são os 5 Rs? 5 Oficina 2 - Vamos reconstruir nossa relação com o planeta? 10 Oficina 3 - Consumo e desperdício 16 Oficina 4 - Construindo esculturas com lixo 21 Oficina 5 - O ser humano e o solo: uma relação delicada 25 Oficina 6 - Onde estou? 29 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Você sabe o que são os 5 Rs? • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Datashow. • Folhas de papel pardo. • Revistas especializadas em Meio Ambiente, Educação Ambiental e Sustentabilidade. • Desenvolver atitudes de consumo consciente. • Atividade de aplicação dos princípios de consumo sustentável 5Rs. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Apropriar-se de informações para repensar o próprio consumo. • Reduzir o que é consumido. • Reutilizar objetos e reciclar materiais. • Recusar produtos que agridam o meio ambiente ou explorem o trabalho humano. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de atividades e biblioteca. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 6 Aproximadamente 7 bilhões de pessoas habitam o planeta. A população cresce na proporção de 80 milhões novas(os) residentes por ano. A maioria dessas pessoas vive nas cidades, algumas das quais com altas taxas populacionais, decorrência das migrações internas e externas de cidadãs(ãos) em busca de trabalho e de uma vida melhor. No Brasil, a expressiva maioria das pessoas também reside nas cidades, com um modelo de vida cada vez mais insustentável, dada a intensidade do consumo, do uso do transporte individual, do número de automóveis e de fábricas poluentes. O consumo mundial dos recursos naturais aumentou 50% nos últimos 30 anos. As mudanças climáticas e as suas graves consequências têm forte relação com esse estilo consumista. O uso excessivo de recursos naturais, tanto os renováveis quanto os não renováveis, a dificuldade na mobilidade urbana e o acúmulo de resíduos são exemplos deste panorama. Estudos mostram que o aumento do consumo não se traduz necessariamente em melhor qualidade de vida individual. Um nível de consumo elevado traz efeitos colaterais negativos, como aumento de estresse vinculado a doenças e risco de morte. Atualmente, 1,06 bilhão de pessoas, no mundo, sofrem com problemas de peso e obesidade. O que acontecerá com as novas gerações se nada for mudado? O que podemos fazer? Para que a cultura do consumo seja substituída pela cultura do bem-estar, famílias, escolas, empresas, governos, mídias e movimentos sociais têm de fazer a sua parte, assumindo a perspectiva de uma nova sociedade e de um modelo de produção sustentável. Cabe a nós, em nossa vida cotidiana, fazermos a Análise do Ciclo de Vida (ACV) dos produtos que compramos, aumentando a vida útil daqueles que já temos e reduzindo o impacto negativo do nosso consumo. Neste sentido, a proposta dos 5 Rs é fácil de ser adotada e disseminada: 1. Repensar Repensar os nossos hábitos de consumo. Ao adquirir produtos, devemos pensar na real necessidade de comprá-los, optando pelos recicláveis ou produzidos com matéria-prima reciclada, dando preferência a embalagens de papel ou papelão. 2. Recusar Recusar os produtos que prejudicam o meio ambiente e a saúde e exploram o trabalho humano; produtos fora de validade e elaborados por empresas que não têm compromissos com a ecologia e com as pessoas; o excesso de sacos plásticos e embalagens, preferindo sacolas de pano; aerossóis e lâmpadas fluorescentes (liberam mercúrio, que é altamente tóxico), bem como produtos e embalagens não recicláveis e descartáveis. 3. Reduzir Reduzir o consumo desnecessário; dar preferência a produtos que tenham maior durabilidade e, portanto, ofereçam menor potencial de geração de resíduos e de desperdício de água, energia e recursos naturais; adotar a prática do refil e priorizar as embalagens retornáveis; editar textos na tela do computador e, quando não for possível, evitar a cópia ou a impressão; utilizar, quando possível, frente e verso do papel. Início de conversa 7 4. Reutilizar Reutilizar e recuperar o máximo que puder antes de descartar, ampliando a vida útil dos produtos e do aterro sanitário, economizando a extração de matérias-primas virgens; opinar pelo reuso de embalagens de papel, vidro, plástico, metal e isopor; utilizar os dois lados do papel e montar blocos de papel-rascunho; reaproveitar sobras de alimentos, fazendo adubo natural e fertilizante para o solo, além de alimentos com sobras de casca de banana, de limão, talos de vegetais e de frutas, entre outros. 5. Reciclar Reciclar é aproveitar a matéria-prima embutida no resíduo para fabricar o mesmo ou outro tipo de produto. Esse processo diminui a extração de recursos naturais e economiza água e energia, além de gerar trabalho e renda para milhares de pessoas. Assim, devemos praticar a coleta seletiva das embalagens de vidros, plásticos, metais, papéis, longa vida, isopor, óleo de cozinha usado, cartuchos de impressoras, pilhas, baterias, CDs, DVDs e radiografias para promover benefícios ambientais, sociais e econômicos. Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: o que fazemos com nosso lixo? Inicie uma conversa com a turma sobre o que fazem, em geral, com os objetos utilizados, como: embalagens diversas de alimentos, produtos de higiene, aparelhos eletrônicos ou de telefonia antigos, retalhos de tecidos, linhas, lã, pilhas, baterias etc. Anote em um cartaz. Caso alguém se manifeste dizendo que separa o lixo orgânico do restante, peça que detalhe esse processo: • Como o separa e onde guarda? • O serviço de limpeza da cidade recolhe o lixo ou ele é levado a algum posto específico de recolhimento? • Qual é a localização do posto de recolhimento, se for esse o caso relatado? E se? Se, por outro lado, ninguém da turma se referir à possibilidade de separação do lixo, instigue- -as(os) a refletirem sobre o assunto: o que acham que acontece com o que jogamos no lixo? Considere as hipóteses levantadas e explique o impacto que o lixo causa ao planeta. Há muitos resíduos que não se decompõem ou demoram muitos e muitos anos para se decompor, degradando o meio ambiente. Imagine aproximadamente 7 bilhões de pessoas jogando lixo fora! Afinal, é esse o número de habitantes da Terra. Explique que pequenas mudanças em nosso comportamento cotidiano podem proporcionar uma grande diferença na sustentabilidade do planeta e na qualidade de vida de todas as pessoas. 8 Pergunte se as(os) estudantes ouviram falar nos 5 Rs do meio ambiente. Não? Então vale a pena conhecê-los. Referem-se a algumas atitudes simples que todas(os) nós podemos ter. Para que as conheçam, projete vídeos que tratam dos 5 Rs: repensar, recusar, reduzir, reutilizar e reciclar. • Fique Sabendo - 5Rs da Educação Ambiental - TV Escola (1min 28s) - • Programa Jovens Aprendizes 2012 - Os super R’s - Petrobrás (4 min) - Acesse em Em seguida, convide-as(os) a conhecerem um pouco mais sobre o assunto. Para isso, peça que se organizem em grupos. Cada grupo deve escolher uma das práticas preconizadas pelos 5 Rs para realizar uma pesquisa na biblioteca e na internet, a fim de levantar mais informações sobre elas e sobre propostas de mudanças de atitude compatíveis, tanto em casa como na escola ou na instituição educacional. Marque uma data para entregarem as pesquisas. Algumas sugestões de sites para consulta: • Brasil Escola: Educação ambiental e os 5 Rs (estratégias de ensino-aprendizagem) - Acesse em • Resíduos sólidos: Repensar os hábitos de consumo e descarte - Acesse Segundo encontro: e agora, o que fazer? Na data combinada, cada grupo deve apresentar as principais informações sobre o que pesquisou, além das fontes de pesquisa. Com base nesse estudo, as(os) participantes devem propor o que pode ser feito no dia a dia de casa, da escola ou da instituição educacional, usando os 5 Rs e contribuindo, conforme as possibilidades de cada uma(um), para mudar a situação de poluição do planeta. Pergunte ao coletivo, então, como podem levar a questão estudada a outros grupos de adolescentes e/ou jovens da escola ou instituição educacional. Levante com elas(es) algumas estratégias, como divulgação por meio de cartazes, apresentação de um filme, organização de rodas de conversa ou debates, com a participação das(os) professoras(es) e educadoras(es). Discutam o que é mais viável e reúna uma comissão para conversar com as(os) gestoras(es) da escola ouinstituição educacional sobre o encaminhamento das propostas. Uma vez negociadas as propostas, organizem um calendário de ações e mãos à obra! Forme um círculo com as(os) participantes e peça que comentem sobre a atividade e as aprendizagens realizadas: • O que sabiam sobre os 5Rs antes de participarem da oficina? • Seu modo de pensar mudou? Em que sentido? • A pesquisa na biblioteca foi interessante? Havia diversidade de livros ou revistas? E na internet? • Como se desenvolveu o trabalho em grupo? Houve algum problema? Se houve, como resolveram? Hora de avaliar 9 Atividade extra A campanha desenvolvida na escola ou na instituição educacional pode se estender para fora dela, alcançando a comunidade. Outros grupos podem ser organizados para buscar parcerias com instituições da região - OSCs, escolas, igrejas, casas comerciais etc - na divulgação dos 5 Rs e para providenciar um posto de coleta de objetos recicláveis e de recolhimento de óleo de cozinha. Referências DOMINGOS, R. Terapia financeira – Realize seus sonhos com educação financeira. São Paulo: DSOP Educação Financeira, 2011. Para ampliar 10 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 2 Vamos reconstruir nossa relação com o planeta? • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel pardo. • Canetas hidrográficas. • Pincéis. • Tinta guache. • Fita adesiva. • Reconstruir a relação com o meio ambiente e com as outras espécies no dia a dia. • Reflexão sobre a importância da biodiversidade e sobre a relação destrutiva do ser humano com o planeta e com as demais espécies. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Assumir comportamentos que contribuam para diminuir o impacto negativo da ação humana sobre o meio ambiente. • Cuidar bem dos animais e das plantas. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 11 O patrimônio natural do planeta Terra é composto por minerais (terra, água, rochas, metais etc), a atmosfera e as diversas espécies de seres vivos, como vegetais e animais - entre estes os seres humanos. Juntos, formamos os ecossistemas do planeta. Ou seja, tudo na natureza está interligado. A biodiversidade, ou diversidade biológica, é o elo entre todos os organismos existentes na Terra. Ela conecta cada um deles - inclusive os seres humanos - a um ecossistema interdependente, em que cada espécie desempenha a sua função. É a chamada teia da vida, da qual dependem todos os seres vivos. Início de conversa “Biodiversidade é a biblioteca das vidas.” Thomas Lovejoy, biólogo e ambientalista estadunidense. Apesar de todos os alertas de cientistas e ambientalistas, a forma como grande parte das sociedades humanas se relaciona com a Terra e seus ecossistemas é devastadora. Estamos usando 25% a mais recursos naturais do que o nosso planeta é capaz de fornecer. O resultado disso é que espécies, habitats e comunidades locais estão sofrendo pressões e ameaças diretas, inclusive de extinção. Estima-se atualmente 8,7 milhões de espécies de animais e plantas espalhados pelo globo. Estudos apontam avaliações trágicas: entre 1 milhão e 2 bilhões de espécies de animais, vegetais, fungos e bactérias podem ter sido dizimados pelas atividades humanas. Ou seja, o ser humano acelera em até mil vezes o processo natural de extinção. Ilustração de Rafael Varona Dessa forma, o risco à biodiversidade afeta nossa saúde e nossos meios de subsistência, pois dela dependem pessoas, famílias, comunidades, nações e gerações futuras. Um exemplo é a perda de acesso à água doce, que já atinge diversos países e comunidades. Confira outros exemplos de como a biodiversidade impacta a nossa vida: • Na saúde: estima-se que colhemos entre 50 mil e 70 mil espécies vegetais para uso na medicina tradicional e moderna em todo o mundo; • Na alimentação: aproximadamente 100 milhões de toneladas de espécies aquáticas, como peixes, moluscos e crustáceos, são retiradas da natureza todo ano; • Na construção civil: a preservação de áreas verdes e da vegetação nas margens de rios evita contaminações e acidentes, como enchentes e deslizamentos, que comprometem a vida de pessoas e causam enormes prejuízos; • No clima: a vegetação exerce papel fundamental no regime de chuvas e na temperatura entre o planeta Terra e a atmosfera. Isso fica evidente quando observamos os desertos, onde faz muito calor de dia e muito frio à noite, ou na Amazônia, onde, nas áreas em que a floresta está preservada, a temperatura ambiente entre o dia e a noite varia muito pouco (1,5 a 2 graus Celsius). Já nas áreas desmatadas, a temperatura pode variar bastante (cerca de 10 graus Celsius); 12 • No lazer: os ambientes naturais proporcionam diversas formas de recreação e lazer, como caminhar por uma trilha, canoagem, rapel, escaladas, contemplar belas paisagens, observar animais em seu habitat natural, fazer piqueniques à sombra das árvores, colher frutos, meditar etc. Enfim, há muito a se falar quando os temas são biodiversidade, equilíbrio ambiental e sustentabilidade. Mas como abordá-los com crianças e adolescentes? Um caminho é refletir como essa problemática está presente no nosso cotidiano e como cada uma(um) pode contribuir para melhorar a relação com a natureza. Natureza em equilíbrio Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Anuncie que o personagem a ser discutido na roda do dia será o planeta Terra. Investigue quais imagens as(os) estudantes já viram dela, se já leram alguma coisa a seu respeito, o que foi e em quais circunstâncias. Você pode explorar com a turma a imagem do globo terrestre em 3D, pelo Google Earth. Leve também algumas imagens de revistas e livros para circular entre elas(es). Acesse o Google Earth em Pergunte às(aos) estudantes: • Quantos anos vocês têm? • Qual a idade de seus pais e de seus avós? Planeta Terra 13 Estimule que lancem as suas hipóteses. Então conte que a Ciência estima que a Terra exista há 4,5 bilhões de anos e a humanidade, há 2,5 milhões. É muito tempo, não? E como tem sido a relação entre o ser humano e a Terra? Amigável? Cuidadosa? O que acham? Animação: MAN Diga que vai apresentar uma animação em que o autor faz a crítica da relação desrespeitosa do ser humano com o planeta, com a coletividade e, consequentemente, consigo próprio, em razão de sua arrogância e individualismo. Acesse a animação em A animação de Steve Cutts usa o humor para criticar o comportamento humano, que desrespeita a natureza e causa grave desequilíbrio em todo o planeta. Explique que se trata de uma criação artística para expressar a visão do autor a respeito do fenômeno, por isso pode não corresponder exatamente à realidade. Após assistirem ao vídeo, abra a discussão sobre o assunto tratado: • Quais ideias o artista quis apresentar com a animação? • Quais sentimentos nos passa o personagem? • Concordam com o autor ou não? Por quê? Considere com a turma que nem todos os seres humanos são como o personagem retratado e que essa questão não é apenas individual, mas social, econômica e cultural. A sociedade em que vivemos é fruto de um projeto de grupos sociais que detêm as riquezas produzidas por todos os seres humanos, visam o lucro acima de outros valores e, com isso, estimulam e produzem o consumo exagerado das pessoas, para além do que é necessário para viver bem. Essa é uma situação que pode ser alterada, mas exige esforços coletivos e individuais, pois implica uma mudança no sistema econômico, na participação social das pessoas e nos seus valores. E se? Se elas(es) acharem um exagero a abordagem da animação, reforce que se trata de uma maneira simbólica de tratar o assunto, própria da linguagem artística, que permite ao autor criar situações às vezes excessivas, para explicitar as ações humanas e as suas consequências. Em seguida, apresente MAN 2020. Segundo Steve Cutts, trata-se de uma atualização da primeira animação, dialogando com o contexto da pandemia de Covid-19 e o distanciamento social que muitos países viveram. Acesse a animação em Você pode fomentar a reflexão perguntando: • O que terá levado o artista a fazer essa sequência de MAN? • Na visão de vocês, a forma como ele apresenta esse momento da nossa história corresponde ao que vivemos? • Comparando a primeira com a segunda animação, o que podemos pensar a respeito da ação huma- • Quantos anos o planeta Terra tem? Há quantos anos o ser humano o habita? 14 na sobre a natureza e outras espécies? • Para vocês, qual é a mensagem final da animação? • Vocês fariam um final diferente? Como seria? Provoque a turma a pensar quais comportamentos coletivos e individuais seriam importantes para um novo panorama planetário e social. Abra duas folhas de papel pardo e registre lado a lado os comportamentos indesejados e as mudanças sugeridas, conforme forem falando. Depois, convide a turma a montar um grande painel, com outras folhas de papel pardo, dispostas no chão e coladas com fita adesiva, representando as mudanças sugeridas por elas(es). Disponibilize as canetas hidrográficas e os pincéis com tinta guache. Quando terminarem o painel, exponham em uma das paredes da sala, na escola ou na instituição educacional. Atividade extra É possível organizar um debate envolvendo a comunidade, as escolas do entorno, lideranças locais e famílias para discutirem como podem, em seu âmbito de governabilidade, diminuir os impactos negativos da ação humana sobre o meio ambiente. Também podem propor encaminhamentos para autoridades responsáveis por outros níveis de governabilidade. Conteúdos na web Webinar: Por que a ciência precisa de diversidade (Instituto Serrapilheira) - Acesse em Convenção sobre Diversidade Biológica - Acesse em Manda lá, Ciência - Biodiversidade: recurso natural superexplorado mas subutilizado para existência humana e o desenvolvimento econômico - Acesse em Governo do Rio de Janeiro - Biodiversidade: preservar a biodiversidade é proteger a vida - Acesse em Guia do Estudante: Vídeos retratam a diversidade dos 6 biomas brasileiros - Acesse em Abra a roda para a avaliação da oficina e peça que cochichem entre si, em duplas, se gostaram ou não das atividades e por qual motivo, além de demonstrarem o que foi mais significativo. • Quais recados levariam para as(os) amigas(os) e família sobre o que debateram? Socialize as observações das duplas e registre em um cartaz, que deve ficar afixado na sala. Hora de avaliar Para ampliar 15 WWF: Como a perda da biodiversidade afeta a mim? - Acesse em Assembleia Legislativa do Estado de Goiás: Dia da Biodiversidade - Acesse em Nexo: como os povos e as terras indígenas protegem a biodiversidade - Acesse em 16 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Consumo e desperdício • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel pardo. • Bloco de anotações. • Pacote com 1 quilo de feijão. • Desenvolver atitudes compatíveis com o consumo consciente. • Reflexão sobre o consumo consciente, a coleta seletiva e o reaproveitamento de alimentos. Oficina sobre consumo consciente, coleta seletiva e reaproveitamento de alimentos. • Discutir critérios para o consumo responsável. • Entender as consequências do consumo exagerado sobre o meio ambiente. • Aprender a reaproveitar alimentos. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 17 De 1992 a 2012, o Ministério do Meio Ambiente realizou a pesquisa O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável. O objetivo era investigar o que as(os) brasileiras(os) consideram problema ambiental no país e no mundo, quais os seus hábitos de consumo e o que pensam da atuação dos órgãos governamentais e das empresas em relação à preservação do meio ambiente. Na pesquisa de 2012, alguns resultados foram surpreendentes, evidenciando evolução significativa na consciência ambiental das(os) brasileiras(os). O indicador mais relevante dessa transformação está no número de pessoas que, na primeira pesquisa, há 20 anos, não sabiam mencionar sequer um problema ambiental em sua cidade ou em seu bairro. Este número diminuiu para 10% em 2012, em relação aos 46% de 1992. A pesquisa mostra que conceitos como desenvolvimento sustentável, consumo sustentável e biodiversidade já fazem parte do repertório de quase metade da população brasileira (47%). E que esse percentual tende a aumentar à medida que a mídia dê mais espaço ao tema, traduzindo para o dia a dia a aplicação desses conceitos. Segundo os dados coletados, cada vez mais brasileiras(os) são capazes de identificar problemas ambientais e atribuir importância ao seu enfrentamento. No entanto, apenas 25% demonstraram conhecimento mais aprofundado sobre assuntos relacionados ao meio ambiente, escolhendo para definir o conceito de desenvolvimento sustentável a opção: “cuidar do meio ambiente, das pessoas e da economia do país ao mesmo tempo”, com base em três pilares - social, ambiental e econômico -, como defende a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20). A maioria (69%) relacionou desenvolvimento sustentável à não destruição dos recursos naturais, o que é apenas parte do problema. Houve algum progresso no entendimento do conceito de meio ambiente, concebido como menos naturalista, ou seja, menos identificado apenas com a fauna e a flora. As(Os) brasileiras(os) se sentem parte da biodiversidade. Praticamente 100% da população considera importante o cuidado e a proteção do meio ambiente, destacando que esse cuidado é necessário à nossa sobrevivência e a um futuro melhor para a humanidade. Na prática, a população brasileira ainda apresenta hábitos predatórios ao meio ambiente e à sua própria qualidade de vida, manifestando atitudes inadequadas, principalmente no que se refere ao descarte de pilhas, baterias e lixo eletrônico. Em comparação com a pesquisa de 1992, a disposição para separar o lixo vem aumentando significativamente. Em 2001 era de 68%; em 2006, 78%; e, em 2012, é de 86%, embora, na prática, 52% ainda não separe. Dois terços das(os) brasileiras(os) não sabem o que significa consumo sustentável e 34% disseram ter ouvido falar; 3% apontou, equivocadamente, que consumo sustentável é “comprar produtos mais baratos”. Os avanços observados nesta pesquisa são bem-vindos, mas a consciência sobre sustentabilidade é bem precária. Ainda há um longo caminho a percorrer porque só a pressão da população sobre o poder legislativo e o poder executivo pode mudar o rumo das coisas. Da mesma forma, só pessoas bem informadas e conscientes conseguem se organizar para exercer pressão e controle social a favor da preservação ambiental, além de assumirem, individualmente, hábitos de sustentabilidade. Início de conversa 18 Conheça a pesquisa O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável, realizada com cooperação técnica do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 2012, com 2,2 mil pessoas entrevistadas de todas as regiões do país, de áreas urbana e rural. Acesse em PARA APROFUNDAR Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: despertando para o problema Converse, em roda, sobre os hábitos alimentares cotidianos das famílias das(os) estudantes, pensando no café da manhã (café, leite, pão e manteiga?), no almoço e no jantar (arroz, feijão, macarrão, carne, ovo, verduras, legumes?) e no lanchinho dos intervalos das refeições (fruta, bolo ou biscoito?). Organize num cartaz uma lista com os itens que entram no consumo diário da maioria das(os) estudantes. Pergunte se sabem quanto cada família consome de cada item por mês, e o que fazem com os restos de comida do dia a dia. Anote as respostas em outro cartaz. Provavelmente, muitas(os) não sabem responder. Proponha uma pesquisa em que as(os) estudantes investiguem o volume de consumo de alimentos em suas famílias, durante o período de um mês, e o que é feito com os seus restos, diariamente. Marque uma data para que tragam os resultados para compartilhar. Segundo encontro: conversando sobre os dados pesquisados No dia marcado, abra a roda e dê a palavra para cada uma(um) falar sobre as informações que trouxe. Retome o cartaz com a lista dos alimentos consumidos no dia a dia e registre, item por item, a quantidade mensal que cada família consome de arroz, de feijão, de leite etc. Terminado o levantamento, some as quantidades e registre o total por item. Pergunte se elas(es) têm ideia do quanto representa essa quantidade. Mostre um saco com 1 kg de feijão para perceberem: • Quantos daqueles são necessários para alimentar esse grupo por um mês, só com feijão? • E para alimentar todas(os) as(os) moradoras(es) do bairro? E as(os) da cidade? E as(os) do país? • Sabem que o Brasil tem mais de 190 milhões de habitantes, segundo o censo demográfico do IBGE (2010)? E para alimentar o mundo todo, que já tem mais de 7 bilhões de pessoas, segundo o Banco Mundial (2019)? Por isso, é importante que todos os seres humanos cuidem para que não haja desperdício de alimentos, toda a alimentação produzida seja bem aproveitada e o nosso planeta não seja depredado para produzir itens supérfluos, e sim o que é essen- cial para sustentar a vida de todas as pessoas. O sistema produtivo da sociedade capitalista em que vivemos estimula o acúmulo, o consumo exagerado das pessoas e, com isso, provoca o desperdício. Para que as pessoas comprem determinados produtos, os meios de comunicação, mantidos pelas 19 empresas que produzem esses produtos, fazem propaganda deles, estimulando o consumo. Muitas vezes, esses produtos são absolutamente desnecessários, mas despertam nas pessoas desejos de ter, de possuir e, por isso, elas acabam consumindo sem pensar nas consequências. Precisamos ficar alertas! Diga que a turma assistirá a alguns vídeos curtinhos e engraçados que falam sobre o consumo exagerado, o que ele provoca e a necessidade de desenvolvermos atitudes de consumo consciente. Assista com elas(es) a três deliciosos vídeos (episódios 1, 2 e 3) da série Consciente coletivo, do Instituto Akatu. O Instituto Akatu - palavra que quer dizer “semente boa e mundo melhor”, na língua Tupi - trabalha em prol do consumo consciente. Cada episódio tem a duração de 2 minutos e aborda situações de consumo exagerado e de devastação da natureza. • Consciente coletivo - Origem do que consumimos (episódio 1) - Acesse em • Consciente coletivo - Clima (episódio 2) - Acesse em • Consciente coletivo - Papel (episódio 3) - Acesse em Projete também o vídeo sobre desperdício de alimentos, do Repórter Eco, que traz uma pequena entrevista com Helio Mattar, do Instituto Akatu, sobre o tema. Nessa entrevista, ele faz uma surpreendente afirmação: 60% do lixo urbano é composto de restos de alimentos. Acesse em Após a projeção, é importante discutir o conteúdo dos vídeos e o que eles sugerem para nós, relacionando as ideias principais em um cartaz. Coloque esse cartaz ao lado dos outros, elaborados anteriormente. Passando para a outra parte da pesquisa, faça uma rodada para que contem qual o destino que as famílias dão aos resíduos domésticos dos alimentos e de suas embalagens: • Jogam tudo no mesmo lixo? • Fazem coleta seletiva? • Reaproveitam as sobras? E se? Se na conversa aparecer o reaproveitamento de sobras de alimentos pelas famílias, destaque essa informação, solicitando a quem a trouxe que explique melhor ao grupo do que se trata, pois talvez as(os) estudantes se surpreendam com essa possibilidade. Promova também um bate-papo sobre o que significa coleta seletiva e como ela pode ser realizada. Fale da separação dos resíduos e do seu recolhimento pelo poder público, por catadoras(es) ou pelo depósito voluntário nos ecopontos espalhados pela cidade. Pesquisando receitas sustentáveis Convide-as(os) então a pesquisar na internet, em duplas, como se pode reaproveitar os alimentos, como cascas de frutas, folhas e talos de legumes, indicando os sites abaixo. Elas(es) devem escolher 20 uma das receitas de reaproveitamento de que gostarem para socializar com o grupo e levarem para casa, a fim de experimentar com familiares. • Ecycle: 17 dicas de reaproveitamento de alimentos - Acesse em • SescSP: Mesa Brasil - Aproveitamento Integral dos Alimentos - Acesse em • Mapa de Feiras Orgânicas: Aproveitamento Integral dos Alimentos - Acesse em Após 20 minutos, aproximadamente, abra a roda para as(os) estudantes socializarem as receitas que lhes apeteceram e o porquê, e para retomarem os pontos relevantes do trabalho do dia. É importante abrir a possibilidade para o grupo se manifestar sobre os impactos que o assunto pode lhes ter causado. O objetivo do debate é promover atitudes positivas de preservação e cuidados com a natureza e não sentimentos de culpa ou de medo. Estimule a fala de todas(os) a respeito da experiência vivida: • Da entrevista feita com a família; • Das informações que as(os) colegas trouxeram; • Dos vídeos assistidos; • Das receitas que consultaram. Pergunte quais aprendizagens realizaram com isso tudo e qual foi a informação mais importante, do seu ponto de vista, para divulgar para as outras pessoas e por quê. Hora de avaliar Para ampliar Conteúdos na web • Akatu: Por um consumo consciente - • Movimento Lixo Cidadão: Você sabe como funcionam os Ecopontos? - Acesse em 21 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 Construindo esculturas com lixo • Sucatas de diversos tipos (jornais e revistas velhos, embalagens plásticas, garrafas tipo PET, retalhos de tecido etc). • Tesoura. • Cola. • Pincel atômico. • Tintas variadas. • Flipchart ou cartolina para registros e cartazes. • Imagens (fotografias ou reproduções) de obras de escultoras(es) brasileiras(os) e estrangeiras(os). • Despertar a consciência sobre a importância do reaproveitamento do lixo e de materiais considerados “sucata”. • Reaproveitamento do lixo e de materiais considerados “sucata” com a construção de esculturas. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Desenvolver o senso estético e a capacidade de produção artística. • Promover a formação cidadã das(os) estudantes. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala ampla ou espaço aberto, com mesas ou bancada. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 22 Em nosso cotidiano, muitos materiais são usados e descartados, gerando imenso volume de lixo que se acumula em aterros, lixões a céu aberto ou mesmo em rios e na rua. Os danos ambientais e à saúde causados por esse descarte inadequado são inúmeros. Apesar de as práticas de coleta seletiva, reciclagem e compostagem estarem cada vez mais conhecidas, este ainda é um grande problema em nossa sociedade. O sistema de coleta seletiva ainda é restrito, a reciclagem envolve gasto de água e energia, também prejudiciais ao meio ambiente, e há poucas informações que estimulem as pessoas a adotarem a compostagem em seu dia a dia. Dar um novo uso a materiais que a princípio iriam para o lixo pode ser um caminho criativo para esse problema socioambiental. Muitas(os) artistas usam diversos tipos de materiais considerados lixo ou sucata como matériaprima para as suas composições. Um dos mais peculiares artistas brasileiros nessa tendência é o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989). Outro destaque é o polonês Frans Krajcberg (1921-2017), que viveu mais de 50 anos no Brasil. • Conheça melhor o artista Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) - Acesse em • Conheça melhor o artista Frans Krajcberg (1921-2017) - Acesse em Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Preparação Antes de mais nada, mobilize a sua turma (e a comunidade) para separar materiais reaproveitáveis que seriam jogados no lixo. Alguns deles, como embalagens plásticas de alimentos, precisam ser higienizados antes de serem guardados e reaproveitados. Lavá-los com água e sabão costuma ser suficiente para retirar possíveis detritos orgânicos. Oriente a turma a realizar essa higienização antes de guardar os materiais. Uma vez separados os materiais, em um dia combinado com a turma, reúna no centro da sala o que foi recolhido. Promova uma conversa a respeito dos materiais, discuta sobre possíveis formas de aproveitá-los, ouça as opiniões a respeito e estimule as(os) estudantes a tomar parte da conversa. Se achar adequado, registre, por escrito, uma síntese desse momento. E se? Em certas circunstâncias, você poderá precisar de um local (uma sala, um armário, uma caixa etc) para armazenar os materiais recolhidos pelas(os) estudantes. Verifique se isso é possível na sua escola ou instituição educacional. 23 É importante verificar também se os pais ou responsáveis concordam que as(os) participantes recolham os materiais para a realização da oficina. Caso não seja possível, você mesmo se organiza para coletar os materiais necessários. Em todo caso, é importante envolver a comunidade nessa tarefa, porque os objetivos dessa oficina consistem em conscientizar a turma sobre a importância do reaproveitamento do lixo. Envolver a comunidade poderá ser produtivo para todas(os). Observação e debate sobre as esculturas Em seguida, monte na sala uma pequena exposição com as imagens selecionadas por você. Para obtê-las, é possível consultar sites ou livros especializados em arte, imprimir as imagens e organizá-las em cartazes. Conheça escultoras(es) brasileiras(os) e estrangeiras(os) a partir do século XX (os links levam para páginas da Enciclopédia Itaú) : • Alberto Giacometti - Acesse em • Alfredo Oliani - Acesse em • Amilcar de Castro - Acesse em • Antonio Gomide - Acesse em • Arthur Bispo do Rosário - Acesse em • Caciporé Torres - Acesse em • Emanoel Araújo - Acesse em • Felícia Leirner - Acesse em • Frans Krajcberg - Acesse em • Heloísa Crocco - Acesse em • Lasar Segall - Acesse em • Quirino da Silva - Acesse em • Sérgio Romagnolo - Acesse em • Sonia Ebling - Acesse em • Vasco Prado - Acesse em • Victor Brecheret - Acesse em 24 Estimule a turma a observar essas esculturas e, após algum tempo, converse sobre as obras visualizadas: • Do que são feitas? • Como podem ter sido feitas? • O que representam? • Quais sensações, sentimentos e ideias despertam? Criando esculturas com sucata Terminada a conversa, convide as(os) estudantes a se imaginarem como escultoras(es): organize pequenos grupos e proponha que cada um deles produza uma escultura, modelando, colando e reaproveitando os materiais selecionados. Cada escultura deve apresentar um título e o nome das(os) autoras(es). Ao final, cada grupo expõe o seu trabalho, explicando como foi feito, com quais materiais e o que representa. Com essas esculturas, você pode organizar uma pequena exposição, convidando a comunidade a fazer parte desse momento. Após ter realizado a oficina e depois da exposição dos trabalhos, retome a conversa sobre os materiais utilizados e verifique se as(os) estudantes conseguiram perceber a importância do reaproveitamento do lixo e, principalmente, o fato de que muitos materiais podem servir a finalidades diversas, mesmo depois de utilizados para o fim a que se destinam originalmente. Assim, você verificará se a turma pôde desenvolver a noção do que é “Reutilizar” (um dos cinco Rs do consumo sustentável: repensar, recusar, reduzir, reutilizar e reciclar). Atividade extra Em muitos centros urbanos, em feiras e em mercados de pulgas, há trabalhos realizados por artistas populares. Muita dessa produção artística é feita com base no reaproveitamento de materiais. Pode ser interessante levar a turma a conhecer essas(es) artistas, ocasião na qual elas(es) podem conversar sobre como as obras são produzidas, os materiais utilizados, a procedência etc. É possível que em sua cidade ou região haja centros de coleta e tratamento/reaproveitamento de lixo e resíduos. Você pode organizar com a sua turma uma visita a um desses locais. Conteúdos na web TV Brasil: Arthur Bispo do Rosário - Programa De Lá Pra Cá - Acesse em Conexão Planeta: Frans Krajcberg: árvores queimadas e esculpidas - Acesse em Pensamento Verde: Arte e Reciclagem - A transformação do lixo - Acesse em Hora de avaliar Para ampliar 25 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 O ser humano e o solo: uma relação delicada • Computadores ou notebooks com acesso à internet. • Sensibilizar-se com os impactos provocados no solo pelo ser humano. • Desenvolver outra relação com o meio ambiente. • Exercício de simulação de ocupação do solo. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Perceber a degradação do solo causada pela ocupação humana e conhecer meios de evitá-la. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de leitura ou sala de informática. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 26 Ao ocupar diferentes ambientes, o ser humano os transforma. Por meio de tecnologias, extrai e utiliza recursos materiais e energéticos na construção de produtos necessários à sua sobrevivência. No entanto, se o desenvolvimento tecnológico promove conforto, é o modelo de desenvolvimento econômico que determina o acesso das populações aos bens produzidos e o investimento em tecnologias que não agridam a saúde ambiental e a saúde do ser humano. O uso de tecnologias agressivas destinadas à retirada de grandes quantidades de recursos em curtos intervalos de tempo, o que não é ético nem respeita a vida em sua diversidade, tem produzido miséria e graves impactos ambientais, com prejuízo à saúde humana. O solo é um recurso natural importantíssimo, utilizado em diferentes atividades humanas, tais como agricultura, pecuária, mineração e ocupação urbana, entre outras. Na atividade agrícola, o uso de técnicas inadequadas de transformação do solo resulta em perda da fertilidade e erosão, com agravos à saúde humana e ambiental. São exemplos desse tipo de intervenção: as queimadas, o uso de agrotóxicos, a prática indiscriminada de monocultura, o plantio em encostas sem curvas de nível e o desmatamento em larga escala, entre outros. Nas cidades, a impermeabilização dos solos urbanos, principalmente em razão do uso extensivo de asfalto, impede o escoamento natural das águas pluviais, o que colabora para a ocorrência de enchentes. Para que elas não ocorram, é necessário construir e manter sistemas eficientes de escoamento das águas. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Apresentação de uma situação-problema Reúna a turma e anuncie que a oficina do dia prevê um exercício, em grupo, de reflexão sobre a relação do ser humano com a terra. Diga que você apresentará uma questão que o grupo terá que resolver, em conjunto. A questão é: Você e a sua família são desbravadoras(es) que estão chegando em uma região do planeta, não habitada, onde vão se instalar. A terra que lhes pertence é muito grande, íngreme e rica em vegetação. É um local ainda sem condições de moradia. Vocês devem construir uma casa, um poço e dar um destino para o lixo e os dejetos humanos, afinal não há água encanada, nem esgoto e nem energia. Organize as(os) participantes em grupos para discutirem a questão, por aproximadamente 20 minutos, e apontarem como devem encaminhar as soluções. Em cada grupo, alguém ficará responsável pelo registro das principais ideias. 27 Roda de conversa Após esse tempo, organize uma roda para socializarem as suas produções. A proposta é provocar uma conversa abrangente, particularmente sobre as modificações que o ser humano promove ao ocupar o solo. A cada solução dada, questione as suas consequências, para que possam ter a dimensão da complexidade da questão. Possivelmente, as(os) estudantes vão se referir ao desmatamento e à derrubada de árvores, o que pode provocar erosão no terreno. Também poderão sugerir o desmatamento por queimadas, que é mais barato e rápido, mas, ao queimar a vegetação que sustenta e nutre o solo, aumenta a erosão e a lixiviação (lavagem do solo pela chuva), com perda de nutrientes. Além disso, a queimada mata os microrganismos responsáveis pela produção do húmus e pela circulação de materiais na natureza, assim como causa a morte ou a migração dos animais que habitam essa região. Pode ser que se refiram também a adubos e defensivos agrícolas para as plantações, o que coloca em risco a saúde humana, a flora e a fauna. E quanto ao lixo produzido pelas famílias e o destino dos dejetos, quais soluções deram? E se? Se as(os) participantes não destacarem algumas das referências trazidas acima, insira as questões para elas(es). O importante, nesse momento, é sensibilizá-las(os) para os efeitos das intervenções humanas inadequadas no ambiente, que retornam para o próprio ser humano. Deixe claro que a ação humana sempre causará impactos no ambiente, e que as consequências podem ser muito lesivas, provocando o esgotamento do solo, o seu envenenamento ou a formação de buracos, inviabilizando a sua utilização. Todavia, os impactos podem ser menos negativos se o manuseio do solo for cuidadoso, inteligente e sustentável. Esse cenário se torna de extrema importância quando a questão é posta em grande escala, ou seja, quando milhões e milhões de pessoas ocupam o solo, concentrando-se no mesmo lugar, como ocorre nas metrópoles, em função da migração pela busca de emprego e de melhores condições de vida. Pesquisa em grupos Forme 6 grupos de estudantes e proponha que pesquisem as questões levantadas pelo exercício que fizeram anteriormente e busquem alternativas sustentáveis para esses tópicos. Os temas das pesquisas, portanto, são: 1. Desmatamento; 2. Queimadas; 3. Erosão; 4. Lixo; 5. Dejetos humanos; 6. Agrotóxicos. Oriente-as(os) a entrar na internet para realizarem a pesquisa. Cada grupo se dividirá em duplas, para melhor acessar as informações. Proponha 20 minutos para o trabalho das duplas. 28 Quando as(os) estudantes finalizarem a socialização dos resultados das pesquisas, organize uma roda para a avaliação da atividade. Peça que falem sobre os seguintes itens: • O que aprenderam com a oficina, tanto na vivência quanto na pesquisa? • O que acharam das estratégias propostas? • Após os debates e as pesquisas, mudaram de opinião sobre as questões que enfrentaram na atividade inicial (análise da situação-problema)? • Como ocorreu o trabalho em grupo? E a pesquisa via internet? • Quais processos podem ser aperfeiçoados nos próximos trabalhos? Hora de avaliar Para ampliar Atividade extra Você pode propor à turma a promoção de um debate com uma OSC ou associação ambientalista para complementar a discussão sobre o impacto humano no meio ambiente, especialmente na ocupação do solo. 29 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 6 Onde estou? • Um cabo de vassoura. • Cartolina. • Canetas. • Revistas variadas e HQs. • Imagens de rosas dos ventos e de bússolas diversas. • Uma bússola (se possível). • Conhecer métodos de orientação espacial que se baseiam na natureza. • Familiarizar-se com métodos de orientação espacial que utilizam instrumentos construídos pelo ser humano. • Atividade de orientação espacial, que se baseia na natureza e no uso de instrumentos construídos pelo ser humano. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Aprender a se localizar em qualquer lugar. • Conseguir deslocar-se por diversos pontos da cidade. • Desenvolver valores de boa convivência. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Praça, jardim, clube ou outro local aberto. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 30 O ser humano, diferentemente dos outros seres vivos, tem a capacidade de criar cultura ao produzir objetos necessários à sua sobrevivência. É o que denominamos como cultura material. É assim que através da história da humanidade, ampliam-se e aprimoram-se as possibilidades de se viver mais e melhor. Além disso, também produzimos ciência, arte, tecnologia, política e religião, que constituem a cultura imaterial da sociedade humana e são, da mesma forma, fundamentais para a nossa existência enquanto seres que pensam, sentem e se expressam. Ao mesmo tempo, o ser humano cria muitos objetos desnecessários à sua sobrevivência - objetos supérfluos - com o objetivo único de gerar necessidades artificiais para obtenção de consumo, lucro e acúmulo de riqueza. Isso traz consequências ruins para a vida de todos os seres vivos e para o planeta, criando e aprofundando as desigualdades sociais e a destruição da natureza. A ciência e a tecnologia também podem ser usadas para o bem ou para mal da humanidade, contribuindo para a paz ou para a guerra, para o bem-estar ou para a destruição, como nos mostra a História. O interesse econômico puro e simples e o preconceito levam para um lado; já o respeito à vida, a solidariedade e a ética conduz para o outro. No momento atual, em que os problemas ambientais se agravam, as desigualdades e os conflitos sociais se aprofundam e os novos meios de comunicação, particularmente os virtuais, descortinam uma possibilidade inusitada de acesso às informações públicas e privadas, das mais variadas naturezas, precisamos refletir e decidir, com coragem e ética, qual destino queremos para nosso planeta e para os nossos descendentes. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa e atividade externa Pergunte, na roda, se as(os) estudantes sabem a posição do bairro onde vivem: região norte, sul, leste ou oeste? Como sabem que região é essa? E quando as pessoas relatam que uma casa tem a face norte, o que elas querem dizer? É o que vamos tentar descobrir. Combine uma saída com as(os) participantes, em um dia de sol, de preferência no período da manhã, na qual será realizada uma atividade externa com um piquenique no jardim, na praça ou em um local municipal próximo (um clube, um centro desportivo ou centro cultural com espaço aberto). Neste último caso, há a necessidade de se negociar antes o uso do espaço para a realização da atividade e do piquenique. Levem um cabo de vassoura. Planejem também um lanche coletivo em que cada estudante traz um alimento: frutas, doces, pães e queijos, que devem ser acondicionados em uma cesta. No local, convide todas(os) a olhar a posição do Sol e estender o braço direito para ele. Diga que essa é a direção leste. Pergunte, então, quais lugares da cidade ficam na direção leste. Elas(es) devem anotar esses lugares nos seus blocos de registros. 31 Já o braço contrário indica a direção oeste: quais são os bairros que ficam a oeste? O que está à frente delas(es) é a direção norte e o que está atrás é a direção sul. Quais são os bairros que ficam ao norte e quais ficam ao sul? Todas essas descobertas serão anotadas. E se? Se a atividade for realizada no período da tarde, oriente-as(os) a olharem o local onde o Sol nasce logo que saírem de casa e marcarem bem na memória, usando algum ponto de referência. Você também pode fazer com que as(os) estudantes direcionem o braço esquerdo para o lado onde o Sol se põe, no período da tarde. É interessante explicar que não é o Sol que se move, mas sim o planeta Terra. É o que chamamos de “movimento aparente do Sol”. Observe que o Sol pode tanto nos localizar no espaço quanto no tempo. Quando ele está exatamente no meio do céu, que horas serão? E o pôr do Sol, a que horas aproximadamente acontece? Antigamente, sem relógios, as pessoas se guiavam somente pelo Sol e há, ainda hoje, aquelas que se orientam dessa maneira para calcular as horas, principalmente quem mora no campo. Vamos voltar no tempo? Proponha que as(os) estudantes construam um gnômon (nome do primeiro relógio utilizado pelo ser humano, que permitia definir as horas a partir da projeção das sombras de um obelisco iluminado pelo Sol). Para isso, é necessário fixar um cabo de vassoura na terra e ir marcando com o risco de algum graveto, de tempo em tempo: • A sombra que o cabo faz no chão; • As horas que os relógios de pulso estão indicando nestes momentos. O grupo vai se revezando, de duas em duas ou de três em três pessoas, para fazer o registro coletivo, em uma cartolina, das posições da sombra do cabo de vassoura e das horas correspondentes no relógio. Todas(os) as(os) outras(os) participantes também registram os desenhos nos seus blocos de anotações. Acesse um exemplo desta atividade no vídeo Proyecto Gnomon, em É preciso deixar algum tempo passar para as(os) participantes fazerem as novas marcações. Enquanto isso, sentadas(os) em um círculo, abra o livro que trouxe para mostrar a elas(es) as representações da rosa dos ventos (pontos cardeais, colaterais e subcolaterais) e leia algum trecho sobre a sua utilização. Mostre também uma bússola, utilizada como instrumento de navegação e orientação. Ela possui uma agulha que é atraída para o pólo magnético do planeta Terra, apontando sempre para a direção norte. Voltem para o gnômon para verificar o deslocamento da sombra do cabo de vassoura, marcando novamente a sua direção. Quanto tempo se passou? Esta marca está próxima ou distante da anterior? Que horas devem ser? Registrem. Em seguida, convide as(os) estudantes para o lanche coletivo e um repouso. Aproveitem para conversar, ler algumas revistas e livros, cantar etc. Retomando a atividade, as(os) estudantes devem se dirigir novamente ao gnômon a fim de registrar a nova marca da sombra do cabo de vassoura. Ela está próxima ou distante da marca anterior? Olhando para todas as marcações, qual seria o horário neste momento? Confiram com os seus relógios. 32 Faça uma roda de conversa com as(os) estudantes para avaliarem a atividade: • Gostaram? • Quais pensamentos a oficina despertou em cada uma(um)? • Como deveria ser a vida dos povos antigamente, tendo apenas a natureza como meio de localização do espaço e do tempo? Peça para compararem esses métodos de localização com os utilizados hoje em dia, como o GPS e o Google Maps, por exemplo, considerados instrumentos precisos e práticos: • Quais possibilidades esses novos instrumentos trouxeram para nós? • Eles mudaram a nossa vida? Em que sentido? Considerem, da mesma forma, o que deve ter significado, para os seres humanos daquela época, a possibilidade de se medir o tempo com a construção do gnômon. • Quais são as consequências do gnômon no modo de vida deles? Vocês também podem observar o Cruzeiro do Sul, à noite, considerada outra forma de orientação espacial muito interessante. Para isso, consulte: Uol Educação: Pontos cardeais e outras referências - Acesse em Para ampliar Hora de avaliar Atividade extra Como o gnômon foi construído em um local que não é frequentado costumeiramente por vocês, proponha que façam uma réplica na escola ou na instituição educacional e acompanhem as sombras por uma semana, de hora em hora, organizando uma pequena tabela que marcará o dia da semana, o número de vezes em que o relógio foi observado e o nome das pessoas que o observaram. Veja abaixo um exemplo de tabela de observação do gnômon: 33

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Matemática e Ciências

Explorar para aprender

Por meio do pensamento científico e matemático, é possível levantar hipóteses que norteiam ações com curiosidade e método. Neste material você acessa oficinas de Matemática e Ciências para o Ensino Fundamental e Ensino Médio.

1 Explorar para aprender Oficinas para articular teoria e prática em atividades de Matemática e Ciências 2 3 Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. Explorar o mundo, levantar hipóteses, investigar, experimentar. Essas são ações fundamentais para o desenvolvimento do pensamento científico e matemático desde os primeiros anos escolares. Quando bem orientadas, tornam a aprendizagem mais significativa, despertando a curiosidade e o prazer em descobrir. Com esse espírito investigativo e formativo, organizamos este conjunto de oficinas temáticas sobre Matemática e Ciências, voltado aos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As atividades foram desenhadas para apoiar o trabalho das educadoras e educadores no planejamento de experiências didáticas que favoreçam a compreensão dos conceitos e a aplicação dos saberes no cotidiano das(os) estudantes, respeitando seus ritmos e contextos. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Investigação na escola 5 Oficina 2 - Jogar: uma estratégia de letramento cartográfico 10 Oficina 3 - Lendo, interpretando e resolvendo problemas 15 Oficina 4 - O ser humano e a natureza 22 Oficina 5 - Vamos cartografar nossa escola? 26 Oficina 6 - Mitos e lendas no ensino de Ciências 32 Oficina 7 - Navegar é preciso 37 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Investigação na escola • A depender da natureza e da temática da pesquisa. • Criar situações-problema que despertem a curiosidade da turma. • Desenvolver pesquisa para resolver a situação-problema. • Escolher um gênero para apresentar resultados de pesquisa (cartaz, infográfico, exposição oral, verbete de curiosidade etc). • Apresentar a solução da situação-problema a outras turmas e/ou aos familiares. • Proposta de pesquisas escolares com base em situações-problema de interesse das(os) estudantes para despertar o espírito investigativo da turma. Autora da oficina: Paula Baracat De Grande, doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Estimular o espírito investigativo nas(os) estudantes por meio de projetos de pesquisa sobre temas variados. • Anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 6 É muito comum, na escola, solicitarmos pesquisas às(aos) estudantes. Contudo, muitas dessas pesquisas não partem de uma curiosidade ou dúvida real delas(es) e acabam se tornando uma atividade de cópia: a(o) aluna(o) acessa a internet, digita a palavra-chave no site de buscas e copia o conteúdo do primeiro ou segundo link que aparece. Muitas vezes, a(o) estudante nem mesmo lê o texto que entrega à(ao) professora(or). Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Planejamento de uma situação-problema para entender como vivem as formigas Cada professora(or) pode adaptar o planejamento a depender dos interesses de sua turma. É interessante que a situação-problema surja de uma curiosidade ou de um interesse das(os) estudantes ou, ainda, esteja relacionada a um conteúdo do planejamento prévio da(o) professora(or). Imaginamos uma situação em que o interesse da turma pela vida dos insetos é despertado pela leitura de um livro de fábulas. A(O) professora(or) lê para as(os) estudantes uma versão da fábula A cigarra e a formiga. Depois das atividades de leitura e interpretação, a turma é questionada sobre os personagens: • De quem mais gostaram? Por quê? Imaginemos que as crianças afirmam ter gostado mais da formiga e a relacionam com um personagem de um filme infantil conhecido pela turma. Explorando o interesse das crianças nesse inseto, a(o) professora(or) as leva para observar um formigueiro no parquinho da escola ou em outro espaço (caso não haja essa possibilidade, é possível levar uma foto de um formigueiro) e pergunta: Assim, a pesquisa perde o seu caráter de investigação e construção de novos saberes e acaba se tornando uma tarefa de reprodução. Que tal repensar as pesquisas escolares para despertar o espírito investigativo nas(nos) estudantes? É esse o objetivo desta oficina. Para isso, partimos da criação de uma situação-problema. Mas o que é um problema? Podemos definir problema como uma situação que se quer resolver e para a qual ainda não há um caminho conhecido que leve à solução. Assim, a pesquisa se torna necessária, o que estimula o espírito investigativo das(os) alunas(os). Quando propomos situações-problema, temos que estar abertas(os) a respostas inesperadas, arriscadas, que vão além da reprodução do considerado “correto” ou do que está no livro didático. 7 • Como será que vivem as formigas? • Para onde elas vão quando entram no buraquinho na terra? • Onde elas moram? • Onde dormem? Algumas hipóteses são levantadas nesse momento. Na conversa, a(o) professora(or) pergunta: • Como podemos descobrir como vivem as formigas? A turma ainda não sabe como chegar a essas respostas, então o professor propõe a situação-problema: Como vivem as formigas? Discussão sobre o tema: levantamento de conhecimentos prévios De volta à sala de aula, a(o) professora(or) questiona a turma sobre o que sabem em relação às formigas. Com a participação das crianças, vai registrando na lousa o que é dito. Algumas crenças sobre o tema podem aparecer nessa conversa. Por exemplo, no caso das formigas, uma(um) aluna(o) pode dizer que comer formigas faz bem para a vista, uma crença comum em alguns grupos sociais e regiões. A(O) professora(or) pode propor que as crianças investiguem esses pontos: • Será que comer formiga faz bem para a vista? • Se sim, por que faz bem? Após o registro dos conhecimentos prévios, a(o) professora(or) organiza, junto com as(os) estudantes, uma lista sobre o que mais elas(es) querem saber em relação às formigas. Essa lista será a base para a pesquisa. Orientação sobre busca e apresentação de resultados A turma também deve decidir como os resultados serão expostos ao restante da escola e às famílias. É interessante conversar sobre a importância de divulgar o que descobrirem para as outras pessoas, que talvez também não saibam como as formigas vivem. As propostas de divulgação podem se basear em diferentes gêneros, a depender dos recursos e espaços da escola: • Registros com desenhos; • Cartazes para exposição nos corredores da escola; • Montagem coletiva de maquete de um formigueiro; • Produção de infográfico; • Reprodução digital do formigueiro. A ideia é que a turma consiga representar graficamente a vida dentro de um formigueiro. Assim, as crianças aprenderão tanto sobre a vida das formigas como sobre a produção textual do gênero escolhido, além da própria participação na prática social de divulgar resultados de pesquisa. 8 Nossa proposta é a produção de uma maquete e cartazes para exposição a outras turmas da escola. A(O) professora(or) divide a turma em grupos e orienta as pesquisas com base na lista com os pontos que a turma quer saber sobre as formigas.A pesquisa pode ser dividida em duas etapas: 1. Descobrir respostas para os pontos a serem investigados: selecionar livros da biblioteca, sites, entrevistas com especialistas, programas de TV sobre o assunto etc; 2. Planejar como fazer a maquete: pesquisar materiais, planejar tamanho, pensar sobre os espaços a serem representados etc. Outros pontos podem ser adicionados tendo em vista os gêneros escolhidos para a produção. Por exemplo, no caso da maquete, as crianças devem pesquisar materiais para a reprodução do formigueiro, descobrir como ele é internamente, se é dividido, organizado etc. Pesquisando Você pode levar as(os) estudantes ao laboratório de informática e orientar os grupos em pesquisas na internet. Cada grupo pode ficar com um ou alguns pontos da lista previamente elaborada. A biblioteca também pode ser usada. Outro recurso é realizar uma entrevista com a(o) professora(or) de Ciências ou Biologia da escola ou outro profissional da área que possa fornecer mais informações sobre as formigas e os seus hábitos. Para isso, a turma deve planejar as perguntas antes de realizar a entrevista e fazer o registro das respostas. A(O) professora(or) também pode pesquisar programas de TV que tratam do assunto e que estejam disponíveis na internet para levar às(aos) estudantes e pedir que registrem o que considerarem relevante para responder à situação-problema. Uma boa sugestão sobre o tema é o documentário A superorganização das formigas. Acesse em Após cada grupo realizar as pesquisas, a primeira socialização deve ser feita na sala de aula. A(O) professora(or) deve organizar as contribuições de cada grupo. A turma deve checar se todos os pontos planejados em relação ao que queriam saber sobre a vida das formigas foram respondidos. Caso ainda existam dúvidas, a turma deve se replanejar para descobrir as respostas. Elaborando o produto final Para a construção da maquete, a turma, com a ajuda da(o) professora(or), deve planejar o espaço, medir o tamanho da maquete e escolher os materiais. Nessa construção, vários conteúdos matemáticos podem ser relembrados com a turma ou apresentados às crianças. Uma maneira possível é fazer a base com isopor e a reprodução do formigueiro com argila e tinta. As(Os) estudantes também podem separar lixo reciclável para isso. A maquete pode ser complementada com a produção de cartazes com as explicações e curiosidades encontradas pela turma. Divulgando resultados de pesquisa Decida com a turma se a exposição da maquete e dos cartazes será voltada apenas às outras turmas da escola ou se será aberta aos familiares. De qualquer forma, o evento é uma ótima oportunidade para o trabalho com outros gêneros, como o convite e a exposição oral das(os) estudantes. Elas(es) podem se revezar na explicação da maquete. 9 Combine com a turma um dia para avaliar a pesquisa e o evento, procurando identificar o percurso de aprendizagem, partindo dos saberes prévios em direção aos conhecimentos construídos. É fundamental valorizar esse percurso e, estimulando a participação de todas(os) as(os) estudantes, discutir o que pode ser aprimorado nos próximos percursos de aprendizagem. Hora de avaliar 10 Oficina 2 Jogar: uma estratégia de letramento cartográfico Autoras da oficina: Renata de Medeiros, professora e coordenadora de Geografia, e Renata Del Monaco, professora de Geografia e formadora de professoras(es). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). MATERIAIS O QUE É FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Compreender que um objeto, elemento ou espaço pode ser observado de diferentes pontos de vista. • Identificar objetos em diferentes pontos de vista e construir noções de visão frontal, oblíqua/lateral e vertical. • Perceber que os mapas são representações da realidade em visão vertical. • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Materiais escolares diversos: tubo de cola, tesoura, fita adesiva etc. • Monobloco. • Rolinhos de papel higiênico ou papel toalha. • Cópias de imagens de satélite do entorno da escola. • Acetato ou plástico transparente. • Canetas para acetato ou marcadores permanentes. • Caixas de sapatos ou similares. • Objetos diversos para observação vertical (brinquedos, utensílios domésticos, decorativos etc). • Apresentação de elementos da linguagem cartográfica, com destaque para a representação em visão vertical. • Compreender o mapa como uma representação da realidade vista de cima e familiarizar-se com a imagem de objetos e lugares do ponto de vista vertical. • Anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de leitura, biblioteca, quadra ou ateliê de artes. • 1 a 3 encontros de 45 a 50 minutos cada. Voltar para o sumário 11 Início de conversa Segundo a professora Neiva Otero Schäffer: “A representação espacial da informação sobre os lugares (a cartografia) está invariavelmente vinculada à aula de Geografia. Ela é a linguagem, por excelência, da síntese das informações espaciais: expressa conhecimentos e estuda situações, sempre enfatizando a ideia de organização do espaço. Por tal razão, a leitura cartográfica surge, desde o início da escolaridade, como instrumento básico em Geografia para compreender a espacialização dos fenômenos e para representá-los, também, espacialmente.” Os mapas estão presentes no cotidiano de quase todas as pessoas. Algumas trabalham diariamente com eles, como as(os) taxistas, que precisam utilizá-los para encontrar ruas e endereços, as(os) marinheiras(os) e pescadoras(es), que usam mapas de navegação, as(os) aviadoras(es), que se orientam com mapas indicando as direções. Nós precisamos deles para encontrar o endereço de uma(um) amiga(o) ou de um consultório, por exemplo. Muitos desses mapas não estão nos atlas nem são de papel, mas se encontram em aparelhos sofisticados, como GPS, celulares, tablets etc. Dominar a linguagem dos mapas não é tarefa simples e depende de um longo letramento cartográfico. Ele deve acontecer desde os primeiros anos de vida, com a introdução de conceitos básicos, como lateralidade, escala, símbolos e pontos de vista, entre muitos outros, que devem ser trabalhados dentro e fora da escola. As(Os) professoras(es) de Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental realizam uma infinidade de trabalhos que contribuem, e muito, para esse letramento. Abordar todos eles aqui seria impossível, por isso escolhemos trabalhar com a visão vertical. Os mapas têm uma linguagem própria que deve ser compreendida por leitoras(es) em qualquer parte do mundo. Entre as suas características, destacamos a representação em visão vertical. Entender que um mapa é uma representação da realidade vista de cima é, sem dúvida, um grande desafio. Para isso, é preciso se familiarizar com a imagem dos objetos e dos lugares do ponto de vista vertical para fazer uma boa leitura dos mapas. Por exemplo, uma árvore vista de frente tem tronco, caule, galhos, folhas, frutos, flores e chão coberto de folhas secas. Mas vista de cima é outra história, correto? Por isso, é preciso treinar o olhar, exercitar, ver e brincar muitas vezes com as imagens. Vamos lá? Crianças pequenas precisam ter acesso livre a materiais cartográficos para explorar essa linguagem. Você pode deixar na sala um globo terrestre e um atlas entre os livros e mapas expostos na lousa ou nas paredes para que elas manuseiem e se familiarizem com eles. As análises mais complexas serão trabalhadas em anos posteriores. Na prática Sugestão de encaminhamento Atividades de aquecimento Você pode iniciar a oficina lendo para as(os) alunas(os) Os sábios e o elefante, conto do folclore hindu. Essa narrativa pode ser encontrada no livro Lá vem história, de Heloísa Prieto (São Paulo: Companhia 12 das Letrinhas, 1997). Também é possível assistir à animação baseada neste conto. Converse com as(os) estudantes sobre o conto, destacando os diferentes pontos de vista apresentados pelos sábios. Esta é uma boa oportunidade de se discutir a importância de reconhecer e valorizar os variados pontos de vista sobre um tema ou uma situação. Para abrir o debate, você pode ouvir com a turma o samba Ponto de vista (João Cavalcanti e Edu Krieger), gravado pelo grupo Casuarina. Acesse em Em seguida proponha essa atividade: • Escolha um objeto (por exemplo, um urso de pelúcia) e mostre-o em várias posições às(aos) estudantes; • Coloque o objeto sobre uma mesa e disponha as(os) alunas(os) em volta dele; • Peça que elas(es) desenhem esse objeto – mas só podem desenhar o que estão vendo! Uma maneira interessante de focar o olhar da(o) participante: entregue um rolinho de papel higiênico, ou de papel toalha, para ser usado como um monóculo. Assim, ela(e) deve focar uma parte do objeto e desenhar somente essa parte, como os sábios no conto hindu. • Exponha os desenhos e converse sobre a questão do ponto de vista: peça para comentarem as sensações, se foi fácil desenhar somente uma parte do objeto, se gostaram da experiência. Agora é a sua vez, professora(or), de desenhar na sequência da atividade: • Escolha alguns objetos da sala (por exemplo, o cesto de lixo, uma mesa, um tubo de cola). Desenhe esses objetos na visão vertical sem que as(os) alunas(os) vejam. O ideal é fazer isso sem a presença delas(es); • Organize a sala em círculo, coloque os desenhos no chão para que sejam observados de cima e proponha que as(os) estudantes descubram quais objetos foram desenhados; • Assim que elas(es) descobrirem, pergunte se sabem como os desenhos foram produzidos. Puxe novamente a conversa sobre ponto de vista, resgatando o conto e os desenhos de observação que elas(es) fizeram. Jogo de observação: Que objeto é esse? Descubra se for capaz! A criança muitas vezes aprende brincando. A ludicidade deve fazer parte da rotina escolar nos anos iniciais do Ensino Fundamental e, se possível, manter-se presente até o fim da vida! A próxima proposta é um jogo, a que demos o nome de Que objeto é esse? Descubra se for capaz! Objetivo: descobrir qual objeto foi desenhado. Cada grupo receberá: • caixa de sapato com um objeto dentro; • folha de sulfite; • lápis ou caneta preta; • folha de monobloco. 13 Preparação É necessário providenciar os materiais com antecedência. É importante que os objetos selecionados sejam bem conhecidos de todas(os) as(os) alunas(os) para que elas(es) tenham uma referência. Imagens feitas de cima são muito diferentes e de difícil identificação. Organize a classe em pequenos grupos. A atividade deverá ser realizada em um espaço amplo, onde cada grupo fique afastado dos outros − uma quadra seria a opção mais adequada para a dinâmica. É importante as(os) estudantes compreenderem que o ambiente de aprendizagem não se restringe à sala de aula. Regras do jogo • Cada grupo receberá uma caixa fechada com um objeto dentro; • Também receberá uma folha sulfite; • As(Os) alunas(os) devem ficar em pé e a caixa no chão; • O grupo deve desenhar o objeto do ponto de vista de cima (visão vertical). Como jogar Os grupos não podem estar próximos uns dos outros. É necessário desenhar o objeto visto de cima de forma que as(os) participantes dos outros grupos não vejam. Assim que todas(os) acabarem os desenhos, façam um grande círculo. Cada grupo apresentará o seu desenho, um de cada vez, para que os outros vejam e anotem no monobloco o nome do objeto. Quando todos os grupos apresentarem os seus desenhos e registrarem as suas opiniões, será o momento de mostrar os objetos e verificar os acertos. Vence o grupo que identificar o maior número de objetos. Compartilhamento das descobertas Quando terminarem, é o momento de conversar sobre a atividade. Leve as(os) estudantes a refletir sobre como os objetos ficam diferentes de acordo com a nossa posição e o modo como os enxergamos. Peça que desenhem o mesmo objeto, agora visto de frente, para que notem como a percepção se modifica. Exponha os desenhos em um mural da classe. Visão aérea da escola Em outra aula, mostre uma imagem de satélite do entorno da escola. Pergunte se alguém sabe o que é aquela imagem. Leve as(os) alunas(os) a reconhecerem que é uma imagem de satélite. Explique que ela também é uma visão de uma superfície feita de cima para baixo. Divida a classe em pequenos grupos e distribua reproduções da imagem de satélite da região onde a escola se encontra. Peça às(aos) estudantes para identificarem o que a imagem está representando, se reconhecem algum lugar, onde está a rua da escola, o prédio da escola e outros pontos de referência. Entregue uma folha de acetato ou plástico transparente e canetas específicas (para acetato ou marcador permanente). As(Os) participantes devem desenhar a rua, a escola e os pontos de referência que reconhecem. Depois, peça que desenhem a rua vista de frente. 14 Recurso on-line Para adquirir uma imagem de satélite, navegue pelo site do Google Maps. É uma ferramenta gratuita que possibilita copiar as imagens (basta usar o recurso PrtScn) e imprimi-las. Se a escola tiver computadores com acesso à internet, programe uma aula para as(os) estudantes navegarem pelo site, explorando os seus recursos. Oriente-as(os) a procurar o endereço de casa, de parentes e de outros locais conhecidos. Acesse o Google Maps em Coletivamente, retome a atividade com as(os) alunas(os): elas(es) devem socializar o que identificaram e mostrar os seus desenhos. Oriente-as(os) a observar e comentar as diferenças entre as duas representações: a vista de cima e a vista de frente. Novamente, exponha os desenhos no mural da classe. Como síntese, peça para criarem legendas para fixar no mural, próximo à produção da turma. Ao longo da oficina, é importante perceber se as(os) alunas(os) compreendem que, de acordo com a posição que observamos um objeto, elemento ou espaço, há diferentes pontos de vista: horizontal, vertical, lateral ou oblíquo. Atente para ver se entendem que a imagem de satélite é uma visão vertical, ou seja, feita de cima para baixo. Note a participação oral, as colocações, o vocabulário e, principalmente, a criação da legenda. Lembre-se que estas são ações didáticas para motivar a(o) estudante a pensar as noções e os conceitos relacionados à cartografia. Hora de avaliar Para ampliar Referências ALMEIDA, Rosângela Doin. Cartografia escolar. São Paulo: Contexto. 2007; PASSINI, Elza Yasyko. Alfabetização Cartográfica e a aprendizagem de Geografia. São Paulo: Cortez, 2012. 15 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Lendo, interpretando e resolvendo problemas • Textos impressos com enunciados matemáticos. • Folhas de papel sulfite. • Lápis e canetas. • Promover situações de leitura, escuta, produção oral e escrita de texto relacionadas a conteúdos matemáticos. • Trabalhar interpretação de frases e expressões próprias da linguagem matemática em enunciados de problemas. • Explorar estratégias (pessoais ou convencionais) de resolução de problemas. • Identificar no texto palavras, expressões e números que ajudem a construir estratégias de solução. • Oficina voltada ao desenvolvimento de estratégias de leitura sobre o gênero textual “enunciado de problema”. Autora da oficina: Silvia Longato, educadora especialista em Educação Matemática. Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Promover o desenvolvimento de competências leitoras relacionadas à resolução de problemas matemáticos. • Anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de leitura ou biblioteca. • 1 encontro de 45 a 50 minutos (a oficina pode ser periódica). Voltar para o sumário 16 Início de conversa Dentre as várias atividades propostas nas aulas de Matemática, uma, em especial, é anunciada por professoras(es) como indicação de bons resultados ou como preocupação por insucessos nas aprendizagens das(os) estudantes. Estamos nos referindo ao ensino-aprendizagem envolvendo a leitura, interpretação e resolução de problemas. Em relação à resolução de problemas, há referenciais teóricos significativos - alguns serão apontados na bibliografia ao final desta oficina - que têm auxiliado professoras(es) a elaborar planos de aula, oferecendo indicações de “como” desenvolver ações em sala de aula que contribuam para a ampliação e/ou sistematização de estratégias próprias das(os) estudantes, como: desenho, decomposições numéricas e escrita de resolução de problemas. Incentivá-las(os) a buscar modos de solucionar problemas e garantir a socialização dessas estratégias são aspectos importantes para ampliar repertórios na “arte” de resolver problemas. Entretanto, mesmo com essas pesquisas, estudos e materiais publicados, são frequentes as queixas das(os) professoras(es) a respeito das dificuldades enfrentadas pelas(os) estudantes em relação à leitura e interpretação de problemas e de outros textos matemáticos. Com base em um trabalho realizado com crianças a esse respeito, Kátia Stocco Smole e Maria Ignez Diniz (2001, p. 72) afirmam que: “a dificuldade que os alunos encontram em ler e compreender textos de problemas está, entre outros fatores, ligada à ausência de um trabalho específico com o texto do problema. O estilo no qual os problemas de Matemática geralmente é escrito, a falta de compreensão de um conceito envolvido no problema, o uso de termos específicos da Matemática que, portanto, não fazem parte do cotidiano do aluno e até mesmo palavras que têm significados diferentes na Matemática e fora dela – total, diferença, ímpar, média, volume, produto – podem constituir-se em obstáculos para que ocorra a compreensão.” Nesta proposta, o foco é o desenvolvimento de estratégias de leitura para acesso a gêneros textuais próprios da atividade matemática escolar. Neste momento, escolhemos o texto de enunciado de problema. Sugerimos a adoção dos seguintes procedimentos: • Criar uma rotina que combine momentos de leitura individual (oral, silenciosa ou compartilhada), em grupo ou coletiva, expondo a turma a situações diversificadas de leitura e às diferentes formas de produção de textos (verbais e não verbais); • Promover práticas de leitura significativas às(aos) estudantes; • Ter clareza de que a principal finalidade deste trabalho é a leitura e compreensão de enunciado de problema, sendo sua resolução uma consequência da compreensão. Produção de texto em Matemática • Verbais escritos: resoluções de problemas, enunciados de problemas, justificativas e explicações de procedimentos, explicações de conceitos ou de ideias, demonstrações de teoremas, enunciados de uma regularidade/propriedade; • Verbais orais: explicações de enunciados, conceitos, procedimentos, justificativas e argumentação/persuasão, apresentações de respostas e conclusões; PARA APROFUNDAR 17 Na prática Sugestão de encaminhamento Levantamento do conhecimento da turma A proposta inicial é conversar com as(os) estudantes sobre os seus conhecimentos e compreensões em relação a identificar um texto como um enunciado de problema, com base em suas características e finalidades. Para isso, organize a classe agrupando-as(os) em duplas ou trios e entregue uma folha como a do modelo abaixo: Faça você a primeira leitura, enquanto isso as(os) estudantes devem acompanhá-la. Leia pausadamente - procure não enfatizar palavras ou expressões -, com tom e ritmo próprios, de acordo com a situação apresentada em cada texto. Quando terminar de ler, proponha que, em duplas, trios ou mesmo individualmente, as(os) estudantes façam uma nova leitura dos enunciados. Ao final, pergunte: • Não verbais: desenhos, esquemas, gráficos, tabelas, expressões numéricas etc. Fonte: SILVA, 2011. 18 • Após a leitura dos dois textos, é possível identificar semelhanças e diferenças entre eles? Quais? Na lousa, desenhe um quadro e vá preenchendo-o com as semelhanças e as diferenças observadas nos textos pelas(os) estudantes. Veja alguns exemplos: Semelhanças • Temática: jogo de bafo; • Informações: personagens, figurinhas, explicações sobre o jogo e dados numéricos; • Lugar e tempo: escola e horário do lanche/ recreio; • Número de figurinhas envolvidas; • Situações de perdas e ganhos. Diferenças • No texto 1, soubemos que Pedro virou 12 figurinhas, aumentando sua coleção, Thiago virou as demais; • Já o texto 2 informa a quantidade de figurinhas que cada um tinha no início do jogo, e depois pergunta com quantas figurinhas cada um ficou ao final do jogo. Após o preenchimento do quadro, leia as informações diagnosticadas pelas(os) estudantes e pergunte: • Qual dos dois textos vocês concluem que se trata de um problema matemático? Observe que os textos foram produzidos com base em situações concretas e em enredos semelhantes aos que muitas(os) estudantes estão acostumadas(os) a vivenciar. Além disso, em ambos, é possível identificar conflitos. Dessa forma, é factível observar que os textos têm características semelhantes, mas objetivos e finalidades específicas, ou seja, no primeiro descrevem-se o jogo e as situações decorrentes dele, enquanto no segundo faz-se uma pergunta que será respondida quando retomarmos a leitura, a fim resolver o problema com as informações dadas. Ao final da exploração e discussão sobre as leituras, as(os) estudantes precisam compreender que o texto 2 é considerado um problema não apenas por encerrar com uma pergunta, mas também por suas finalidades e características. É a leitura do texto que permitirá à(ao) estudante reconhecer se a situação produzida trata-se ou não de um problema. Se “a leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto, e ler envolve procedimentos e capacidades cognitivas, afetivas, sociais, de percepção, discursivas, linguísticas” (CENPEC, 2011), ações pedagógicas com foco na leitura são uma possibilidade para desenvolver as capacidades de resolver problemas (escolares ou não). Uma proposta de aula Esta sequência busca desenvolver a capacidade de leitura e de análise de enunciados de problemas, assim como o pensamento lógico matemático, com base em uma concepção de linguagem dialógica, em que o sujeito atribui significado na interação com as(os) interlocutoras(es) e no contexto ou na situação em que estão inseridas(os). Nesse sentido, o papel da(o) professora(or) é fundamental, como mediadora(or) entre os vários saberes e intervenções ao longo do processo. A proposta a seguir foi planejada para uma aula de 45 a 50 minutos. A resolução dos problemas não está descartada, mas neste momento o objetivo é verificar como a leitura pode auxiliar as(os) estudantes na busca de caminhos e procedimentos para solucionar os problemas sozinhas(os). 19 Situação envolvendo um conceito matemático 1ª parte: apresentação do problema É importante organizar a turma em duplas ou trios. Entregue uma folha para cada grupo, de acordo com o modelo a seguir: Leia pausadamente os dois enunciados de problema para a turma. Procure não enfatizar palavras ou expressões. Em seguida, peça a uma(um) estudante ou ao grupo que leia. Por meio de perguntas, crie uma dinâmica com o objetivo de levantar o que compreenderam em relação aos textos lidos: • Do que tratam os textos? (contexto: coleção de objetos); • Há na classe alguém que também goste de colecionar objetos? • Que objetos são esses? • Há objetos que são colecionados por mais de uma(um) estudante? Qual(is)? • O texto descreve uma situação entre Marli e Patrícia e, também, entre Paulo e Ricardo. Que situação é essa? (situação envolvida: comparação); • Que expressão (palavras) que aparece nos textos dos problemas está relacionada à situação envolvida? (expressão: “a mais que”). O objetivo das perguntas é ajudar as(os) estudantes a perceberem se já vivenciaram situações semelhantes às dos enunciados. Isso possibilita que as(os) colegas colaborem entre si na compreensão do problema. Observe a participação das(os) estudantes. Registre as manifestações na lousa ou sugira que sinalizem no próprio texto as expressões (palavras e/ou números) que respondem às perguntas. Em seguida, indague: • Quais perguntas são feitas ao final de cada texto? 20 Na sequência, peça que indiquem uma maneira de responder às perguntas usando letras, números, desenhos ou cálculos. Após terminarem de responder (resolver o problema), recolha as folhas de atividade. Em particular ou junto com a coordenadora(or) ou técnica(o) pedagógica(o), analise as formas como cada dupla ou trio resolveu a situação. O objetivo agora é dar destaque aos diferentes “modos” (procedimentos próprios: desenhos, esquemas, cálculos ou palavras) encontrados pelas(os) estudantes para resolver os problemas. Mesmo sabendo que a expressão “a mais que” é o aspecto comum, é possível gerar procedimentos distintos. A ideia é que as(os) estudantes percebam que a expressão “a mais que” não está, necessariamente, associada à ação de somar, mas sim à de comparar. Nesse sentido, a decisão de somar ou subtrair está relacionada à pergunta, com base no contexto e na situação descrita. 2ª parte: resolução X problema Feita a investigação dos diferentes “modos” de resolver os problemas analisados, organize um painel com as resoluções encontradas pelas(os) estudantes. Sugerimos que as estratégias (desenhos, esquemas, operações ou palavras) mostrem claramente como se obteve o total na situação descrita no texto 1 e a diferença na situação do texto 2. Sugerimos ampliar os registros das(os) estudantes e montar um painel estabelecendo relação entre a resolução e o problema. Convide as(os) estudantes a observarem o painel e os registros expostos. Acompanhe-as(os) e ouça os seus comentários e argumentos sobre o que compreenderam de um ou de outro registro. Crie um ambiente dinâmico. A exposição de diferentes estratégias para resolver problemas, além de ampliar o repertório resolutivo, permite desenvolver habilidades relacionadas ao pensamento lógico matemático, sendo algumas delas: • Análise; • Comparação; • Generalização; • Definição; • Demonstração; • Dedução. Procure estimular a turma a pensar e expor essas estratégias, perguntando, por exemplo: • Qual indicação (palavra ou expressão) no texto do problema fez você escolher essa estratégia (ou procedimento) e não outra? Ainda sobre a proposta de aula Esta proposta tem como principal objetivo chamar a atenção sobre a importância de uma ação pedagógica voltada à leitura nas aulas de Matemática. Não é possível dar “peso” e “atenção” a tudo ao mesmo tempo, é preciso definir “qual é o foco, a intencionalidade” do (meu) ensino e a qual expectativa de aprendizagem esse ensino está relacionado. Sabemos que a leitura envolve a construção do significado do texto, realizado pela(o) leitora(or). Ler abrange procedimentos e capacidades cognitivas, afetivas, sociais, de percepção, discursivas, linguísticas, que dependem da situação e das finalidades da leitura, e ao ler fazemos diferentes interpretações, apreciações, avaliamos valores, concordamos, discordamos, criticamos etc. 21 A verificação é uma forma de mobilizar as(os) estudantes a observar, analisar e comparar escolhas - procedimentos, estratégias - para a resolução de problemas. Essa é uma ação ainda pouco explorada em sala de aula, mas que é fundamental para sistematizar estratégias de leitura, compreensão e resolução de problemas. Faça com as(os) estudantes, oralmente ou por escrito, uma avaliação do que aprenderam. Referências CENPEC. Estudar pra valer! Leitura e produção de texto nas áreas de conhecimento. São Paulo: Cenpec, 2011; FONSECA, M. C. F. R.; CARDOSO, C. A. Educação matemática e letramento: textos para ensinar Matemática, Matemática para ler texto. In: NACARATO, Adair M.; LOPES, C. E. (Org). Escritas e leituras na educação matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2005; ______ (Org.). Educação matemática, leitura e escrita: armadilhas, utopias e realidades. Campinas: Mercado das Letras, 2009. (Série Educação Matemática); SILVA, L. M. Matemática: sequência de atividades, 6º ao 9º ano: Ensino Fundamental. Estudar pra valer! Leitura e produção de texto nas áreas de conhecimento. São Paulo: Cenpec, 2011; SMOLE, K. S.; DINIZ, M. I. (Org.). Ler, escrever e resolver problemas: habilidades básicas para aprender Matemática. Porto Alegre: Artmed, 2001. Hora de avaliar Para ampliar “A leitura e a produção de enunciados de problemas, instruções de propriedades, teoremas […] demandam e merecem investigação e ações pedagógicas específicas que contemplem o desenvolvimento de estratégias de leitura, a análise de estilos, a discussão de conceitos de acesso aos termos envolvidos, trabalho esse que educador matemático precisa reconhecer e assumir como de sua responsabilidade.” Fonte: FONSECA e CARDOSO, 2005, p. 64-65. 22 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 O ser humano e a natureza • Cadernos e/ou bloquinhos para fazer anotações e/ou desenhos. • Lápis e canetas coloridas para desenhos. • Lápis e canetas para anotações. • Despertar o grupo para a importância da preservação da natureza. • Experiência de contato com a natureza, pela percepção sensorial. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Promover a observação do ambiente natural, dos seres que ali vivem (plantas, animais e minerais), e a relação entre eles. • Anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental. • Parque público da cidade ou região. • 1 encontro de 1h30 (sem contar o deslocamento até o local) e 1 encontro de 30 minutos para uma conversa coletiva avaliativa. Voltar para o sumário 23 O respeito ao meio ambiente está intimamente ligado ao contato e à intimidade com a natureza. Quanto mais cedo esse contato se der, com qualidade e frequência, mais cedo se desenvolverá a responsabilidade pessoal no cuidado com o ambiente natural. Visitas a parques, reservas ambientais, contemplação e observação de animais e plantas, brincadeiras e outras atividades em espaços abertos devem fazer parte da vida das crianças, junto à família, com a escola ou em outros espaços educativos. As questões ambientais estão cada vez mais presentes nas diversas esferas da sociedade. Nesse sentido, a Educação Ambiental se tornou essencial nos espaços e processos educativos, especialmente no início da escolarização. Crianças bem formadas e informadas sobre si e o seu papel na coletividade se tornam adultas(os) mais responsáveis e solidárias(os) na busca por soluções a problemas que dizem respeito a todas(os). Educação Ambiental: uma temática transversal A Política Nacional de Educação Ambiental (Lei nº 9.795/99) entende como “Educação Ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade”. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental (MEC, Resolução nº 2/12), a temática ambiental é considerada como transversal nos currículos escolares das redes e sistemas de ensino brasileiros, permeando toda prática educacional “ mediante temas relacionados com o meio ambiente e a sustentabilidade socioambiental”. Assim, a Educação Ambiental deve ser uma prática educativa integrada e interdisciplinar, contínua e permanente em todas as etapas, níveis e modalidades de ensino. Início de conversa Estudantes em atividade de Educação Ambiental, na reserva da mata atlântica em Santa Catarina. Foto: Gwoehl/Wikipedia “Educação Ambiental envolve o entendimento de uma educação cidadã, responsável, crítica, participativa, onde cada sujeito aprende com conhecimentos científicos e com o reconhecimento dos saberes tradicionais, possibilitando a tomada de decisões transformadoras a partir do meio ambiente natural ou construído no qual as pessoas se inserem. A Educação Ambiental avança na construção de uma cidadania responsável, estimulando interações mais justas entre os seres humanos e os demais seres que habitam o planeta, para a construção de um presente e um futuro sustentável, sadio e socialmente justo.” MEC - Resolução nº 2/12 Embora alguns entendimentos restrinjam essa temática às Ciências da Natureza e à Geografia, a Educação Ambiental possibilita debater o conteúdo itinerário dos demais componentes cur- 24 Na prática Sugestão de encaminhamento Planejamento da atividade A oficina deve acontecer fora do espaço da escola ou da instituição educacional. Será, então, preciso tomar todas as providências para levar o grupo até um parque próximo. Escolha um parque da cidade ou região onde haja diversidade de seres vivos (plantas e animais) e que seja seguro para as crianças (verifique, por exemplo, se o parque é cercado, se há agentes no local que podem acompanhar e observar as crianças etc). É importante deixar as crianças livres nesse local, pois só assim podem explorar a área com certa autonomia. Preparação (durante o deslocamento até o parque) Explique ao grupo que a finalidade da visita ao parque é a observação dos seres que ali vivem (plantas e animais), e a relação que uns mantêm com os outros. Se considerar pertinente, fale brevemente sobre o local a ser visitado, por que ele foi escolhido e o que há nele. Mas não entre em muitos detalhes, porque o objetivo é que as(os) participantes descubram o que puderem pela observação sensorial. Além disso, a princípio, algumas informações são periféricas para este trabalho. Por exemplo: data de construção do parque, quem o fundou, por que ele foi construído, em que época etc. Essas informações podem ser divulgadas se as(os) estudantes manifestarem interesse nelas e, de preferência, após a visita. Dê as instruções da visita: • Formem duplas de trabalho; • Cada dupla receberá um bloquinho de notas, canetas e/ou lápis coloridos; • A atividade será um passeio pela área do parque; • Durante a visita, cada dupla deve observar os seres vivos, procurando perceber as suas características e a maneira como se relacionam uns com os outros; • Nessa observação, cada integrante da dupla pode registrar por escrito ou desenho as suas impressões, ideias, dúvidas etc. riculares. Se trabalhada de forma transversal em todas as áreas do conhecimento, a Educação Ambiental se torna um caminho para construir valores, conhecimentos, habilidades, competências e atitudes essenciais para a sustentabilidade e a qualidade de vida de todas(os) no planeta. 25 Peça ajuda às(aos) agentes do próprio parque ou outras(os) adultas(os) nessa visita. As crianças devem ficar à vontade, mas é importante monitorar a distância. Sempre que possível, uma(um) adulta(o) responsável deve ficar por perto para garantir que ninguém se envolva em situações perigosas ou arriscadas como, por exemplo, subir em uma árvore, pegar os animais vivos (como pequenos insetos), tocar em plantas desconhecidas etc. Oriente as crianças a registrarem as suas impressões desse passeio por meio de desenhos ou pequenas notas no bloquinho. Todas(os) devem ficar atentas(os) aos sons, texturas, cores, formas, cheiros e tudo o mais que puderem sentir e perceber, além de observarem especialmente como os seres vivos (plantas e animais) se relacionam uns com os outros e com o entorno (o relevo, as águas, as pedras etc). O passeio no parque Organize o grupo em um ponto do parque e combine o tempo para o passeio. Combine também uma hora em que todas(os) devem retornar ao ponto inicial. O retorno da atividade Ao retornar à escola ou à instituição educacional, combine com o grupo um dia para fazerem uma conversa avaliativa sobre o passeio. Nesse momento, as anotações do grupo podem ser comparadas e todas(os) devem poder falar sobre o que viram, ouviram e sentiram. Você pode provocar o grupo com algumas questões, para saber se foram capazes de perceber como os seres vivos do parque se relacionam uns com os outros e com o entorno. Por exemplo: • Alguém viu algum animal comendo algo? Se sim, o que ele comia? • Conseguiram perceber onde os animais observados moram (ninhos, árvores, solo, etc)? • Como são as plantas? Têm flores? Têm frutos? Faça por escrito o registro dessa conversa. Atividade extra Após a avaliação, utilize os desenhos feitos como forma de ilustrar o passeio. As notas e desenhos poderão compor um mural na escola ou na instituição educacional, que poderá ser visitado por outras crianças. Conteúdos na web Shanenawa, povo do pássaro azul. Acesse em Hora de avaliar Para ampliar 26 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 Vamos cartografar nossa escola? • Levantar o conhecimento prévio das(os) estudantes sobre as perspectivas de observação dos objetos, superfícies e paisagens (visão vertical, oblíqua e horizontal). • Promover a exploração da percepção espacial e as diferentes formas de representação dos espaços e dos objetos, além da elaboração e interpretação de legendas e noções de escala. • Desenvolver a percepção de proporcionalidade. • Cartolinas e papelões para suporte. • Bloquinhos de isopor ou objetos similares. • Embalagens (plástico e/ou madeira). • Palitos de sorvete. • Caixas de fósforo vazias. • Caixas tetra pak (leite ou suco - grandes e pequenas). • Tintas guache (cores primárias). • Canetas hidrocor. • Lápis de cor. • Cola. • Tesoura. • Pincéis. • Panos para limpeza dos pincéis. • Oficina de cartografia e construção de maquete da escola. Autor da oficina: Marcos Roberto dos Santos, professor e mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Explorar a percepção espacial. • Desenvolver habilidades para encontrar soluções cartográficas simples e diretas. • Promover o senso crítico, a capacidade de expressão oral e a conscientização sobre a dimensão ambiental. • Pensar coletivamente o espaço escolar e as suas possibilidades. • Anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 27 A arte da cartografia está presente em nossa cultura desde o início da história humana. Antes mesmo do desenvolvimento da linguagem, cartografar foi uma das primeiras habilidades desenvolvidas pela humanidade. Atualmente, recursos tecnológicos como as imagens de satélite permitem acesso fácil e rápido a qualquer ponto da Terra apenas com um clique. Trata-se de um avanço fantástico para o conhecimento de diferentes partes do mundo e do lugar onde vivemos. No entanto, é preciso preservar a nossa habilidade natural de explorar os espaços e os territórios por meio das ferramentas da percepção − o olhar, o escutar, o tocar −, que foram nossos primeiros recursos tecnológicos. Representar graficamente a percepção espacial é fundamental não só na aprendizagem da Geografia mas também em outros campos do conhecimento. O uso de imagens aéreas como as fotografias e as captações de satélite são recentes na cartografia. Antes disso, para produzir os mapas era preciso sair a campo e observar o meio de forma atenta para registrar e organizar o mundo em uma placa de barro, no pergaminho, no tecido ou no papel. Considera-se que o primeiro mapa da história tenha sido confeccionado pelo povo sumério cerca de 2.500 a.C. Em uma placa de barro cozido com inscrições em caracteres cuneiformes (escrita suméria) foi representado o norte da região mesopotâmica. Mas bem antes disso, a humanidade já explorava a representação espacial. Várias pinturas rupestres, por exemplo, ilustravam o caminho dos locais de caça. Início de conversa Pintura rupestre na Rocha de Bhimbetka, Índia, 9.000 a.C. Foto: reprodução O desafio desta oficina é explorar a percepção espacial e desenvolver habilidades para encontrar soluções cartográficas simples e diretas. Dessa forma, as(os) estudantes com poucos recursos tecnológicos podem resolver problemas de representação espacial. 28 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: roda de conversa Inicie com uma roda de conversa sobre como e o que as(os) alunas(os) observam dos lugares onde vivem: a casa, a rua, o bairro, a escola e a cidade. Destaque também a importância do meio ambiente para a qualidade de vida das pessoas: a produção de lixo, a poluição do ar, das águas, e como esses aspectos estão presentes no cotidiano e nos espaços de convivência. Em seguida, enfatize a importância de se conhecer os diferentes espaços da superfície terrestre (a rua, o bairro, a cidade, o Estado, o país, o continente) para o pleno exercício da cidadania e dos direitos na sociedade. Trabalhe com as(os) estudantes o poema de Alberto Caeiro (heterônimo do poeta português Fernando Pessoa): “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo… Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura… Nas cidades a vida é mais pequena Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu. Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.” Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, 1914. Pergunte às(aos) estudantes como veem os espaços à sua volta: a cidade, o bairro, a escola. Questione se conseguem se orientar, se localizar nesses espaços. Em seguida, apresente uma imagem de satélite a partir do aplicativo Google Earth, observando com a turma a área em que a escola se localiza. Acesse o Google Earth em Discuta o que pode ser observado em seu entorno (prédios, ruas, praças etc) e como a tecnologia moderna permite o acesso virtual a vários lugares da Terra, como museus, pontos turísticos, reservas naturais etc. Segundo encontro: trabalhando conceitos cartográficos Após essa introdução, apresente a ideia de construírem juntas(os) a representação cartográfica do espaço da escola sem o uso das tecnologias modernas. Para isso, é preciso trabalhar dois conceitos básicos: seleção cartográfica e escala. Antes é preciso aprimorar a capacidade de observação e sistematização em campo e, desse modo, permitir que as(os) participantes explorem de forma mais consistente as possibilidades que as tecnologias da informação oferecem no campo da cartografia. Fernando Pessoa em 1914. Foto: Wikipédia 29 • Seleção cartográfica: um mapa é uma abstração e uma síntese da realidade, por isso não pode representar tudo que existe na superfície mapeada. Assim, é fundamental identificar feições e objetos a serem mapeados. Discuta com a turma alguns critérios de seleção dos elementos observados na imagem do Google Earth; • Escala: relação de proporcionalidade dos objetos no mundo real e sua representação cartográfica no papel. Seleção cartográfica É a simplificação dos elementos topográficos extraídos da documentação básica para a escala final do trabalho. A seleção deve ser equilibrada e a densidade dos elementos topográficos a serem representados deve refletir as características básicas do local, mantendo as feições do terreno. A representação deve incluir todos os elementos significativos para a escala final do trabalho sem comprometer a legibilidade do mapa. Elementos importantes: • Hidrografia: detalhes naturais e/ou artificiais que têm a água como componente principal; • Planimetria: representação do terreno em um plano para mensurar distâncias, ângulos, áreas, perímetros e coordenadas. A seleção dos elementos planimétricos deve ser criteriosa e considerar localidades (cidades, vilas, povoados, lugarejos, núcleos e propriedades rurais) e sistema viário (rodovias e ferrovias que interligam as localidades selecionadas); • Altimetria: representa o relevo por meio de convenções cartográficas na forma de curvas de nível, escarpas etc; • Vegetação: essa representação se baseia na documentação topográfica, considerando matas, florestas, áreas de reflorestamento, culturas temporárias e permanentes, campos e mangues. Fonte: IBGE Foto: alegri/ 4freephotos Terceiro encontro: trabalho de campo Acompanhe a turma em uma vistoria nas dependências da escola, sobretudo em sua parte externa. O objetivo é elaborar uma planta baixa da escola (parte edificada), com a separação das áreas internas principais (pátio, salas de aula e quadras) e externas (muros, portões e ruas laterais). Utilize a trena para fazer a medição das principais dimensões do edifício da escola, paredes, corredores, muros, quadras etc. Ao final dessa vistoria, as(os) estudantes devem elaborar, individualmente, um desenho na forma de uma planta baixa da escola e do seu entorno. Em seguida, proponha a formação de grupos de trabalho (3 ou 4 estudantes). Os grupos devem, em primeiro lugar, fazer uma avaliação conjunta dos desenhos elaborados e, com base na produção de PARA APROFUNDAR 30 Maquete sustentável Nos encontros anteriores, peça que cada estudante traga os materiais para a elaboração da maquete (veja lista no início da oficina). O ideal é trabalhar com materiais reutilizáveis, papel, plástico, madeira e metal. Com isso é possível inserir uma discussão sobre a questão ambiental do consumo sustentável, produção de resíduos sólidos e descarte adequado e inadequado, entre outros tópicos. Além disso, a proposta estimula a responsabilidade comum com relação ao meio ambiente e à criatividade no uso dos seus recursos. Imagem: Bank of Planet/ reprodução Oriente a turma na seleção, separação e recorte dos materiais e sua preparação para o uso na construção da maquete (pintura e texturização das superfícies e objetos). Na folha de cartolina, as(os) estudantes devem colar os objetos representando os espaços da escola (edifício, quadras, horta etc) e a área de entorno (ruas, parques etc). Por fim, procure mediar a elaboração de legendas. É necessário ressaltar a importância da legenda como recurso cartográfico e como chave de interpretação dos elementos presentes nos mapas e na maquete. Nesta proposta, há três momentos de avaliação: • O primeiro refere-se à representação dos elementos observados durante a vistoria da escola. Aqui são avaliadas a capacidade de percepção espacial e a habilidade motora de representação espacial; • O segundo momento ocorre no trabalho em grupo, quando as(os) integrantes, coletivamente, analisam as ilustrações das(os) colegas para em seguida elaborar uma versão final da representação; • O terceiro momento pode acontecer quando os grupos apresentam as suas maquetes expondo à turma os resultados do trabalho. É possível ainda fazer uma avaliação diagnóstica de competências e habilidades associadas à oralidade e à compreensão da organização do espaço geográfico e dos procedimentos de observação e registro. Para terminar, é interessante realizar uma roda de conversa com os grupos para a avaliação da atividade como um todo, do envolvimento dos grupos e da participação de todas(os) as(os) alunas(os). A finalização pode ser por meio de um pequeno texto coletivo no qual as(os) estudantes apresentam as suas impressões sobre a experiência. Expectativas de aprendizagem Durante e ao final do processo, espera-se que as(os) estudantes: • Apropriem-se de procedimentos de observação sistemática e representação espacial; • Desenvolvam habilidades associadas à representação cartográfica do espaço por meio da observação e descrição; cada integrante, elaborar uma versão final da planta da escola, que será utilizada como base para a construção da maquete. Hora de avaliar 31 Referências BLOG DRONES & ENGENHARIA. Altimetria e Planimetria: entenda a diferença - FONSECA, Eugênio Pacceli da. Cartografia: mapas e arte - Acesse em NOGUEIRA, Amélia R. B. Mapa mental: recurso didático no ensino de Geografia no 1º grau. Dissertação de mestrado. São Paulo: DG-USP, 1994; SIMIELLI, M. Elena Ramos et al. Do plano ao tridimensional: a maquete como recurso didático - Acesse em • Apropriem-se de procedimentos de execução de trabalhos em equipe; • Desenvolvam senso crítico, capacidade de expressão oral e conscientização sobre a dimensão ambiental. Para ampliar 32 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 6 Mitos e lendas no ensino de Ciências • Trabalhar conteúdos de Ciências de forma transdisciplinar, contemplando nas aulas questões sobre identidade, cultura, tradição e literatura. • Conhecer um pouco da cultura do Brasil e do mundo por meio da leitura de lendas e mitos de diversos povos e tradições. • Relacionar mitos e lendas ao seus locais de origem por meio do estudo das características socioambientais destes locais. • Desenvolver alternativas de trabalho no ensino de Ciências. • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Livros sobre lendas e mitos do Brasil e do mundo. • Livro de Ciências como suporte didático de conteúdo específico. • Mapas políticos. • Vídeos, documentários e filmes. • Pincéis. • Tintas. • Lápis de cor. • Canetinhas. • Retalhos, agulha e linha (para a produção da colcha de retalhos da avaliação). • Proposta transdisciplinar no currículo de Ciências, explorando o diálogo com a literatura, identidade e diversidade cultural. Autora da oficina: Carla Wanessa A. Caffagni, professora de Ciências e doutora em Educação pela USP. Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Promover diálogos entre o pensamento científico e outras formas de compreensão e explicação da natureza, contemplando a identidade e a diversidade cultural. • Anos finais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de leitura ou sala de informática. • 1 encontro semanal durante 1 trimestre. Voltar para o sumário 33 Vivemos uma mudança de paradigma na Educação. Novas(os) pensadoras(es) da área propõem a busca de formas de trabalho descoladas dos objetivos conteudistas e que se dê prioridade à formação integral da(o) estudante, possibilitando a discussão e a reflexão sobre valores, sentimentos e a busca pela conciliação entre o que se aprende na escola e o que se vive. Mas como fazer isso de forma a contemplar os conteúdos presentes no currículo e ainda desenvolver uma prática transversal dentro da organização disciplinar da escola? A proposta a seguir é orientada para o trabalho com alunas(os) dos anos finais do Ensino Fundamental, na área de Ciências, mas pode ser adaptada a turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental, de acordo com a abordagem da(o) professora(or). Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Preparação para a roda de histórias A ideia inicial é trabalhar com as(os) estudantes a origem do conhecimento e, com base nisso, suscitar reflexões sobre a produção do conhecimento popular e tradicional e, posteriormente, do conhecimento científico. Primeiro, propõe-se que se discuta com a turma a importância dos mitos e das lendas entre os povos antigos, na busca de explicações sobre a origem do mundo, a organização dessas sociedades e dos seus valores sociais, éticos e filosóficos. Em um segundo momento, sugere-se que as(os) estudantes tragam livros sobre histórias e lendas de diversas regiões do mundo. Geralmente, as bibliotecas escolares possuem muitos exemplares de livros com estes temas. Há vários títulos que refletem a diversidade cultural presente em nosso país 34 Aconselhamos que a(o) professora(or) organize grupos de 3 ou 4 alunas(os). Depois, distribua os livros entre os grupos e peça que cada estudante consulte a obra com calma e escolha uma narrativa para apresentá-la à turma. Oriente-as(os) que leiam o conteúdo e façam um desenho com base nessa leitura. O desenho será a ilustração da história que cada uma(um) vai narrar para as(os) colegas em uma roda de contação de histórias. Combine com elas(es) um tempo adequado para que preparem a apresentação e marque a data do evento. De acordo com o professor e escritor indígena Daniel Munduruku: “Em tempos antigos, homens e mulheres sentavam-se ao redor do fogo para contar as suas façanhas diárias: a luta contra um animal feroz, o susto de encontrar um ser da floresta. Narrar o ocorrido gerava a certeza de um pertencimento ao universo em que se vivia. Naquele momento, todos compreendiam que o universo – contemplado nas noites sem lua – era uma infinita teia.” Roda de histórias e pesquisa No dia do evento, prepare o espaço com a turma de forma a torná-lo bonito e aconchegante. Se possível, traga ou peça para as(os) estudantes trazerem almofadas, tecidos coloridos e objetos relacionados ao universo das narrativas, além dos desenhos criados pelas(os) alunas(os). Você pode selecionar músicas instrumentais que tenham relação com as histórias a serem apresentadas ou trazer alguns instrumentos de percussão (tambores, chocalhos, maracas, reco-recos etc) para criar o ambiente sonoro. Depois de ouvirem todas as narrativas, peça que as(os) alunas(os) escolham uma entre as apresentadas. A escolha deve levar em consideração o encantamento e a empatia despertada na turma. É importante que a(o) professora(or) evite interferências nesse momento, para que as(os) alunas(os) se sintam à vontade na escolha. Depois disso, parte-se para a pesquisa sobre o local de origem dessa narrativa. Sugerimos uma investigação simples em que as(os) estudantes busquem levantar informações sobre o local (geografia, ambiente, cultura, história etc). A(O) professora(or) pode complementar trazendo materiais como mapas, vídeos e textos que contribuam para esse estudo. Ao final dessa pesquisa, a(o) professora(or) deve selecionar o conteúdo de Ciências que pretende trabalhar, buscando contextualizar o conteúdo específico da área ao local estudado pelas(os) participantes. Um exemplo prático: na escolha de uma lenda de origem do povo banto, pode-se pesquisar sobre o local onde vive essa população, sua história, cultura e a sua relação com o ambiente. Com base nisso, a(o) professora(or) pode trabalhar conteúdos como: • Caracterização de ecossistemas; • Importância dos rios para uma comunidade tradicional; • Relação deste povo com os astros, associando essa questão com o estudo da astronomia. As questões culturais também devem aparecer. As(Os) estudantes possivelmente conseguirão visualizar como a estrutura social, política e econômica de um povo está diretamente ligada à forma como essa população se relaciona com o lugar onde vive, e como as características do lugar influenciam na cultura dessas pessoas. A mulher negra, de Albert Eckhout, 1641. Wikipédia 35 É importante frisar que a leitura de mitos e lendas traz para sala de aula a possibilidade de um olhar mais humanitário sobre o conhecimento. Esse tipo de literatura costuma contemplar aspectos do comportamento humano e é preciso que a(o) professora(or) também abra espaço para esse tipo de discussão. Essa abordagem pode, inclusive, permear aspectos históricos de um povo, como violência e domínio sociocultural. Sugerimos que a avaliação seja processual e nela sejam considerados diversos aspectos, como o interesse, a participação, a produção textual e a imagética. Uma proposta é a confecção de uma colcha de retalhos formada por quadros pintados em tecido com imagens que representam os textos lidos. Elas devem estar em consonância com a compreensão do universo onde a narrativa foi originada. A(O) professora(or) pode trabalhar uma narrativa por trimestre, e ao final de cada narrativa as(os) estudantes, organizadas(os) em grupos de 3 ou 4 pessoas, produzem um quadro. Ao longo do ano, a turma vai costurando os quadros uns aos outros para formar a colcha de retalhos. Além dessa produção, pode-se pedir que as(os) alunas(os) elaborem seminários ou apresentações sobre aspectos específicos ligados aos conteúdos de Ciências ou ainda às tradições culturais do povo estudado, de acordo com o que a(o) professora(or) pretende priorizar em seu curso. Outra sugestão é a avaliação do caderno, em que a(o) professora(or) pode acompanhar a produção diária dos registros feitos em sala. Conteúdos na web Museu Afro Brasil: memória, história e arte brasileira e afro-brasileira - Acesse em Kiriku e a feiticeira (trailer). Direção: Michel Ocelot. Ano de lançamento: 1998 (França/Bélgica) - Acesse em A viagem de Chihiro (trailer). Direção: Hayao Miyazaki. Ano de lançamento: 2001 (Japão) - Acesse em O povo brasileiro (trailer). Direção: Isa Grinspum Ferraz. Ano de lançamento: 2000 (Brasil) - Acesse em Referências ANDERSEN, Hans Christian. Andersen e suas histórias. Adaptação Regina Drummond. Ilustr. André Neves. São Paulo: Ave-Maria, 2005; ______. O rouxinol e o imperador da China. Tradução e adaptação Cecília R. Lopes. Ilustr. Cláudia Scatamacchia. São Paulo: Global, 2005. (Clássicos Universais); BAG, Mário. 13 lendas brasileiras. Ilustr. Mário Bag. São Paulo: Paulinas, 2005. (Mito & magia); BAGNO, Marcos. A lenda do Muri-Keko. Ilustr. Alê Abreu. São Paulo: SM, 2005. (Barco a Vapor); BRENMAN, Ilan. As narrativas preferidas de um contador de histórias. Ilustr. Fernando Vilela. São Paulo: Landy, 2005; Hora de avaliar Para ampliar 36 HIRATSUKA, Lúcia. Histórias tecidas em seda. São Paulo: Cortez, 2008; LIMA, Maurício; BARRETO, Antônio. O jogo da onça e outras brincadeiras indígenas. Ilus. Dedé e Leleu. São Paulo: Panda Books, 2005; MARTINS, Adilson. Lendas de Exu. Ilustr. do autor. Rio de Janeiro: Pallas, 2005; MUNDURUKU, Daniel. Histórias que eu li e gosto de contar. São Paulo: Callis, 2004; SILVA, Conceil Corrêa da. A colcha de retalhos. São Paulo. Ed. do Brasil, 2010. 37 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO: Oficina 7 Navegar é preciso • Folhas de papel sulfite. • Tesouras. • Canetas ou lápis. • Ímãs em barra. • Pregos ou agulhas metálicas. • Linhas. • Palitos de picolé. • Recipientes pequenos (copos de plástico transparente). • Fita adesiva. • Considerar o conhecimento prévio das(os) alunas(os) sobre as diferentes formas de orientação, tais como: orientação pelas estrelas (Cruzeiro do Sul), pelo Sol e pela Lua. • Conhecer o princípio de funcionamento da bússola e do GPS. • Explorar a percepção espacial, formas de orientação no espaço, compreensão, elaboração e uso de um instrumento simples de navegação (bússola). • Desenvolver habilidades para elaborar um instrumento de orientação espacial. • Refinar a percepção espacial e o senso de orientação. • Oficina de orientação no espaço geográfico e navegação cartográfica. Autor da oficina: Marcos Roberto dos Santos, professor e mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Apropriar-se de procedimentos de observação e orientação no espaço, utilizando a bússola, e de uso e preenchimento de dados em tabelas. • Desenvolver habilidades motoras e cognitivas associadas à elaboração e à construção de um equipamento simples de navegação. • Entender a necessidade do censo de orientação espacial. • Reforçar a conscientização sobre a importância do trabalho em equipe. • Anos finais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de informática e ambiente externo. • 2 a 4 aulas de 45 a 50 minutos cada. Voltar para o sumário 38 Como eu faço para chegar a um determinado lugar? Como saber em qual ponto de ônibus devo descer e depois em qual rua devo entrar? Perder-se é uma sensação muito ruim, e, para evitar essa situação, temos que desenvolver o sentido de orientação. É o que vamos praticar nesta proposta de atividade. Quantas vezes nos sentimos um tanto perdidos sem saber para que lado ficam o Norte e o Sul? Quantas vezes nos deparamos com situações em que é necessária orientação para saber se estamos nos aproximando ou nos distanciando do lugar onde queremos chegar? Isso é fundamental não apenas para a Geografia, mas também para nos localizarmos e nos movermos no bairro, na cidade ou no campo. Podemos nos orientar no espaço de diferentes maneiras. Uma delas é pela observação das características da paisagem, por meio de referências fixas, como torres, edifícios, placas de rua etc. Também podemos nos orientar pelos astros. Conhecendo os movimentos do Sol e da Lua, por exemplo, é possível identificar pontos conhecidos e utilizá-los para a nossa localização no espaço. Além disso, também podemos recorrer aos instrumentos que permitem identificar a nossa posição e a direção dos lugares ao nosso redor. Existem desde instrumentos mais antigos e simples, como a bússola, até aparelhos mais sofisticados e modernos, como o receptor GPS (Global Positioning System – Sistema de Posicionamento Global), equipamento que permite identificar com precisão o local onde nos encontramos, utilizando informações obtidas de satélites situados na órbita do planeta Terra. A capacidade de se orientar no espaço terrestre foi uma das principais conquistas do ser humano, que lhe permitiu dominar novos territórios, caçar, coletar e produzir alimentos, obter água, e, dessa forma, sobreviver e evoluir ao longo da história. Nesta oficina, propomos trabalhar com as(os) estudantes a orientação no espaço geográfico e a prática da navegação cartográfica, isto é, o deslocamento orientado no espaço utilizando conhecimentos e ferramentas de localização e orientação. Vamos entender como é isso? Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Trabalhando conceitos e ferramentas de orientação Inicie a atividade perguntando às(aos) alunas(os) em que direção fica o Leste e como elas(es) chegaram a essa resposta. A partir daí, questione sobre os demais pontos cardeais (Norte, Sul e Oeste). Verifique o grau de dificuldade que as(os) estudantes apresentam para identificar as direções e os recursos que utilizam para descobrir ou determinar essas informações. Apresente a elas(es) uma bússola e pergunte como funciona e para que serve. Explique como utilizar esse instrumento e deixe que o manuseiem, orientando-as(os) a descobrir alguns pontos cardeais e colaterais. 39 Em seguida, trabalhe outras formas de orientação, por meio da observação da natureza, que auxiliam na identificação das direções. Por exemplo: • Com base no movimento de rotação da Terra: o Sol nasce sempre a Leste, assim, com a mão direita apontada para essa direção e a esquerda para a direção oposta (Oeste), em nossa frente estará o Norte e em nossas costas estará o Sul; • Na observação de aspectos da paisagem natural: geralmente, em áreas florestadas o lado mais úmido dos troncos das árvores ou pedras, onde aparece o limo ou o musgo, é o menos exposto à luz solar e indica o Sul, no caso do hemisfério Sul; • Na análise das fases da Lua: a Lua em sua fase crescente tem o formato de um “C” sendo as suas duas pontas voltadas para o Leste; já na minguante tem o formato de um “D” com as respectivas pontas voltadas para o Oeste. Orientação pelo Sol Na sequência, questione sobre como as(os) estudantes veem o espaço à sua volta: a cidade, o bairro, a escola etc. Pergunte se elas(es) conseguem se localizar nesses espaços e quais são as suas principais dificuldades. Em seguida, apresente uma imagem de satélite por meio do aplicativo Google Earth, mostrando a área e a localização da escola e destacando elementos do entorno (prédios, ruas, praças etc). Acesse o Google Earth em Não informe que se trata da área da escola, deixe que investiguem e pergunte se elas(es) reconhecem a região. Questione sobre o que pode ser observado na imagem e como a tecnologia moderna favorece a orientação no espaço terrestre. Construindo uma bússola Organize a turma em quartetos para a produção de uma bússola. Providencie antecipadamente os materiais necessários para esse trabalho (veja a lista no início desta oficina). Siga o passo a passo: Fases da Lua e orientação espacial 1. Recorte a folha de papel nas mesmas dimensões do fundo do recipiente (copo de plástico transparente); 2. Desenhe os quatro eixos sobrepostos para indicar as direções (Norte-Sul, Leste-Oeste, Nordeste-Sudoeste, Noroeste-Sudeste) fixando o papel no fundo do recipiente plástico; 3. Coloque o palito de picolé sobre a borda do recipiente plástico e fixe- -o com fita adesiva (é preciso ficar bem fixado); 4. Amarre uma das pontas da linha no centro do palito e a outra no meio do prego ou da agulha, que deve estar centralizado para manter o equilíbrio. O prego ou a agulha ficarão livres e suspensos dentro do recipiente plástico, sem tocar o fundo; 5. Pinte uma das extremidades para indicar o “Norte magnético”; 6. A bússola está pronta. Agora é necessário imantar o prego ou a agulha. Para isso, esfregue o ímã no prego ou na agulha e a deixe livre para que ela naturalmente aponte para o Norte. 40 Agora que as bússolas estão prontas… Convide as(os) alunas(os) para um desafio: participar de uma corrida de navegação. Nessa corrida, o importante não é apenas chegar, mas também utilizar a bússola construída por elas(es). A ideia é percorrer determinado percurso no entorno da escola obedecendo as orientações descritas em um roteiro de navegação previamente estabelecido pela(o) professora(or). Providencie uma imagem retirada do Google Earth com a localização da escola e do seu entorno. Nessa imagem, assinale um trajeto simples no entorno da escola e indique pontos e caminhos a serem percorridos pelas(os) alunas(os), organizadas(os) em grupos. O objetivo da corrida de orientação é percorrer o percurso predeterminado e assinalar a direção trilhada em cada um dos trechos do itinerário total. Para isso, cada grupo receberá uma tabela na qual, com o auxílio da bússola, marcará a direção tomada no percurso do trajeto. Os grupos farão o percurso acompanhados da(o) professora(or), e o vencedor da corrida será o grupo que trilhar o trajeto no menor tempo e com o menor número de erros no preenchimento da tabela. A avaliação da atividade pode ocorrer em três etapas: 1. Verificação dos conhecimentos prévios das(os) alunas(os) em relação às formas e ao sentido de orientação; 2. Participação e envolvimento na elaboração da bússola; 3. Execução da corrida de navegação: o importante é as(os) alunas(os) conseguirem utilizar a bússola corretamente ao preencher a tabela de navegação. É importante também promover uma roda de conversa para que as(os) estudantes compartilhem as suas impressões sobre a atividade e avaliem o que aprenderam durante esse processo. Hora de avaliar Para ampliar Referências ARCHELA, R. S., BARROS, M. V. F., MARQUIANA, F. V. B. G. Orientação no mapa e pelo mapa. Revista do Departamento de Geografia da Universidade de Londrina, v. 13, nº 2, 2003; LUNKES, R. P.; MARTINS, G. Alfabetização cartográfica: um desafio para o ensino de Geografia. Acesse em 41

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Formação continuada

HQs e Formação Docente

Conheça uma oficina para explorar as histórias em quadrinhos como recurso didático. A proposta apoia a formação de professoras(es) e educadoras(es) sociais, ampliando repertórios e metodologias em sala de aula.

1 HQs e Formação Docente Oficina para explorar a linguagem das histórias em quadrinhos na educação 2 3 Investir na formação continuada de educadoras(es) é essencial para garantir práticas pedagógicas mais potentes, sensíveis e conectadas aos desafios contemporâneos da educação. A oficina apresentada neste material, voltada a professoras(es) e educadoras(es) sociais, foi pensada para apoiar o desenvolvimento profissional e ampliar o repertório teórico e metodológico em sala de aula. Esta oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As orientações visam apoiar o planejamento das educadoras e educadores, ao mesmo tempo que abrem espaço para criações autorais, adaptações sensíveis e práticas conectadas com os contextos vividos por cada turma. Este material nasce da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que esta oficina contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos. Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 4 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO PÚBLICO DURAÇÃO Oficina 1 HQ na sala de aula • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Datashow. • Conhecer a origem e a evolução das HQs e sua contribuição para a sala de aula, além de dicas sobre como trabalhar com elas em oficinas pedagógicas com crianças e adolescentes. • Videoaula com o quadrinista Rodrigo Bueno sobre histórias em quadrinhos na sala de aula. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Aprender a usar a linguagem das HQs como forma de expressão no trabalho com crianças e adolescentes, ampliando seu repertório cultural. • Professoras(es) e educadoras(es) sociais. • Sala de aula, sala de atividades, sala de leitura, biblioteca ou outro ambiente onde se possa projetar vídeos. • 1 encontro de 1h30. 5 Na prática Sugestão de encaminhamento Possibilidades de trabalho com o vídeo O vídeo HQs na sala de aula é composto por 5 blocos, de curta duração, a saber: • Bloco 1 - Apresentação do cartunista (8min28s); • Bloco 2 - História das histórias em quadrinhos (4min27s); • Bloco 3 - Convenções das linguagens (9min56s); • Bloco 4 - Criação do personagem (5min25s); • Bloco 5 - Dicas de sala de aula (9min20s). Existem várias possibilidades de se trabalhar com o vídeo. A(O) coordenadora(or) pedagógica(o) da escola ou da instituição educacional pode, por exemplo, projetar os cinco blocos, um a um, fazendo pequenos intervalos entre eles, para que o grupo de professoras(es) e/ou educadoras(es) sociais sociais possa comentar e registrar o que consideraram de mais significativo em cada um dos blocos, subsidiando-se para a discussão final, no coletivo. E se? Se a instituição não contar com uma(um) coordenadora(or) pedagógica(o), o próprio grupo pode organizar a pauta, coletivamente, e indicar uma(um) das(os) participantes para fazer a coordenação do encontro. Também é possível dividir as(os) profissionais em grupos e propor que cada grupo assista a um ou dois blocos do vídeo para socializarem os assuntos, posteriormente, entre si. O importante é que discutam os conteúdos tratados, de forma que saiam do encontro com mais clareza e segurança de como trabalhar essa linguagem com as suas turmas de crianças e/ou adolescentes. Sugere-se que cada grupo indique uma comissão para realizar os registros das discussões e das propostas de trabalho criadas a partir dos blocos do vídeo, para serem reproduzidos ou arquivados em um computador e disponibilizados para todas(os). Os blocos do vídeo e seus conteúdos Bloco 1 - Apresentação do cartunista O primeiro bloco diz respeito à trajetória do cartunista Rodrigo Bueno. Trata das suas descobertas e reflexões, como educador social e professor, na interação com as HQs e as crianças e adolescentes. Certamente, muitas(os) professoras(es) e/ou educadoras(es) sociais se identificarão com situações trazidas pelo autor. Bloco 2 - História das histórias em quadrinhos No segundo bloco, Rodrigo Bueno aborda o nascimento dessa linguagem artística, sua relação com a linguagem verbal e a evolução ocorrida através dos tempos. Acesse em 6 Bloco 3 - Convenções das linguagens No terceiro bloco, o autor apresenta várias convenções técnicas utilizadas pelas(os) quadrinistas, fazendo observações a respeito de cada uma delas e ensinando como a(o) professora(or) e/ou educadora(or) social pode fazer o melhor uso dessas convenções no trabalho com as crianças e as(os) adolescentes. Bloco 4 - Criação do personagem No quarto bloco, o cartunista fala da importância do personagem para as HQs e do seu processo de criação, orientando a(o) professora(or) e/ou educadora(or) social em como proceder para que as crianças e as(os) adolescentes se sintam motivadas(os) a criar o seu. Acesse em Bloco 5 - Dicas de sala de aula O quinto bloco se destina a orientar a(o) professora(or) e/ou educadora(or) social a fazer uso das HQs em situação de sala de aula, com estratégias lúdicas, adequadas e respeitosas. Acesse em Hora de avaliar Para ampliar Após a projeção dos cinco blocos do vídeo, as(os) professoras(es) e/ou educadoras(es) sociais, em grupos, devem avaliar as possibilidades de uso das HQs na sala de aula, retomando os aspectos centrais apresentados em cada bloco, como: • Por que trabalhar com HQs na sala de aula? • Que papel tem o personagem na produção de quadrinhos? • Quais são as convenções técnicas que se usam para identificar diferentes planos (alto/baixo/médio); proximidade (perto/longe); tamanho (grande/pequeno, alto/baixo); sentimentos diversos (alegria/ternura/tristeza/raiva)? • Quais cuidados a(o) professora(or) e/ou educadora(or) social deve ter em relação às produções das crianças, adolescentes e jovens? Atividade extra Pode-se organizar uma oficina de HQ com profissionais de outras escolas e/ou instituições educacionais próximas, em encontros de formação ou com a comunidade. Neste caso, pode-se contar com a participação da turma, orientada pelas(os) professoras(es) e/ou educadoras(es) sociais. A aproximação com a linguagem específica das HQs deve ser bem cuidada, com a disponibilização de muitas revistas e livros, com personagens de diferentes épocas e lugares distintos. A possibilidade da participação de profissionais da área é muito oportuna e produtiva. 7 Conteúdos na web Laerte (Manual do Minotauro) - Acesse em Fernando Gonsales (Níquel Náusea) - Acesse em Fábio Moon e Gabriel Bá - Acesse em Gustavo Duarte - Acesse em 8

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Educação financeira

Educação financeira: sonhos que se planejam

A educação financeira proporciona o planejamento de futuro e de projetos de vida. Acesse oficinas com propostas ligadas à realidade das(os) estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio e EJA.

1 Educação financeira: sonhos que se planejam Oficinas para organizar orçamentos e priorizar projetos de vida 2 3 Aprender a lidar com o dinheiro de forma consciente, crítica e responsável é um saber fundamental para o exercício da cidadania. Promover a educação financeira desde cedo contribui para que crianças, adolescentes e jovens desenvolvam autonomia, planejem seu futuro e compreendam os impactos das escolhas de consumo em suas vidas e nas comunidades em que vivem. As oficinas reunidas neste material, voltadas aos anos finais do Ensino Fundamental, ao Ensino Médio e à Educação de Jovens e Adultos, têm como propósito abordar esses temas de maneira lúdica, participativa e conectada à realidade das(os) estudantes. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As atividades foram desenhadas para apoiar o trabalho das educadoras e educadores no planejamento de experiências didáticas que favoreçam a compreensão dos conceitos e a aplicação dos saberes no cotidiano das(os) estudantes, respeitando seus ritmos e contextos. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas pedagógicas e para ampliar, junto às(aos) estudantes, o debate sobre consumo, trabalho, planejamento e justiça social. E que possamos formar sujeitos mais conscientes e preparados para tomar decisões com responsabilidade e solidariedade. Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - O trabalho, o dinheiro e o sustento da vida 5 Oficina 2 - Poupança para projeto coletivo 13 Oficina 3 - Crédito: é preciso saber usar 18 Oficina 4 - À vista ou a prazo? 26 Oficina 5 - Meu primeiro emprego, meu primeiro salário 31 Oficina 6 - Refletindo sobre o consumo 36 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 O trabalho, o dinheiro e o sustento da vida • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel jornal ou papel pardo. • Pincéis atômicos. • Sprays coloridos. • Dicionários. • Compreender que o dinheiro é fruto do trabalho para a maior parte da população do mundo, por isso deve ser bem cuidado, tanto na esfera pessoal quanto na social. • Atividade de reflexão sobre a relação trabalho e dinheiro. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Valorizar o trabalho como produtor de riqueza para a sociedade e de bem-estar pessoal e social. • Encarar o dinheiro como resultado do esforço pessoal e identificar as diferentes fontes de renda. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de atividades, sala de informática e território. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 6 A renda das pessoas, ou seja, o dinheiro com que contam para o seu sustento (alimentação, moradia, saúde, educação, transporte, lazer), pode ter diferentes origens: do trabalho, do aluguel de bens e equipamentos móveis e imóveis, rurais ou urbanos, ou da aplicação financeira de dinheiro excedente (nos bancos ou em ações nas Bolsas de Valores, por exemplo). Há também fontes ilícitas, criminosas, como a sonegação de impostos que enriquecem poucas pessoas em detrimento de benefícios que esses impostos trariam à população em geral, a partir do seu investimento em políticas públicas. O tráfico de drogas, de pessoas, de órgãos e de influência são outras fontes de renda ilícita que depreciam a dignidade e o direito de todas(os). Felizmente, a maioria das pessoas vive do rendimento de seu trabalho, dedicando a ele muitas horas diárias, e colocando em risco, muitas vezes, a própria saúde. Ganhar o sustento custa esforço. Por isso, o rendimento que o trabalho produz tem que ser utilizado com cuidado, planejamento e definição de prioridades, tanto na esfera pessoal e familiar quanto na social. Dessa forma, questões como o que é imprescindível ou não para a sobrevivência, o que pode esperar ou não para ser adquirido, têm que ser discutidas pelas famílias, constantemente, para garantir o básico e fundamental a todas(os) e o acesso, cuidadoso e seguro, a outros bens desejados. Envolver cada uma(um), inclusive crianças e adolescentes, na definição de prioridades contribui para educá-las(os) para o uso consciente do dinheiro, que “não nasce em árvore” nem “é capim”. Além da preocupação com a estabilidade financeira das famílias, garantindo o acesso aos bens básicos, a questão social e a ecológica precisam ser consideradas. No primeiro caso, ao cuidar do dinheiro público, participando de decisões coletivas e acompanhando os gastos das administrações municipal, estadual e federal, que é responsabilidade de todas(os). Da mesma forma, é responsabilidade de todas(os) o cuidado com o planeta, cujos recursos não são inesgotáveis. A exploração para o consumo tem produzido consequências desastrosas que influenciam o clima, a água e a vegetação da Terra. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: conversando sobre dinheiro Receba as(os) estudantes formando uma roda inicial com os dicionários dispostos no centro dela. Comece a oficina, propondo as seguintes questões: • Já escutaram, dos seus pais ou de outras pessoas adultas, as expressões idiomáticas “dinheiro não nasce em árvore” ou “dinheiro não é capim”? • Em quais situações ouviram tais expressões? Dê um tempo para que contem as histórias, se quiserem. Provavelmente, irão se referir a situações em que elas(es) próprias(os) ou outras pessoas solicitaram a alguém a aquisição de algum objeto 7 Salário: conheça a origem da palavra O dinheiro, como o conhecemos hoje, é resultado de uma longa evolução na história da humanidade. No início, não havia a moeda (dinheiro): praticava-se o escambo, ou seja, a simples troca de uma mercadoria por outra, sem se pensar na equivalência de valor. Com o tempo, algumas mercadorias, pela sua utilidade, passaram a ser mais procuradas do que outras, assumindo a função de moeda (dinheiro), circulando como elemento trocado por outros produtos e servindo para avaliar-lhes o valor. Eram as moedas–mercadorias. O gado, principalmente o bovino, foi um dos itens mais utilizados para esse fim; apresentava a vantagem da locomoção própria, reprodução e prestação de serviços, embora corresse o risco de doenças e de morte. Os cauris (búzios ou conchas) foram utilizados como moedas por um longo período da história (por volta do séc. XI a.C. até o séc. XIX) em algumas regiões da África, em razão de sua abundância nesses locais. O sal foi outra moeda-mercadoria. Era de difícil obtenção, principalmente no interior dos continentes, e muito utilizado na conservação de alimentos. Vem daí a origem da palavra salário, que se refere à remuneração paga à(ao) empregada(o) pela(o) empregadora(or) em troca do seu trabalho. PARA APROFUNDAR considerado caro, desnecessário ou dispensável. Discutam, então, quais mensagens tais sentenças transmitem. • Por que a pessoa a quem foi feita a solicitação responderia com essas expressões? • Seria essa uma pessoa sovina ou será que teria outras razões para responder assim? • Quais seriam essas razões? Vamos pensar? Provavelmente, farão referências à proporção entre o que a pessoa recebe de salário e quanto e como pode gastá-lo. Afinal, para a maioria das pessoas, o trabalho é a única fonte de renda e exige esforços; às vezes, o salário é conseguido com muito suor e risco e nem sempre atende às necessidades básicas das(os) trabalhadoras(es). Pergunte: • Sabem de onde vem a palavra salário? • Já ouviram falar ou leram algo a respeito dessa palavra/verbete? Deixe que levantem suas hipóteses. Sugira que consultem o dicionário para buscar o significado da palavra. Em seguida, explique a origem desse vocábulo. 8 Explique que há também outras fontes de renda que não advêm do trabalho, mas do aluguel de terras ou de equipamentos móveis e imóveis, assim como de aplicações financeiras (em bancos, em ações etc). Para entender melhor a relação entre trabalho e dinheiro e valorizar aquele que é fruto do trabalho, proponha que façam um pequeno levantamento sobre a origem do dinheiro da família das(os) estudantes. Organize com elas(es) um roteiro com perguntas para entrevistar as(os) adultas(os) de cada família, como: • Profissões exercidas; • Horas trabalhadas por semana; • Existência de outra fonte de renda além do trabalho; • Recebimento de benefícios sociais como bolsa-família; • Seguro desemprego. Veja abaixo um modelo de ficha a ser utilizada pelas(os) estudantes na entrevista: Combine uma data para elas(es) entregarem as fichas preenchidas. Oriente que deixem claro às famílias de que se trata apenas de um estudo para a turma. 9 E se? Se houver dificuldade ou resistência de algumas famílias para fornecerem os dados, as(os) estudantes não devem insistir, pois podem procurar mais informações na internet, em pesquisas sobre profissões realizadas por órgãos como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo encontro: conhecendo quanto tempo, em média, se trabalha Na data marcada, com as fichas preenchidas, organize a turma em grupos e peça que compartilhem as informações coletadas item por item. Dê um tempo (cerca de 30 minutos) para isso. Faça o registro sistematizando as informações trazidas pelo grupo. Você pode propor a elaboração de um cartaz para publicizar esses dados, conforme o modelo acima. A partir desse registro, sugira que os grupos se reúnam novamente para identificar e discutir de onde vem o sustento da maioria das famílias, observando quantas horas as pessoas precisam trabalhar por mês para receber o seu salário. Dê 15 minutos para essa conversa. Após as discussões entre os grupos, peça que voltem ao encontro com todas(os) as(os) participantes para socializarem as suas ideias e conclusões, desta vez, no coletivo. Enquanto elas(es) falam, anote as principais ideias em outro cartaz, que será a síntese da pesquisa. Encerradas as explanações, confira com elas(es) se o registro que você fez corresponde ao que verbalizaram ou se há necessidade de reformulações ou inclusões. Guarde esse registro das ideias do coletivo sobre a pesquisa. E se? Se houver opiniões divergentes no grupo, não há problema. O objetivo é promover a reflexão sobre o assunto. As diferentes opiniões serão registradas, pois é uma maneira de enriquecer o tema abordado. Terceiro encontro: quanto custa ganhar o sustento? Divida o grupo em duplas e oriente para que naveguem nos sites da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), para conhecer qual é a jornada de trabalho das(os) brasileiras(os). 10 Jornada de trabalho no Brasil e no mundo: história e atualidade Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a jornada de trabalho “é uma dimensão importante na qualidade do emprego, tendo repercussões importantes na segurança e saúde do trabalhador, na combinação entre a vida pessoal e familiar e também na organização do trabalho dentro da empresa”. Em 1919, a primeira convenção da OIT definiu que a jornada de trabalho não deveria ultrapassar 8 horas por dia e 48 horas por semana. Esse limite foi ratificado apenas por 52 países. Em 1935, em razão do alto índice de desemprego à época, a organização estabeleceu uma nova convenção, com um limite menor: 40 horas semanais. Em 1962, a OIT lançou, ainda, a Recomendação de Redução da Jornada de Trabalho, citando as 40 horas semanais como “um padrão social a ser alcançado por etapas, se necessário”. E no Brasil? Em nosso país, a legislação trabalhista determina que toda(o) empregada(o), ou seja, toda(o) trabalhadora(or) com carteira assinada, tenha jornada de trabalho estipulada em contrato. Assim, é necessário ficar clara, por escrito, a duração do trabalho que a(o) profissional deve cumprir diariamente. Desde 1943, com a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a jornada máxima em nosso país, salvo os casos especiais, é de 8 horas diárias e 44 horas semanais, com possibilidade de 2 horas extras, totalizando 10 horas diárias de trabalho. O limite semanal de 44 horas de jornada também é estabelecido na Constituição de 1988. Reforma trabalhista e nova jornada de trabalho A reforma trabalhista, aprovada em 2017, alterou alguns pontos da jornada de trabalho. Uma das novas regras é que a jornada diária pode ser de até 12 horas. Nesse caso, deverá ser seguida por um período de descanso não inferior a 36 horas. O limite semanal de 44 horas de trabalho fica mantido, assim como as 220 horas/mês. O quanto as(os) brasileiras(os) trabalham? Segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1996, a jornada média da(o) brasileira(o) era de 42,9 horas semanais. Já em 2008, a OIT detectou a redução da jornada média semanal para 40,8 horas entre a população de pessoas empregadas com 16 anos ou mais. No segundo trimestre de 2019, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) apontou que a média de horas trabalhadas no Brasil, entre pessoas com 14 anos de idade ou mais, foi de 38,8 horas, confirmando a tendência mundial de redução gradual da jornada. No entanto, a própria OIT, no relatório Duração do trabalho em todo o mundo: tendências de jornadas de trabalho, legislação e políticas numa perspectiva global comparada, com dados de 2008 relativos ao Brasil, mostra que muitas pessoas ainda enfrentam rotinas pesadas: 52,8% da população trabalhava mais de 44 horas semanais, e apenas 23,1% mantinham jornada inferior a 35 horas por semana. Primeiro peça que acessem e leiam o texto Jornada de trabalho no Brasil e no mundo: história e atualidade, com base em dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros. Veja o texto abaixo: 11 Depois da leitura, oriente para que preencham o quadro a seguir com os dados solicitados: Em seguida, oriente que entrem no site do IBGE para investigar as horas trabalhadas nas regiões metropolitanas do país, em levantamento feito de 2002 a 2016, e preencham o quadro abaixo com apenas os dados do primeiro e do último mês pesquisados. Acesse o site do IBGE Após 45 minutos, abra a roda para a socialização dos dados. Peça que comparem, no coletivo, os dados sistematizados nos dois quadros acima com os da pesquisa realizada com a família. • Quais são os pontos comuns? • Quais são os pontos diferentes? • Quais conclusões podem tirar dessa comparação? Oriente a discussão. É importante que as(os) participantes compreendam que a maior parte das pessoas ao redor do mundo obtém o sustento trabalhando. É por isso que qualquer atividade profissional deve ser valorizada, assim como o dinheiro para o sustento das pessoas, que é fruto dela. O número de horas trabalhadas por dia e por semana, nas cidades das sociedades democráticas contemporâneas, é controlado por lei, fruto de muita luta das(os) trabalhadoras(es). 12 No início da industrialização, quando as cidades se desenvolveram com a vinda das(os) trabalhadoras(es) do campo para as fábricas, não havia sequer descanso semanal, e até crianças trabalhavam. E mesmo que atualmente a lei imponha um limite para o número de horas de jornada, ainda há muitas pessoas que trabalham além do permitido. Registrem as conclusões da discussão como síntese da oficina. Peça para as duplas elaborarem uma frase que expresse o que foi mais significativo na oficina e a escrevam em tiras de papel, dispondo-as no meio da roda. Convide todas(os) a circular pela roda, para apreciar as frases das outras duplas. Atividade extra Para aprofundar o assunto, as(os) estudantes podem organizar com as(os) educadoras(es) um evento para discussão sobre a jornada de trabalho em outros países. Para isso, podem convidar professoras(es) da escola ou OSC com experiência e estudo sobre o assunto e/ou especialistas (da Universidade local, de alguma OSC que desenvolve projetos sociais ou de sindicatos, por exemplo). Esse evento pode ser aberto à participação da comunidade. Outra ideia é, com base nas reflexões e conclusões desenvolvidas na oficina, propor às(aos) participantes a criação de campanhas nas redes discutindo a importância de se valorizar o trabalho e as(os) trabalhadoras(es), além de respeitar a legislação que busca garantir condições dignas a todas(os). Essas campanhas podem ser feitas em formato de vídeo, imagens e/ou textos. Referências Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Organização Internacional do Trabalho (OIT) Brasil Tribunal Superior do Trabalho (TST): Justiça do Trabalho Hora de avaliar Para ampliar 13 Oficina 2 Poupança para projeto coletivo Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Folha de papel sulfite, papel pardo ou cartolina. • Giz colorido. • Pincéis atômicos. • Caixa de plástico transparente ou de papel com tampa transparente. • Aprender a compartilhar sonhos e unir esforços para concretizá-los. • Planejamento de uma poupança coletiva para realizar um passeio pela cidade. • Aprender a elaborar metas e planejar coletivamente ações para a vida em comum. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de artes ou outro local. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 14 Início de conversa Elaborar projetos coletivos com crianças e adolescentes contribui para a sua formação cidadã. Os projetos podem ter finalidades diversas, como uma tarde de convivência fora da escola, uma visita a um parque ou a aquisição de livros de poesia ou de histórias. Para realizar sonhos coletivos, é importante planejar e organizar ações em conjunto. Entre as aprendizagens envolvidas em projetos coletivos, destacam-se a de fazer escolhas entre o que é significativo e o que é supérfluo, definir o momento e saber esperar para realizar algo importante para as(os) envolvidas(os), e compreender o valor e a finalidade real do dinheiro: atender às necessidades humanas. Trabalhos assim contribuem ainda para desenvolver vínculos afetivos e solidários, refletir sobre os valores que norteiam a nossa vida e planejar ações em que se compartilham esforços, responsabilidades e conquistas. Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: planejando um passeio da turma Para a realização desta oficina, você pode aproveitar a ocasião de uma data festiva, como o Dia das Crianças, o aniversário da instituição educacional ou a proximidade do Natal. Assim haverá estímulo para as(os) estudantes pensarem em um projeto de lazer compartilhado e organizarem uma poupança coletiva. Receba a turma ao som de uma música suave. Disponha folhas de papel sulfite, giz colorido e pincéis atômicos espalhados pela roda inicial. Quando já estiverem sentadas(os) no chão, convide-as(os) a pensar em seus desejos de diversão e lazer pela cidade (um parque, um jardim, um cinema, um show, uma peça de teatro infantil ou infantojuvenil, um circo, uma cachoeira etc). Em seguida, peça que desenhem ou escrevam algo sobre esses desejos nas folhas disponíveis. Você também deve fazer o seu desenho ou escrita. Depois de um tempo, faça uma rodada para que falem sobre o que pensaram e mostrem os desenhos ou as frases que criaram. Em seguida, lance o desafio para apenas pensarem e não verbalizarem: • Quais desses desejos podem envolver toda a turma? • O que seria bem legal fazerem juntas(os) pela cidade? • O que a maioria gostaria de fazer? Para aquecer, peça que cochichem sobre o assunto com as(os) colegas ao lado. A seguir, oriente que formem grupos de quatro ou cinco componentes a fim de expor o que cochicharam e escolher uma das propostas. Olichel/Pixabay 15 Stevepb/Pixabay Escolhida a proposta de lazer, oriente-as(os) a pesquisarem na internet, nos jornais e com as famílias, o seu custo real: • Ingressos (se for o caso) - individual _______; total ______ • Transporte - individual _______; total ______ • Lanche – individual ________; total ______ Lembre-as(os) de se atentar a possíveis descontos oferecidos às(aos) estudantes. No caso do transporte e da alimentação, talvez possam contar com alguma ajuda da instituição educacional e/ou da família. Selecionada a proposta, as(os) participantes deverão discutir como realizá-la, para, depois, levá-la ao coletivo. Distribua folhas de papel pardo para registrarem a proposta selecionada pelo grupo e como as(os) integrantes propõem desenvolvê-la. Dê um tempo e abra a roda para que cada grupo exponha a proposta escolhida. Oriente-as(os) a observarem as propostas que mais se aproximam. Provavelmente, entre as sugestões estarão visitas a lugares da cidade, idas ao cinema para assistir a um filme de sucesso, piqueniques em um parque ou jardim etc. Ajude-as(os) a avaliar, coletivamente, a viabilidade de cada proposta e a estimar aquelas com custo mais baixo e com custo mais alto. Elas(es) deverão eleger uma, de preferência a que mobilize a maior parte da turma e que seja viável de ser realizada. Pondere que alguns desejos são mais fáceis de se realizar, e a exigência de esforços mais compatíveis com as possibilidades da turma deverá contar no momento da escolha. Essa é uma excelente oportunidade para que desenvolvam o senso crítico, aprendendo a pesar na balança as condições de contexto favoráveis e as desfavoráveis para a realização de alguma ação, além de aprenderem a se solidarizar com o grupo, a negociar com outras posições em busca do consenso ou a aceitar as decisões majoritárias, postergando a realização de seu desejo para outra oportunidade. 16 Segundo encontro: dimensionando os custos Neste encontro, as(os) participantes deverão dimensionar os custos do passeio a partir do levantamento que fizeram. Insira na lousa a relação dos itens que custam dinheiro e os diferentes preços levantados para cada um deles. Tendo um panorama diversificado dos preços, as(os) estudantes poderão escolher o mais viável e definir, de fato, de quanto precisam para bancar esses valores. Questione, então, como poderiam, juntas(os), conseguir os recursos necessários para realizar o projeto de lazer coletivo, de forma a ninguém contribuir mais nem menos do que outra pessoa. Elas(es) podem sugerir a venda para a turma ou para a instituição educacional, por algum tempo e a preços baixos, de doces e/ou bolos feitos em casa; rifar objetos doados pelas famílias; trazer moedas que receberam de troco etc. Todas essas estratégias podem ajudar a construir uma poupança coletiva, que deverá ser guardada em alguma caixa acessível, para que possam observar o valor aumentando. Mas, quem tomará conta do dinheiro? Deverá ficar sob a responsabilidade da(o) educadora(or), mas proponha a organização de uma comissão para acompanhar as entradas do dinheiro. Registrem a entrada de cada quantia arrecadada em um caderninho ou arquivo de computador acessível a todas(os). A prestação de contas à turma, pela comissão, sob sua supervisão, poderá ser realizada semanalmente. Para animar a turma, é interessante organizar um cartaz em papel pardo ou cartolina, com cortes para colocar tarjetas móveis, em que se registram: o projeto de lazer da turma, o valor que precisam arrecadar, o que conseguiram na semana e o total acumulado até então, para visualizarem o quanto já conseguiram juntar e o quanto ainda falta. Veja um exemplo de cartaz: 17 E se? Se você perceber desconfiança em alguém, esclareça sempre e tire as dúvidas. Proponha um rodízio da comissão para dar chance a todas(os) de acompanharem a arrecadação de perto. Quando observarem que o valor arrecadado é suficiente para realizar o que as(os) estudantes propuseram, organize um momento para avaliarem todo o processo vivido. É importante que as(os) participantes manifestem seus sentimentos em relação a terem alcançado o que se propuseram com toda a turma: • Foi bom ter um projeto em comum e trabalhar juntas(os) por ele? • Em algum momento, sentiram-se desconfortáveis por terem de esperar para alcançar a meta estipulada ou aceitar uma proposta que não fosse a sua? • Como foi lidar com as diferenças? • O que aprenderam com a atividade? Registre em um cartaz as aprendizagens relacionadas pelas(os) estudantes e afixe-o na parede da sala para voltar a elas em ocasiões que julgar oportunas. Atividade extra Após essa experiência, as crianças e as(os) adolescentes poderão retomar outras propostas de lazer relacionadas no início desta atividade, reavaliar a sua posição na escala crescente de dificuldades que organizaram, na ocasião, e eleger uma delas como o próximo empreendimento da turma. Essa é uma oportunidade para pesquisarem os sites de financiamento coletivo disponíveis na internet, os quais ajudam a levar adiante projetos sociais e culturais que não aconteceriam sem eles, por não contarem previamente com patrocinadoras(es). É o caso do Catarse e do Kickante, por exemplo: • Catarse - • Kickante - Referências DOMINGOS, Reinaldo. Terapia financeira: Realize seus sonhos com educação financeira. São Paulo: DSOP Educação Financeira, 2011. Hora de avaliar Para ampliar 18 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Crédito: é preciso saber usar • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Papel pardo para confecção de cartazes. • Desenvolver a atitude de antecipar as consequências do uso do crédito para não comprometer a qualidade de vida nem provocar o endividamento. • Proposta de reflexão sobre uso de crédito financeiro. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Conscientizar sobre a importância de priorizar compras à vista, preferindo poupar antes de comprar. • Calcular taxas menores de juros antes de contratar o custo total do empréstimo ou financiamento, se precisar do crédito. • Planejar o quanto será necessário separar do orçamento para o pagamento mensal das faturas. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 19 O crédito é uma fonte adicional de recursos que são obtidos por meio de terceiros (bancos, financeiras, cooperativas de crédito e outros). Esses recursos possibilitam a antecipação do consumo para a aquisição de bens ou contratação de serviços. Para uma vida financeira saudável, é muito importante saber escolher a modalidade de crédito mais adequada para cada situação. Com a devida compreensão dos custos envolvidos nas operações de crédito, é mais fácil o seu uso consciente. É preciso ter cuidado, pois o uso inadequado do crédito pode levar ao endividamento excessivo e comprometer toda a vida financeira. Antes de tomar um empréstimo ou financiamento, convém se perguntar: • Para que preciso desse dinheiro? Essa compra é mesmo necessária? • As prestações cabem no meu orçamento? • Vale a pena pagar os juros ou é melhor esperar, juntar o dinheiro e comprar depois? O crédito possui vantagens e desvantagens. Seu uso pode trazer grandes benefícios, bem como grandes males. Assim, se for necessário utilizar-se dele, é necessário tomar alguns cuidados, como: • Não perder o controle das contas; • Não se deixar endividar, dando “passos maiores do que as pernas”. É bom lembrar que, em vez de utilizarmos o crédito, é mais adequado procurar diminuir os gastos, eliminar os desperdícios, reduzir os supérfluos e consumir apenas o que for realmente necessário, de forma a poupar dinheiro para enfrentar as eventualidades e emergências. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa inicial Anuncie à turma que o tema da oficina será o uso do crédito. • O que pensam sobre isso? • Já tiveram alguma experiência de empréstimo na família ou no círculo de amizades? Como foi? Após comentarem as experiências, pergunte se as(os) estudantes consideram ser uma atitude positiva ou negativa pegar dinheiro emprestado para comprar algum produto ou pagar um curso, por exemplo. 20 E se? Se as respostas forem unânimes contra ou mesmo a favor, pondere que tudo depende das circunstâncias. Por isso, é importante discutir a questão e saber o que está em jogo quando se entra numa dívida de empréstimo ou de financiamento. Empréstimo e financiamento: qual é a diferença? Pergunte se sabem a diferença entre empréstimo e financiamento. Após ouvir as respostas e os comentários, explique que empréstimo é um contrato entre uma(um) cliente e uma instituição (banco, cooperativa de crédito, Caixa Econômica), pelo qual a(o) cliente recebe uma quantia em dinheiro, que deverá ser devolvida em prazo determinado, acrescida dos juros acertados. O dinheiro obtido não tem destinação específica. A(O) cliente faz o uso que quiser. Conheça alguns exemplos de operações: • Empréstimo pessoal; • Crédito direto ao consumidor; • Crédito consignado (empréstimo concedido a aposentadas(os) do INSS ou a funcionárias(os) públicas(os) municipais, estaduais ou federais, a juros mais baixos e descontados em folha de pagamento). Há também o crédito pré-aprovado, que é oferecido pelos bancos e instituições financeiras na forma de cartões de crédito e cheques especiais. Crédito pré-aprovado é aquele que disponibiliza um limite de uso para a(o) cliente, sem necessidade de burocracia. São instrumentos que permitem que compras e serviços sejam pagos sem a necessidade de usar dinheiro no instante imediato da compra ou da contratação do serviço. No caso do cartão de crédito, mensalmente se recebe uma fatura com todos os gastos realizados no período. Se o valor total da fatura for pago dentro do prazo de vencimento, não serão cobrados juros. Porém, se o valor total da fatura não for pago até o vencimento, incidirão juros sobre o montante que faltou ser quitado. Isso porque os juros funcionam como se fossem o “preço” do dinheiro. É uma quantia extra em dinheiro, além do valor que se tomou de crédito, que se paga. O cheque especial funciona da mesma maneira, com datas e juros, só que sem fatura. Como usar o cartão de crédito de forma consciente: confira 10 dicas a seguir! 1. Estipule um teto de gastos Os bancos liberam um limite máximo de gastos de acordo com a renda das(os) clientes, mas é importante que cada pessoa estabeleça um limite pessoal para manter os seus gastos sob controle. Para isso, levante seus rendimentos e determine o valor máximo que sua fatura deve ter por mês. Recomenda-se o limite de, no máximo, 50% da sua receita líquida. 2. Não perca a data de vencimento da fatura É comum esquecer de pagar uma ou outra conta no fluxo de despesas do mês. Mas nada se compara ao problemão que é atrasar o pagamento ou esquecer de pagar a fatura do cartão de crédito, em vista dos juros altíssimos cobrados por dia de atraso. Então, anote o dia do venci- 21 mento na sua agenda e deixe notificações no celular ou no próprio aplicativo do banco para receber avisos assim que a data de pagamento chegar. 3. Anote e acompanhe os gastos Para manter o controle das despesas, uma boa prática é anotar os seus gastos em um caderno, numa planilha ou no seu aplicativo financeiro de preferência. Descreva o que foi comprado, quando e onde realizou a compra, se foi à vista ou parcelada, com ou sem juros, quais são os prazos e quanto você ainda pode gastar com o seu cartão. 4. Faça um fundo de reserva Criar uma reserva de emergência é essencial para os imprevistos. O recomendável é guardar o suficiente para se sustentar por um período de 6 meses a 1 ano. Assim, você já tem uma reserva financeira caso o cartão de crédito não tenha limite disponível para uma compra emergencial. 5. Fuja das compras desnecessárias e impulsivas O cartão de crédito cria a ilusão de que temos mais dinheiro e que podemos gastar mais. Mas é bom ter em mente que limite de crédito não significa dinheiro na conta! Às vezes, é difícil controlar o impulso, principalmente diante de promoções e ofertas. Mas, antes de gastar, procure refletir se você de fato tem necessidade daquele produto ou serviço, ou se é só um impulso momentâneo. Se chegar à conclusão de que esse gasto é realmente necessário, pesquise, compare preços antes de efetuar a compra. Caso perceba que aquilo não é tão necessário ou que o gasto vai pesar no orçamento, adie a compra para outro momento. 6. Fique de olho na fatura Baixe o aplicativo do seu banco no celular e consulte o extrato da sua conta com frequência. Por não notar o dinheiro saindo da conta na hora de pagar, é comum relaxar com os gastos do cartão de crédito e ultrapassar o limite pessoal. 7. Parcele com moderação Sempre que possível, pague à vista e evite se comprometer com muitas parcelas. Pondere se você realmente precisa parcelar a conta, já que os parcelamentos podem enganar a sua noção do que foi gasto com um produto ou serviço. É importante lembrar que, mesmo parcelada, cada compra tem um valor inteiro específico. Ao final de cada mês, as parcelas se acumularão com outras contas e o valor total da fatura aumenta, o que pode dificultar o pagamento nos meses mais apertados. Imprevistos financeiros acontecem! 8. Denuncie cobranças indevidas Se identificar compras indevidas no extrato do seu cartão, entre em contato com o banco imediatamente. Em casos de roubo de dados, é comum que sejam feitas compras pequenas para confirmar a validade do cartão. Depois, as novas aquisições passam a ser mais caras, em sites e serviços variados. Assim, por menor que seja o valor da compra, denuncie. Os bancos têm uma ouvidoria exclusiva para tratar esse tipo de ocorrência. 9. Compras on-line, apenas de lojas seguras Fazer compras pela internet com o cartão de crédito é fácil, rápido e cada vez mais comum. Porém, é necessário tomar cuidado com os sites nos quais você precisa inserir dados bancários. Há muitas páginas na internet que enganam as(os) clientes e roubam os seus dados do cartão. Com esses registros, as(os) criminosas(os) podem comprar o que quiserem. Você até consegue 22 recuperar a quantia gasta, mas é um processo burocrático. Para evitar problemas, investigue cuidadosamente a loja virtual. Antes de fechar qualquer compra, confirme algumas informações essenciais, como: • CNPJ; • Razão Social; • E-mail e telefone para contato; • Endereço da sede da empresa; • Ícone de cadeado na barra do navegador; • Reputação da loja no Reclame Aqui. 10. Acompanhe programas de descontos e vantagens A maioria dos cartões de crédito oferece programas de recompensas e vantagens muito interessantes, como milhas, pontos e anuidade zero. Nos programas de pontos, por exemplo, dá para trocar os pontos acumulados por produtos ou serviços, ou usar para pagar a própria fatura do cartão. Mas é preciso se atentar para a data de validade do benefício. O financiamento também é um contrato entre uma(um) cliente e uma instituição financeira, mas com destinação específica, como a compra de um veículo ou imóvel, que funciona como garantia para o crédito. Há também financiamentos para serviços como estudos, viagens, tratamento dentário etc. Nos países democráticos, os governos, através de programas sociais, financiam estudos, saúde e casa própria às pessoas e famílias com baixa renda, a juros baixos, para promover direitos e diminuir a desigualdade social. As instituições financeiras do mercado podem estabelecer critérios próprios para empréstimos ou financiamentos. As taxas de juros cobradas variam de instituição para instituição, não havendo limites para as taxas cobradas. No entanto, as instituições são obrigadas a informar, antes da contratação, qual é o Custo Efetivo Total (CET) de cada operação de empréstimo ou financiamento. O CET deve ser expresso na forma de taxa percentual anual, incluindo todos os encargos e despesas das operações, tais como tarifas e impostos. Os empréstimos e financiamentos podem ser quitados antecipadamente, com redução dos juros, cabendo às instituições informar as condições para essa antecipação. Empréstimo e financiamento em debate Para distinguir cada uma dessas operações, convide a turma a assistir a dois pequenos vídeos: o primeiro trata de um empréstimo consignado para um aposentado do INSS, e o segundo trata de um financiamento de um carro a um jovem. 23 Assista com a turma ao primeiro vídeo Empréstimo consignado: saiba no que prestar atenção na hora da contratação. Após a projeção do primeiro vídeo Empréstimo consignado: saiba no que prestar atenção na hora da contratação, forme grupos e abra o debate a partir das seguintes questões: • Quais condições levaram o senhor Roberto a procurar um empréstimo consignado (ausência de poupança); • Quais cuidados devem ser tomados antes de se assumir o compromisso do empréstimo (consultar várias instituições para comparar o valor das taxas de juros e tarifas que comporão o custo efetivo total da quantia a ser paga; quanto contará a menos no valor da aposentadoria do senhor Roberto, em seu orçamento mensal, até a quitação da dívida). Assista com a turma ao segundo vídeo Filhos da Mama, da série Eu e meu dinheiro. Acesse em Após a projeção do segundo vídeo Filhos da Mama, da série Eu e meu dinheiro, forme grupos e abra o debate a partir das seguintes questões: • Qual dos dois irmãos tomou a atitude mais correta em relação à compra do carro? Por quê? (Rafael poupou e comprou o carro à vista, embora tenha demorado mais tempo para isso, enquanto Gabriel fez um financiamento por cinco anos e ficou com parte do seu salário comprometido por todos esses anos); • Qual das duas situações mostradas nos vídeos realmente justifica o empréstimo/financiamento? Por quê? • Quais os riscos causados por empréstimos e financiamentos? Em seguida, abra a roda para a socialização e faça a mediação da conversa. No primeiro vídeo, o senhor Roberto necessitava de um serviço básico e urgente - consertar o chuveiro com vazamento -, enquanto o jovem Gabriel, no segundo vídeo, não precisava com tanta urgência de um carro. É isso que define a adequação ou não de se tomar um empréstimo ou financiamento. Da mesma forma, é adequado uma(um) estudante que deseja fazer um curso numa Universidade privada pensar em contratar o FIES – Financiamento Estudantil (acesse o site em , oferecido pelo Governo Federal - a ser restituído após o término do curso, em longo prazo e a juros baixos -, porque esse financiamento representa investimento em seu futuro. Portanto, existem situações em que o empréstimo ou o financiamento pode ser uma solução, mas que exige certos cuidados, como cálculo e planejamento. Tanto no empréstimo quanto no financiamento, temos a sensação, à primeira vista, de que estamos comprando sem gastar. Entretanto, o que estamos realmente fazendo é pedindo dinheiro emprestado para poder pagar o que queremos comprar agora e nos comprometendo a pagar juros por isso. É essa sensação à primeira vista (de comprar sem gastar) que pode levar a riscos de endividamento e desestruturação do orçamento e da vida, principalmente se não formos bem informadas(os). Por isso, vemos muitas(os) aposentadas(os) endividadas(os) por empréstimos consignados. Por serem as taxas de juros mais facilitadas, o acesso ao crédito é igualmente facilitado e, se a pessoa não calcula direitinho o orçamento, acaba tomando emprestado mais do que teria condições de pagar. 24 Para compreender melhor os encargos de um empréstimo ou financiamento, assista com a turma ao vídeo Como funcionam os empréstimos ou financiamentos com parcelas fixas. Confira dicas do Serasa no conteúdo Empréstimo: o que é e como fazer? - Acesse em PARA APROFUNDAR Sistematizando as aprendizagens Para sistematizar a oficina, apresente dois cartazes previamente confeccionados por você, demonstrando as vantagens e as desvantagens de um empréstimo ou financiamento: Vantagens Antecipar consumo: muitas vezes, precisamos comprar um produto ou contratar um serviço, porém não dispomos de recursos suficientes. O crédito nos possibilita resolver essa situação. Atender a emergências: imprevistos acontecem e muitas vezes não estamos financeiramente preparadas(os) - acidente com o veículo, serviço emergencial na residência, problema de saúde na família etc. O uso do crédito pode ser a saída nesses momentos. Aproveitar oportunidades: boas oportunidades para fechar um negócio ou fazer uma compra às vezes acontecem e nem sempre se tem condições financeiras para aproveitá-las. Antes de utilizar o crédito, sempre verifique o seu custo. Compare os preços e custos do crédito. Desvantagens Antecipação do consumo com o uso do crédito implica pagamento de juros: ao anteciparmos a compra de um produto ou a contratação de um serviço sem a devida disponibilidade financeira, usamos um dinheiro que não é nosso, portanto pagamos juros por essa operação. Risco de endividamento excessivo: o uso inadequado do crédito pode levar ao endividamento excessivo e comprometer toda a sua vida financeira, muitas vezes gerando descontrole emocional, problemas de saúde e na família. Assim, é importante refletir e não utilizar o crédito de forma indiscriminada. Limite de consumo futuro: essa desvantagem é quase automática, uma vez que o crédito tomado hoje tem que ser pago no futuro, reduzindo as disponibilidades financeiras. 25 Em roda, peça para se manifestarem em relação à oficina: • O que não sabiam e o que aprenderam? • O que mais impactou nos vídeos aos quais assistiram? • Quais informações acham que podem levar para compartilhar com as suas famílias? Por quê? Atividade extra A(O) professora(or) de Matemática ou Estatística pode realizar algumas simulações de empréstimos e financiamentos com as(os) estudantes para que dimensionem o volume de dinheiro gasto com juros. Conteúdos na web Banco do Brasil: Cidadania Financeira - Referências Dessen, Marcia Belluzo. Cuide bem do seu dinheiro. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2013. Hora de avaliar Para ampliar 26 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 À vista ou a prazo? • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel pardo. • Conscientizar-se sobre a diferença de custos dos produtos e serviços na situação de pagamento à vista ou a prazo. • Sensibilização para se distinguir os benefícios e os prejuízos de comprar a crédito. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Identificar os juros embutidos nas prestações de compras a crédito. • Saber optar pela melhor forma de pagamento. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 27 O contexto atual aproximou crianças, adolescentes e jovens dos temas da Educação Financeira. A importância de abordar temas como poupança, crédito, juros e dívida, tanto no ambiente familiar como na escola e em outros ambientes educativos, tornou-se inegável. Desde 2018, a Educação Financeira é um dos conteúdos a serem trabalhados no currículo escolar. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece que ela deve estar presente de forma transversal nas diferentes disciplinas. Segundo a BNCC do Ensino Médio (MEC, 2018): “Cabe aos sistemas e redes de ensino, assim como às escolas, em suas respectivas esferas de autonomia e competência, incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora. Na BNCC, essas temáticas são contempladas em habilidades dos componentes curriculares, cabendo aos sistemas de ensino e escolas, de acordo com suas especificidades, tratá-las de forma contextualizada.” Apesar disso, os temas da Educação Financeira ainda são pouco abordados nas escolas e demais ambientes educativos. É preciso sanar essa lacuna, já que se trata de conhecimentos que devem ajudar crianças, adolescentes e jovens a fazer escolhas conscientes para a realização de sonhos, planejamento do futuro e adoção de atitudes responsáveis na coletividade. Os conceitos de Educação Financeira devem ser trabalhados de forma transversal por todas as áreas do conhecimento na Educação Básica. De acordo com o Ministério da Educação (MEC, 2019): “A abordagem transdisciplinar contribui para que o conhecimento construído extrapole o conteúdo escolar, uma vez que favorece a flexibilização das barreiras que possam existir entre as diversas áreas do conhecimento, possibilitando a abertura para a articulação entre elas. Essa abordagem contribui para reduzir a fragmentação do conhecimento, ao mesmo tempo em que busca compreender os múltiplos e complexos elementos da realidade que afetam a vida em sociedade.” Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Um dia antes da oficina, peça às(aos) estudantes que prestem atenção nas propagandas veiculadas pela TV, na internet ou em revistas e/ou jornais, escolham uma delas e anotem: • O nome do produto da propaganda; • O preço do produto; • As condições de pagamento oferecidas para a compra do produto: à vista e a crédito. Abra a roda do dia, socializando as informações trazidas. Enquanto as(os) participantes falam, registre na lousa, conforme o quadro: 28 A seguir, proponha que calculem juntas(os) o preço final de cada produto pesquisado pela turma, multiplicando o valor das prestações pelo número delas, para identificar e comparar esse valor com o preço à vista. Em seguida, questione: • O valor é o mesmo? Se for, vocês acham que a compra vale a pena? • E se o valor for maior? A compra não deve ser realizada? Dê um intervalo de tempo para a discussão na turma e, em seguida, projete o vídeo Eu vou levar, da série Eu e meu dinheiro, produzida pelo Banco Central do Brasil. Acesse o vídeo em Em seguida, proponha uma reflexão sobre a ação dos protagonistas do vídeo: • Qual atitude consideram a mais adequada? Por qual motivo? • Quais as consequências de se comprar por impulso? • Essas consequências atingem apenas a pessoa, individualmente? Considere que o consumo contribui para a devastação dos recursos do planeta. Chame a atenção da turma para as estratégias de venda. Ao tomarem consciência do que o marketing e o comércio fazem para vender, elas(es) devem ter mais subsídios para resistir às tentações do consumo e às armadilhas que aparecem. • E por que é importante resistir a tais armadilhas? Porque elas podem levar ao endividamento. As pessoas têm a sensação de que as prestações são baratas, por isso fazem outras compras parceladas, também aparentemente baratas, e o orçamento acaba comprometido. Como consequência, não conseguem pagar os gastos com a casa, comida e roupa, quando somados às prestações dessas compras parceladas. Não pagando os juros das prestações que se avolumam, a dívida torna-se uma bola de neve, aumentando cada vez mais. Deixe claro que algumas atitudes são mais saudáveis e trazem benefícios e sossego para as pessoas, como poupar para poder comprar à vista ou comprar quando realmente se tem necessidade, após várias pesquisas de preço. • E se o produto ou serviço for de muita necessidade e poupar para chegar ao seu valor total levar muito tempo? É importante ter flexibilidade para enxergar as condições e circunstâncias que nos envolvem em determinados momentos da vida para tomar a decisão mais adequada. É essencial a manutenção do hábito de poupar constantemente para a formação de uma reserva financeira, mas nem sempre essa poupança dará conta de resolver algum problema enfrentado em um determinado momento da vida. Nesse caso, se a aquisição de um produto ou de um serviço for muito necessária, comprar a prazo pode ser uma opção. Em tal circunstância, é importante procurar por prestações com taxas menores de juros e associar a qualidade do produto ou serviço ao seu preço. 29 Cuidados na hora de comprar 1. Se a pessoa tem o dinheiro para a compra • Informar-se sobre o valor de desconto do custo do produto ou serviço, se o pagamento for à vista. É muito comum vermos anúncios com a condição de pagamento em “10 vezes sem juros no cartão”, por exemplo. Mas, na verdade, os juros estão embutidos no valor do produto ou serviço. Outras vezes, as(os) vendedoras(es) oferecem desconto para pagamento em dinheiro (à vista), para se livrarem das taxas de uso dos cartões. Se a pessoa já possui metade do valor da compra poupado, é melhor esperar guardar o restante para comprar à vista e obter mais desconto. 2. Se a pessoa não tem o dinheiro para a compra • Avaliar se a prestação estipulada cabe no orçamento ou se é possível cortar algum gasto para que ela caiba, pois a partir do contrato fechado e a compra realizada, a quantia para efetuar o pagamento deve ser considerada mensalmente até o final das prestações; • Pesquisar preços em vários locais e na internet; • Calcular o valor das prestações e ver se coincide com o ofertado à vista. Terminada a roda de conversa, avalie com as(os) estudantes como foi a oficina: • Ajudou a compreender melhor o incentivo para o consumo de produtos ou serviços e as suas estratégias para convencer as pessoas a comprá-lo? • O que aprenderam com as atividades desenvolvidas? Atividade extra Em grupos, a turma pode criar e encenar uma situação em que apareçam as atitudes mais compatíveis com o consumo consciente. É importante reconhecer que escolhas envolvem emoção e razão, e ambas devem estar equilibradas no momento do consumo. Caso prevaleça a emoção, atitudes podem ser tomadas por impulso. Por outro lado, o excesso de razão pode privar as pessoas de consumirem algo necessário ou prazeroso. Há alguns cuidados que devem ser observados no momento do consumo. Pergunte às(aos) estudantes: • Quais cuidados indicariam após terem assistido e discutido o vídeo? Aponte outros, como os do quadro abaixo, registrando-os em um cartaz para ficar afixado na sala. Hora de avaliar Para ampliar 30 Conteúdos na web Banco Central do Brasil: especialistas debatem o episódio Eu vou levar - Acesse em Referências Dessen, Marcia Belluzo. Cuide bem do seu dinheiro. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2013; Ministério da Educação. Temas contemporâneos na BNCC: contexto histórico e pressupostos, 2019; Site: Banco Central do Brasil - Acesse em 31 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 Meu primeiro emprego, meu primeiro salário • Planilhas para registro de entrada e saída do dinheiro. • Aprender a planejar o uso do dinheiro em função de um projeto de vida. • Exercício de planejar o orçamento pessoal. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Construir uma planilha de entrada e de saída do dinheiro. • Discriminar situações mais importantes para gastar o dinheiro. • Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 32 O orçamento é um instrumento de planejamento financeiro pessoal que contribui para a realização de sonhos e projetos. Um bom planejamento exige saber aonde se quer chegar e estabelecer metas claras e objetivas para atingir os propósitos, com base em um diagnóstico da situação atual. Para termos esse diagnóstico, em se tratando de planejamento financeiro, é importante organizar e registrar toda a movimentação do dinheiro: • As receitas (renda); • As despesas (gastos); • Os investimentos. Esses registros permitem avaliar a vida financeira: • Em que gastamos? • Com o que gastamos mais? • Nossos gastos são menores ou maiores que as receitas? • Temos o hábito de poupar? Se as despesas forem menores que as receitas, ótimo, pois esse excedente pode ser poupado para uma emergência ou para a realização de projetos. Agora, se as despesas forem maiores que as receitas, é hora de parar para pensar em cortar alguns itens. Com o tempo, o orçamento ajuda as pessoas a manterem as receitas maiores que as despesas. Esse é um dos objetivos básicos da boa gestão financeira pessoal. Quando esse objetivo é atingido, deve-se cultivar o hábito de poupar regularmente. Aliás, ao se tornar uma pessoa superavitária, ou seja, que consegue fazer sobrar uma parte do dinheiro que ganha, a primeira atitude a ser tomada é separar parte dele para poupar antes mesmo de pagar qualquer despesa. A poupança deve ser encarada como um compromisso consigo mesma(o). Início de conversa Planejamento financeiro 33 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: de onde vem e para onde vai o meu dinheiro? Faça um levantamento de quantas(os) jovens já se encontram ativas(os) no mercado de trabalho e quantas(os) estão próximas(os) disso, como aprendizes. Peça para que as(os) participantes que já estão empregadas(os) falem sobre seus empregos: • Gostam? Sentem-se reconhecidas(os)? • Acham que a remuneração é condizente com o trabalho realizado? • O que fazem com o salário? Para as(os) que ainda não estão no mercado de trabalho, peça que descrevam suas expectativas em relação aos futuros empregos: • Que tipo de emprego desejam? Em qual área? • Quanto acham que podem conseguir de salário? • O que pretendem fazer com o salário que ganharão? Para as(os) estudantes que recebem salário, questione se já fazem orçamento, se registram o que ganham e o que gastam e por que fazem isso. Conte quantas(os) são as(os) que fazem esse registro em relação ao total das(os) que trabalham no grupo. E se? Se alguém disser que faz orçamento, peça para contar ao grupo como faz o registro, além de demonstrá-lo com um esquema na lousa. Diga também para contar em que sentido essa projeção a(o) está beneficiando. Chame a atenção das(os) outras(os) participantes sobre essa fala e inicie uma conversa a respeito da importância do orçamento. Para que o dinheiro obtido com o trabalho não seja gasto em vão, é necessário que se tenha um controle efetivo das receitas (dinheiro que entra) e das despesas (dinheiro que sai), bem como a organização e a definição sobre o que deve ser feito com esse dinheiro de modo a atender às necessidades e realizar os projetos de vida, em menos tempo e a menor custo possível. • Será que sabemos quanto gastamos mensalmente do nosso dinheiro? • Temos ideia de como as despesas se comportam? • Sabemos quais itens consomem a maior fração da nossa renda? • Quanto será que nós já pagamos de juros neste ano? • Costumamos planejar nossos gastos? E a poupança? O controle e o planejamento financeiro, bem como a anotação de todas as receitas e despesas realizadas, ajudam a obter respostas para essas perguntas fundamentais. 34 O orçamento pessoal oferece uma oportunidade para a avaliação e organização da nossa vida financeira, além da definição de prioridades que impactam nossa vida. Ajuda também a identificar e entender nossos hábitos de consumo. Um princípio a ser seguido na elaboração do orçamento é que as despesas não devem ser superiores às receitas. Mais do que isso, é prudente que as receitas superem as despesas para que se possa formar uma poupança suficiente para eventuais emergências e a realização de projetos futuros. É interessante chamar a atenção, nesse momento, para a importância do investimento em estudos que oferecem oportunidade de crescimento como pessoa, além de acesso a outras experiências de vida e de trabalho mais enriquecedoras e melhor remuneradas. No momento de “aperto”, diminui-se o investimento em lazer, mas não nos estudos. Projete para elas(es) o vídeo Aprenda a controlar suas finanças pessoais e familiares. Nele, dois jovens (um homem e uma mulher) contam quando e como começaram a planejar os seus gastos por meio de um orçamento simples. Acesse emv=KLgWdXN0G5I. Então, convide as(os) participantes a, em duplas, elaborarem um orçamento. Oriente que, de preferência, as duplas sejam compostas por uma(um) jovem que já tenha trabalho remunerado e outra(o) que ainda não tenha. Em primeiro lugar, elas(es) vão relacionar tudo o que gastam e registrar os valores desses gastos. Para facilitar, disponibilize às duplas uma tabela com alguns itens já relacionados como exemplo. O preenchimento será feito conforme utilizem ou não os itens ou elementos descritos. Caso elas(es) não façam uso dos itens, não devem preencher, somente devem prosseguir com os itens que costumam consumir. É importante fazer uma adaptação desses itens de acordo com a faixa etária das(os) estudantes, além das características regionais e condições socioeconômicas do seu grupo. 35 Encontrada uma solução financeira, as duplas devem preencher uma nova ficha para o planejamento dos gastos futuros, com base nos itens da primeira ficha (relação receita e despesa). Nessa nova ficha, elas devem registrar o que podem gastar, no máximo, em cada item, para não ultrapassar a receita e ainda deixar alguma reserva na poupança. Após cerca de 45 minutos de trabalho e registro, abra a discussão. Cada dupla deve expor o diagnóstico produzido com base na relação dos seus gastos e como encaminhou a planilha do orçamento futuro. Segundo encontro: das descobertas às ações Agora, as duplas devem analisar a planilha dos gastos para verificar a adequação deles às receitas. Para isso, devem preencher os dados do roteiro abaixo. Ajude as duplas a analisar a situação diagnosticada. Atividade extra Com a ajuda da(o) professora(or) de Matemática, as(os) estudantes podem calcular as porcentagens de cada item da tabela dos gastos em relação à receita geral, para afinar ainda mais a percepção do seu orçamento. Assim, ficam sabendo a porcentagem que cada um desses itens consome do salário e quais itens representam a maior parte da sua renda. Referências Dessen, Marcia Belluzo. Cuide bem do seu dinheiro. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2013; Banco Central do Brasil: Caderno de Educação Financeira Gestão de Finanças Pessoais (Conteúdo Básico) - Hora de avaliar Para ampliar Organize a roda final para as(os) estudantes avaliarem a oficina. Peça para elas(es) ponderarem se as atividades ajudaram na percepção de que planejar e controlar o próprio dinheiro são ações importantes para se viver com mais tranquilidade e realizar projetos de futuro. Pergunte, ainda, como foram as atitudes em relação às diferenças individuais, na formação das duplas, para a elaboração e a análise do orçamento: • Houve tolerância e respeito entre as(os) estudantes? 36 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 6 Refletindo sobre o consumo • Datashow (se não houver disponível, pode-se usar computadores ou notebooks com acesso à internet). • Folhas de papel sulfite. • Desenvolver uma atitude de consumo consciente. • Atividade de reflexão sobre a diferença entre precisar e querer. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Distinguir o precisar do querer. • Resistir aos apelos do consumo exagerado. • Perceber o papel da mídia na criação de necessidades. • Anos finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA). • Sala de aula, sala de atividades ou outro espaço com acesso à internet. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 37 O mundo atual é regido pela “ética do consumo”. Segundo essa ética, as pessoas são avaliadas pelo que possuem e exibem. Somos bombardeadas(os), diuturnamente, nas ruas, nos jornais, nas revistas, na TV e internet pela propaganda de produtos e serviços para o consumo. Muitos deles passam longe das nossas necessidades reais. Saber distinguir o que realmente precisamos comprar em contraponto ao que só desejamos adquirir não é fácil. O que precisamos, de fato, é muito mais importante do que os produtos ou serviços que queremos. Por isso, necessitamos desenvolver o hábito de prestar atenção às nossas escolhas. Muitas pessoas têm dificuldade em controlar o impulso de comprar imediatamente o que querem. Por isso, é importante refletir se a aquisição é realmente necessária e se não implicará desconforto financeiro seu ou da família, gerando dívidas com cartões de crédito e empréstimos. Além disso, adiar a satisfação imediata dos desejos propicia a reflexão sobre valores e escolhas: • Por que é importante adquirir esse produto ou serviço? • O quanto ele é útil? • Eu realmente necessito disso neste momento? Caso se conclua que o produto ou serviço é realmente necessário, torna-se importante planejar a sua compra. É muito difícil resistir aos apelos da propaganda, principalmente quando se é mais jovem. Por isso, é importante propiciar às crianças, aos adolescentes e aos jovens, situações de aprendizagem nas quais possam pensar em como lidar com o dinheiro. É uma forma de exercitar escolhas e desenvolver atitudes e valores saudáveis para a vida pessoal e para a vida em sociedade. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Consumo e consumismo Inicie a oficina perguntando os significados de consumo e de consumismo, o tema do dia. Sabem do que se trata? Faça uma rodada para que as(os) participantes levantem as suas hipóteses e então proponha a elas(es) assistirem a uma animação de Estevam Guerra: Consumismo – Desenho animado ambiental. Acesse em Peça que observem bem o que acontece em cada cena: na praia, na casa, no escritório, no supermercado e no shopping. Terminado o vídeo, abra para discussão: • Qual é o tema da animação? • Quais mensagens ela passa? 38 • Por que ela trata essa questão? • O que fazer? Há alguma saída? • O que ainda é possível modificar? • Se continuar assim, o que acontecerá com as pessoas quando os elementos essenciais para a vida, como a água e os alimentos, começarem a faltar? Discuta com as(os) estudantes o papel da propaganda veiculada nos grandes meios de comunicação de massa - como TV, rádio e internet - no estímulo ao consumo exagerado. Apresente e discuta as alternativas possíveis: • De um lado, as indústrias devem produzir cuidando dos recursos naturais, não destruindo a natureza, reflorestando e mantendo as espécies de animais que garantem o equilíbrio dos ecossistemas; • De outro, as pessoas devem desenvolver o hábito do consumo consciente, adquirindo somente o que realmente precisam para as suas necessidades, cuidando de separar o lixo reciclável e reaproveitar tudo o que for possível, desde os alimentos até as embalagens. Preciso ou quero? Encaminhe agora a discussão para os conceitos relacionados a precisar e a querer. Será que sabemos diferenciar o que é um e outro? Proponha um exercício. Forme duplas e distribua, para cada uma, uma relação com 18 itens (conforme exemplo abaixo) para classificarem em duas colunas: preciso e quero. Após dez minutos, peça às duplas que relatem as suas respostas, com justificativas. As demais terão alguns minutos para se manifestar, concordando ou discordando. 39 E se? Se houver divergências, problematize para ajudá-las(os) a chegarem a uma posição de bom senso, sem exageros. A seguir, em grupos maiores com quatro ou cinco participantes, desafie-as(os) a levantar três outros itens realmente necessários que não estão na lista, além de três itens não necessários, que são apenas objetos de desejo. Dê um tempo de 20 minutos para realizarem a atividade e abra a roda para socializarem. Analise a coluna quero com as(os) participantes, tentando identificar a origem dos desejos e o papel da mídia nesse processo. Oriente ainda para que identifiquem os desejos mais comuns manifestados no grupo e discuta a relação entre esses desejos e a geração das(os) alunas(os) - certamente seus avós tinham outros desejos -, ou seja, entre os desejos das pessoas e o contexto histórico e cultural em que vivem. Por isso é importante desenvolvermos a consciência do contexto em que estamos inseridos e as implicações dele em determinados comportamentos e atitudes que assumimos na vida em sociedade. Feche a discussão aproveitando ao máximo o que trouxeram de argumentos para a socialização. Registre as principais ideias em um cartaz para ser afixado na sala. Finalize a oficina apresentando outro vídeo para elas(es), uma animação muito interessante e radical do ilustrador inglês Steve Cutts, especialista em desenvolver animações com conteúdos questionadores em relação aos hábitos e às escolhas do ser humano na atual sociedade de consumo. Acesse em Peça que comentem a alegoria do vídeo, chamando a atenção para o que o ser humano está fazendo com o planeta e também consigo. Não é incomum, na sociedade atual, algumas pessoas desenvolverem doenças relacionadas ao consumo, tornando-se dependentes desse hábito, assim como acontece com as(os) dependentes de álcool ou de outras drogas. Exemplo de lista Hora de avaliar Após a projeção do víde o de Steve Cutts, abra a roda para avaliação. Peça que se manifestem em relação ao que viram na oficina: • Conseguiram fazer a distinção entre precisar e querer? 40 Atividade extra É possível organizar uma bela feira de trocas. As(Os) participantes podem marcar um dia para trazerem objetos pelos quais já não têm muito interesse, como brinquedos, roupas e livros, para serem trocados por outros objetos das(os) colegas. Uma comissão poderá ser eleita para organizar a sala e o evento. Referências D’Aquino, Cássia. Como falar de dinheiro com seu filho. São Paulo: Saraiva, 2014. Para ampliar • É muito difícil? • Aprenderam algo que ajude a ter atitudes de consumo mais equilibradas e sensatas? • Foi bom trabalhar em dupla? • Houve alguma dificuldade? Como a superaram? 41

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Oficinas
Políticas públicas, participação e cidadania

Democracia em pauta

Democracia também se aprende na escola - e na prática. Baseado nisso, confira algumas sugestões de oficinas sobre política e cidadania para as(os) estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.

1 Políticas públicas, participação e cidadania Oficinas para entender a política como ferramenta de transformação social 2 3 Construir uma sociedade mais justa, democrática e participativa exige que todas as pessoas compreendam seu papel como cidadãs(ãos) e saibam como exercer seus direitos. É na escola que muitas(os) estudantes têm o primeiro contato com temas como democracia e participação social. Por isso, organizamos este conjunto de oficinas temáticas sobre Políticas públicas, participação e cidadania, voltado aos anos finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. Esses roteiros foram pensados para apoiar o planejamento de educadoras e educadores, e, ao mesmo tempo, estimular a adaptação e a criatividade, respeitando os contextos específicos de cada território. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no chão da escola, construídas em diálogo com a comunidade escolar, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade cultural brasileira. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Os três poderes da República 5 Oficina 2 - Mulheres na política, sim senhor 13 Oficina 3 - O ECA e eu 21 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Os três poderes da República • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Papel Kraft. • Cartolinas. • Cola. • Tesoura. • Canetinhas. • Revistas. • Perceber que a política é um caminho para transformação e melhoria da qualidade de vida de todas(os). • Vivência e reflexão sobre o sentido da política e a organização republicana brasileira. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Identificar os espaços de representação e participação política. • Entender o funcionamento dos poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário). • Distinguir os conselhos ligados às políticas públicas e aos movimentos sociais. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 6 Segundo o Dicionário Caldas Aulete, política é “a arte e ciência da organização e administração de um Estado, uma sociedade, uma instituição etc.”, ou ainda “a habilidade para negociar e harmonizar interesses diferentes”. Podemos dizer que a política está presente em todas as relações humanas, das mais amplas (administração do Estado) às mais restritas (harmonização de interesses em pequenos grupos sociais, como família, escola, associação de bairro etc). Assim, se faz política sempre e em todos os lugares: • No Governo, quando se elaboram as políticas públicas como a econômica, de cultura e de educação, para apresentar à sociedade; • No Congresso Nacional e nas Câmaras Legislativas, quando senadoras(es), deputadas(os) e vereadoras(es) se reúnem para elaborar projetos de lei ou votá-los; • Em Conselhos vinculados às políticas públicas; • Nos Movimentos Sociais, quando cidadãs(ãos) se organizam para reivindicar algo; • No meio estudantil, quando adolescentes e jovens participam de um Grêmio, Centro Acadêmico, de projetos sociais e assim por diante. Enfim, debater e tomar decisões coletivas sobre problemas de interesses de determinados grupos, como escolas, OSCs, bairros, sindicatos ou partidos, é fazer política, visando transformar a realidade em uma vida melhor para todas(os). Início de conversa O que é política? Confira a conversa com o professor Mario Sergio Cortella. Acesse em PARA APROFUNDAR Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro momento: congela/descongela Peça ao grupo que ande pela sala, observando o espaço. Em determinado momento, você dará uma comanda para a formação de duplas. As(Os) participantes, então, deverão se cumprimentar de diferentes maneiras e iniciar uma conversa. Enquanto estiverem se cumprimentando e conversando, você falará congela. Vá até cada dupla e descongele uma(um) das(os) adolescentes ou jovens, que sairá de cena enquanto a outra pessoa permanece congelada. Quem sair de cena deverá se aproximar de outra(o) adolescente ou jovem congelada(o). Observando a posição em que a pessoa se encontra, a(o) 7 adolescente ou jovem que se aproximou deve imaginar quais ações a(o) colega poderia estar fazendo e se encaixar na cena como se estivesse dando continuidade ou complementando o movimento de quem está congelada(o). Repita algumas vezes a brincadeira. Ao final, pergunte como foi fazer esta atividade, comentando as palavras mais utilizadas pelo grupo. Remeta a discussão à ideia de complementaridade e representatividade. Segundo momento: roda de conversa Convide a turma a se sentar em círculo e anuncie que irão falar sobre política: • O que entendem por política? • Já leram ou ouviram alguém falar em atividade política, participação política, organização política, ou, ainda, política para juventude, política educacional, política ambiental? • Onde leram: em jornais, revistas, na internet? • Em que fontes ouviram falar: rádio, televisão, internet, amigas(os), classe política representante do bairro, instituição religiosa? Apresente as informações abaixo em forma de diálogo, conversando com o grupo e trazendo aos poucos os dados sobre os três poderes e seu funcionamento. E se? Se apresentarem um conceito negativo de política, ligado à ideia de corrupção e desencantamento, diga que realmente é hora de discutir o tema. É verdade que há esse lado ruim da política, basta olhar para a realidade do nosso país e do mundo. Mas, política não é sinônimo de corrupção. Identificar política e corrupção como elemento único é equivocado e colabora apenas para manter a situação como está, e a se negar a qualquer transformação. Política é a possibilidade de conseguir modificar a realidade em que se vive, porque isso só é possível com poder decisório, e há sempre uma disputa desse poder entre os diferentes grupos sociais. O termo política tem origem no grego politiká, uma derivação de pólis, palavra que em grego significa cidade, isto é, o lugar onde as pessoas vivem juntas. Refere-se àquilo que é público, ao espaço público. Dessa maneira, política se refere à vida em comum, à elaboração das normas, regras e leis que organizam uma determinada comunidade. A filósofa Marilena Chauí fala sobre o legado grego da democracia ateniense, que inaugurou outra maneira de exercício do poder. Acesse em PARA APROFUNDAR Os três poderes Nas democracias, existem três poderes políticos que organizam o Estado, previstos na Constituição, lei maior que reúne o conjunto de leis que regem um país e definem o projeto social que se deseja para ele. São eles: o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. 8 1. Poder Executivo O Poder Executivo tem a responsabilidade de executar as leis, implementando as políticas públicas de Educação, Saúde, Habitação, Cultura, Segurança, Assistência Social, Esporte etc. Palácio do Planalto, em Brasília (DF), sede do Executivo Federal no Brasil. Foto: Wikipédia É formado pela Presidência e por seus Ministérios, Secretarias, Órgãos da Administração Pública e Conselhos de Políticas Públicas. Nos Estados e Municípios, é representado pelas(os) Governadoras(es) e Prefeitas(os), respectivamente, e suas(seus) Secretárias(os). A(O) Presidenta(e) é eleita(o) de maneira direta pelas(os) cidadãs(ãos) e tem mandato de quatro anos. No Brasil, como em alguns outros países, a mesma pessoa pode ser reeleita por mais quatro anos, enquanto que as(os) Ministras(os) e Secretárias(os) são escolhidas(os) pela(o) Presidenta(e) em questão. 2. Poder Legislativo O Poder Legislativo tem como função elaborar leis e fiscalizar o cumprimento delas. Suas(Seus) integrantes são eleitas(os) pelo voto direto da população. Sede do Congresso Nacional em Brasília (DF). Foto: Dante Laurini Jr/Wikipédia No Brasil, o Poder Legislativo é representado pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara de Deputados (Deputadas(os) Federais) e pelo Senado Federal (Senadoras(es)). Nos Municípios e Estados, o Poder Legislativo é exercido, respectivamente, pelas Câmaras de Vereadores e pelas Assembleias Legislativas Estaduais (Deputadas(os) Estaduais). 9 Na esfera federal, também integra o Poder Legislativo o Tribunal de Contas da União (TCU), órgão que auxilia o Congresso Nacional na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração pública direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas. 3. Poder Judiciário O Poder Judiciário tem a função de aplicar a lei, julgar e interpretar os fatos e conflitos, fazendo cumprir a Constituição. Palácio do Supremo Tribunal Federal em Brasília (DF). Foto:Leandro Ciuffo/Wikipédia Diferente do Executivo e do Legislativo, as(os) integrantes do Judiciário não são eleitas(os) pelo voto popular. Para ingressar na carreira, é preciso ter formação em Direito e fazer um concurso público. Para ocupar postos superiores, existem critérios específicos de escolha. No Brasil, os órgãos responsáveis pelo funcionamento do Poder Judiciário são o Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), além dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), Tribunais e Juízes do Trabalho, Tribunais e Juízes Eleitorais, Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. As esferas responsáveis por julgar as causas no Poder Judiciário são divididas de acordo com a hierarquia de cada órgão ou tipo de caso, que são chamadas instâncias. Apesar de estarem separados e com atribuições distintas, os três poderes devem ser complementares, para o bom funcionamento da sociedade. A ideia da separação entre Executivo, Legislativo e Judiciário é justamente para que nenhum poder seja soberano e absoluto na sociedade. Ministério Público O Ministério Público é uma instituição pública autônoma criada pela Constituição Brasileira de 1988, para defender os interesses da administração pública e de toda a população. Fazem parte do Ministério Público as(os) Procuradoras(es) - federais, estaduais e municipais - e as(os) Promotoras(es) de Justiça e do Trabalho; a elas(es) cabe a tarefa de defender o interesse que não pertence a uma só pessoa, mas a toda a população (interesse público). 10 O Ministério Público é um órgão independente e não pertence a nenhum dos Três Poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário. A(O) chefe do Ministério Público da União é a(o) Procuradora(or)-Geral da República. Exerce as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), sendo também a(o) Procuradora(or)-Geral Eleitoral (PGR). A(O) PGR deve sempre ser ouvida(o) em todos os processos. Democracia Representativa e Democracia Direta A Democracia Representativa é aquela em que o poder político é exercido por pessoas/partidos eleitos pelas(os) cidadãs(ãos), que as(os) representam nos espaços de decisão política. A Constituição de 1988 inovou no conceito de representatividade, ampliando a participação popular nas decisões e controle das questões públicas, com a criação dos Conselhos vinculados às diferentes políticas públicas. A participação direta da sociedade civil nas decisões políticas é o que chamamos de Democracia Direta. Como canais institucionalizados de participação, os Conselhos marcam uma reconfiguração das relações entre Estado e sociedade, instituem uma nova modalidade de controle público sobre a ação governamental e, idealmente, de corresponsabilização quanto ao desenho, monitoramento e avaliação das políticas. Assim, os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares, o Conselho da Assistência Social, os Conselhos da Educação e da Saúde possibilitam maior participação das pessoas nos processos decisórios e na destinação dos recursos públicos para essas áreas, democratizando nossa sociedade. Afinal, os recursos financeiros que o Estado destina à implementação das políticas básicas (Educação, Saúde, Habitação, Cultura, Segurança, Assistência Social e Esporte) são provenientes da arrecadação de impostos e, portanto, pagos por todas(os) as(os) cidadãs(ãos). Assim, acompanhar em que está sendo empregado esse dinheiro é direito e responsabilidade de cada uma(um) de nós. Terceiro momento: construindo poderes Para que adolescentes e jovens vivenciem uma experiência de fazer política, proponha uma brincadeira, em que serão responsáveis pela estruturação das leis de um país fictício. Peça para formarem três grandes grupos. Oriente a imaginarem que estão construindo um novo país em um planeta desabitado, no qual deverá reinar a paz, a boa convivência e o bem-estar da população. Instrua que deem um nome a esse novo país e que imaginem como deverá ser a sua organização social: • Como serão elaboradas as leis? • Quem as faz? • O que acontecerá quando alguém descumprir as leis? • Como o Governo conseguirá arrecadar dinheiro para atender às necessidades básicas da população? 11 • Em que será empregado o dinheiro arrecadado? Lembre-se de que se trata de um exercício de imaginação. Você pode acrescentar outros ingredientes para que as(os) adolescentes e jovens desenvolvam a sua criatividade. Distribua revistas, jornais, canetinhas, cola e papel kraft para que cada grupo monte um cartaz que expresse como será esse novo país. Dê a elas(es) um tempo para confeccionarem os cartazes e peça para apresentarem a produção ao coletivo. Após a apresentação dos três grupos, discuta a natureza das ações propostas nas produções que, na verdade, são essencialmente políticas. Problematize se o que apresentaram são estruturas compatíveis com o projeto social proposto para o planeta – propiciar a todas(os) a paz, a boa convivência e o bem-estar. • Houve coerência entre as leis e o projeto de sociedade que se quer? Provavelmente, sim. Afinal, foram elas(es) que definiram as regras desse planeta imaginado, porque na ficção tinham poderes para isso. No entanto, no mundo real também são os seres humanos que fazem as leis e organizam a vida econômica, social e cultural de um país. • E por que nem sempre, então, reina a paz, a boa convivência e o bem-estar de todas(os)? Isso ocorre porque, como já foi dito, existem interesses diferentes e até antagônicos dos diversos grupos sociais que compõem cada sociedade. Por isso, é importante reconhecer que esses interesses interferem nas estruturas e nas leis criadas pelos seres humanos que são investidos de poder. Se eles representam apenas a minoria da população, essa parcela menor de pessoas será beneficiada. Para que as leis beneficiem a maior parcela da população, essa maioria precisa ter poder para isso. A luta pelo poder, portanto, caracteriza a luta política para dar os rumos desejados à vida que se tem, na direção de se conquistar a vida que se quer. Para finalizar, apresente um texto do escritor, poeta e teatrólogo alemão Bertold Brecht (1898-1956): “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito, dizendo que odeia a política. Não sabe ele que de sua ignorância nasce a prostituta, o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, corrupto e o explorador das empresas nacionais e multinacionais.” Atividade extra Você pode organizar com a turma uma mesa-redonda com professoras(es) de História, Geografia, Sociologia e Filosofia, sobre a importância da política para a melhoria de vida da população. Este evento pode ser aberto para toda a escola ou mesmo para a comunidade. Hora de avaliar Para ampliar Em roda, cada uma(um) manifestará a sua opinião a respeito da oficina e nomeará as aprendizagens realizadas, se considerarem ter aprendido algo novo. 12 Referências Políticas Públicas Coletânea - Volume 2 - IPEA - Acesse em Plenarinho: o jeito criança de ser cidadão: os três poderes - Acesse em Politize! A separação dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário - Acesse em 13 Oficina 2 Mulheres na política, sim senhor Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Caixa com tiras de papel sulfite. • Filipetas de cartolina. • Desconstruir preconceitos e debater a importância da participação das mulheres na política. • Debate e pesquisa sobre a representação da mulher na política nacional e local. • Repensar os papéis sociais atribuídos aos gêneros feminino e masculino. • Colocar-se no lugar de pessoas com posições ou ideias diferentes da sua. • Aprender a argumentar. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 3 encontros de 1h30 a 2h cada. Voltar para o sumário 14 Início de conversa A luta das mulheres para serem reconhecidas como cidadãs, com os mesmos direitos que os homens, vem de longa data e se dá em várias áreas, intensificando-se no século XX com o movimento feminista. Entretanto, ainda hoje, em pleno século XXI, há poucas mulheres em posições de liderança, tanto na política como nos serviços públicos, no setor privado, nas universidades e na ciência. Na 66ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, mulheres que ocupam posições de liderança política defenderam o aumento da participação política feminina em todo o mundo. As líderes assinaram uma declaração conjunta com recomendações para a promoção do avanço das mulheres em áreas de poder e decisão. No documento, afirmam: “Mulheres em todas as partes do mundo continuam a ser marginalizadas na esfera política, muitas vezes como resultado de leis discriminatórias, práticas, atitudes e estereótipos de gênero, baixos níveis de educação, falta de acesso à saúde e também pelo efeito desproporcional da pobreza nas mulheres.” (ONU, Declaração Conjunta sobre o Avanço das Mulheres na Participação Política, 2011). As mulheres enfrentam obstáculos legais e culturais à participação na vida política. Há leis e instituições discriminatórias que limitam, de formas sutis ou explícitas, a opção de votarem ou concorrerem a cargos de liderança. Além disso, há o imaginário popular de que as mulheres, de modo geral, não têm educação e recursos necessários para se tornarem líderes eficazes. Essas ideias, construídas ao longo da história e numa sociedade em que os homens sempre detiveram o poder, constituem obstáculos bastante fortes e desafios a serem enfrentados. No Brasil, mesmo com a lei eleitoral de 1997, que determinou a cota de pelo menos 30% de candidatas em cada partido para concorrer às eleições, houve pouca mudança na representação feminina no Poder Legislativo do país. A Constituição Federal de 1988 consagrou no artigo 5º o princípio da igualdade, no capítulo que trata dos direitos e garantias fundamentais, afirmando que “todos são iguais perante a lei” e reafirmando no inciso primeiro do referido artigo que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Estabeleceu ainda como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Essa luta tem história O lugar das brasileiras na política é uma construção de mais de um século, feita de iniciativas individuais e coletivas. Em 25 de outubro de 1927, o Rio Grande do Norte foi o primeiro Estado a estabelecer que não haveria distinção de gênero para o exercício do sufrágio. Assim, no ano seguinte, no município de Mossoró (RN), Celina Guimarães Viana, de 29 anos, cadastrou-se em um cartório para ser incluída na lista de eleitoras(es). No mesmo ano, uma fazendeira, Alzira Soriano de Souza, foi eleita prefeita na cidade de Lajes (RN), no mesmo Estado. No entanto, a Comissão de Poderes do Senado impediu que o voto de Celina fosse reconhecido e que Alzira tomasse posse do cargo. 15 No dia 24 de fevereiro de 1932, foi publicado o primeiro Código Eleitoral do Brasil, que tornou facultativo o voto às mulheres. Todavia, esse direito restringia-se às mulheres casadas, com autorização dos maridos, e às viúvas e solteiras com renda própria. As barreiras foram totalmente eliminadas somente em 1934. Em 1946, uma nova lei passou a prever a obrigatoriedade do voto também para as mulheres, que até então era um direito, mas não um dever. A luta das mulheres pelo direito de votar, no Brasil, não era uma iniciativa isolada. Ela encontrava estímulo e apoio na luta das sufragistas inglesas e estadunidenses, que defendiam a mesma causa à época. A conquista do voto feminino no Brasil. Foto: Wikimedia Commons A bióloga Bertha Lutz, um dos maiores nomes na defesa dos direitos políticos das mulheres brasileiras, fundou, na década de 1920, a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, com a anarquista Maria Lacerda de Moura. Havia ainda Eugenia Moreyra, a primeira jornalista mulher de que se tem notícia no Brasil, uma sufragista declarada que incluía em seus artigos frases como: “A mulher será livre somente no dia em que passar a escolher seus representantes.” Bertha foi companheira de bancada da primeira brasileira a votar e ser votada, Carlota Pereira de Queirós, eleita Deputada Federal por São Paulo, em 1935. A chegada de Bertha ao Parlamento aconteceu um ano depois da eleição de Carlota. Ela foi acusada pelos próprios colegas de partido de haver fraudado as eleições, mas foi inocentada em fevereiro de 1935. Bertha Lutz defende o direito de voto para as mulheres. Foto: reprodução 16 Em seu primeiro discurso, no dia da posse na Câmara dos Deputados, em 28 de julho de 1936, Bertha Lutz registrou a realidade daquele tempo, que permanece muito atual: “A mulher é metade da população, a metade menos favorecida. Seu labor no lar é incessante e anônimo; seu trabalho profissional é pobremente remunerado e as mais das vezes o seu talento é frustrado quanto às oportunidades de desenvolvimento e expansão. É justo, pois, que nomes femininos sejam incluídos nas cédulas dos partidos e sejam sufragados pelo voto popular.” E hoje? Segundo Gisela Cardoso, secretária-geral adjunta da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Mato Grosso (OAB-MT) - e presidente da Comissão de Direito da Mulher - 2016, a participação feminina nos espaços de poder é necessária para o aperfeiçoamento e a consolidação da democracia e, apesar dos avanços já constatados, muito ainda há que ser feito para mudar o quadro atual da pouca presença de mulheres na esfera político-partidária no Brasil e para superar a desigualdade de gênero. Ainda segundo ela, sem dúvida, a redução das desigualdades historicamente acumuladas somente será possível por meio de políticas e ações afirmativas. Podemos citar como exemplo a luta pela cota de cadeiras no exercício das instâncias legislativas e não apenas em relação à candidatura nos partidos. Primeiro encontro: experimentando argumentos para o debate Receba as(os) estudantes com a frase Lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive na política, escrita na lousa ou em um cartaz grande. Aguarde um momento para que leiam. Não interfira nas manifestações delas(es) a respeito da frase. Apenas observe. Participação de mulheres na política Quando todas(os) tiverem lido a frase, proponha que elas(es) formem dois grupos, A e B. Em seguida, fale que o grupo A será o time do concordo com a frase, e o B, do discordo. Independentemente da opinião pessoal, as(os) participantes de cada grupo deverão discutir entre si e construir argumentos para defender o posicionamento que lhes foi atribuído ou se contrapor à outra posição. Peça que se reúnam e anotem as ideias e os argumentos que elaborarem para apresentar em um debate com o outro grupo. O ideal é que cada estudante possa desenvolver e apresentar um argumento no debate. Combine com elas(es) o tempo para esse trabalho: de 15 a 20 minutos. Na prática Sugestão de encaminhamento 17 E se? Se o grupo não conseguir reunir um número de argumentos correspondente ao de participantes, mais de uma(um) delas(es) poderá usar o mesmo argumento, reforçando a posição de outra(o) colega, acrescentando alguma contribuição ou exemplo. O importante é que todas(os) participem, argumentando, tanto a favor quanto contra. Após o tempo combinado, abra para o debate que também terá a duração de 15 a 20 minutos. Você será a(o) mediadora(or). Antes, combine algumas regras para que o debate seja democrático, como: • Todas(os) têm direito de falar e de ser ouvidas(os); • Quem quiser falar, deve pedir a palavra; • Nenhuma pessoa pode ser interrompida; • Cada uma(um) que falar terá de 1 a 2 minutos para expor o seu argumento; • Pode haver repetição da intervenção de uma(um) participante, mas somente depois que todas(os) tiverem falado. Quando perceber que a discussão está se repetindo, finalize o debate. Inverta, agora, a posição dos grupos. Quem defendeu o concordo, discordará da frase e quem defendeu o discordo, concordará com ela. Elas(es) terão mais 15 a 20 minutos para elencar os seus argumentos a favor ou contra. Estimule- -as(os) a usar outros argumentos que não foram utilizados pelo grupo anterior. Repita a rodada com as mesmas regras por mais 15 a 20 minutos. Para finalizar, discuta com elas(es) sobre os argumentos que acharam mais convincentes, dos dois grupos, para cada uma das posições. Peça que anotem em duas apresentações: uma com os argumentos do concordo com a frase e outra com os argumentos do discordo da frase. Dando continuidade, elas(es), assim como você, devem pesquisar na internet, em sites oficiais, de preferência, as seguintes informações para trazer no próximo encontro: 1. Município onde vivem • Qual o número total de Vereadoras(es) na Câmara Municipal da cidade? • Quantas são as mulheres Vereadoras? • Quantas Prefeitas existiram na história da cidade? 2. Estado onde fica o Município • Qual o número total de Deputadas(os) Estaduais na Assembleia Legislativa do Estado? • Quantas são as mulheres Deputadas Estaduais? • Quantas Governadoras existiram na história do Estado? 18 3. País • Qual o número total de Deputadas(os) Federais na Câmara Federal? • Quantas são as mulheres Deputadas Federais? • Qual o número total de Senadoras(es) no Senado? • Quantas são as mulheres Senadoras? • Quantas Presidentas o país teve? Segundo encontro: analisando os dados Neste encontro, as(os) estudantes devem analisar os dados que coletaram na pesquisa. Oriente que: • Organizem-se em grupos, confiram os dados recolhidos e façam uma tabela, conforme exemplo abaixo, com os números que encontraram para Vereadoras, Prefeitas, Deputadas Estaduais, Governadoras, Deputadas Federais, Senadoras e Presidentas. • Observem bem os dados. Que leitura fazem deles? O que chama a atenção do grupo? Abra para a socialização no coletivo após 20 minutos, aproximadamente. Provavelmente elas(es) perceberão que há mulheres no Legislativo e que, praticamente, não há mulheres no Executivo. Se não citarem esse dado, chame a atenção delas(es). Questione: • Por que acham que isso acontece? Pergunte o que acham sobre o número de mulheres no Legislativo (Vereadoras, Deputadas e Senadoras), considerando o total de políticos nos respectivos cargos. É significativo? É representativo? Estimule que falem o que estão pensando, problematize os argumentos com dados das pesquisas que fizeram e colabore também com algumas considerações. Representação feminina na política 19 Você sabia que, por lei, são exigidos 30% de candidatas mulheres, por partido? Mas isso é suficiente? Há várias denúncias de que os partidos fraudam as cotas, incluindo nomes de falsas candidatas só para atender aos dispositivos legais. Além disso, não dão o mesmo apoio às campanhas das mulheres como acontece nas campanhas dos políticos homens. PARA APROFUNDAR Esclareça que a baixa representação da mulher na política é uma questão de natureza histórico-cultural, nada tem que ver com condições biológicas e que não é uma questão apenas do nosso país. Essa situação tem mudado no mundo, nas últimas décadas, em função do debate que os movimentos feministas têm colocado em pauta na sociedade. Com o debate e as reivindicações de participação das mulheres, apesar das enormes resistências, tem-se avançado bastante, inclusive no estabelecimento de cotas nas candidaturas dos partidos. Segundo pesquisa da professora Luciana Panke, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o Brasil tem a terceira menor representatividade de mulheres na Câmara dos Deputados na América Latina e está em 155º lugar numa comparação mundial. Atualmente, há um movimento das mulheres que atuam na política brasileira para exigir a adoção de cotas femininas nos cargos políticos e não na candidatura aos cargos. O atendimento a essa reivindicação seria mais justo, pois, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as mulheres representam 10% das(os) Deputadas(os) Federais e 14% das(os) Senadoras(es), embora somem mais da metade da população (51,8% segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua – Pnad Contínua 2019) e tenham passado a ocupar 44% das vagas do mercado formal de trabalho, em 2016 (Cadastro Geral de Emprego e Desemprego – Caged e Relação Anual de Informações Sociais – Rais). O percentual de participação política é idêntico nas Assembleias Estaduais e menor ainda nas Câmaras de Vereadores e no Poder Executivo. A reportagem Lugar de mulher também é na política, publicada no site do Senado, aborda essa questão dando outras informações interessantes para você, educadora(or), ampliar a visão sobre o assunto. Acesse a reportagem em Para fechar a oficina, sistematizando com as(os) adolescentes e jovens as ideias veiculadas ao longo dos dois encontros, projete o vídeo Os desafios das mulheres na política, do Jornal Futura. A reportagem traz o depoimento de algumas brasileiras ocupantes de cargos no Poder Legislativo sobre a representação da mulher na política. Acesse o vídeo em Vocês também podem assistir à websérie documental Mulheres e Política: histórico, realizada pelas jornalistas Bárbara Bárcia, Claudia Alves e Fernanda Prestes, em parceria com a Revista AzMina. Acesse o vídeo em Hora de avaliar O último encontro deve ser uma conversa para avaliar a atividade. Uma ideia é propor às(aos) participantes a construção de um texto coletivo oral, sobre o tema da oficina, da seguinte forma: • Uma(Um) das(os) estudantes começa uma frase e as(os) seguintes acrescentam palavras, uma a uma, de modo a dar sentido à continuação do texto. 20 Atividade extra Vocês podem organizar uma conversa com alguma mulher do seu território que está ou esteve ocupando um cargo legislativo ou executivo para ser entrevistada pela turma. Podem também entrar em contato com a Câmara Municipal, marcando uma entrevista coletiva com: • As eventuais vereadoras em exercício; • Os vereadores, caso haja somente homens na Câmara, para discutirem a falta de representação feminina na Casa. Em ambas as sugestões, é importante retomar o tema, definir os objetivos desses encontros e organizar com a turma alguns tópicos e/ou perguntas a serem discutidos. Conteúdos na web MONTEIRO, Ester. Lugar de mulher também é na política - Acesse em ONU Mulheres Brasil. Liderança e participação política - Acesse em ONU Mulheres. O progresso das mulheres no Brasil 2003-2010. Rio de Janeiro, 2011 - Acesse em PANKE, Luciana. Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências. Curitiba: Ed. UFPR, 2017 - Acesse em TSE. Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil é comemorado nesta segunda (24) - Acesse em Para ampliar Registre as frases numa apresentação ou grave o encontro para que todas(os) vejam o produto final. Caso achem interessante, podem divulgar esse e outros produtos da oficina nas redes sociais. 21 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 O ECA e eu • Folhas de papel jornal. • Pincéis. • Spray para grafitagem. • Exemplares do Estatuto da Criança e do Adolescente (podem ser obtidos na Secretaria de Assistência Social da cidade ou no Centro de Referência da Assistência Social - CRAS). • Conhecer os direitos que devem ser assegurados às crianças e aos adolescentes, bem como as responsabilidades correspondentes. • Reflexão sobre a condição legal da criança e da(o) adolescente no Brasil. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Saber que as crianças e as(os) adolescentes têm direitos de cidadania e a quem devem recorrer no caso da violação desses direitos. • Reconhecer o que é um estatuto e para que serve. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, sala de leitura ou outro espaço. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 22 Os direitos da criança e da(o) adolescente integram o elenco de direitos da pessoa humana. No Brasil, chamam a atenção de todas(os) para a situação específica das pessoas na faixa de 0 a 18 anos, pessoas em desenvolvimento que necessitam de proteção integral. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/90) é uma lei resultante do esforço e da atuação de grupos de pessoas e de movimentos sociais. A partir de sua promulgação, crianças e adolescentes passaram a ser consideradas(os) cidadãs(ãos), com direitos e deveres. Antes desse dispositivo legal, as pessoas nessa faixa etária eram regidas pelo Código de Menores (Lei nº 6.697/79), que, ao empregar o termo “menor”, tinha como pressuposto a ideia de incapacidade e falta de direitos. Trata-se de uma importante conquista, fruto da redemocratização do país, após duas décadas de regime militar. Em um contexto mais amplo, o ECA se vincula a uma luta histórica da humanidade, desde o século XVIII, com as ideias iluministas, e que culmina com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948. Incluir-se nessa comunidade de pessoas que conhece, respeita, valoriza e reivindica sua efetivação é continuar essa luta de gerações que nos precederam e pela qual muitas(os) morreram para que essas ideias pudessem vingar. No entanto, não há como falar de direitos sem falar nas obrigações pessoais que o uso ou o cumprimento do direito requer. Quando se diz que os direitos são universais é justamente para reforçar a ideia de que devem ser partilhados por todas(os), sem distinção de espécie alguma. As frequentes e absurdas violações dos direitos das populações vulneráveis do nosso país e de outros países não devem ser tomadas como razão para o descrédito nas leis que os afirmam, mas como encorajamento para buscar transformar coletivamente as condições que geram a sua inobservância. No plano das relações pessoais é fundamental buscar condutas norteadas pelo respeito a si mesma(o) e à(ao) outra(o), condição básica para se viver sob o signo dos direitos. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Inicie a oficina propondo uma roda de conversa. Disponha exemplares do Estatuto da Criança e do Adolescente no meio da roda, além de exemplares de adaptações do ECA em quadrinhos para discriminarem o que é o estatuto propriamente dito e o que é uma adaptação. 23 As adaptações do ECA em HQ são próprias para as crianças menores, a fim de promover uma primeira aproximação com a leitura de textos de lei. Acesse a adaptação Descolado: o ECA em quadrinhos, uma iniciativa da Fundação Projeto Travessia, OSC que tem por missão garantir o respeito aos direitos da criança e da(o) adolescente por meio de programas e projetos educativos. O roteiro adaptado e as ilustrações são do arte-educador Edson Pelicer (Cenpec). Acesse a publicação em Capa da publicação Descolado: o ECA em quadrinhos. Ilustração: Edson Pelicer Convide-as(os) a percorrer as páginas da publicação e descobrir do que se trata. Depois de algum tempo, inicie a conversa: • Qual é o título da publicação? • O que pensam que é um estatuto? • Para que ele serve? E se? Se alguma criança, adolescente ou jovem tiver uma reação de desconforto diante das discussões, como choro, agressividade e/ou retraimento, é possível que algo esteja acontecendo na sua vida. Apenas observe e depois tenha uma conversa delicada e reservada com essa pessoa, para tentar entender o que se passa. Fique atenta(o). Nós, educadoras(es), precisamos aprender a ler os sinais de desrespeito e violência a que as crianças, adolescentes e jovens eventualmente podem estar sujeitas(os). 24 Comente que estatuto é um conjunto de leis que se referem a pessoas que pertencem a um determinado grupo, com características comuns. Assim, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Índio e o Estatuto da Igualdade Racial, entre outros. Convide as(os) participantes a assistirem à projeção do vídeo Direitos das crianças, que aborda o estatuto de forma lúdica, o que as(os) ajudará, principalmente às crianças, a terem uma noção do que ele trata. Acesse o vídeo em Dê algum tempo para as(os) estudantes lerem ou apenas olharem os quadrinhos que surgem no vídeo. Depois, com o Estatuto da Criança e do Adolescente em mãos, prepare-se para ler com elas(es) os artigos da Parte Geral, do 1º ao 6º. A leitura desta parte é mais fácil de se entender, particularmente após as(os) participantes assistirem ao vídeo e observarem os quadrinhos nele contidos. O vídeo oferece a elas(es) uma noção do espírito do estatuto, uma vez que a leitura de leis é geralmente difícil e árida. Leia os artigos da Parte Geral do estatuto, uma a um, do 1º ao 6º, discutindo os seus significados. Depois, retome o artigo 4º, sistematizando tudo o que viram e ouviram: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” O ECA em cartazes Forme grupos e distribua folhas de papel jornal e pincéis para o registro do trabalho em um cartaz. Para as crianças menores, cole as folhas de papel jornal, a fim de formar um grande painel para cada uma(um) desenhar, em qualquer parte dele, o que chamou mais a sua atenção na projeção do vídeo ou na revista em quadrinhos. As(Os) participantes adolescentes e jovens também formarão grupos, e cada grupo escolherá dois direitos, no estatuto, que considera muito importantes para discutir e dar exemplos de como devem ser exercidos em situações do dia a dia. Além disso, discutirão também qual a sua responsabilidade na tarefa de assegurar os direitos escolhidos para si e para as(os) outras(os). Veja um exemplo de cartaz a ser utilizado na oficina: 25 Ajude-as(os) a fazer as devidas correções na escrita, para que possam publicar os cartazes, posteriormente, afixando-os nas paredes dos corredores, na sala ou no pátio da escola ou instituição educacional. Quando completarem a tarefa, abra a roda para socializarem as suas produções. Cada grupo justificará a escolha dos direitos citados, dará exemplos de como se concretizam no dia a dia e falará sobre as responsabilidades correspondentes em relação a cada um. Abra uma discussão, questionando se todas as crianças e adolescentes têm esses direitos assegurados em nosso país e por quê. • Quem é responsável por fazer valer esses direitos? • A quem devem recorrer para fazer seus direitos valerem? (neste momento é importante falar sobre o Conselho Tutelar, o que é e o que faz: um órgão responsável por fiscalizar o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, em cada cidade). Sobre o Conselho Tutelar De acordo com o ECA, em cada município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto por cinco membros, escolhidos pela comunidade, para mandatos de três anos, sendo permitida a recondução das(os) conselheiras(os) tutelares em outro mandato. Entre as funções das(os) conselheiras(os) tutelares está o atendimento de queixas e reivindicações feitas pelas crianças, adolescentes, familiares e a comunidade, além do devido encaminhamento dos casos. O telefone geral para denúncias e esclarecimentos é 0800 99 0500. Hora de avaliar Para ampliar Na roda, peça que as(os) participantes se manifestem a respeito do que leram, viram e discutiram: • O que foi mais marcante? • O que não conheciam e ficaram conhecendo? • O que gostariam de conhecer mais? Proponha que levem o Estatuto da Criança e do Adolescente para casa, para ler quando quiserem esclarecer dúvidas e também mostrar às(aos) familiares para que leiam com elas(es), se possível. Atividade extra As(Os) participantes podem grafitar um dos muros da escola ou da OSC, produzindo cenas que expressem os direitos discutidos, compondo um mural com as produções de todos os grupos. O nome do mural será escolhido coletivamente, após a sua conclusão, quando se poderá ter uma visão completa do conjunto. Lembre-as(os) de datar e assinar a manifestação artística produzida. Referências ISAAC, Alexandre; MACHADO, Ronilde Rocha. Justiça e cidadania. São Paulo: Cenpec; Febem-SP; SEE- -SP, 2002 (Educação e Cidadania, 3). 26

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Relações Étnico-Raciais e de Gênero na Educação

Educar para a igualdade

Educar para a diversidade é reconhecer e valorizar identidades, vozes e corpos. Conheça oficinas sobre relações étnico-raciais e de gênero para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.

1 Educar para a igualdade Oficinas para valorizar a equidade nas relações étnico-raciais e de gênero 2 3 Promover a diversidade na educação é reconhecer, acolher e valorizar as múltiplas identidades, histórias, corpos e vozes que compõem nossas salas de aula. É também um compromisso ético e político com a equidade, com a justiça social e com uma escola em que todas as crianças e adolescentes se sintam vistas(os), ouvidas(os) e respeitadas(os). Com esse propósito, organizamos este conjunto de oficinas temáticas sobre Diversidade na Educação, voltadas aos anos finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. Esses roteiros foram pensados para apoiar o planejamento das educadoras e educadores, mas também para inspirar novas possibilidades, adaptadas às realidades e vivências de cada turma. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no chão da escola, construídas em diálogo com a comunidade escolar, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade cultural brasileira. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - A branca ou a negra: que boneca você prefere? 5 Oficina 2 - Não à LGBTfobia! 12 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS: FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 A branca ou a negra: que boneca você prefere? • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel pardo. • Pincéis atômicos. • Dicionários. • Revistas. • Aparelho de som. • Compreender o preconceito racial como uma construção sócio-histórica que desqualifica e exclui pessoas. • Reflexão sobre o preconceito racial contra pessoas negras. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Reconhecer a relação entre racismo e exclusão social. • Aprender a questionar os costumes sociais e a defender direitos e oportunidades iguais para todas(os). • Desenvolver atitudes de respeito e tolerância às diferenças raciais. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 6 O racismo contra pessoas negras é um dos maiores problemas sociais no Brasil. O resultado do Censo Demográfico de 2010, que levantou dados sobre as Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência, mostra que a população negra é maioria no país. Mesmo assim, ainda sofre com o preconceito, a discriminação e o racismo em nosso cotidiano. Início de conversa Racismo estrutural Segundo a filósofa Djamila Ribeiro, em entrevista para o site DW - made for minds: “o racismo estrutura as relações raciais no Brasil. Uma estrutura presente antes mesmo de nós termos nascido. No Brasil é comum entrarmos em restaurantes e não encontrarmos nenhuma pessoa negra no local – nem como garçom ou garçonete. Quem vai ao shopping terá dificuldade de encontrar uma vendedora de loja negra. Isso, vale frisar, em um país com 54% da população negra. Ou seja, o racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo lugar.” Djamila Ribeiro. Foto: reprodução Você sabe quais são as diferenças entre preconceito, discriminação e racismo? Confira no vídeo elaborado pelo Cenpec com base no projeto Educação para as relações étnico-raciais, iniciativa da Comunidade Cenpec, desenvolvida em 05 centros de Educação Infantil, em São Paulo, no ano de 2020: PARA APROFUNDAR Fatos sobre o racismo no Brasil O Brasil tem a maioria da população composta por pessoas negras (que, segundo o IBGE, é a soma de pretas e pardas). No entanto, as desvantagens desse grupo étnico-racial em relação à população branca continuam evidentes. • Na educação: apesar da melhoria em vários indicadores educacionais, fruto de políticas públicas afirmativas, como o sistema de cotas, a taxa de analfabetismo é maior entre pessoas pretas ou pardas, segundo o IBGE; 7 • No mercado de trabalho: pessoas brancas com nível superior completo ganham mais do que pessoas pretas ou pardas com a mesma escolaridade, segundo o IBGE. Além disso, pessoas pretas ou pardas ainda são minoria em cargos gerenciais; • Na segurança pública: a taxa de homicídios é expressivamente maior entre entre pessoas pretas ou pardas de 15 a 29 anos, em comparação com pessoas brancas da mesma faixa etária; • Na saúde: crianças negras com até 5 anos morrem em maior número por doenças de causas evitáveis, se comparado com pessoas brancas, segundo o Ministério da Saúde. Uma pesquisa de opinião realizada pelo PoderData em abril de 2021 mostra que: • 82% das(os) entrevistadas(os) dizem que existe preconceito contra pessoas negras no Brasil; • 11% afirmam não há racismo no país; • 7% não souberam responder. Acesse a pesquisa em Emicida. Foto: reprodução Assista ao vídeo O que é racismo estrutural?, da série Desenhando. Acesse em PARA APROFUNDAR Segundo o rapper e cantor brasileiro Emicida: “a gente precisa tocar no tema do racismo com naturalidade, ele tá no nosso dia a dia. No meu tá, no seu também. […] Não é um tabu. Infelizmente é um tabu pra sociedade porque ninguém quer tocar nisso porque vai abrir uma série de feridas e mostrar um milhão de injustiças que o Brasil cometeu, comete e se a gente não fizer nada vai continuar cometendo.” Na prática Sugestão de encaminhamento Acolhimento e roda de conversa Inicie a oficina com uma dinâmica de acolhimento. Proponha que as(os) participantes circulem pelo espaço, ao som de uma música suave. Diga para prestarem atenção às suas comandas, enquanto estiverem andando, e as executarem quando você interromper a música. Ao reiniciá-la, elas(es) continuarão a andar até a interrupção seguinte. 8 • Primeira comanda: quando a música parar, você ficará de frente para a(o) colega mais próxima(o). Sorriam um para a(o) outra(o), perguntem o nome da(o) colega e como ela(e) gosta de ser chamada(o). Ao se despedir, façam um gesto carinhoso um(a) para a(o) outra(o). Continua a música. • Segunda comanda: quando a música parar, você ficará de frente para a(o) colega mais próxima(o). Cada uma(um) perguntará de que doce mais gosta e oferecerá para a outra pessoa, “simbolicamente” (faz de conta), o doce preferido. Continua a música. Terceira comanda: quando a música parar, você ficará de frente para a(o) colega mais próxima(o). Pergunte o que a pessoa mais gostaria de ganhar de presente e ofereça, “simbolicamente”, esse presente. Continua a música. Quarta comanda: quando a música parar, cada participante procurará as(os) colegas com quem tiveram interlocução durante a atividade, para dar as mãos, formando uma roda. Como todas(os) se cruzaram antes, acabarão por formar uma única e grande roda. Coloque uma ciranda para dançarem. A seguir, convide a turma a se sentar, em roda, para conversar sobre a dinâmica realizada: • Gostaram? • Por quê? • Sentiram-se acolhidas(os)? • Quais sentimentos despertaram as gentilezas quando oferecidas e quando recebidas? São sentimentos positivos? • Já experimentaram essas sensações? • É sempre isso que acontece entre as pessoas, na vida cotidiana? • Alguém já viveu o oposto? Pergunte se alguém já se sentiu discriminada(o) numa roda de amigas(os), na vizinhança, numa festa ou evento. • Quais hipóteses têm para explicar essa discriminação? • Será que por ser muito jovem, por ser negra(o), por ser obesa(o), por ser mulher, por ser homossexual, por não ser da turma? • O que teria mobilizado a discriminação? Abra a palavra para falarem sobre o assunto. Indague se sabem que esse comportamento de afastamento e exclusão chama-se preconceito. • Sabem o significado de preconceito? • Já tiveram a curiosidade de procurar no dicionário? Oriente que, em duplas, peguem os dicionários disponíveis na sala e peça que alguém procure e leia para o grupo o significado da palavra preconceito, ou leia você mesmo, se as(os) participantes tiverem dificuldade. 9 Preconceito, portanto, é uma atitude de intolerância com o diferente, intolerância essa que é histórica e socialmente construída para marginalizar e oprimir um grupo social mais fragilizado em um determinado contexto, como as(os) negras(os), as(os) indígenas, as mulheres e as(os) obesas(os) o são em nossa sociedade. Com o passar do tempo, a atitude de marginalização se cristaliza, acaba se naturalizando, e as razões apontadas para a discriminação acabam parecendo “verdadeiras”, passando de geração a geração. Conte que há vários estudos que comprovam que as crianças crescem reproduzindo as atitudes e o discurso social das(os) adultas(os) do meio em que vivem e, desta forma, acabam por desenvolver comportamentos preconceituosos, desde a mais tenra idade. Isso acontece lentamente, pela repetição constante de práticas preconceituosas, mesmo que veladas. E, quando as(os) adultas(os) se dão conta, o preconceito está instalado. Teste das bonecas e as relações sociais em debate Proponha que as(os) participantes assistam a um vídeo que mostra o preconceito em relação às pessoas negras, na sociedade estadunidense. Trata-se da reportagem Teste das bonecas e as relações sociais, da CNN, que apresenta um estudo sobre o comportamento preconceituoso de crianças, realizado por uma equipe de psicólogas(os) da Universidade de Chicago, em 2013. Assista ao vídeo em Esse estudo é similar a uma experiência realizada em 1940 (73 anos antes), por um casal de psicólogos estadunidenses negros – Kenneth Bancroft Clark e Mamie Phipps Clark, com crianças brancas e negras e bonecas brancas e negras, para investigar a discriminação e a segregação racial nas escolas estadunidenses. Após a projeção, forme grupos para discutirem algumas questões sobre o vídeo: • Qual foi o comportamento mais frequente observado nas crianças? • Todas as crianças deram respostas iguais? • Quais respostas foram diferentes? • A que atribuem essas respostas diferentes? Segundo o dicionário Michaelis: “preconceito – pre.con.cei.to sm (pre+conceito) 1 Conceito ou opinião formados antes de ter os conhecimentos adequados. 2 Opinião ou sentimento desfavorável, concebido antecipadamente ou independente de experiência ou razão. 3 Superstição que obriga a certos atos ou impede que eles se pratiquem. 4 Social Atitude emocionalmente condicionada, baseada em crença, opinião ou generalização, determinando simpatia ou antipatia para com indivíduos ou grupos. P. de classe: atitudes discriminatórias incondicionadas contra pessoas de outra classe social. P. racial: manifestação hostil ou desprezo contra indivíduos ou povos de outras raças. P. religioso: intolerância manifesta contra indivíduos ou grupos que seguem outras religiões.” PARA APROFUNDAR 10 • A equipe de psicólogas(os) constatou diferenças entre o seu estudo e o do casal Clark? • Houve algum avanço na atitude de não discriminação? • E no Brasil? Acham que os resultados seriam diferentes? • Se as crianças são influenciadas pelos discursos das pessoas adultas, o que acham que seria importante para conquistarmos a igualdade entre todas(os)? Dê aproximadamente 20 minutos para a discussão nos grupos. Acompanhe o trabalho e ajude-as(os) na escuta da(o) outra(o). Abra a seguir a roda para a socialização e o debate. Anote em um cartaz as principais conclusões a que chegaram, em relação a cada pergunta feita e afixe na parede. Leia-as, ao final, para que reconheçam os diferentes posicionamentos. E se? Se houver algum debate mais acalorado, intervenha. Ressalte que o objetivo do debate e das reflexões é entender que a discriminação é uma atitude construída socialmente e, para que nos tornemos todos melhores seres humanos, precisamos entendê-la para evitar a reprodução. Para finalizar, projete outro vídeo, apresentando o que pensa sobre o preconceito o menino Gustavo, um garoto negro do 5º ano da escola do Centro Educacional Unificado (CEU) Curuçá, na Zona Leste do município de São Paulo. Acesse o vídeo em Gustavo deu o seu depoimento, ao término do Projeto Leituraço, realizado nas escolas municipais, em junho de 2015, pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que propõe a leitura de contos africanos nas escolas da rede por um determinado período de tempo, para que as crianças e adolescentes da rede entrem em contato com a cultura africana e a valorize, descobrindo seus encantos. Sua fala surpreende pela consciência que revela a respeito da questão. Assim como Gustavo e algumas das crianças da reportagem da CNN com as bonecas, podemos perceber o quão importante é falarmos sobre a origem histórica e social dos preconceitos e valorizarmos as produções culturais das diferentes raças/etnias, como forma de desenvolvermos atitudes e comportamentos de solidariedade, de convivência amistosa e de justiça. Após a projeção, peça que falem, no coletivo, o que podem aprender com a fala de Gustavo. Relacione essas aprendizagens em um cartaz e afixe na sala, como produção da turma. Disponha várias revistas para o grupo e cole folhas de papel pardo na parede para montarem um painel coletivo. Em duplas, peça que avaliem a oficina, escolhendo uma imagem que represente o que significou o assunto tratado para cada uma(um) das(os) participantes. Abra para comentários e peça para darem um título ao painel. Se não houver consenso em relação ao título, registre os títulos mais solicitados, mesmo que sejam vários. Explore com elas(es) essa diversidade de interpretações dentro do grupo e aponte como foi importante a compreensão e a tolerância com as diferenças, e como essa atitude é fundamental para a convivência em sociedade. Hora de avaliar 11 Atividade extra Seguem algumas sugestões de atividades a serem aplicadas na turma: • Uma oficina de criação literária para que as(os) estudantes escrevam pequenos contos ou HQs, tendo como tema central o preconceito; • Uma pesquisa na internet sobre outros episódios de racismo a serem trazidos para o debate no grupo; • Um debate sobre o racismo e como combatê-lo, envolvendo outras turmas ou mesmo a comunidade externa. Conteúdos na web El País: Abismo social separa negros e brancos no Brasil desde o parto - O cotidiano eivado pelo racismo: Ocupação Sueli Carneiro (2021) - Acesse em Emicida: O racismo está no nosso dia a dia - Acesse em JTCultura: Cida Bento fala sobre racismo estrutural e violência policial - Acesse em Feminismos Plurais: Conversa de Djamila Ribeiro com Silvio Almeida sobre racismo estrutural - Acesse em Para ampliar 12 Oficina 2 Não à LGBTfobia! Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Projetor e acesso à internet. • Folhas de papel pardo. • Pincéis atômicos. • Dicionários. •Tarjetas de cartolina nas cores verde, vermelha e amarela. • Desenvolver atitudes de respeito e convivência com as diferenças entre seres humanos. • Produção coletiva de um painel contra a LGBTfobia e o respeito à diversidade sexual e de gênero. • Acolher o diferente, garantir os direitos de cidadania no dia a dia da sala de aula e da vida. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, sala de leitura ou outro espaço. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 13 Início de conversa Durante um longo período da história da humanidade, e até hoje em muitos lugares, expressões de gênero ou orientações de sexualidade diversas do padrão vigente eram (e ainda são) discriminadas e alvo de violência. A homossexualidade, por exemplo, até bem pouco tempo, era considerada doença e crime. As pessoas homossexuais, assim como outros grupos sociais vítimas de discriminação – como mulheres, pessoas negras, indígenas, travestis e transexuais, pessoas idosas e com deficiência –, têm lutado para garantir seus direitos constitucionais à cidadania. No entanto, ao mesmo tempo, em vários outros lugares do mundo (como nos Países Baixos, na Espanha, no Canadá e em vários estados dos Estados Unidos), inclusive no Brasil, o casamento civil entre homossexuais é permitido. O casamento igualitário, ou homoafetivo, existe no Brasil desde 2013, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma resolução determinando que todos os cartórios do país realizassem casamentos entre pessoas do mesmo gênero. A decisão, contudo, não tem a mesma força que uma lei e pode ser contestada por juízas e juízes, dificultando o processo. Sem dúvida, graças às suas lutas e às de pessoas que apoiam a causa LGBTQIAPN+, conquistamos muitos avanços em todo o mundo. No entanto, ainda hoje, em alguns lugares, pessoas homossexuais são levadas à pena de morte, como na Arábia Saudita, na Mauritânia ou no Iêmen. Em outros países, apesar da legislação punir a discriminação, essa ainda é uma realidade. É o caso do Brasil: segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, em 2022, 242 pessoas LGBTQIAPN+ foram assassinadas e 14 se suicidaram. Estamos, portanto, ainda longe de viver em uma sociedade justa, pacífica e sem preconceitos. Eugênio Marongiu/Shutterstock 17 de maio é o Dia Internacional da Luta Contra a LGBTfobia. A data foi escolhida por ter sido neste dia, em 1993, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu a homossexualidade da classificação internacional de doenças e problemas relacionados com a saúde. Essa decisão foi um importante impulso na garantia de direitos civis dessa população. O objetivo da data é promover o combate ao preconceito e à discriminação contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, além de conscientizar sobre a necessidade de se respeitar as diversas orientações sexuais e identidades de gênero. PARA APROFUNDAR 14 PARA APROFUNDAR Homofobia e transfobia: um debate necessário Antes da aula, coloque um cartaz grande na parede com o tema da oficina: LGBTFOBIA NÃO! Anuncie que o assunto da oficina será diversidade sexual e de gênero. Pergunte se já ouviram a sigla LGBTQIAPN+ e se sabem o significado dela. Explicação de cada uma das letras da sigla LGBTQIAPN+: L – Lésbica: mulher que é atraída afetiva e/ou sexualmente exclusivamente por mulheres; G – Gay: homem que é atraído afetiva e/ou sexualmente exclusivamente por homens; B – Bissexual (ou Bi): pessoa que é atraída afetiva e/ou sexualmente por outras pessoas de qualquer gênero; T – Transgênero: diferentemente das letras anteriores, o T não se refere a uma orientação sexual, mas a identidades de gênero. Também chamadas de “pessoas trans”, elas podem ser transgênero (homem ou mulher), travesti (identidade feminina) ou pessoa não binária (que se compreende além da divisão binária “homem e mulher”); Q – Queer: termo abrangente que se refere a pessoas que não são exclusivamente heterossexuais e cisgêneros. O termo Queer também é utilizado para descrever identidades e expressões de gênero que vão além dos binarismos “homem e mulher”, “homossexual e heterossexual”; I – Intersexual: pessoa que nasce com anatomia reprodutiva ou sexual, ou ainda com um padrão de cromossomos que não pode ser classificado como sendo masculino ou feminino; A – Assexual: pessoa que não é atraída sexualmente por ninguém. Pode haver atração romântica/afetiva ou não; P – Pansexual: pessoa que é atraída afetiva e/ou sexualmente por outras pessoas. Apesar de ser semelhante à bissexualidade, se diferencia pelo contexto e forma que a pessoa prefere se identificar. Apesar do prefixo “pan”, que vem do grego e pode ser traduzido como “tudo”, a pansexualidade não tem nenhuma relação direta com relacionamento sexual com plantas e animais — como já foi muito difundido; N/NB — Não binários(es): pessoas que não se identificam com o gênero feminino ou masculino, podendo se identificar com mais de um ou nenhum; + – O símbolo de “mais” no final da sigla aparece sempre para incluir outras identidades de gênero e orientações sexuais que não se encaixam no padrão cis-heteronormativo, mas que não aparecem em destaque antes do símbolo. A ideia é incluir toda a diversidade, sem deixar ninguém para trás. Fonte: Na prática Sugestão de encaminhamento 15 Após ouvir as respostas, pergunte: • E o que significam as palavras homofobia e transfobia? Oriente que parte das(os) participantes faça uma pesquisa nos dicionários disponíveis na sala ou na biblioteca, e outras(os) participantes consultem dicionários on-line no computador ou no celular. Segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, homofobia significa ódio ou repulsa contra a homossexualidade ou as(os) homossexuais. Já a transfobia é o ódio patológico direcionado às(aos) transexuais, às pessoas que não se identificam com o seu gênero de nascimento. Esse ódio pode ser manifestado pela violência física ou verbal contra essas pessoas. E o que significam as palavras homossexualidade e transexualidade? Segundo o mesmo dicionário, homossexualidade significa atração ou interesse sexual pelo mesmo sexo. Já transexualidade está relacionada a pessoa que fez algum tipo de tratamento hormonal e/ou procedimento cirúrgico para possuir características do sexo oposto ou para mudar de sexo. E se? Caso perguntem se homossexualidade é o mesmo que homossexualismo, explique que, apesar de alguns dicionários considerarem os dois termos como sinônimos, atualmente, usa- -se a palavra homossexualidade em vez de homossexualismo. Isso porque, até a década de 1970, homossexualismo caracterizava uma doença mental. Foi só em 1973 que a Associação Americana de Psiquiatria retirou o termo do rol das doenças mentais e, em 1993, da Classificação Internacional de Doenças (CID). No entanto, a palavra homossexualismo ainda carrega o significado de doença conferido pelo contexto histórico. Convide a turma a assistir ao vídeo Não fique calado diante da homofobia, produzido pela Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro (Ceds). A produção traz depoimentos de pessoas atingidas pela violência contra homossexuais, transexuais e travestis. Acesse o vídeo em Após a projeção, abra um debate sobre a questão. É importante destacar que se trata de um documentário. O vídeo apresenta depoimentos reais, não é ficção. Um adolescente perdeu a vida e outras pessoas sofreram violência física e psicológica. PARA APROFUNDAR Sexo biológico, orientação sexual, identidade e expressão de gênero: qual é a diferença? A sexualidade humana é constituída por fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Assim, o momento histórico, o contexto local e outras variantes influenciam na forma como a sexualidade é percebida e manifestada. Conhecer alguns conceitos é importante para compreender esse tema tão complexo: Sexo biológico: na visão da ciência, é o conjunto de informações cromossomiais, baseado na identificação genotípica e considerando os órgãos sexuais do nascimento, a capacidade de reprodução e as características físicas e fisiológicas que diferenciam o masculino do feminino. As pessoas que nascem com características femininas e masculinas são chamadas de intersexos; 16 Atração ou orientação afetiva e/ou sexual: manifestada por uma pessoa em relação a outras de maneira involuntária. Entre os tipos de orientação afetiva e sexual, existem a heterossexual/ heteroafetivo (atração por pessoas do sexo e gênero opostos); homossexual/homoafetivo (atração por pessoas do mesmo sexo e gênero); bissexual/biafetivo (atração por pessoas de ambos os sexos e gêneros). Vale destacar que não se usa o termo opção sexual, por não se tratar de uma escolha, mas de um sentimento que não depende da vontade da pessoa; Identidade de gênero: compreensão da pessoa sobre si mesma, como ela se vê e deseja ser reconhecida em relação ao gênero feminino, masculino ou ambos, ou até a nenhum dos dois. Pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Assim, temos: cisgênero (pessoa que se identifica com o gênero determinado em seu nascimento); transgênero (pessoa que não se identifica com comportamentos convencionais de seu gênero de nascimento, pode fazer terapias hormonais ou cirurgias para modificações corporais em busca dos atributos físicos que a(o) faça feliz); queer (pessoa que não se enquadra em uma identidade ou expressão de gênero); intersexual (pessoa em que há variação fisiológica em relação ao padrão de masculino ou feminino estabelecido); Expressão de gênero: forma como a pessoa manifesta socialmente sua identidade de gênero, por meio do nome social, roupas, cabelos, forma de usar a voz, linguagem, expressão corporal, independente do sexo biológico. Muitas pessoas identificam suas expressões de gênero como masculina ou feminina, mas existem outras formas de expressão de gênero, como andrógina (pessoa que não tem características marcadamente femininas e masculinas), não binária (pessoa que não define sua identidade dentro das margens do binarismo masculino-feminino) e fluida (pessoa que não se identifica com uma só identidade de gênero, fluindo entre várias). O que a turma pensa sobre o assunto? Após algum tempo de discussão, explicite que há duas dimensões a serem consideradas na questão: • Dimensão ética: quem dá o direito a alguém de agredir a(o) outra(o)? • Dimensão legal: a lei permite? Problematize com a turma as duas dimensões. Imagem em celebração do dia da visibilidade lésbica (26 de abril). Reprodução 17 Em seguida, apresente os marcos legais da nossa legislação sobre o assunto. A Constituição de 1988 proíbe qualquer tipo de discriminação contra cidadãs(os), em seu artigo 5º (Título II – Dos direitos e garantias fundamentais). Acesse em O artigo afirma que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” No detalhamento do artigo 5º, o inciso I trata da igualdade entre os sexos; o inciso VIII versa sobre a igualdade de credo religioso; o inciso XXXVIII trata da igualdade jurisdicional; o inciso XLI determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Portanto, agredir outra pessoa, além de injusto e antiético, é crime. Preparação do painel e campanha de mobilização Com base nessa discussão, proponha que as(os) participantes formem duplas e elaborem frases contra a LGBTfobia. Essas frases devem formar um painel para desencadear uma campanha de mobilização a respeito do assunto. Distribua folhas de papel pardo para que registrem suas frases. Faça uma rodada de exposição para que as duplas identifiquem a frase produzida e registrada no painel e explicitem o que as levou a desenvolver essa frase para o registro. Parada do Orgulho LGBT+ 2014. (São Paulo). Wikipedia Hora de avaliar Para ampliar Atividade extra A turma pode levar esse painel a outros locais da escola ou da instituição educacional e promover um debate mais amplo com a participação de outras turmas, convidando pessoas e/ou OSCs ligadas à legislação e aos direitos humanos para se aprofundarem sobre o tema e planejarem ações de combate às discriminações de sexo e gênero, além da conscientização sobre a importância de respeitar as diversidades. Apresente tarjetas de cartolina para a avaliação da oficina: de cor verde (positiva), amarela (neutra) e vermelha (negativa). Cada pessoa escolherá uma tarjeta da cor que representa sua opinião e afixará em uma folha de papel pardo, ao lado do painel. Em seguida, proponha uma roda de conversa sobre a oficina: • Por que avaliaram a atividade dessa forma? • O debate ajudou a compreender melhor as questões sobre a diversidade de gênero e sexualidade? • O que mais poderia ser abordado? • Há questões que consideram importantes pesquisar e debater com mais profundidade? Quais? 18 Referências Dia da Visibilidade Trans: uma linha do tempo da luta e dos direitos de travestis, transexuais e transgêneros (Núcleo de Gênero e Diversidade – Nugen/UFPel) - Acesse em Gênero e diversidade sexual na escola (MEC) - Acesse em Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - Acesse em

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Oficinas
Família, comunidade e território

Territórios e construção de identidades

Escola e comunidade formam uma rede potente. Aqui você encontra oficinas que valorizam o território como espaço de aprendizagem, para os anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.

1 Família, comunidade e território Oficinas para desenvolver o olhar crítico sobre os espaços em que vivemos 2 3 Fortalecer os vínculos entre escola, família e comunidade é essencial para garantir o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens. Este conjunto de oficinas temáticas, voltado aos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, reconhece que os territórios são espaços educativos potentes e que as relações familiares e comunitárias devem ser valorizadas no cotidiano das práticas pedagógicas. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As orientações visam apoiar o planejamento das educadoras e educadores, ao mesmo tempo que abrem espaço para criações autorais, adaptações sensíveis e práticas conectadas com os contextos vividos por cada turma. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - A comunidade que queremos 5 Oficina 2 - Economia solidária? O que é? 10 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 A comunidade que queremos • Máquinas fotográficas ou celulares. • Folhas de papel sulfite. • Folhas de papel pardo. • Lápis e canetas hidrocor. • Pastas com plásticos. • Prancha de madeira de aproximadamente 40 cm. • Sucata (palitos de sorvete, potinhos de iogurte, pedaços de tecido, palha etc). • Revistas. • Tesouras. • Baú com roupas e adereços. • Desenvolver o olhar crítico sobre o território. • Identificar demandas locais. • Mobilizar recursos para buscar soluções responsáveis e criativas. • Desenvolver o compromisso com o coletivo. • Representação da comunidade desejada por meio de diferentes linguagens. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Aprender a observar o que está à sua volta e a registrar. • Saber expressar seus desejos e ouvir os desejos da(o) outra(o). • Negociar e pactuar procedimentos para atuar em equipe. • Anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Ambiente aberto ou sala da instituição ou escola. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 6 Conhecer o lugar onde vivemos é fundamental para desenvolver nossa consciência social e nos situarmos no mundo, porque o território medeia a relação do indivíduo com a vida. Para construir a representação de si e do mundo, é preciso considerar, problematizar e refletir sobre os conteúdos de suas vivências no contexto pessoal, interpessoal e social. É o estabelecimento de nexos entre as circunstâncias da vida pessoal e as do contexto mais amplo que permite a compreensão de si e do mundo, o que propicia um leque maior de possibilidades de escolha para o sujeito. Propor às crianças e adolescentes apurar o olhar sobre o seu entorno contribui para que desenvolvam a sensibilidade e a crítica, promovendo reflexões sobre o que existe, o que não existe e o que pode vir a existir, além de desfazer, a partir dessas reflexões, preconceitos e discriminações. Estimular que as novas gerações olhem para seu território também nos permite conhecê-las melhor, conhecer melhor os espaços onde vivem, as práticas culturais que são significativas para elas, as variáveis que nesse lugar participam de suas vidas e a relação que têm com a localidade que frequentam: • Como veem seu território? • Como se relacionam com ele? • O que mais valorizam? • Que sonhos e anseios têm de transformação? O conhecimento do território onde vivemos ainda nos propicia entender o potencial educativo da comunidade, que pode ser acionado na elaboração de projetos socioeducativos conjuntos. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: percorrendo trajetos na comunidade real Converse com o grupo sobre o trajeto que fazem diariamente para vir à escola ou à instituição educacional: • O que veem no caminho? • O que gostam de olhar quando estão caminhando? E o que não gostam? • Em relação aos trajetos que fazem nos finais de semana, o que veem neles? As mesmas coisas ou coisas diferentes? Distribua duas folhas de papel sulfite para cada uma(um) desenhar, respectivamente, os seus trajetos diários de casa à escola ou à instituição educacional, além dos trajetos realizados no final de semana, 7 utilizando pontos de referência como igrejas, escolas, parques, rios ou córregos. Guarde esses registros. Proponha uma atividade para que, em grupos, as(os) participantes percorram esses trajetos, para ver se descobrem neles mais detalhes do que já conhecem. Faça os combinados para a saída. Será interessante prepararem também algumas perguntas para entrevistas, durante o percurso, com moradoras(es) e pessoas que encontrarem pelo caminho (de três a quatro), para saberem as suas opiniões sobre o bairro: • Gostam dele? • De que gostam? • De que não gostam? • De que sentem falta? • O que mudariam? • Como gostariam que o bairro fosse? Para evitar atropelos, proponha que se revezem nas perguntas. É importante gravarem as entrevistas como documento. No dia programado, forme grupos de idades variadas para que, em 4 ou 5 estudantes acompanhadas(os) de uma(um) adulta(o), educadora(or) ou familiar, circulem pelos trajetos que fazem diariamente (vários trajetos ou partes do trajeto provavelmente coincidirão), e façam algumas paradas, duas ou três, para registrar o que veem pelo caminho. A decisão sobre as paradas deve ser acordada com o grupo. Nesses momentos, as(os) adultas(os) acompanhantes distribuem folhas, lápis e canetas para que as crianças e adolescentes façam os seus registros, por meio de desenhos, de palavras ou de imagens captadas por câmeras ou celulares, anotando os nomes de quem faz aquele trajeto específico. Os registros em folha devem ser guardados numa pasta coletiva, que será o portfólio do grupo e ficará sob a responsabilidade de uma(um) delas(es) durante o trajeto. De volta à escola ou à instituição educacional, distribua a cada uma(um) os desenhos que fizeram no início da atividade para compararem com os seus registros de agora e verificarem o que eventualmente não foi considerado. Em seguida, os grupos devem organizar os registros para expô-los no próximo encontro da oficina: os desenhos, as anotações, as fotos e os depoimentos colhidos das pessoas durante os percursos. Ajude-as(os) na organização, orientando para que escolham, dentre todo o material, algumas fotos, desenhos, anotações e depoimentos que sejam mais ilustrativos e importantes para socializar. Não é necessário usar todo o material. Chame a atenção para que observem o que é importante socializar de acordo com objetivo da atividade, ou seja, o que existe nesses trajetos: • Há residências e/ou casas comerciais, prédios, unidades de saúde, escolas? • Há árvores, parques ou jardins com bancos para as pessoas sentarem? • Há coletores de lixo? • Há acessibilidade para a locomoção de pessoas com deficiência? • E espaços para bicicletas e para jogos coletivos? • O que viram que não haviam percebido antes? 8 Segundo encontro: representando a comunidade desejada Neste momento, cada grupo vai expor o material selecionado para o coletivo, projetando as fotos, mostrando os seus desenhos e apresentando os depoimentos que consideraram mais relevantes. Depois da apresentação, peça para todas(os) se sentarem, fecharem os olhos e pensarem em tudo o que foi exposto em sua comunidade real, como se estivessem assistindo a um filme. A seguir, as(os) participantes devem fazer um contraponto, deixando correr a imaginação, e visualizar a comunidade como gostariam que ela fosse, colocando no trajeto tudo aquilo de que sentiram falta. De volta ao grupo inicial, as(os) participantes devem socializar entre si o que cada integrante sonhou para a comunidade e, com base nos sonhos de cada uma(um), construir uma representação coletiva que contemple a todas(os) do grupo, utilizando a linguagem de expressão que acharem mais apropriada: • Uma maquete; • Um painel com desenhos ou colagem de gravuras; • Um poema; • Uma música; • Um texto em prosa; • Uma dramatização; • Um vídeo; • Uma figura com lego, quando a instituição dispuser desse recurso. Se possível, filme os grupos na construção da representação. Depois de aproximadamente 40 minutos, cada grupo fará a sua apresentação, explicitando anteriormente qual a linguagem que escolheram para a sua representação e por quê. Oriente para que sejam respeitosas(os) e acolham os grupos como gostariam de ser acolhidas(os) quando estiverem fazendo a sua representação. Filme as produções em pequenos vídeos ou fotografe a exposição de cada grupo. Após a apresentação de todos os grupos, abra a roda para conversarem sobre o entendimento que tiveram das diferentes representações: • De que elas tratavam? • Falavam das mesmas questões ou de questões diferentes? • O que propunham para a comunidade? E se? Se não houver a possibilidade de filmar, tire fotos do grupo durante a construção de suas representações para mostrar a elas(es) depois, como objeto de reflexão, além de documentar a história do grupo. Chame a atenção também para os depoimentos dados pelas(os) moradoras(es): elas(es) estão satisfeitas(os)? Quais são seus desejos de melhoria para o território e para a vida nele constituída? 9 Atividade extra É possível organizar um evento para apresentar as diferentes produções da turma para a comunidade. Nesse caso, seria oportuno utilizar a ocasião para transformá-la num momento formativo e de festa para todas(os): crianças, adolescentes, jovens, famílias e educadoras(es). Alguns grupos sociais que conhecem bem o território e que nele atuam há algum tempo, além de representantes de órgãos municipais locais, escolas e organizações da sociedade civil, podem ser convidadas(os) para vir conhecer os sonhos das crianças e das(os) adolescentes para o território onde vivem e discutir com elas(es) como esses sonhos podem ser viabilizados. Referências Oficina com LEGO: Bloco, a comunidade que queremos, realizada pelo projeto TQT – Teclas que transformam, do Grupo de Apoio Nisfram, da cidade de Sumaré-SP, ONG finalista do Prêmio Itaú-Unicef de 2011; GOUVEIA, Maria Júlia A. Cartografia como instrumento da pedagogia social. Congresso Internacional de Pedagogia Social, São Paulo, mar. 2006; CENPEC; SMADS; FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL. Parâmetros socioeducativos: proteção social para crianças, adolescentes e jovens. São Paulo, 2007. Hora de avaliar Para ampliar Projete agora para elas(es) algumas cenas filmadas ou fotografadas, desde o início da construção da representação até a produção final de cada grupo. Peça para observarem que houve um processo que durou um certo tempo, desde a discussão inicial para decidirem o que representariam até o produto final. • Como foi esse processo? • Houve alguma discordância? • Algum impasse? • Como resolveram? • O que foi mais gostoso e o que foi mais chato nesse processo? • O que aprenderam? Por fim, registre as aprendizagens num cartaz e afixe na sala. 10 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 2 Economia solidária? O que é? • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel kraft. • Pincéis atômicos. • Conhecer formas de produção e consumo alternativos e comunitários. • Aproximação com o conceito e experiências de economia solidária. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Ampliar a visão sobre o funcionamento da economia. • Identificar outras possibilidades de se organizar e estruturar a vida coletiva. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 11 A economia solidária constitui uma alternativa de organizar as relações sociais segundo princípios que valorizam o ser humano, o trabalho, a justiça, a solidariedade e a sustentabilidade do planeta. Propõe o desenvolvimento econômico socialmente justo e voltado à satisfação racional das necessidades de cada uma(um) e de todas(os) as(os) cidadãs(ãos), seguindo um caminho intergeracional de desenvolvimento sustentável e de qualidade de vida. Na economia solidária, a produção, a distribuição e o consumo de produtos dos quais necessitamos para viver são coletivos, respeitando e preservando o meio ambiente. Nesse sistema de produção, o ser humano é tanto sujeito como a finalidade da atividade econômica, ao contrário do sistema econômico convencional, que visa a acumulação de riqueza e capital. Nessa alternativa, todas(os) produzem e todas(os) têm acesso aos benefícios produzidos. Ela busca outra qualidade de vida e de consumo, o que requer a solidariedade entre as(os) cidadãs(ãos) do centro e da periferia do planeta. Representa poderoso instrumento de combate à exclusão social, pois apresenta alternativas para geração de trabalho e renda e para satisfação das necessidades de todas(os). No Brasil, a economia solidária ganhou força por ocasião do 1º Fórum Social Mundial, realizado de 25 a 30 de janeiro de 2001, em Porto Alegre, que contou com a participação de 16 mil pessoas, vindas de 117 países. Início de conversa Foto: reprodução Logomarca do Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Foto: reprodução Em 28 de maio de 2003, foi criada a Secretaria Nacional de Economia Solidária – Senaes, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, com a publicação da Lei nº 10.683/03, e instituída pelo Decreto 4.764/03. Esse órgão foi criado com o objetivo de viabilizar e coordenar atividades de apoio à economia solidária em todo o território nacional, visando à geração de trabalho e renda, à inclusão social e à promoção do desenvolvimento justo e solidário. Em junho de 2003, na III Plenária Brasileira de Economia Solidária, que contou com a mobilização e participação de 17 Estados e 90 pessoas de diferentes regiões do país, foi criado o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), articulando três segmentos: empreendimentos solidários, entidades de assessoria e fomento, e gestores públicos. O FBES está organizado em mais de 160 Fóruns Municipais, Microrregionais e Estaduais, envolvendo mais de 3.000 empreendimentos de economia solidária, 500 entidades de assessoria, 12 governos estaduais e 200 municípios pela Rede de Gestores em Economia Solidária. Acesse o site do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) 12 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: apresentando a experiência do Conjunto Palmeiras – Fortaleza (CE) Inicie a oficina perguntando às(aos) participantes se já ouviram falar em economia solidária e o que sabem sobre o tema. Estimule para falarem o que conhecem ou intuem a respeito do assunto, aproximando-as(os) do conceito: Projeto GerAção Solidária: mulheres e jovens protagonistas de uma economia solidária. Fonte: IFRN Dada a mudança econômica e cultural que provoca, geralmente a proposta de implementação da economia solidária em uma comunidade parte de uma universidade local ou de uma OSC especializada no assunto. Explique que essa forma alternativa de praticar a economia desenvolveu-se, no Brasil, a partir da década de 1980, em contraposição a um padrão de produção e consumo que passou a exigir um nível alto de renda das pessoas, típico de sociedades mais industrializadas, como os Estados Unidos. As populações mais pobres, ao não conseguirem acompanhar o ritmo semelhante de acúmulo das riquezas, são expulsas para as regiões periféricas das cidades - nas quais a vida é menos cara - em busca de sobrevivência e, muitas vezes, são excluídas dos serviços e benefícios que as cidades poderiam lhes oferecer. Ao se organizarem e criarem alternativas de trabalho e renda, em grupo, acabam recuperando uma forma digna de sobrevivência, por meio do próprio trabalho. Para isso, juntam esforços com seus pares de modo a contribuir para o desenvolvimento da comunidade. Para que entrem em contato ou conheçam melhor o que significa economia solidária, convide as(os) participantes a assistir um pequeno vídeo que conta como, há mais de 30 anos, a população de PalEconomia solidária são práticas alternativas de produção e consumo intimamente vinculadas ao desenvolvimento local. Nessas práticas, a comunidade se reúne para planejar o que e como vai produzir para satisfazer as necessidades das famílias que ali vivem, para gerar emprego e renda e também para alavancar o desenvolvimento local, com a circulação do dinheiro por ali mesmo. Os produtos da economia solidária são naturais e não poluem o meio ambiente. 13 mas, cidade do Conjunto Palmeiras, em Fortaleza (CE), iniciou a sua experiência de economia solidária. Tudo começou com uma associação de bairro reivindicando condições dignas às pessoas que foram despejadas para o alagadiço, a fim de que a parte rica da cidade pudesse crescer. Essa população se organizou e, além das reivindicações junto ao poder público, decidiu criar um sistema de produção e de trocas próprio do Conjunto Palmeiras. Então, realizou obras, planejou investimentos, captou recursos e com eles urbanizou o bairro e fundou um banco, que concedia pequenos créditos para as(os) moradoras(es) produzirem o que elas(es) precisavam para sobreviver de maneira sustentável. Questione as(os) estudantes sobre o significado da palavra sustentabilidade. Se elas(es) disserem que é uma maneira de não agredir a natureza, concorde e amplie o conceito, que abrange o crescimento econômico com preservação do meio ambiente e inclusão social. PARA APROFUNDAR Com o tempo, a experiência foi se consolidando e o Conjunto Palmeiras ficou conhecido, foi notícia de jornais e passou a ser procurado para ajudar na construção de outras experiências semelhantes, em outros locais. Apresente o vídeo A Revolução do Consumo, que conta essa história. Acesse em Após assistirem ao vídeo, abra a roda para discussão, questionando o que chamou mais a atenção delas(es) e o que consideram relevante nessa experiência. Coloque as seguintes questões para as(os) estudantes: • Como vivem as(os) jovens do Conjunto Palmeiras? • O que fazem? • Em que trabalham as pessoas do bairro? • O que produzem? • O que consomem? • Quais benefícios esse modelo de produção e consumo traz para as(os) moradoras(es)? • Quais as dificuldades que encontram para expandirem o emprego e a renda a mais pessoas? O debate pode durar aproximadamente 30 minutos. Para sistematizar as ideias, peça que pensem em algumas frases que sintetizem o que debateram para você registrar em um cartaz a ser afixado na sala. Segundo encontro: conhecendo outras experiências Neste encontro, as(os) participantes entrarão em contato com outras experiências de economia solidária, desenvolvidas em áreas rurais e urbanas. Indique os três vídeos abaixo, que apresentam as experiências. 1. Ecoideias - Economia Solidária (experiências de São Carlos e Bauru, municípios do interior de São Paulo) - Acesse em 2. Economia Solidária - Notícias do Acre (experiência de Rio Branco – AC) - Acesse em 14 3. TECHNE - Cooperativa de Trabalho Multidisciplinar Potiguar (experiência de João Câmara - RN) - Acesse Divida a turma em dois grupos, A e B, e em cada um deles organize duplas: • As duplas do grupo A devem acessar a experiência de João Câmara (RN) e a experiência de São Carlos (SP); • As duplas do grupo B devem acessar a experiência de Rio Branco (AC) e a experiência de Bauru (SP). Aproximadamente 50 minutos depois, abra a roda para as(os) participantes socializarem as experiências das quais tomaram conhecimento. Peça, primeiro, para uma dupla do grupo A descrever as experiências, e as demais duplas deste grupo complementam a descrição. Ao terminarem, levantem juntas(os) os pontos em comum dessas experiências e registrem em um cartaz. Depois, repita a dinâmica com as duplas do grupo B. Peça, então, para observarem bem os dois cartazes e, a partir deles, questione: • O que podem concluir que seja economia solidária? Componha com as(os) estudantes um pequeno texto, na lousa ou em um cartaz, que sintetize o que compreenderam a respeito do conceito. Atividade extra As(Os) estudantes podem convidar participantes de experiências similares às reveladas na oficina, para apresentá-las na escola ou na instituição educacional, promovendo um debate sobre elas e informando os caminhos para iniciativas semelhantes. O encontro pode ser aberto à comunidade. As(Os) estudantes também podem pesquisar na internet outras experiências de economia solidária, bem como vídeos e sites que discutem teoricamente a proposta. Conteúdos na web Economia Solidária - Acesse em Banco Comunitário União Sampaio fomenta economia local da periferia de São Paulo - Acesse em Hora de avaliar Para ampliar Em roda, peça para que avaliem a oficina: • Que aprendizagens ela trouxe? • O que consideraram mais significativo? • Tinham algum conhecimento da existência de experiências de economia solidária? • O que acharam dessa proposta alternativa de produção, distribuição e consumo de produtos? 15 Ecosol: rede que integra o movimento de economia solidária no mundo - Acesse em Usina de Valores: O bem-viver e a radicalidade de sonhar outros mundos - Acesse em 16

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Educação Integral

Educação Integral: escola e territórios em movimento

A Educação Integral promove aprendizagens conectadas aos contextos de vida e aos territórios. Conheça oficinas que dialogam com tempos e espaços das(os) estudantes, da Educação Infantil ao Ensino Médio.

1 Educação Integral: uma escola que forma para a vida Oficinas para favorecer o pertencimento e a aprendizagem em diferentes espaços sociais e culturais 2 3 Promover o desenvolvimento pleno de crianças, adolescentes e jovens é o compromisso central de uma proposta de Educação Integral. Isso significa garantir aprendizagens que dialoguem com os projetos de vida dos sujeitos e estejam conectadas aos seus contextos, territórios, culturas, desejos e necessidades. Com base nessa concepção, organizamos este conjunto de oficinas temáticas voltadas à Educação Infantil, aos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, com propostas que ampliam o tempo, os espaços e as oportunidades de aprendizagem. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta as informações essenciais para sua realização: os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado e a duração estimada. Mais do que uma receita pronta, esses roteiros buscam ser convites abertos à experimentação, permitindo que cada educadora e educador adapte e enriqueça as atividades conforme as singularidades de sua turma e de seu território. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no chão da escola, construídas em diálogo com a comunidade escolar, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade cultural brasileira. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Mudar o mundo é preciso 5 Oficina 2 - Bullying? Sou contra! 12 Oficina 3 - Cor e preconceito no Brasil 16 Oficina 4 - Mulheres que contrariam as estatísticas 22 Oficina 5 - O que é que a cidade tem? 30 Oficina 6 - Falando de nossos territórios 35 Oficina 7 - Espaços de participação e protagonismo juvenil 39 Oficina 8 - Vacinar é preciso! 45 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Mudar o mundo é preciso • Computador, notebook, tablet ou celular com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Lápis de cor e canetas hidrográficas coloridas. • Baú de adereços para teatro. • Aparelho de som. • Desenvolver valores e comportamentos solidários. • Compreender que a realidade é mutável. • Exercício lúdico para transformar a realidade com a imaginação e a expressão. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Compreender que miséria, fome e violência não são naturais e devem ser combatidos. • Aprender a pedir ajuda. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 6 A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio 92, reuniu mais de 100 chefes de Estado do mundo, na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, para discutir como garantir às gerações futuras, o direito ao desenvolvimento. Início de conversa Eco 92: líderes mundiais reunidos no Rio de Janeiro para debater o futuro do meio ambiente. Fonte: Conexão Planeta Nesta ocasião, os países representados assinaram a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente, que tinha como foco os seres humanos e a proteção do meio ambiente como partes fundamentais do desenvolvimento. Assim surgiu a Agenda 21, a primeira carta de intenções para se promover, em escala planetária, um novo padrão de desenvolvimento para o século XXI. Em 2012, vinte anos depois, os representantes dos 193 países membros da ONU reuniram-se, também no Rio de Janeiro, na Conferência Rio mais 20, para avaliar os avanços obtidos desde 1992 e os desafios ainda existentes. O foco das discussões da Conferência era, principalmente, a economia verde, no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza, assim como o arcabouço institucional para o desenvolvimento sustentável. Conheça o documento Agenda 21 da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Acesse em PARA APROFUNDAR 7 A Conferência terminou com a produção do documento O futuro que queremos, que reconheceu que a formulação de metas poderia ser útil para o lançamento de uma ação global coerente e focada no desenvolvimento sustentável. O futuro que queremos Acesse o documento fruto da Conferência Rio mais 20, que aborda os temas Economia verde, Desenvolvimento sustentável e Erradicação da pobreza. Assim, foram lançadas as bases de um processo intergovernamental amplo e transparente, aberto a todas as partes interessadas, para a promoção de objetivos para o desenvolvimento sustentável. Surgiram assim os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – os ODMs, que tiveram a participação de especialistas renomadas(os) de diferentes países e cujo foco principal era a redução da extrema pobreza. Em 2000, os Objetivos foram adotados pelos estados membros da ONU e impulsionaram os países a enfrentarem os principais desafios sociais no início do século XXI. Capa da publicação Esses oito Objetivos foram o primeiro arcabouço global de políticas para o desenvolvimento, que colocavam claramente a urgência de se combater a pobreza, transformando esse tema em prioridade na agenda de desenvolvimento mundial. Saiba mais sobre a Conferência Rio mais 20. Acesse em PARA APROFUNDAR Conheça os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – os ODMs. Acesse em PARA APROFUNDAR 8 Em 2010, a Cúpula das Nações Unidas sobre os Objetivos do Milênio demandou a aceleração na implementação dos Objetivos e solicitou ao então Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, a elaboração de recomendações sobre os próximos passos, após 2015. Foi montado para isso, um Grupo de Trabalho (GT), com a participação de 70 países, para proporcionar uma diversidade de perspectivas e experiências. Em 2015, a Assembleia Geral da ONU apresentou aos países membros, o documento Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, como um guia de planejamento de ações para todos eles que, sem exceção, assinaram o documento, comprometendo-se, portanto, com os 17 Objetivos nele postos. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU): "os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade. Estes são os Objetivos para os quais as Nações Unidas estão contribuindo a fim de que possamos atingir a Agenda 2030 no Brasil." 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável Agenda 2030. Fonte: Organização das Nações Unidas (ONU) Conheça o documento Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Acesse em PARA APROFUNDAR Conheça cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030. Basta clicar sobre eles para consultar as respectivas informações. Acesse em PARA APROFUNDAR 9 Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Na roda inicial, diga que vão falar sobre as suas preferências: das coisas de que gostam e de que não gostam. Faça algumas rodadas em que cada uma(um) das(os) estudantes dirá: • Uma comida de que gostam e uma comida de que não gostam; • Uma brincadeira de que gostam e uma brincadeira de que não gostam; • Uma obrigação, que deve ser feita diariamente, de que gostam, e uma de que não gostam. Horta urbana em Maringá (PR). Foto: Ciclovivo Depois dessas rodadas, disponha as folhas de sulfite, os lápis de cor e as canetas hidrográficas no centro da roda. Diga que agora você fará uma mágica para conceder a todas(os) o poder de transformar tudo que é ruim em coisas boas. Ao falar SALAGADU, deverão responder SALAGADU e, então, todas(os) terão esse poder. Em primeiro lugar, cada uma(um) pensará em uma coisa, pessoa ou situação de que não gosta nada e a desenhará em uma folha de sulfite. Em seguida, pensará como desejaria que fosse essa coisa, pessoa ou situação após ser transformada e melhorada, e também a desenhará como imaginou. Depois de aproximadamente dez minutos, peça que cada uma(um) mostre, se quiser, o que foi transformado e diga por que o transformou. Após a fala de cada uma(um), o grupo poderá fazer perguntas e comentários a respeito. Quando a(o) última(o) estudante falar, a mágica desaparecerá. E se? Se perceber que alguém ficou constrangida(o) em mostrar a sua produção, não insista. Só mostrará seu desenho e falará, quem quiser. Mas, fique atenta(o). Se alguma criança se recusar, procure-a depois, reservadamente, e converse com ela, com cuidado. Ela pode ter se recusado apenas por timidez, mas também pode ser que a criança tenha expressado alguma situação delicada que está vivendo e gostaria de ver transformada. Nesse caso, ela pode precisar de ajuda. 10 Comente as transformações realizadas nos desenhos das crianças e então convide-as a conhecer um garoto que, assim como elas(es), transformou muita coisa que viu e não gostou no mundo. Projete a bonita e delicada animação canadense Mudar o mundo, de Francine Desbiens. Acesse em Terminada a projeção, abra uma discussão com a turma: • Gostaram do vídeo? Não gostaram? Por quê? • O que o menino transformava? • Por que transformava? • Concordam com todas as transformações realizadas por ele ou discordam? Em quê? • O mundo ficaria melhor com essas transformações? Será que dá para resolver esses problemas com mágica? Como as crianças acham que a gente pode transformar o mundo? Estimule-as a levantarem hipóteses. Converse com a turma sobre isso. Há algumas coisas que dependem somente de nós para serem transformadas, como deixar de comer salgadinhos a toda hora, por exemplo. Há coisas para as quais precisamos da ajuda de amigas(os), como brincar. Há aquelas de que precisamos da ajuda de pessoas adultas, em quem confiamos totalmente, como os pais ou tias(os), avós, uma(um) vizinha(o) ou uma professora(or), para contar algum segredo que está nos perturbando. E há coisas para as quais precisamos da ajuda de profissionais como médicas(os), quando estamos doentes. E ainda há coisas que só a vontade da maioria das pessoas da sociedade pode mudar, como a pobreza, a guerra e a destruição da natureza. Mesmo que a gente possa fazer algo com o que está à nossa volta e ajudar quem está por perto, mudar os problemas do mundo depende da vontade de muita gente! Mas, é possível! Já ouviram falar da ONU? E da Agenda 2030? Unindo vontades e esforços para transformar o mundo A Organização das Nações Unidas (ONU) é uma instituição internacional criada em 24 de outubro de 1945, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Ela foi fundada com o objetivo de evitar novos conflitos no mundo, manter a paz e a segurança, além de promover uma vida melhor para as pessoas, para o planeta e garantir os direitos humanos. Quando iniciou, contava com a participação de apenas 51 países; atualmente já são 193. Só alguns poucos países do mundo não são membros da ONU por não serem soberanos, isto é, não são independentes e, portanto, subordinados a outros países. A ONU tem sede na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, e tem representação no Brasil desde 1947. A ONU luta por um mundo mais sustentável, igualitário e pacífico, pela erradicação da pobreza e da fome, redução da desigualdade social e contenção da mudança global do clima, enfim, por um mundo melhor para todas(os), em que as pessoas possam viver com dignidade. Por isso, produziu a Agenda 2030, que propõe 17 Objetivos de desenvolvimento sustentável, com previsão de que esses Objetivos sejam atingidos até 2030. Mas, o que é desenvolvimento sustentável? Para que as(os) estudantes conheçam o seu significado, projete para elas(es) um vídeo da ONU que explica, de forma simples, esse conceito. Acesse em Inclui a possibilidade de todos os seres humanos terem acesso à alimentação, à saúde, à educação, à livre expressão, com igualdade e justiça. Se todos os países que assinaram a Agenda 2030, que compreendem quase o mundo todo, buscarem formas de desenvolver ações para atingir os 17 Objetivos que ela propõe, o mundo estará dando passos para se tornar melhor. E quais são os 17 Objetivos da Agenda? Mostre para a turma utilizando um vídeo. Acesse em Imaginar para transformar Para a próxima atividade, organize as crianças em grupos. A tarefa de cada grupo será construir uma pequena história para encenar, que mostrará a transformação de uma situação ruim em boa. Estipule aproximadamente 20 minutos para trabalharem. Após esse tempo, cada grupo apresentará sua montagem, e a plateia fará comentários e perguntas. Para finalizar a oficina, proponha que façam uma roda de ciranda para celebrarem as transformações. Coloque uma música para tocar e convide todas(os) a dançarem, de mãos dadas. Para avaliar a oficina, convide as crianças a se sentarem em círculo. Peça que escolham o nome de um doce, de uma brincadeira ou de uma cor, para expressar sua opinião, justificando a sua escolha. Atividade extra A seguir, apresentamos duas sugestões que você pode desenvolver com as crianças. Mas também é possível criar outras. Solte a imaginação e compartilhe a sua experiência: • Proponha a produção de uma carta a ser enviada à prefeitura e vereadoras(es) do município, perguntando como esses poderes (executivo e legislativo) podem ajudar a transformar os problemas sociais que existem na cidade, de acordo com os 17 Objetivos da Agenda 2030, da ONU; • Sugira o estabelecimento de parceria com alguma organização da sociedade civil para realizar, na cidade, atividades junto à população socialmente mais vulnerável, como migrantes, negras(os), indígenas e idosas(os). Referências Conheça as 17 Metas de Desenvolvimento Sustentável da ONU - Acesse em Site oficial da ONU no Brasil (17 Objetivos para transformar nosso Mundo - Agenda 2030) - Acesse em Converse com as crianças sobre as informações veiculadas no vídeo. Desenvolvimento sustentável é um conceito que busca atender as necessidades das pessoas do presente, sem destruir a natureza para as gerações futuras. Hora de avaliar Para ampliar 12 Oficina 2 Bullying? Sou contra! Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPAS DE ENSINO DURAÇÃO • Computador, notebook, tablet ou celular com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Dicionário. • Desenvolver a compreensão sobre a importância do direito humano de toda pessoa ao respeito e à dignidade. • Reflexão sobre a intolerância e as suas consequências. • Repudiar qualquer tipo de discriminação e agressão. • Aprender a fazer intervenções adequadas em situações de bullying. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 13 Bullying é uma palavra inglesa que significa ameaça, intimidação e acossamento. Envolve várias situações de agressão verbal ou física, como: colocar apelidos, ofender, humilhar, discriminar, excluir, intimidar, perseguir, assediar, amedrontar, agredir, bater, roubar ou quebrar pertences, entre outras. O comportamento agressivo entre crianças e adolescentes é um problema que ocorre no mundo todo, visto até há pouco tempo como algo natural e geralmente ignorado pelas pessoas adultas. Os estudos sobre bullying tiveram início na Suécia, na década de 1970, e se expandiram pelos outros países do mundo, inclusive no Brasil, embora mais recentemente, nos anos 1990. Início de conversa Desde 2016, o dia 7 de abril foi instituído como o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência na Escola. A iniciativa busca chamar a atenção para os problemas causados pelo bullying e estimular a reflexão sobre o tema. Foto: UFMG As pesquisas com vítimas dessa prática têm mostrado que essas pessoas podem sofrer muito, correndo o risco de desenvolver depressão e manifestar tendências suicidas. Provavelmente o bullying também deixa marcas em quem pratica as agressões e em quem assiste ao ato silenciosamente, contribuindo para a formação de pessoas agressivas e passivas, respectivamente. Embora muitas vezes o trabalho com este tema possa parecer impotente diante dos muitos casos que aparecem, a iniciativa de falar sobre violência, trazer palavras para as situações traumáticas e orientar sobre o direito do ser humano de ser respeitado e tratado com dignidade, tem muito valor! Roda de conversa Proponha uma roda de conversa e pergunte às crianças ou às(aos) adolescentes se já viram na internet, nos jornais ou na TV: • Notícias de pessoas que atearam fogo em pessoas em situação de rua ou em indígenas; • Notícias de torcidas de times de futebol que promovem verdadeiras guerras entre si, em dias de jogo; Na prática Sugestão de encaminhamento 14 • Notícias de mulheres agredidas e/ou assassinadas pelo simples fato de serem mulheres; • Notícias de jovens ou adultas(os) que agridem homossexuais. Deixe que se manifestem e pergunte: • O que pensam sobre isso? • Como evitar o preconceito e a violência? • A vida de umas(uns) vale mais do que a vida de outras(os)? • E sobre bullying, já ouviram falar? Bullying é uma situação de intolerância e agressão que vem sendo bastante discutida na imprensa falada, escrita, televisiva e virtual, e que ocorre com frequência nas escolas e em grupos de adolescentes, jovens e mesmo entre crianças, no mundo todo. O bullying caracteriza-se por agressão física ou psicológica intencional, praticada seguidamente por um indivíduo ou um grupo contra uma ou mais pessoas, onde há um desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. A prática ocorre também no mundo virtual por meio de mensagens e posts intimidatórios e ameaçadores. E quantas fotos em situações delicadas e degradantes algumas pessoas expõem na internet, nas redes sociais, de colegas, namoradas(os) ou ex-namoradas(os)? Projete para elas(es) o vídeo da campanha Diga não ao bullying!, e peça para comentarem. Acesse em Em seguida forme grupos, em que cada participante discutirá uma situação de bullying, apontando algumas possibilidades de romper com essa prática destrutiva e desumana, naquela situação. Ajude a turma a encontrar soluções para as situações apresentadas por meio do diálogo, exercitando algumas reflexões como: o que fazer e a quem procurar para pedir ajuda? É importante procurar uma pessoa bem conhecida, de confiança, com quem sabem que podem partilhar segredos, como uma(um) familiar mais amiga(o) ou uma(um) professora(or) mais próxima(o). Forneça também o telefone do Conselho Tutelar de sua região. E se? Se alguém, depois de todas as considerações, ainda não estiver sensibilizada(o) ou defender de alguma forma a agressão, não insista. Oriente a pessoa a refletir, entrar em contato com seus sentimentos e com a razão, e tirar algumas conclusões dessas reflexões. Não deixe os ânimos se exaltarem. O assunto é tão delicado quanto imprescindível para ser tratado com crianças e adolescentes. Evite uma postura moralista ou prescritiva, ensinando o que se deve fazer, porque ela poderá impedir que questões importantes venham à tona e possam ser refletidas e discutidas. A seguir, apresente a elas(es) alguns fundamentos legais e universais contra a intolerância de qualquer natureza. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, preconiza: “Artigo 1º - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” E a Constituição Federal brasileira, de 1998, lei maior do país, assegura: 15 Distribua papel sulfite para cada participante formular uma frase, posicionando-se sobre o assunto. Junte todas as frases e monte um painel com o conjunto delas. Se preferirem, as(os) participantes podem colaborar com a produção coletiva por meio de desenhos, charges etc. O painel pode ser exposto para outras turmas ou mesmo dar início a uma campanha contra o bullying envolvendo toda a instituição e a comunidade. Atividade extra Você pode sugerir uma pesquisa sobre locais públicos de atendimento em casos de qualquer tipo de discriminação e violência na região, organizando uma lista dos serviços, como delegacia da mulher, vara da infância e da juventude, conselho tutelar e telefones para denúncias, que garantem o sigilo, para ser distribuída nas escolas, igrejas e residências. Proponha que envolvam a escola ou a instituição educacional numa ampla discussão sobre intolerância e preconceito, convidando representantes do Conselho Tutelar e da Promotoria Pública para o debate, além de pedagogas(os) e psicólogas(os). Referências Que papo é esse bullying? - Acesse o vídeo em LOPES NETO, Aramis A.; SAAVEDRA, Lucia Helena. Diga NÃO para o bullying. Rio de Janeiro: ABRAPIA. 2003; BEAUDOIN, Marie-Nathalie; TAYLOR, Maureen. Bullying e desrespeito: como acabar com essa cultura na escola. Porto Alegre: Artmed, 2006; LOMONACO, Beatriz P.; NAKASU, Maria Vilela P. Desafios e possibilidades. Uma proposta de trabalho com adolescentes. São Paulo: Fundação Tide Setubal, 2008. “Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” E, por fim, converse sobre a Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, prevê punição para a discriminação ou preconceitos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Acesse a Lei nº 7.716/89 em Hora de avaliar Para ampliar 16 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Cor e preconceito no Brasil • Computador com acesso à internet e datashow. • 2 a 3 espelhos altos (se possível). • Folhas de papel sulfite. • Folhas de papel pardo. • Canetas hidrocor, aquarela e lápis de cor. • Almofadas (trazidas pelas(os) jovens). • Revistas que contenham artigos sobre discriminação contra os negros no Brasil. • Desenvolver a compreensão de que diversidade não é desigualdade e de que o preconceito, de qualquer natureza, é socialmente construído. • Debate sobre o preconceito contra a população negra no Brasil. Autoria: Associação Cristã de Moços de São Paulo, ONG finalista do Prêmio Itaú-Unicef de 2011. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Conhecer um pouco da história do negro no país. • Desconstruir estereótipos propagados cotidianamente nos vários espaços em que circulam e que reforçam discriminações de várias naturezas como raça, gênero, idade e classe social. • Valorizar-se como ser humano. • Gostar de si e de suas origens. • Respeitar o outro e suas origens. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades ou sala de informática. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 17 Em 21 de março de 1960, houve uma manifestação com cerca de 20 mil negras(os), na cidade de Joanesburgo, capital da África do Sul, que protestavam contra os cartões de passe, que determinavam os locais por onde podiam transitar. No bairro negro de Shaperville, defrontaram-se com a polícia, que atirou sobre a multidão, deixando 186 feridas(os) e 69 mortas(os). Início de conversa Em memória às vítimas do massacre de Shaperville, em 1976, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o dia 21 de março como o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. O artigo I da Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação da discriminação racial diz: “Discriminação racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou o efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública.” E no Brasil, como vão as coisas? Em nosso país, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão responsável por coletar dados populacionais, pesquisa a cor ou raça das(os) brasileiras(os) com base na autodeclaração segundo estas categorias: negra (que engloba pessoas pretas e pardas), branca, amarela e indígena. Em 2010, foi a primeira vez que a população negra foi oficialmente declarada maioria no Brasil, desde 1872, quando se realizou o primeiro Censo demográfico no país, com 50,7% da população brasileira; a população branca representou 47,7%; a amarela 1,1% e a indígena 0,4% (Censo demográfico 2010). Já no último recenseamento, divulgado em 2023, o percentual de pessoas autodeclaradas negras passou a aproximadamente 56% (45,3% pardas e 10,6% pretas). O Brasil é a maior nação afrodescendente fora do continente africano. No entanto, em pleno século XXI, após 124 anos da abolição da escravatura, as pessoas negras ainda sofrem discriminação, conforme atestam os indicadores sociais recentes. Hector Pieterson, Soweto, 1976. Fonte: Geledés 18 Você sabe quais são as diferenças entre preconceito, discriminação e racismo? Confira no vídeo elaborado pelo Cenpec com base no projeto Educação para as relações étnicoraciais, iniciativa da Comunidade Cenpec, desenvolvida em 05 centros de Educação Infantil, em São Paulo, no ano de 2020: PARA APROFUNDAR As diferenças entre pessoas negras e brancas se expressam tanto no acesso desigual aos bens e serviços, ao mercado de trabalho e ao ensino superior quanto no universo das relações interpessoais diárias. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) 2018, apenas 29,9% das pessoas pretas ou pardas ocupavam cargos de gerência. Em relação ao acesso à Educação, o Censo do IBGE de 2022 revela que 7,5% das pessoas pretas ou pardas com 15 anos ou mais de idade são analfabetas, mais que o dobro da taxa entre as pessoas brancas (3,4%). Já em relação ao Ensino Superior, o IBGE revelou que, pela primeira vez, as(os) estudantes pretas(os) ou pardas(os) são maioria nas instituições de ensino da rede pública, com 50,3% do total. Já nas universidades particulares, este número ainda não ultrapassou 50% (46,6%). O aumento das matrículas de jovens negras(os) no Ensino Superior tem sido impulsionado pela política afirmativa das cotas, iniciada em 2004 pela Universidade de Brasília. Essa e outras ações afirmativas buscam eliminar desigualdades historicamente acumuladas entre negras(os) e não negras(os) e criar a igualdade de oportunidades e de tratamento. O protagonismo do movimento negro começa a mudar essa situação, com a ressignificação do ser negro, que tenta vencer os diversos estereótipos negativos associados à negritude e reproduzidos nas relações sociais e nos meios de comunicação de massa, bem como questionar os lugares sociais de subordinação em que a população negra está inserida. A própria atitude de autodeclarar-se negra(o) no Censo é expressão disso. Esse processo tem fortalecido a autoestima da população negra e o movimento negro, assim como um maior debate público sobre as desigualdades raciais. Cabe ressaltar que, desde 5 de janeiro de 1989, preconceito racial no Brasil é crime, definido pela Lei nº 7.716/89. Primeiro encontro: aproximando-se do tema Deixe o espaço da sala livre de objetos. Coloque alguns espelhos (2 ou 3), de preferência grandes, espalhados pelo espaço da sala. Diga que as(os) participantes farão uma atividade que envolve sensibilização e reflexão sobre a diversidade. Para isso, inicialmente, devem andar livremente pela sala, ao som de uma música suave, prestando atenção em sua respiração: inspirando e expirando devagar. Depois, a um sinal seu, a música será interrompida e elas(es) devem parar. As(Os) participantes que estiverem paradas(os) na frente dos espelhos devem se olhar por um miNa prática Sugestão de encaminhamento 19 E se? Se alguém parar em frente ao espelho, na segunda rodada, e já tiver parado antes, deixará o espelho para uma(um) colega que ainda não se observou e formará dupla com uma(um) colega próxima(o). As(Os) participantes que estiverem formando duplas também não deverão repetir as(os) parceiras(os) das rodadas anteriores. Distribua, a seguir, as folhas de sulfite, as canetas e as aquarelas para as pessoas se retratarem, por meio do desenho, além de retratarem algumas(uns) colegas. Quem quiser, poderá expor suas produções no chão, no centro da sala. As(Os) estudantes devem circular pelos desenhos para observarem-nos e depois, sentadas(os) em roda, devem conversar sobre as suas impressões a respeito do que vivenciaram na dinâmica e na produção do autorretrato: • Quais sentimentos experimentaram? • Quais pensamentos passaram pela sua cabeça? • Foi fácil ou difícil achar o que gostam em si? Observe com elas(es) os conteúdos que ficaram mais fortes nessa rodada, para serem retomados depois. Convide-as(os), então, a assistirem ao vídeo Vista minha pele. Em seguida, organize um debate sobre a condição da população negra no Brasil. Acesse o vídeo em Após a projeção, abra a roda para que comentem o enredo e a forma como o vídeo foi apresentado (pessoas brancas são discriminadas numa sociedade de pessoas negras): • Que intenção tinha a(o) autora(or) ao colocar os personagens brancos discriminados numa sociedade dominada pela população negra? • Qual a relação desse fato com o título do vídeo? • O que cada participante sentiu “vestindo” a pele da(o) outra(o) que é discriminada(o)? • Quais outros tipos de discriminação conhecem ou vivenciam? Observe que, neste caso, o enfoque foi no preconceito contra a população negra, mas, em nossa sociedade existem preconceitos de outras naturezas, como em relação à origem étnica, ao gênero, à orientação sexual, à idade (geracional) e/ou à classe social. Conduza a discussão para que entendam que o preconceito não é natural, é historicamente desenvolvido pelas relações de domínio e de poder estabelecidas entre povos ou grupos de pessoas e que passa de geração a geração como se fosse natural. Mas, como não é natural, pode e deve ser erradicado. Essa é uma luta de vários movimentos sociais de ontem e de hoje, em nosso país e no mundo. Será que elas(es) conhecem alguns desses movimentos sociais? Investigue. nuto, observar seu rosto e seu corpo e identificar o que gostam em si. Quem não estiver no espelho, formará dupla com quem estiver mais próxima(o); as(os) duas(dois) integrantes da dupla se cumprimentam e, silenciosamente, uma(um) observa a(o) outra(o): altura, peso, cor da pele e tipo de cabelo. Passado um minuto, a música será retomada e a caminhada também. Os elementos da dupla se despedem com um aperto de mão. A um novo sinal – interrupção da música – de novo devem parar e repetir o ritual em frente ao espelho ou a uma(um) colega e assim por diante, até que todas(os) tenham passado pelo espelho e pelas(os) colegas. 20 E se? Se não houver um grupo organizado nas proximidades, procure a ajuda de outras(os) educadoras(es), das(os) professoras(es) de História da escola ou de militantes de movimentos que você ou alguma(um) colega ou jovem de seu grupo conheça e que desenvolva um trabalho sério. O fato é que é importante que as(os) jovens conversem, se informem e discutam a questão, pois esta é uma das formas de se valorizar a cultura negra e enfrentar a discriminação racial. Segundo encontro: preparando o debate Neste encontro, forme grupos e distribua algumas revistas sobre o tema da discriminação, enfocando a questão da população negra, tema que será debatido na ocasião. Os grupos farão a leitura do texto e formularão perguntas para o debate, a partir dele. Acompanhe a leitura e esclareça as dúvidas de compreensão. Abra a roda, em seguida, para a socialização dos grupos. Indique também alguns sites para consultarem, no período entre esse encontro e o debate, na própria instituição, em casa ou em um telecentro, a fim de ampliarem o repertório sobre o assunto e fortalecer a discussão. Organize com elas(es) o evento, prestando atenção em questões como: • Dia e hora em que será realizado o debate; • Tempo destinado a cada palestrante (esse tempo deve ser informado às(aos) convidadas(os) e deve ser de aproximadamente 15 minutos para cada palestrante); • Quais as perguntas que desejam fazer; • Como será a organização da sala; • Quais serão os procedimentos para recepcionar e agradecer as(os) convidadas(os). Combine com o grupo como será a dinâmica do debate: cada palestrante fala e abre-se espaço para perguntas ou as duas palestras acontecem em sequência para depois as questões serem debatidas? Sugira que anotem pontos que chamam atenção durante as falas das(os) palestrantes, para facilitar, no debate, a elaboração das perguntas. Será interessante, ainda, você marcar uma conversa prévia com as(os) palestrantes para dar informações sobre a sua turma, a fim de que possam desenvolver uma fala adequada à faixa etária dela Para aprofundar o assunto, proponha às(aos) estudantes convidarem para conversar com elas(es), pessoas que tenham acúmulo sobre a participação da(o) negra(o) na expressão artística brasileira (cinema, novelas, música e pintura), bem como sobre movimentos políticos de emancipação, no decorrer de nossa história, com vistas a realização, posteriormente, de um debate. Para isso, divida a turma em dois grupos e informe que cada um deles deve sair com uma tarefa. Um dos grupos, com sua ajuda, irá procurar uma(um) professora(or) de Arte, convidando-a(o) a organizar um panorama geral da participação da população negra nas artes, no Brasil. Já o outro grupo, também com sua ajuda, deve pesquisar se há na região alguma OSC ou movimento social organizado e reconhecido voltado para a questão racial, para convidar uma(um) representante a discutir a situação da população negra no país: suas conquistas históricas e os atuais desafios. Aproveite esse momento para aproximar escolas, OSCs e outras instituições do território. 21 Terceiro encontro: o debate O desenvolvimento do debate seguirá o planejamento feito anteriormente, a menos que haja necessidade de alterações e ajustes. Assim, abre-se o evento com a apresentação das(os) palestrantes para o público presente, que poderá ser feita pela(o) educadora(or) em conjunto com uma(um) estudante. Em seguida, façam a apresentação da dinâmica da exposição e do debate: a ordem das falas, em que momento serão feitas as perguntas e quanto tempo será dedicado para a sua discussão. É importante ficar atenta(o) para mediar eventuais impasses, apesar de todo o cuidado anterior com a preparação. O que se busca, ao debater a questão da discriminação, é a inserção social de todas(os), a igualdade de direitos e não o confronto ou o acirramento de posições ideológicas. Atividade extra É importante ampliar o debate iniciado, abordando outros tipos de discriminação existentes em nossa sociedade, como a de gênero, de idade e/ou de classe social. A ajuda de instituições governamentais e não governamentais, envolvidas de alguma forma com a questão a ser debatida, é muito bem-vinda. Esse debate poderá ser estendido à comunidade e realizado em parceria com outra instituição do território. A projeção de um filme ou de um documentário e a apresentação de grupos artísticos atuantes na região ajudarão a atrair as pessoas para o debate e a tornar o encontro mais agradável. Referências Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas MEC/INEP: Pesquisa sobre Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, 2009 - Acesse em Desconstruir o racismo e forjar uma utopia radical negra – Revista Caros Amigos de 18 de novembro de 2011. Artigo do jornalista e antropólogo Douglas Belchior e do historiador Jaime Amparo Alves, ambos membros da Uneafro-Brasil. Hora de avaliar Para ampliar e ao seu repertório. Sugira que utilizem alguns recursos audiovisuais, que além de tornar mais dinâmico o debate, facilitam o entendimento. Terminado o debate, após a saída das(os) convidadas(os), as(os) estudantes organizam-se em grupos, conversam sobre o que foi mais significativo para cada uma(um) e relacionam em um cartaz duas ou três ideias que consideram mais importantes em relação ao que foi tratado, afixando os cartazes na parede, após as devidas correções e reescrita. Em seguida, proponha aos grupos que elejam, dentre essas ideias, a que consideram mais forte sobre a condição da população negra na nossa sociedade e montem uma cena. Fotografe as cenas representadas pelos grupos e projete-as, em seguida, em datashow, para que possam se ver interpretando-as. As fotos poderão ser ampliadas e afixadas nas paredes da sala, ao lado dos cartazes, compondo um painel. 22 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 Mulheres que contrariam as estatísticas • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Folhas de papel sulfite. • Folhas de papel pardo. • Lápis de cor ou pincéis. • Aparelho de som. • Dar visibilidade às histórias de pessoas que pertencem às minorias mais discriminadas no país, lutando contra o preconceito e a violência simbólica. • Leitura e discussão de relatos de trajetória de vida de mulheres pertencentes a grupos minoritários da sociedade. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Buscar compreender as atitudes alheias antes de julgar. • Aprender com as experiências das outras pessoas. • Desenvolver atitudes de respeito, solidariedade e aprendizagem com as diferenças. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 23 Nas últimas décadas do século XX e neste início do século XXI, o movimento feminista brasileiro conquistou a ampliação dos direitos das mulheres. Um importante marco foi a apresentação da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes de 1988, que indicava as demandas do movimento feminista e de mulheres. Início de conversa Acesse a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes de 1988 em PARA APROFUNDAR O movimento feminista destaca-se, ainda, pelas decisivas contribuições na democratização do Estado brasileiro, produzindo, inclusive, inovações importantes no campo das políticas públicas. Um exemplo são os Conselhos da Condição Feminina, criados pela Lei 5.447/86 (revogada pela Lei 17.431/21), em que órgãos são responsáveis pela formulação de políticas públicas para a igualdade de gênero e combate à discriminação contra as mulheres. Além disso, as ideias e ações feministas têm conquistado espaço em diversas esferas da sociedade. Um exemplo é a luta contra as desigualdades salariais entre homens e mulheres que ocupam as mesmas funções no mercado de trabalho, assim como no acesso ao poder político, com a aprovação de uma cota de 20% das legendas dos partidos para as candidatas mulheres. Em 2021, a reserva de cotas no legislativo foi ampliada para 30%, conforme proposta defendida pela senadora Eliziane Gama. Capa da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes de 1988 24 Desigualdade salarial entre gêneros ainda é um problema no Brasil, 2021. Fonte: Correio Braziliense As mulheres também tiveram um papel central na luta contra a ditadura militar e pela anistia às pessoas presas por motivos políticos nesse período, assim como na reivindicação por creches (necessidade capital das mulheres de classes populares) e pela descriminalização do aborto que penaliza as mulheres de baixa renda. Zuzu Angel: moda-protesto contra a ditadura Você conhece a história de Zuzu Angel? Além de uma das mais importantes estilistas brasileiras, ela se destacou por sua incansável oposição à violência do governo militar. Mãe de Stuart Edgar Angel Jones, estudante que foi torturado e assassinado pela ditadura, Zuzu passou anos denunciando os crimes da ditadura até morrer em um acidente de carro suspeito, em 1976. PARA APROFUNDAR 25 No entanto, esses avanços não alcançaram todas as mulheres da mesma maneira. Isso porque o movimento feminista esteve, como outros, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica das mulheres. A consequência disso foi a incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades entre as mulheres brasileiras por outras razões, como a origem étnico-racial, a pessoa com deficiência e a identidade de gênero. São todas questões ligadas a lutas de outros grupos sociais que estiveram e ainda estão longe de ter seus direitos garantidos. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão, além do sexismo (atitude de discriminação fundamentada no sexo), continuaram no silêncio e na invisibilidade. É o caso das mulheres negras, indígenas, com deficiência e trangêneros, vítimas de muita discriminação e preconceito, com pouco acesso aos direitos e aos bens culturais produzidos pela sociedade. Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, 2021. Foto: Anmiga Essas outras dimensões da problemática da mulher na sociedade brasileira, que é o silêncio sobre outras formas de opressão além do sexismo, vêm exigindo a ampliação e a reelaboração das lutas e das práticas políticas de todos os movimentos sociais. Na prática Sugestão de encaminhamento Roda inicial: imaginando o futuro Receba a turma com uma música suave. Peça que formem uma roda e ouçam a música que está tocando. Proponha que façam um exercício de imaginação relacionado ao seu futuro. Oriente as(os) estudantes a fecharem os olhos e imaginarem como estarão daqui a 10 anos. Proponha as comandas abaixo, deixando um espaço entre elas para que possam ter tempo para imaginar: • Quantos anos você terá? 26 • O que verá ao se olhar no espelho, como estará o seu corpo? • Estará trabalhando com o quê? • Onde e com quem estará morando? • Quem serão suas(seus) amigas(os)? • E a vida amorosa, como estará? Ao final, peça que, aos poucos, abram os olhos. Sem que as(os) participantes digam nada a respeito, ofereça papel e lápis de cor ou pincéis e peça que cada uma(um) represente o que pensou utilizando um desenho. Após alguns minutos, ainda sem nada falarem, peça que reflitam sobre qual seria o caminho que pensam ter que ser trilhado para conquistar essa condição e escrevam ao lado do desenho, com o título: Percurso. Depois, questione quais dificuldades imaginam que teriam para enfrentar este Percurso. Oriente para que também nomeiem essas dificuldades, escrevendo Dificuldades, ao lado do Percurso. Depois de algum tempo, abra a roda para comentários, para quem desejar. A(O) participante que o fizer, mostrará o seu desenho ao grupo e falará sobre o percurso a ser trilhado, considerando as dificuldades imaginadas. Depois que todas(os) que quiserem falar expressarem-se, peça que guardem as folhas. Mulheres inspiradoras que contrariam as estatísticas Diga à turma que esta oficina tratará a história de mulheres com percursos de vida que fogem ao comum. Algumas delas tiveram experiências muito difíceis, tendo de lutar contra grandes preconceitos para conquistar o que sonhavam. Na atividade, elas(es) conhecerão a trajetória que essas mulheres fizeram até chegarem onde estão. As histórias referem-se à vida de uma mulher indígena, de uma negra, de uma ex-viciada em crack, de uma transexual, de uma portadora de microcefalia e de uma mãe adotiva de excepcionais. Os relatos foram publicados no site UOL, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 2016. Divida a turma em grupos de três ou quatro para lerem os relatos. Se possível, monte grupos só de meninas e só de meninos para que identifiquem as semelhanças e diferenças entre o que pensam sobre os relatos apresentados. Os diferentes olhares e comentários que surgirem sobre as histórias serão objeto de discussão entre elas(es), ao final da atividade, sob sua mediação. A seguir, confira as reportagens da série Contrariando estatísticas, publicada em 2016 no site UOL: • Universitária se torna a 1ª transexual aprovada na OAB em PE - Acesse em • Jovem indígena cria projeto sustentável para seu povoado - Acesse em • Advogada negra integra 0,98% dos pós-graduandos do país - Acesse em • Ex-viciada em crack lança seu 1º disco como sambista - Acesse 27 em • Jovem com microcefalia se formou em jornalismo - Acesse em • Dona de casa adotou três crianças deficientes - Acesse em E se? Se houver mais de 18 participantes na oficina, repita o mesmo relato para vários grupos. Será interessante analisar a mesma experiência a partir de diferentes pontos de vista. E se? Se mais de um grupo leu e discutiu o mesmo relato, deverão expô-lo um em seguida ao outro, para fazer complementações e/ou apresentar interpretações diferentes das indicadas pelo grupo anterior. Para orientar a leitura e a discussão dos grupos, proponha o seguinte roteiro para análise e registro: 1. Nome da protagonista da história; 2. Dificuldades e preconceitos que teve de superar; 3. O que ela diz a respeito de suas experiências: valeu a pena? 4. Como superou as dificuldades e os preconceitos? 5. Quais aprendizagens suas experiências nos oferecem? Protagonistas 1 2 3 4 5 Dificuldades/ Preconceitos O que fizeram? Aprendizagens Após a apresentação e discussão de todos os relatos, convide-as(os) a lerem os cartazes em que registraram as dificuldades que cada caso oferece. Peça que retomem as suas folhas e que cada uma(um) leia, para si, as dificuldades que relacionaram para o seu percurso no projeto da própria vida. 28 • O que acham? • É possível superar esses obstáculos? Convide as(os) participantes para comentarem. Finalize lendo com elas(es) as aprendizagens que podemos tirar das experiências. Entrevistas fictícias A seguir, proponha que os trios que leram o mesmo relato se agrupem. Oriente que cada grupo escolha um dos relatos que não foi o seu, para simular uma entrevista fictícia com a protagonista desse relato. Peça que elaborem perguntas que gostariam de fazer a ela e respondam como acham que essa mulher diria. Depois de 20 minutos, a entrevista será dramatizada para os demais grupos. Após a apresentação de cada grupo, abra para comentários do coletivo: • O que sentiram? • Acham que as respostas estão compatíveis com os perfis das protagonistas? • Haveria outras perguntas que fariam? Quais? Pergunte também como foi a sensação de encarnar a personagem do relato, sendo entrevistada, e como cada entrevistadora(or) se percebeu na situação: • Foi difícil fazer as perguntas? • E imaginar as respostas? Atividade extra Outras ações que podem ser realizadas com a turma: • Entrevistar mulheres da comunidade que também contrariam as estatísticas; • Convidar ativistas de movimentos de mulheres para que contem sobre suas trajetórias e as formas de engajamento possíveis, na luta pela melhoria da condição de vida das mulheres. Referências Correio Braziliense: Desigualdade salarial entre gêneros ainda é um problema no Brasil - Acesse em Hora de avaliar Para ampliar Faça uma rodada em que cada participante fale sobre quais ideias que circularam na oficina foram as mais significativas. 29 Memórias da Ditadura: Zuzu Angel - Acesse em Mulheres em movimento: artigo da filósofa e ativista negra Sueli Carneiro - Acesse em Carta Capital: Vestir é político: a moda e seus símbolos - Acesse em br/blogs/fashion-revolution/vestir-e-politico-a-moda-e-seus-simbolos/; Outras Palavras: A Marcha das Mulheres Indígenas fez Brasília pulsar - Acesse em EBC: Conheça 8 mulheres que influenciaram a luta pelos direitos femininos no Brasil - Acesse em O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 O que é que a cidade tem? • Site da Prefeitura do município. • Guia da cidade ou jornais locais. • Catálogos, revistas ou agendas com fotos de logradouros públicos da cidade. • Folhas de papel jornal. • Conhecer os investimentos realizados pelo poder público, em sua cidade, para o bem-estar da população que nela vive. • Investigação sobre os serviços de Educação, Saúde, Esporte e Cultura oferecidos pela administração municipal para a população da cidade, especialmente crianças, adolescentes e jovens. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Saber onde e como encontrar informações sobre os serviços públicos de interesse. • Engajar-se em movimentos para a conquista de outros serviços importantes. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades ou outro espaço com acesso à internet. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 31 A cidade guarda potenciais educativos como espaços de cultura, de serviços, órgãos públicos, instituições, iniciativas das(os) moradoras(es), OSCs, associações, cooperativas, ruas, praças e gente de todas as idades, crenças, ideologias, hábitos e identidades. Integrar esses diversos potenciais em uma rede é uma forma importante de garantir condições para o desenvolvimento integral dos sujeitos do território, especialmente crianças e adolescentes. Democratizar o acesso da população aos recursos que a cidade lhes oferece exige, em primeiro lugar, conhecê-los. Com base em um mapeamento desses espaços e sujeitos, pode-se pensar em estratégias de uso da cidade como aprendizado e promoção da cidadania, integrando serviços da Educação, Saúde, Cultura e Esporte. Início de conversa Biblioteca Comunitária do CIRANDAR, em Ilha Grande (RJ). Foto: Acervo Cenpec Há um enorme potencial de realização em equipamentos que já estão presentes na própria comunidade, com as suas vocações e possibilidades de interação. A cidade pode e deve ser compreendida como fonte de saber e espaço de intervenção cidadã, de exercício democrático e de equidade. Cabe a nós, educadoras(es), corresponsáveis pela educação das(os) jovens cidadãs(ãos), descortinar esse horizonte e ajudar a construir a cidade que atende, acolhe e educa, melhorando a relação entre a população e a cidade e, consequentemente, a qualidade de vida no bairro, no município e no mundo. Na prática Sugestão de encaminhamento Como desenvolver a atividade? Para esta oficina, peça que as(os) participantes tragam revistas, agendas, catálogos e/ou jornais com 32 fotos e notícias sobre a cidade. Na conversa inicial, pergunte há quanto tempo moram no município e se consideram que o conhecem bem. Desafie-as(os) a levantar o que existe de serviço público na cidade em relação à Educação, Saúde, Esporte e Cultura, fazendo um levantamento por vez. Organize um cartaz para cada setor e vá registrando, conforme elas(es) forem falando. Por exemplo: • Educação: quais escolas conhecem do Ensino Fundamental, Ensino Médio, Faculdades e/ou Universidades? • Saúde: quantos e quais postos e/ou hospitais conhecem? • Esporte: quais são as praças, parques, piscinas e/ou centros desportivos disponíveis para a população? • Cultura: há cinema, teatro, grupos musicais, museus, centros culturais e/ou apresentações artísticas? Depois de organizada a relação, forme duplas e oriente as(os) participantes a entrar no site da Prefeitura. Cada dupla localizará uma das Secretarias (poderá haver várias duplas com a mesma Secretaria). As(Os) estudantes devem tentar identificar as ofertas de serviços e a programação existente, e registar o resultado da pesquisa em uma folha de papel sulfite para, posteriormente, apresentar ao coletivo. E se? Se não houver disponibilidade de uso dos computadores, entre em contato com uma lan house ou outra instituição local, com a qual você pode fazer uma parceria, para uso do espaço e material por aproximadamente uma hora e meia. Em seguida, organize grupos com as duplas que visitaram os mesmos sites para que chequem as suas coletas e as complementem com nova pesquisa no guia da cidade ou nos jornais diários. Talvez as(os) estudantes precisem da sua ajuda para manusear alguns recursos, como localizar a página da programação cultural e esportiva do município, procurar os eventos por ordem alfabética etc. Nesse momento, disponibilize para elas(es) o material impresso que trouxeram sobre a cidade, com fotos trazidas dos locais de Lazer, Cultura, Saúde e Educação. Oficina de grafitti com Lee 27. Mostra Hip Hop em Movimento, Salvador (BA), 2010. Foto: Wendell Wagner/Labfoto Dê um bom tempo para que consultem as suas anotações e identifiquem as convergências, as complementações e mesmo as contradições entre as informações colhidas nas diferentes fontes. Elas(es) também deverão escolher, dentre todos os achados, aqueles que pretendem socializar com o grupo, em função dos interesses da idade das(os) participantes. Com as informações selecionadas e as fotos correspondentes, as(os) estudantes devem montar um painel sobre o setor pesquisado para apresentar ao coletivo. Abra, então, a roda e peça para cada grupo apresentar o que encontrou. Registre as dúvidas que levantaram em relação a cada setor para, 33 posteriormente, buscar esclarecimentos. Avalie com elas(es) onde há mais interesse em se aprofundarem e organizem uma lista, em ordem decrescente, para futuras visitas aos locais que mais despertaram curiosidade. E se? Se restarem muitas dúvidas ou não conseguirem levantar as informações necessárias para entender como funcionam os serviços e como usufruir deles, marque visitas nas próprias Secretarias, se o município for pequeno, ou nos órgãos regionais de representação do poder público. Terminado esse momento, se o grupo for formado por crianças, convide-as a ouvir e cantar a música A cidade ideal, de Chico Buarque de Holanda. Se o grupo for de adolescentes, sugira a música A cidade, de Chico Science & Nação Zumbi. Peça para, em pequenos grupos, desenharem, criarem quadrinhas poéticas, uma música ou encenarem como seria a cidade ideal para elas(es), crianças e adolescentes. Finalize a oficina com a apresentação das produções. Atividade extra Outras ações que podem ser realizadas com a turma: • As crianças e as(os) adolescentes poderão organizar entrevistas sobre alguns locais descobertos na pesquisa inicial e que despertaram interesse, com professoras(es) da escola que os frequentam, para aprofundarem o assunto e conhecerem melhor o que a cidade oferece à população. Que tal fazer essa parceria com a escola? • As(Os) estudantes ainda podem levar as produções realizadas na oficina para compor um grande painel em uma praça próxima, enviar à Câmara Municipal ou levar para divulgar num programa da rádio local; • Poderão também fazer um guia com os serviços e equipamentos pesquisados e, quem sabe, reproduzi-lo para que cada família receba um exemplar; Hora de avaliar Para ampliar Sentadas(os) em roda, peça para se manifestarem a respeito do que descobriram nessa oficina: afinal, o que é que a sua cidade tem? • Tem escolas, universidades? • Tem hospitais, tratamento dentário? • Tem locais diversificados de cultura e esporte? • O que falta na cidade para atender à população e, principalmente, o que falta para elas(es): crianças, adolescentes e jovens? Peça para darem uma nota de 0 a 10 para a cidade. 34 • A circulação pela cidade é uma importante forma de se apropriar dos seus espaços. Como ampliação do repertório cultural do grupo, programe com as(os) participantes uma agenda de visitação por todos os locais considerados interessantes. Referências ALDEROQUI, S. (org). Ciudad e ciudadanos: aportes para la enseñanza del mundo urbano. Buenos Aires: Paidós, 2003; ALVES, R. Aprendiz de mim: um bairro que virou escola. Campinas: Papirus, 2004; CABEZUDO, A.; PADILHA, P.; GADOTI, M. Cidade educadora: princípios e experiências. São Paulo: Cortez, 2004; GOULART, B. Centro SP: uma sala de aula. São Paulo: Peirópolis/Casa Redonda Produções Culturais. 2008. 35 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 6 Falando de nossos territórios • Computador com acesso à internet. • Máquina fotográfica ou celular. • Mapas e/ou guias da cidade. • Apreender as características próprias de seu lugar e identificar semelhanças e diferenças com outros lugares da cidade. • Interação entre jovens de lugares diferentes da cidade. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Apurar a observação do que é familiar e diversificar as formas de registrar as observações. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de atividades, sala de informática, telecentro e território. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 36 Os territórios da cidade e os equipamentos públicos são direito de todas(os) as(os) cidadãs(ãos), podendo e devendo ser apropriados pela população. Em relação à Educação e à Proteção Social das novas gerações, essa apropriação é fundamental para o pertencimento e para o usufruto das possibilidades que a cidade oferece. O mapeamento dos espaços sociais e culturais de referência nas comunidades, o conhecimento do entorno e a circulação e o acesso aos diferentes espaços propiciam formas de compartilhar múltiplos ambientes e relacionamentos com outras crianças, adolescentes e adultos. Possibilitam ainda a descoberta de novas possibilidades de aprendizagem, em diferentes processos e contextos. Além da vivência presencial dos territórios e de seu potencial para o desenvolvimento das pessoas, há ainda a possibilidade de apropriação pelos meios virtuais. Para isso, crianças, adolescentes e jovens precisam ter oportunidades de acesso à tecnologia e aprenderem a usála a seu favor e de sua comunidade. Por essa razão, quanto mais puderem se apropriar da cidade como um todo, circulando por ela e conhecendo melhor seus espaços e respectivos potenciais e limites, mais ampliada será a sua visão da vida no município. Com isso, as(os) estudantes terão mais recursos para se movimentar no seu contexto e pleitear novas condições de existência, inserindo-se na participação de movimentos sociais organizados. Conhecer os saberes próprios da comunidade, apropriar-se de sua cultura, circular pelo território e participar da vida pública são condições essenciais ao pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: que bairros da cidade conhecemos? Antes da oficina, consulte o mapa atual da cidade, na internet ou em algum guia, para fazer uma relação de alguns bairros e sua localização na cidade. Pesquise também a existência de algumas escolas e OSCs nessas regiões. Na roda do dia, converse com as(os) crianças, adolescentes e jovens sobre os bairros que conhecem da cidade e os bairros que não conhecem, mas sabem que existem. Ajude, citando nomes de bairros que não falaram e que você encontrou em sua pesquisa prévia. Liste em um cartaz os bairros citados como conhecidos e, em outro cartaz, os desconhecidos. Investigue com elas(es) quais, dentre os que não conhecem, têm mais curiosidade em conhecer. Proponha que escolham dois dos bairros mais cotados pela curiosidade delas(es) e tentem encontrar interlocutoras(es) nesses bairros para trocarem informações sobre as realidades em que vivem e, assim, conhecerem outros locais da sua cidade. Verifique se nesses locais que gostariam de conhecer, alguém da turma tem uma(um) amiga(o) ou parente que esteja estudando em alguma escola ou frequentando alguma OSC, a quem possam fazer 37 E se? Se houver poucas indicações e locais ou não tiver alguém conhecido nos bairros escolhidos, indique você mesma(o) alguns bairros que possa contatar, de preferência onde tenha alguma escola ou OSC. Produza com elas(es) um pequeno texto a ser enviado para a organização (escola ou OSC) escolhida em cada um dos dois bairros, contando sobre como chegaram à proposta de intercâmbio e fazendo o convite para uma de suas turmas. Alguém se responsabilizará por enviar o convite via e-mail ou carta para as instituições. Para adiantar o trabalho, organize a turma em grupos e proponha que comecem a discutir o que consideram importante falar sobre o próprio bairro para as(os) futuras(os) interlocutoras(es): • Seus pontos fortes, suas fragilidades e suas possibilidades; • O que gostariam de mostrar no seu bairro? • Como mostrar? Seria por meio de fotos, textos impressos, desenhos, vídeos, entrevistas com moradoras(es) e/ou depoimentos das pessoas antigas e novas? • Quais recursos precisarão? Dê 30 minutos para as(os) participantes discutirem e abra a roda para socializarem as ideias. A seguir, faça com elas(es) um planejamento coletivo da coleta de informações e das tarefas dos grupos. Observação: quando obtiverem as respostas das instituições convidadas, marquem uma data para trazerem o material que coletaram sobre o seu bairro. Segundo encontro: organizando o material Este encontro será dedicado à organização do material que conseguiram sobre o próprio bairro: fotos, vídeos, textos com as entrevistas, depoimentos etc. Em um primeiro momento, os grupos irão organizar as suas produções, agrupando os registros de mesma natureza, para selecionar e decidir o que está mais adequado e claro para passar a informação desejada. Em seguida, cuidarão do arranjo estético da produção, de forma a produzir o efeito esperado na(o) interlocutora(or). Assim, decidirão a composição das fotos, dos vídeos e dos textos, sempre com a preocupação de identificar do que se trata, utilizando legendas e pequenos textos explicativos. Poderão acrescentar músicas e poemas, também. O segundo momento desta oficina será destinado à apresentação das produções, por cada grupo, para o coletivo da turma, a fim de trocarem impressões sobre elas e decidirem a composição final do trabalho, como um todo. Crie um texto coletivo com as(os) estudantes, apresentando o que foi produzido, com comentários, explicitando as intenções que tiveram e fornecendo as explicações necessárias para acompanhar o material. Devem colocar ainda no texto as perguntas sobre o que querem saber em relação aos bairros onde vivem as(os) destinatárias(os). Um novo grupo, formado por representantes dos grupos anteriores, ficará responsável pelo envio do material para as outras instituições, uma de cada um dos dois bairros escolhidos. o convite de intercâmbio de informações sobre os lugares onde vivem. 38 Terceiro encontro: o que nossos territórios têm em comum? Recebidos os materiais dos dois grupos de interlocutoras(es) da cidade, é hora de se debruçar sobre eles e verificar as semelhanças e diferenças existentes entre os bairros. Divida a turma em quatro grupos: dois estudam o material de um bairro e dois do outro bairro, registrando as suas observações a respeito do que têm, do que não têm, de suas belezas e problemas e das dúvidas que surgirem. Após 45 minutos, abra a roda para a socialização dos registros feitos a respeito dos dois bairros e, a seguir, organize com os grupos, em um cartaz, as características de cada um deles, para compará-las, a seguir, com as do próprio bairro. Para finalizar, oriente a produção de um texto coletivo sobre o que observaram de semelhanças e diferenças entre eles, assim como comentários a respeito e impressões que ficaram. Realizado o último encontro da oficina, peça que as(os) participantes avaliem o que aprenderam com as atividades: • Elas trouxeram algum elemento novo em relação ao conhecimento que tinham do bairro? • Houve alguma mudança na sua maneira de vê-lo? • Como foi o uso das diferentes mídias? • Ficaram satisfeitas(os) com o que produziram? • As produções mostram a cara do bairro, com clareza? • E quanto ao que conheceram dos outros dois bairros? Foi interessante? Eles são muito diferentes? Em relação ao processo, pergunte se houve dificuldades na execução das tarefas pelo grupo e como as resolveram. Hora de avaliar Para ampliar Atividade extra O intercâmbio entre os bairros pode continuar por um tempo maior, enquanto tiverem interesse. Poderão ser organizadas visitas mútuas para conhecimento in loco dos bairros e das(os) interlocutoras(es). Referências Matriz de Avaliação das Ações Socioeducativas do Prêmio Itaú-Unicef 2013. 39 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 7 Espaços de participação e protagonismo juvenil • Computador, notebook, tablet ou celular com acesso à internet para duplas de trabalho. • Folhas de papel sulfite. • Folhas de papel pardo. • Jornais e revistas. • Tesoura. • Cola. • Pincéis atômicos. • Durex. • Clipes. • Aparelho de som. • Compreender o que é protagonismo e como exercê-lo a favor da autonomia e do bem comum. • Debate sobre o que é protagonismo juvenil e formas de exercê-lo. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Fazer escolhas para realizar pequenas intervenções coletivas na escola ou na comunidade. • Refletir sobre formas de atuação grupal que condizem mais com os próprios desejos. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 40 Desenvolver o protagonismo juvenil implica criar espaços de reflexão, de discussão e de participação, para que adolescentes e jovens pratiquem a crítica, a argumentação e exercitem a cidadania, idealizando e concretizando, coletivamente, pequenas intervenções culturais, esportivas e educacionais em sua comunidade. A vivência da cidadania envolve níveis crescentes de participação e de autonomia das(os) adolescentes e jovens, na busca do bem pessoal e comum. Assim, é importante mobilizálas(os) para discutir e ampliar suas leituras de mundo, confrontando e partilhando, com outras pessoas, visões, necessidades, sonhos e propostas de ação, em relação à sua vida e à vida de sua comunidade. Esse exercício constante ajuda as(os) estudantes na elaboração de projetos, tanto individuais como coletivos – condição para a conquista da autonomia -, assim como para lutar pelo que desejam para si e para o seu lugar. É preciso considerar que, além do entusiasmo e da vitalidade própria dessa fase da vida, as(os) adolescentes e jovens, se estimuladas(os) a se expressar intelectual e verbalmente, desenvolvem sua capacidade de tecer relações, de argumentar e projetar o futuro. A tendência à vida grupal é uma característica do mundo jovem. A proposta do protagonismo é justamente orientar essa tendência em favor do desenvolvimento pessoal e social dessas pessoas. O grupo é o espaço de conquista e afirmação da identidade pessoal e social juvenil e, por ser espontâneo, constitui espaço de procura e experimentação, em que elas(es) exercitam a sua autonomia, ainda que relativa, em relação ao mundo adulto. Nessa etapa do desenvolvimento, a coesão do grupo é forte, mas nem sempre essa força é canalizada positivamente pelas(os) adolescentes e jovens, dependendo das oportunidades oferecidas pela família, pela escola e pela comunidade. Por isso, é necessário um cuidado de nossa parte, educadoras(es), se desejamos trabalhar com adolescentes e jovens para desenvolver o seu protagonismo. É importante que tenham espaço para pensar, falar livremente, e serem ouvidos e respeitados. Elas(es) sabem muito bem distinguir quem se acerca delas(es) com propostas de desenvolvimento pessoal e social, daquelas(es) que têm o intuito de estabelecer mecanismos de controle sobre as suas condutas. Segundo professor Antonio Carlos Gomes da Costa, ativista pelos direitos da criança e do adolescente: “Mais do que exorcizar as situações de risco, o protagonismo juvenil procura preparar os jovens para a tomada de decisões baseadas em valores, não apenas lidos ou escutados, mas vividos e incorporados em seu ser. Jovens assim estarão certamente mais bem preparados para enfrentar os dilemas da ação coletiva que caracterizam a sociedade onde a pluralidade e o conflito de pontos de vista e de interesses entre pessoas, grupos e instituições, longe de ser uma patologia, são parte integrante do tecido social.” Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa inicial Prepare a sala com um painel de recortes de jornais e revistas que mostram grupos de jovens partici- 41 pando de atividade cultural, esportiva, comunitária ou política, como um grupo de teatro, de skatistas, uma banda de música, um time de basquete, um grêmio estudantil, um movimento social por direitos, uma rádio comunitária, uma manifestação política etc. Além das fotos selecionadas, deixe algumas revistas e jornais para consulta. Provoque-as(os) sobre o tema a que o painel se refere: de que ele trata? Dê um tempo para que expressem suas hipóteses e aproximem-se, aos poucos, da questão central da oficina: a participação de jovens em diferentes espaços da sociedade. Pergunte às(aos) estudantes se participam de algum grupo como aqueles das fotos ou de qualquer outro que não está representado ali. Nesse caso, peça que acrescentem esse grupo aos expostos no painel, usando as figuras das revistas e dos jornais que você deixou disponíveis, ou mesmo desenhando ou escrevendo no painel. Pergunte também qual das(os) estudantes não faz parte de nenhum grupo. Peça que todas(os) as(os) que estão engajadas(os) em algum grupo falem sobre a sua participação: • Qual é a atividade que fazem? • Quais coisas boas o grupo oferece? • O que esperam dele e por que escolheram participar desse grupo. Às(Aos) que não estão engajadas(os), pergunte a que grupos gostariam de pertencer. Primeiro encontro: debatendo protagonismo juvenil Pergunte se sabem o que é protagonismo. Já teriam ouvido falar sobre isso? Dê um tempo para que verbalizem suas ideias a respeito e, então, convide-as(os) a assistir ao vídeo em que jovens estudantes da EE Professora Maria José Moraes Salles, da cidade de Bragança Paulista, no interior do estado de São Paulo, falam sobre isso. Acesse o vídeo em Após a projeção, lance as questões: • O que o vídeo tem a ver com o painel? • Quais espaços de participação são citados pelas(os) jovens da EE Professora Maria José Moraes Salles, como espaços de protagonismo juvenil? • A que benefícios pessoais e sociais as(os) estudantes se referem, no vídeo, ao falar de sua participação? • É bom ser protagonista, segundo a opinião delas(es)? Para entrarem em contato com outros exemplos de protagonismo juvenil, em diferentes áreas, divida a turma em dois grandes grupos e oriente que cada grupo se organize em duplas para assistirem aos vídeos a seguir. São duas produções, uma para cada grupo: • Comunidade de Heliópolis, em São Paulo (SP), dá voz às(os) jovens e incentiva a participação social - Acesse em • A aplicabilidade do protagonismo juvenil na escola - Acesse em Oriente as duplas para que assistam ao vídeo indicado para o seu grupo e observem a área de atua- 42 ção das(os) jovens, como se engajaram no projeto e como avaliam a sua participação. Dê aproximadamente 20 minutos para a atividade. Após o tempo combinado, abra a roda para socializarem as práticas tratadas nos vídeos e discutirem as várias formas de participação apresentadas: • Quais são? • Como as(os) jovens participam? • O que mais chamou a atenção de cada uma(um)? Depois dos comentários, faça com elas(es) dois cartazes, um para cada vídeo, sintetizando a ação específica protagonizada pelas(os) jovens. A seguir, peça para cada uma(um), em silêncio, pensar sobre si próprio, a respeito da seguinte questão: • Você já pensou em fazer parte de algum grupo cultural, esportivo, literário, político, ou desenvolver alguma ação comunitária? Se sim, o quê? Oriente que escrevam numa folha de papel sulfite/post-it, com pincel atômico colorido e letras grandes, qual foi a sua escolha, prendendo a folha, como um cartazete, no peito, com durex ou clipes. Coloque uma música e convide-as(os) a circular pelo espaço da sala. A tarefa delas(es) será a seguinte: ao cruzarem com uma(um) colega, deverão ler a ação que ela(e) registrou no seu cartazete e verificar se essa ação tem afinidade e guarda semelhança com a sua escolha. Se houver afinidade, elas(es) passarão a andar em duplas, e se encontrarem uma(um) terceira(o) com ação semelhante, passarão a andar em trios e, assim por diante. E se? Se alguém não se identificar com nenhuma ação ou não escolher nenhuma porque não houve interesse, também deverá se unir com outras(os) colegas que estejam na mesma situação. Caso contrário, não tem importância ficar sozinha(o). O objetivo é investigar o que atrai mais, o que atrai menos ou se nada atrai o interesse das(os) adolescentes e jovens de sua turma. Depois de aproximadamente 8 minutos circulando, peça para pararem, olharem a disposição das(os) participantes e identificarem qual ação reuniu mais estudantes, qual ação reuniu menos e quantas(os) optaram por nenhuma ação. Agora, sentadas(os) em círculo, abra a palavra para todas(os) se expressarem sobre os pontos de identificação que encontraram pelo grupo, quando circularam pela sala, e o que fez com que se juntassem ou não às(aos) colegas, formando duplas, trios etc. • Foi fácil ou difícil esse processo? • Tiveram que pensar muito se havia afinidade ou não? • E quem não se juntou, foi porque nada tinha de afinidade ou ocorreu outra situação? Após falarem sobre o processo e as facilidades ou dificuldades vividas, proponha, como continuidade da oficina, uma mesa-redonda com a participação de algumas pessoas que atuam nas áreas que apareceram (teatro, rap, banda, coletivos de direitos e/ou outros) para dialogarem e conhecerem melhor os caminhos a serem seguidos. Para isso, tanto você como elas(es) deverão realizar uma pesquisa sobre grupos atuan- 43 tes nessas áreas e levantar nomes possíveis para a mesa-redonda: há alguns na comunidade? Ou em comunidades próximas? A internet, o Centro de Referência da Assistência Social (Cras) da região, a Subprefeitura, outros órgãos públicos ou OSCs conhecidas poderão auxiliar nesta pesquisa. Marquem uma data para trazerem os resultados. Segundo encontro: organizando as informações O objetivo deste encontro é sistematizar as informações coletadas e escolher as(os) convidadas(os) para a mesa-redonda. Assim, em primeiro lugar, cada grupo socializará com a turma o que encontrou na pesquisa feita e sugerirá nomes de convidadas(os), justificando a escolha desses nomes. Após um debate sobre os melhores nomes, combinem uma data para propor às(aos) convidadas(os). Levantem, em conjunto, um roteiro de perguntas que gostariam de fazer a cada uma(um) delas(es) sobre a sua história, sua trajetória, o que ajudou para que se constituíssem como um grupo, as melhores ações que fizeram, de que precisam cuidar, como poderiam se engajar etc. Oriente a turma a registrar esse roteiro em um cartaz ou apresentação virtual. Escrevam, também coletivamente, o convite a ser feito às pessoas, que será encaminhado por e-mail. Será interessante incluir, nos convites, as perguntas feitas, para ajudar as(os) convidadas(os) a organizarem sua fala para a mesa-redonda. É importante também informá-las(os) quantas pessoas serão convidadas a falar e quanto tempo aproximadamente cada uma(um) terá. A seguir, distribuam as tarefas: • Quem passará os e-mails, • Quem fará, no dia da mesa-redonda, a recepção e os agradecimentos às(aos) convidadas(os); • Como serão os procedimentos para a realização das perguntas. Terceiro encontro: a mesa-redonda No dia marcado, organizem o espaço, quer seja na sala de atividades ou ao ar livre, com as cadeiras em círculo, e uma proximidade entre as(os) convidadas(os). Quando chegarem, será importante fazer a apresentação de todas(os) elas(es), falar da razão de sua presença ali e expor a todas(os) como será a condução dos trabalhos, para o melhor proveito das(os) participantes: • Cada uma(um) fala e depois se abre para perguntas? • Quem quiser falar levanta a mão? Ou serão distribuídas papeletas para as pessoas escreverem as perguntas? • As(Os) convidadas(os) responderão uma a uma as perguntas ou serão formados blocos de perguntas para facilitar o ritmo das respostas e evitar que algumas delas se alonguem e outras não aconteçam? Não se esqueçam de registrar as possibilidades de contatos futuros com as instituições das(os) convidadas(os)! 44 Atividade extra • As(Os) estudantes poderão visitar instituições que estimulam o protagonismo juvenil, para conhecer como atuam, ou ir à Câmara Municipal para saber mais sobre os espaços de participação juvenil em eventos educacionais, esportivos, culturais e políticos da cidade, como o Conselho Municipal de Juventude ou o Orçamento Participativo. • Poderão entrevistar ou escrever para Secretárias(os) da Educação, da Cultura e do Esporte, e levar suas reivindicações de participação. Referências COSTA, Antonio Carlos Gomes da. Protagonismo Juvenil: adolescência, educação e participação democrática. Salvador. Fundação Odebrecht, 2000; SETUBAL, Maria Alice. Educação e sustentabilidade: princípios e valores para a formação de educadores. São Paulo. Peirópolis, 2015; CENPEC; SMADS; ITAÚ SOCIAL. Parâmetros socioeducativos: proteção social para crianças, adolescentes e jovens. Caderno 1 – Igualdade como direito, diferença como riqueza. São Paulo. 2007. Hora de avaliar Para ampliar Terminada a mesa-redonda, faça uma avaliação com as(os) estudantes sobre a oficina. Peça que cochichem, em duplas ou em trios, e indiquem dois pontos positivos e dois pontos frágeis, considerando todo o processo desde o início: proposta, preparação e desenvolvimento. 45 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 8 Vacinar é preciso! • Computador com acesso à internet. • Datashow. • Flip chart. • Canetas hidrográficas. • Papel cartão para confecção de folder. • Carteiras de vacinação da turma. • Calendários de vacinação divulgados pelo Ministério da Saúde. • Organizar uma campanha de atualização das carteiras de vacinação entre a população do entorno das instituições ou escolas. • Vivência e pesquisa sobre a importância das vacinas na prevenção de doenças infectocontagiosas. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Construir conhecimentos e divulgar informações sobre a importância da vacinação na prevenção de doenças infectocontagiosas. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala ampla e espaço ao ar livre. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 46 Qual é a origem das vacinas? As primeiras experiências com vacina – com a introdução de versões atenuadas de vírus no corpo das pessoas – remontam ao século X, na China, relacionadas ao combate à varíola. Porém, sua aplicação era bem diferente do que se faz atualmente: os chineses trituravam cascas de feridas causadas pela doença e sopravam o pó sobre o rosto das pessoas. Mas o termo vacina surgiu somente em 1798, com o trabalho do médico e cientista inglês Edward Jenner. Ele ouviu relatos de que trabalhadoras(es) da zona rural não pegavam varíola, pois já haviam tido a varíola bovina, de menor impacto no corpo humano. Então, Jenner introduziu os dois vírus – da varíola humana e da bovina – em um garoto de 8 anos e percebeu que o rumor tinha de fato uma base científica. A palavra vacina deriva de Variolae vaccinae, nome científico da varíola bovina. Em 1881, quando o cientista francês Louis Pasteur passou a desenvolver a segunda geração de vacinas, voltadas à cólera aviária e ao carbúnculo, ele sugeriu o termo para batizar sua recém-criada substância, em homenagem a Jenner. Com a comprovação de sua eficácia, as vacinas começaram a ser produzidas e aplicadas em massa para o combate a doenças infectocontagiosas no mundo todo. Início de conversa Louis Pasteur em desenho de Albert Edelfelt. Imagem: Wiki Commons No Brasil, as vacinas distribuídas em postos de saúde são produzidas por laboratórios nacionais, internacionais e por institutos especializados ligados ao poder público, como o Instituto Butantan (do Governo do Estado de São Paulo) ou a Bio-Manguinhos (do Governo Federal). A decisão sobre quais vacinas serão produzidas é feita a partir do planejamento anual da Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações (CGPNI), em parceria com as instituições produtoras. Entre os critérios adotados nesse planejamento estão a maior incidência de determinada doença, os agentes envolvidos nela e a capacidade de produção dos laboratórios. No caso da gripe, cujo vírus muda constantemente, a formulação da vacina segue outra lógica. “Durante todo o ano, países do mundo ficam analisando os vírus que são coletados. Duas vezes por ano, a OMS (Organização Mundial da Saúde) define quais vão compor a vacina do ano seguinte”, explica o médico Expedito José de Albuquerque Luna, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde entre 2003 e 2007 (Fonte: Fiocruz, 2016). A importância das vacinas ganhou ainda mais força em razão da pandemia de Sars-Covid-19 e da polêmica em torno de sua eficácia e dos possíveis efeitos colaterais. 47 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro Inicie o trabalho propondo a seguinte brincadeira: distribua ao grupo papéis com desenhos de diferentes símbolos e peça que também tenham em mãos uma caneta. Explique que elas(es) deverão andar pela sala e, ao seu sinal, formar duplas e conversar brevemente entre as pessoas que formaram a dupla. Além da curta conversa, as(os) estudantes devem anotar no papel o nome da(o) colega com quem conversaram. Proponha uma nova rodada, procurando outra(o) colega com quem conversar. Lembre-as(os) de anotar o nome dessa(e) outra(o) colega. Essa dinâmica pode ser repetida duas ou três vezes. Uma(Um) das(os) estudantes, sem que saiba, estará carregando um símbolo, previamente escolhido por você, que representa uma doença infectocontagiosa. Ao final da brincadeira identifique essa(e) aluna(o) e peça que mantenha a mão erguida. Pergunte quem conversou com ela(e) na primeira rodada. Apenas uma(um) colega deverá levantar a mão e permanecer com ela levantada. Neste momento, haverá duas pessoas com as mãos levantadas: a que carregava o símbolo e quem conversou com ela na primeira rodada. Pergunte, em seguida, quem conversou com alguma dessas duas pessoas na segunda rodada; mais duas mãos serão levantadas. Volte a repetir a mesma comanda descrita anteriormente por mais algumas vezes, a cada vez você obterá mais mãos levantadas. Na hora de refletir com o grupo sobre o significado da brincadeira, conte que aquela marca era o indicativo de uma doença transmissível. Em seguida, conduza uma conversa sobre como se propaga uma doença e como doenças diferentes, dependendo da forma de contágio, são transmitidas de forma mais ou menos rápida. Basta sugerir ao grupo que observe o número de mãos levantadas, representando o rápido avanço da doença. Depois da brincadeira, convide o grupo a formar um círculo e inicie uma roda de conversa. Você pode lhes dizer que uma das maneiras de evitar pegar certas doenças é a vacina. Com base nisso, pergunte: • Vocês já tomaram alguma vacina? • Sabem quais? • Vocês têm carteira de vacinação? A partir das respostas da turma, convide-as(os) a elaborar uma lista das vacinas recebidas e investigar a sua finalidade. Para concluir esta sessão, peça que os meninos e as meninas procurem saber com pais ou responsáveis se têm carteira de vacinação e quais vacinas, de fato, foram tomadas. Quem tiver a carteira de vacinação deve trazê-la no encontro seguinte. E se? Pode acontecer que alguma criança ou adolescente do grupo não tenha carteira de vacinação. Razões familiares podem condicionar decisões relativas à prevenção de doenças transmissíveis. Nesse caso, é importante um esclarecimento sobre o papel das vacinas e, eventualmente, uma conversa com as(os) responsáveis. Pode acontecer também que pessoas do grupo não conheçam as finalidades das vacinas e as doenças que podem ser evitadas com seu uso. Nesse caso, vale a pena convidar a turma a fazer uma pesquisa sobre o assunto. 48 Segundo encontro Retome o trabalho do encontro anterior perguntando ao grupo sobre as vacinas que cada uma(um) já tomou. Em seguida, organize com a turma uma campanha de atualização de vacinas no bairro onde se situa a instituição educacional ou escola. Para tanto, apresente ao grupo os calendários de vacinas para crianças, jovens e adultos, organizados pelo Ministério de Saúde. Acesse os calendários em A seguir, converse com a turma e peça que observem as carteiras de vacinação (quem tiver trazido). Com base nesse documento, convide o grupo a comparar as vacinas já tomadas com as previstas nos calendários oficiais. Peça-lhes que digam se já tomaram todas as vacinas, se as datas de vacinação estão compatíveis com os prazos determinados pelos órgãos oficiais e ainda outras observações que queiram fazer. E se? Se você notar que outras crianças de sua instituição educacional ou escola não têm vacinas ou não tomaram certas vacinas, e se achar pertinente, este mesmo movimento de conhecer a carteira de vacinação poderá ser repetido com outros grupos, de modo que todas(os) possam conferir sua situação em relação à prevenção de doenças. Atividade extra Além desta oficina, o grupo pode pesquisar mais sobre a história das vacinas ou sobre doenças que foram erradicadas com seu uso, como a poliomielite ou a varíola; ou ainda sobre doenças que persistem apesar da aplicação das vacinas, tais como sarampo, caxumba, rubéola etc. Outra discussão que pode ser proposta é sobre a seguinte questão: o que pode ser feito quando não há vacinas para prevenir as doenças, como ainda é o caso do HIV? Combine com o grupo um estudo sobre uma dessas doenças. Esse estudo deverá revelar ao grupo que a ausência da vacina requer da população cuidados para que não haja propagação de seu agente transmissor. As investigações feitas deverão ser amplamente divulgadas tanto entre o grupo quanto na instituição educacionalou escola. Para tanto, organize debates on-line, seminários, publique notícias nas redes das quais o grupo participa etc. Hora de avaliar Para ampliar A avaliação poderá ser feita por meio da construção de gráficos que ajudem o grupo a controlar a atualização da carteira de vacinação das(os) integrantes da instituição educacional ou escola. O resultado dessa mobilização deve ser divulgado na campanha de estímulo à atualização de vacinas por parte da população do entorno do bairro da instituição educacional ou escola. Essa divulgação deverá conter o endereço dos postos de saúde da região, acompanhado dos horários de funcionamento e dos nomes das(os) responsáveis pela vacinação. 49 Referências Universidade Federal do Paraná: Diante de pandemia, pesquisadora da UFPR explica processo de criação de vacina e reação do organismo - Acesse em Ministério da Saúde: calendário de vacinação - Acesse em 50

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Arte e cultura

Vivências culturais na educação

Experimentar diversas expressões artísticas contribui para formar sujeitos críticos e criativos. Leve a Arte e a Cultura para as suas aulas com estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.

1 Vivências culturais na educação Oficinas para fortalecer a expressão pessoal e coletiva através da arte e da cultura 2 3 A arte, em suas múltiplas expressões, é um poderoso caminho para o desenvolvimento integral das(os) estudantes. Ao entrar em contato com diferentes linguagens artísticas e manifestações culturais, elas(es) ampliam seus repertórios, constroem novas formas de ver e sentir o mundo e afirmam suas identidades. É com essa perspectiva que organizamos este conjunto de oficinas temáticas sobre Arte e Cultura, voltadas aos anos finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta as informações essenciais para sua realização: os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado e a duração estimada. Mais do que uma receita pronta, esses roteiros buscam ser convites abertos à experimentação, permitindo que cada educadora e educador adapte e enriqueça as atividades conforme as singularidades de sua turma e de seu território. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no chão da escola, construídas em diálogo com a comunidade escolar, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade cultural brasileira. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Mulheres negras no cenário nacional 5 Oficina 2 - Fotografia e publicidade 13 Oficina 3 - Ideias na cabeça e um celular na mão: vamos criar e editar vídeos? 18 Oficina 4 - Um cineclube na comunidade 24 Oficina 5 - Visitando museus 30 Oficina 6 - Criando poemas visuais 38 Oficina 7 - Vamos fazer um sarau? 45 Oficina 8 - Bem-vindas(os)! Nós também viemos de outros lugares… 51 Oficina 9 - Marujada: história e cultura viva 65 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Mulheres negras no cenário nacional • Computadores, notebooks, tablets ou celulares com acesso à internet. • Datashow. • Folhas de papel pardo. • Filipetas de cartolina. • Fita crepe. • Pincéis atômicos de diferentes cores. • Revistas. • Jornais. • Tesouras. • Cola. • Baú com adereços para teatro. • Compreender que a situação profissional das mulheres negras decorre de diferenças de oportunidades que a sociedade oferece a essa população, consequência de uma construção histórica. • Pesquisa sobre mulheres negras de destaque na vida do país. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Valorizar a vida de todos os seres humanos e a igualdade de oportunidades, de tratamento e de justiça para todas as pessoas, sem exceção. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de atividades. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 6 Início de conversa A situação da mulher negra no Brasil é herança da escravidão de 400 anos. A marginalização das(os) afrodescendentes não se resolveu com a abolição da escravatura. Expulsa das fazendas, sem condições de trabalho e moradia, a população negra passou a viver na miséria, sem possibilidade de sobrevivência digna. A sociedade brasileira deixou as(os) negras(os) à margem de sua dinâmica social, econômica e cultural. Nada fez para a sua inserção. Ao contrário, desenvolveu uma política de embranquecimento da população, estimulando a imigração estrangeira. Sem acesso à educação, à saúde e ao trabalho, a grande massa das(os) negras(os) permaneceu muito pobre. A mulher negra continua em último lugar na escala social e é aquela que mais sofre as injustiças do racismo. A maioria das pesquisas realizadas nos últimos anos mostra que a população negra, particularmente as mulheres, apresenta menor nível de escolaridade e trabalha mais, com rendimento menor, o que reforça o preconceito e a interiorização da condição de inferioridade e, em muitos casos, inibe a reação e luta contra a discriminação sofrida. Não é à toa que é maior a presença de mulheres negras no trabalho doméstico. Esse fato está relacionado à questão de gênero, mas também ao cenário de desigualdade racial: as mulheres negras têm menor escolaridade e maior nível de pobreza. E o trabalho doméstico, por ser desqualificado, desregulado e com baixos salários, acaba por constituir para elas uma das poucas opções de emprego. Como nas últimas décadas as mulheres estão entrando cada vez mais no mundo do trabalho, têm delegado as funções domésticas a outras mulheres, cuja maioria é negra. Desse modo, a entrada de mulheres no mercado não só não altera a divisão sexual do trabalho, como também reforça uma divisão racial do fazer doméstico. Mas, apesar disso, houve, concomitantemente, nas últimas décadas, muitos avanços decorrentes das lutas do movimento negro. Assim, embora o contexto seja adverso e a maior parte das mulheres negras trabalhe como empregada doméstica, muitas conseguiram viver a experiência da mobilidade social. Alberto Henschel. Escravizada ama de leite com criança em Pernambuco, 1874. Fonte: Wikipédia Durante um bom tempo, a forma de ascensão social das(os) negras(os) se deu apenas pelo esporte e pela arte, particularmente com a música. No teatro e na TV, no entanto, artistas negras(os) assumiam apenas papéis subalternos. Felizmente, essa realidade vem mudando. Há algum tempo, atrizes negras deixaram de interpretar apenas papéis de empregadas ou escravas e passaram a ocupar os núcleos mais importantes das novelas brasileiras. Uma parcela de mulheres negras conseguiu vencer as adversidades e chegar à universidade, utilizando-a como ponte para o sucesso profissional nas Ciências, na Literatura, na Magistratura, na Tecnologia e em outras áreas. No entanto, essas mulheres que conquistaram melhores cargos no mercado de trabalho tiveram que fazer esforço redobrado, em comparação com mulheres de outros setores da sociedade, para chegar nesse lugar. Pois, além da necessidade de comprovar a competência profissional, tiveram de lidar com o preconceito e a discriminação racial. A questão de gênero é, em si, um complicador, mas, quando somada à da raça, dobra as dificuldades. 7 Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: quem são elas e onde estão? Comunique que a oficina tratará das mulheres negras na sociedade brasileira. Para começar, peça que as(os) participantes se organizem em grupos e distribua várias filipetas de cartolina para cada um dos grupos. As(Os) estudantes devem escrever, nas filipetas, os nomes de personalidades femininas negras famosas de que se lembram (uma em cada filipeta) e, nas filipetas correspondentes, o que cada uma dessas personalidades faz profissionalmente: cantora, rapper, atleta etc. Essas filipetas serão afixadas com fita crepe em um painel pendurado na parede, constituído de folhas de papel pardo coladas, formando duas colunas correspondentes: • Uma com os nomes das mulheres; • Outra com as respectivas profissões. Leia com elas(es) a relação dos nomes e as respectivas profissões. A seguir, proponha que agrupem as filipetas com os nomes das mulheres negras com as mesmas profissões, formando conjuntos com os nomes das atrizes, cantoras, atletas etc. Contorne cada conjunto com pincel atômico de cor diferente e cole uma filipeta com o nome da profissão das pessoas do conjunto, para identificá-lo. Marcha das Mulheres Negras em Brasília, 2015. Foto: Marcello Casal/Agência Brasil Peça que observem a quantidade de áreas profissionais citadas: • Quantas foram organizadas? • Existiriam outras? Pergunte se as(os) estudantes sabem da presença de mulheres negras em áreas de destaque que não apareceram nessa relação. Levante outras não citadas, por exemplo: • Jornalismo; • Política; • Medicina; • Pesquisa científica; 8 As(os) participantes devem escolher pelo menos quatro áreas de atuação com as quais devem ampliar a relação original. Escolhidas as áreas, forme quatro outros conjuntos vazios no painel da parede, contornados por outras cores, com os nomes das áreas que as(os) estudantes definiram. Pergunte se lembram de ter visto, lido ou ouvido sobre mulheres negras nessas áreas. E se? Se não citarem mulheres negras nessas outras áreas, questione por que acham que isso acontece: não há mulheres negras atuando com destaque nessas profissões? A única forma de saber é investigar. Por isso, proponha que, em duplas, pesquisem na internet, em sites oficiais ou do movimento negro sobre mulheres negras de destaque no jornalismo brasileiro, por exemplo, ou mulheres negras de destaque na política brasileira. Metade das duplas deve pesquisar duas das quatro áreas escolhidas e a outra metade, as outras duas. As duplas preencherão novas filipetas com os nomes das profissionais que encontrarem. Dê cerca de 30 minutos para a pesquisa e abra para socializarem as informações obtidas. Peça que incluam os nomes selecionados na pesquisa, nas áreas que estão vazias, dentro dos conjuntos expostos no painel. Quando terminarem, proponha que observem a quantidade de profissionais relacionadas nas diferentes áreas de atuação e que pensem sobre a seguinte questão: • Por que algumas áreas concentram um número maior de mulheres negras do que outras? Anote as hipóteses levantadas sobre tais questões, sem problematizá-las nesse momento. Apenas anote. Convide-as(os), então, a assistirem ao vídeo Negra, médica, doutora?, no qual uma criança negra não reconhece a médica de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) como profissional da Medicina porque não está acostumada a ver mulheres e homens negras(os) exercendo essa profissão. Acesse em Terminada a projeção, abra para comentários da turma: • O que o vídeo diz? • Quais ideias são veiculadas nele? • Quais conclusões podemos tirar dele? • Como essas conclusões ajudam-nos a entender a ausência ou a presença mínima de mulheres negras em determinadas profissões? Peça para retomarem as hipóteses levantadas anteriormente para explicar a ausência de mulheres negras em algumas áreas de atuação e escolherem as que mais se aproximam das respostas possíveis a essas questões, como: poucas são as mulheres negras que ocupam posições de destaque no país porque não têm oportunidades e condições de acesso aos estudos superiores. Isso é particularmente verdadeiro em relação às profissões que exigem mais tempo de formação e maior intensidade de estudo para ocupá-las. Abraçar essas áreas profissionais implica dispor de tempo, não precisar trabalhar para se dedicar ao estudo, possuir recursos para sustentar compra de livros e mesmo moradia e alimentação, quando a universidade está localizada distante da residência ou em outra cidade. • Literatura; • Magistratura etc. 9 Para fixar essas ideias a fim de encerrar este primeiro encontro da oficina, proponha que elaborem uma frase coletiva que resuma o assunto tratado nesse dia, registrando-a em um cartaz que ficará afixado na parede da sala e servirá como memória do que o grupo já produziu, para a realização do segundo encontro. *Professora(or), os dados apresentados nesta etapa da oficina referem-se ao período entre os anos 2010 e 2016. Você pode pesquisar na Internet possíveis atualizações, nos sites das instituições que os divulgaram. Para o segundo encontro, antes das(os) estudantes chegarem, exponha nas paredes da sala algumas das filipetas que se encontram abaixo, com dados de pesquisas que se referem à situação social da população negra no Brasil e à participação de mulheres negras em algumas áreas de atuação, na sociedade brasileira. • Os negros (pretos e pardos, conforme classificação do IBGE) constituem 53,6% da população brasileira e estão entre os 10% mais pobres (IBGE, Censo 2014). • 14% da população feminina trabalha em serviços domésticos. Entre as mulheres brancas, 10 % são domésticas, enquanto entre as negras são 17,7% (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio PNAD 2014, IBGE). • Segundo um levantamento do Grupo de Gênero da Escola Politécnica da USP (Poligen), em 120 anos, menos de dez mulheres negras se formaram engenheiras. A Escola Politécnica foi criada em 1893. • Na lista das pioneiras das Ciências no Brasil, criada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), nenhuma das mulheres citadas é negra. • O Censo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta, no perfil das(os) magistradas(os) brasileiras(os), que as(os) negras(os) somam 15,4% (CNJ, 16/6/2014). • Dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) apontam que negras(os) jornalistas somam somente 23% desses profissionais (Documento do 36º Congresso, 2014). • Nas eleições de 2010, aproximadamente 4% do total de candidaturas a todos os cargos (Presidência, Câmara Federal e Senado) eram de mulheres negras. • Das(os) 513 deputadas(os) federais eleitas(os) em 2014, 22 se declararam negras(os) ao TSE. Desses, apenas quatro eram mulheres. • Nas eleições municipais de 2016, das vereadoras eleitas, 3,9% eram negras. Somando mulheres brancas e negras, eram 9,2%, segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Segundo encontro: o que dizem as pesquisas?* 10 • Na carreira de Medicina, apenas 2,66% das(os) concluintes em 2010 eram pardas(os) ou pretas(os), segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – Inep. • Em seis das dez carreiras mais concorridas da Fuvest, em 2015, nenhuma(um) candidata(o) negra(o) foi aprovada(o) no vestibular e se tornou calouro da Universidade de São Paulo (USP). • Em 2016, das(os) 298 ingressantes na Faculdade de Medicina da USP, 238 eram brancas(os) - 79,9%; 2 eram pretas(os) - 0,7%; 22 eram pardas(os) - 7,4%; 36 eram amarelas(os) - 12,1% e não houve indígenas ingressantes. Conforme as(os) participantes forem entrando na sala, oriente que circulem pelas filipetas e leiam as informações apresentadas, anotando uma ou duas que mais chamam a atenção delas(es). Dê um tempo para lerem com calma e absorverem as informações. A seguir, forme uma roda para que comentem os dados que mais chamaram a atenção e por quê. Pergunte ainda o que as informações revelam no conjunto, e estimule que façam relações com o depoimento veiculado no vídeo do encontro anterior e na síntese que fizeram como memória: os dados confirmam ou contradizem o que foi visto? Conforme forem falando, registre as ideias principais em um cartaz. Estimule que todas(os) se expressem, pois é importante que construam a sua visão sobre o assunto e aprendam a justificar as suas posições. Esgotados os comentários das(os) estudantes, faça uma síntese oral a partir do que falaram. Ressalte que fica evidente, a partir dos dados revelados pelas pesquisas, que o acesso da população negra e particularmente das mulheres negras pobres a determinadas posições de prestígio da sociedade é ainda bem pequeno, apesar de todos os esforços feitos pelos movimentos sociais negros ou não negros, defensores da causa. Essa situação traz como consequência a construção de uma autoimagem negativa, pois a falta de participação da(o) negra(o) em posições de destaque influencia em como ela(e) se vê na sociedade, ou seja, na constituição da sua identidade. Se ela(e) só encontra brancas(os) bem-sucedidas(os) na vida social, econômica, política e cultural do país, como se sente? E por que isso acontece? Explique que a população negra, escravizada por 400 anos no Brasil, foi marginalizada pela sociedade brasileira depois da abolição, pois não se criaram mecanismos para a inserção dela na vida social, econômica e cultural do país, impedindo a sua mobilidade social. Sem o acesso da população negra à educação, à saúde e à moradia, restam a essas pessoas, em sua maioria, os trabalhos mais simples, subalternos e mal remunerados. 11 Akshayapatra/Pixabay Os movimentos de luta e resistência das(os) negras(os) sempre existiram, desde a escravidão, com os quilombos, e foram se fortalecendo através dos tempos. Houve, sem dúvida, muitos avanços, mas estamos ainda demasiadamente distantes da igualdade de tratamento em relação à população branca. Daí a importância das cotas raciais adotadas no país, desde 2004, e que junto às cotas sociais têm aberto oportunidades para a população negra e indígena (cotas raciais) e para a população pobre (cotas sociais), sem as quais elas não teriam acesso aos estudos superiores e, consequentemente, aos trabalhos mais bem remunerados e prestigiados. Expressões de luta Na sequência, oriente que as(os) estudantes formem grupos e discutam como expressar essa situação de opressão, que a maior parte da população negra ainda vive no Brasil, escolhendo uma linguagem que consideram mais adequada ao que desejam dizer. Pode ser composição de gravuras, produção de vídeo pelo celular, desenho, frase, poema, grito de guerra, música, paródia, cordel, quadrinhos, cena teatral etc. Disponha o baú com revistas, cola, tesouras e pincéis. Após aproximadamente 30 minutos, cada grupo deve apresentar a sua produção para o coletivo. Peça para gravarem as apresentações em vídeo, pelo celular, para eventual utilização futura. Em roda, peça a cada grupo que escolha uma palavra para representar a sua avaliação da oficina e revele-a ao coletivo, justificando a escolha. Avalie com elas(es) também a participação nos grupos: • Houve tranquilidade para o desenvolvimento das tarefas? • Houve algum conflito? Nesse caso, como resolveram? Peça também que explicitem as aprendizagens obtidas. Hora de avaliar Para ampliar Atividade extra Você pode indicar sites do movimento negro para as(os) estudantes acessarem, manterem-se informadas(os) e entrarem em contato com as(os) organizadoras(es). Também é possível aprofundar o tema com a realização de uma mesa-redonda, organizada pelas(os) estudantes, convidando pessoas engajadas no movimento, militantes da causa e professoras(es) de História, Sociologia e Filosofia. O evento pode começar com a projeção do vídeo elaborado a partir das produções que fizeram na oficina. 12 Referências Enciclopédia Itaú Cultural: Conceição Evaristo - Acesse em EBC: Mulheres negras se mobilizam no Rio contra o racismo e pela inclusão - Acesse em Panorama Ipea: Retrato das mulheres negras no Brasil - Acesse em Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc): Eleições 2016 - No Brasil, mulheres negras não têm vez na política - Afreaka: O feminismo negro no Brasil: um papo com Djamila Ribeiro – Acesse em com.br/notas/o-feminismo-negro-brasil-um-papo-com-djamila-ribeiro/; Agência Patrícia Galvão: Quantas mulheres negras você conhece trabalhando com tecnologia e inovação? - Acesse em G1: Não há calouros pretos em seis dos 10 cursos mais concorridos da Fuvest - Criola: organização de mulheres negras - Acesse em UNFPA: Fundo de População das Nações Unidas - Acesse em 13 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 2 Fotografia e publicidade • Jornais. • Revistas. • Barbante. • Pregadores. • Máquinas fotográficas ou celulares. • Desenvolver a crítica frente às questões éticas e estéticas que envolvem o uso de imagens em propagandas. • Reflexão sobre o papel da fotografia na propaganda e na publicidade. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Aprender a ler as fotos de propaganda. • Identificar a articulação existente entre o texto escrito e a imagem nas fotos publicitárias. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 14 Início de conversa Segundo o fotógrafo Boris Kossoy: “A fotografia é sempre uma representação do real, intermediada pelo fotógrafo que a produz, segundo sua forma particular de compreensão daquele real, de seu repertório, de sua ideologia. A imagem de qualquer objeto ou situação documentada pode ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a ênfase pretendida pelo fotógrafo, em função da finalidade ou aplicação a que se destina.” De acordo com a finalidade a que se destina, as fotos podem ser organizadas por categorias: jornalística, social, antropológica, artística, publicitária… A fotografia publicitária é aquela especialmente produzida para divulgar comercialmente um produto, tanto por meio da mídia impressa – jornais, revistas, cartazes, outdoors ou folhetos – quanto por meio do audiovisual, da televisão ou do cinema. Seu objetivo é divulgar um determinado conceito relacionado a um produto, materializando-o, para atingir a(o) consumidora(or). Nessa perspectiva, muitas vezes utiliza-se de cenários fantasiosos, irreais, associando-os ao produto que se pretende vender. Quantas vezes não nos deparamos - ao ler uma revista ou um jornal, assistir a um programa de TV ou acessando a internet - com anúncios de produtos que fazem mal à saúde (bebidas, cigarros) ou produtos desnecessários e supérfluos (carros caros e potentes, produtos da moda), que exibem pessoas bonitas e bem-sucedidas na vida profissional e amorosa? A ficção, nesses casos, é só um artifício irreal para a obtenção de algo real, o consumo e o lucro. Nessa mesma perspectiva, há campanhas publicitárias de produtos alimentares não saudáveis para crianças ou com estímulo excessivo ao consumo de brinquedos, roupas ou calçados. Por essa razão há um debate atual, na sociedade civil brasileira, em torno da proibição de propagandas destinadas às crianças, pois elas ainda não têm capacidade de discernimento para fazer escolhas. Mas, a questão ainda é polêmica, não se tendo chegado a um consenso. Foto: reprodução 15 No entanto, com ou sem legislação, o exercício da ética e da responsabilidade na profissão da(o) fotógrafa(o) é fundamental. Isso também é válido para amadoras(es). Foto: Propagandas históricas (reprodução) Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Combine antecipadamente com as(os) participantes um dia para trazerem jornais, revistas, panfletos ou fôlderes que tenham propagandas com fotos de pessoas. No dia combinado, reúna as imagens selecionadas e coloque-as na roda. Peça que olhem as diferentes propagandas e escolham uma delas para trabalhar. A tarefa é observar atentamente, tanto o texto visual (imagem) quanto o texto escrito (as palavras) que ela veicula e tentar identificar a relação entre esses dois textos: • As imagens dialogam com as palavras, complementam-nas, ou são apenas ilustrações? • Os textos convergem entre si ou divergem? • Em relação ao que propõem, as mensagens veiculadas na propaganda são verossímeis, ou seja, poderiam ser reais? Converse com a turma sobre o que pensam a respeito das fotos publicitárias e problematize: • As fotos dizem a verdade? As fotos podem mentir? • É possível registrar uma história e/ou um cenário que não existe? Em quais situações? Considere com elas(es) a existência de propagandas enganosas, de fotos retocadas, de fotomontagens, de realidades fictícias e em que situações isso acontece e com qual intenção. E o mais importante: quando isso é aceitável e quando não é. • Num livro de histórias, por exemplo, se justifica ter imagens fantasiosas, de um mundo irreal? E numa propaganda de cigarros ou de carros, também é justificável a presença dessas imagens? • O que pensam a respeito de se tentar convencer outra pessoa a comprar, usando de qualquer recurso para isso? Ética na propaganda e publicidade: um debate necessário Esse é o momento de abordar as questões éticas envolvidas no assunto. É importante incentivar que apresentem e defendam suas opiniões. Procure problematizar essas opiniões para que levantem outras hipóteses e reflitam sobre a questão por vários ângulos. Nesse momento, destaque a importância de ter respeito com as ideias e opiniões das outras pessoas, mesmo que discorde delas. 16 Acesse o site Um postal para um amigo e apresente para a turma uma foto tirada num bar de Paris, em meados do século XX, que foi usada indevidamente para outras situações, além daquela para a qual foi tirada. Apesar da autorização dada pelas pessoas retratadas na fotografia original, ela saiu do controle do fotógrafo e causou vários problemas. Pergunte se elas(es) têm conhecimento de algum fato parecido com esse para comentar. Sistematize as principais ideias e valores que circularam na discussão do grupo, registrando-as num cartaz. Criação de uma campanha publicitária A seguir, proponha uma brincadeira. As(Os) participantes farão o papel de profissionais de uma agência de propaganda. Organize a turma em equipes, cada qual com um ou dois celulares ou câmeras fotográficas. A tarefa das equipes será escolher um produto a ser lançado e criar uma campanha publicitária para ele, utilizando fotos de pessoas. A campanha terá a função de apresentar o novo produto e convencer o público a consumi-lo. Essa campanha será veiculada em jornais, revistas e outdoors. É importante que as(os) estudantes pensem o público a que esse produto se destina: mulheres, homens, jovens, adultos, idosos? Isso ajudará a definir as imagens mais adequadas à propaganda, assim como os textos escritos que as acompanharão. Alerte sobre a importância dos cuidados éticos discutidos anteriormente. Oriente as equipes na organização de papéis e tarefas. Elas(es) podem se revezar na função de fotógrafas(os) e editoras(es) de imagens e textos, assim como na função de modelos da peça publicitária. Faça uma roda para avaliarem a atividade: • Foi interessante? • Como se sentiram como criadoras(es) de publicidade? • Gostaram do produto final a que chegaram? • Depois de circularem pelas propagandas das(os) colegas e analisando a sua produção, acham que faltou alguma coisa nela ou que poderiam fazer algo para aprimorá-la? O quê? Discuta também o processo vivido no grupo: • Foi tranquila a distribuição de papéis: fotógrafas(os), editoras(es) e modelos? • Cada uma(um) fez o que queria ou tiveram que negociar as tarefas? • Houve consenso na escolha do produto para a elaboração da propaganda? • Em relação ao texto escrito: foi fácil decidir o que escrever e estabelecer relação com a imagem? Hora de avaliar 17 Atividade extra Sugira que entrevistem uma(um) fotógrafa(o) do território para saber mais sobre as características da profissão. Conhecem profissionais assim que atuam ou moram perto da escola? É provável que muitas(os) já precisaram dos serviços de fotógrafa(o) profissional por algum motivo e tenham conhecimentos a respeito. Mas será que já se atentaram para o fato de que as fotos que saem nos jornais, nas revistas, nos livros e na internet estão sempre acompanhadas dos nomes das(os) autoras(es)? Por quê? A realização da entrevista possibilita maior compreensão sobre o papel e a importância dessa profissão, bem como sobre os diferentes recursos e aspectos que devem ser observados para que seja possível produzir bons registros fotográficos. Conteúdos na web Lili Schwarcz – Ler Imagens: A ideia de uma verdade - a professora de História da Universidade de São Paulo (USP) analisa um registro fotográfico do início do regime Talibã no Afeganistão: “novos regimes sempre produzem novas imagens. Essas são as fotos que justificam o poder”, reflete Lili Schwarcz. Acesse em Break Publicitário #40: Propagandas Históricas - episódio do podcast Break Publicitário em que três especialistas em publicidade visitam o passado para analisar propagandas históricas que hoje em dia nem sairiam do papel. RED produção audiovisual: Fotografia publicitária - o que é fotografia publicitária? Como ela começou? Quais foram as transformações desde então? Acesse em Fotojornalismo Unicap - resenha sobre o livro Realidades e ficções na trama fotográfica, do fotógrafo Boris Kossoy, escritor e pesquisador paulista nascido em 1941. A obra faz parte da trilogia composta por mais dois títulos: Fotografia e história e Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Acesse em Para ampliar 18 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Ideias na cabeça e um celular na mão: vamos criar e editar vídeos? • Filmadoras ou celulares. • Computadores, notebooks ou celulares com acesso à internet. • Apropriar-se dos procedimentos de edição de vídeo no meio virtual. • Refletir sobre o uso do audiovisual como veículo de expressão. • Atividade de criação e edição de vídeos. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Aprender a utilizar as ferramentas adequadas para editar um vídeo. • Preocupar-se com o conteúdo e a estética da produção do vídeo. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 2 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 19 Início de conversa Tudo começou com o cinematógrafo, a invenção dos irmãos Louis e Auguste Lumière, na França, em 1895. Essa máquina projetava imagens em uma tela grande, com a velocidade de 16 quadros (fotos) por segundo. Graças à “persistência retiniana”, característica do olho humano que retém as imagens por alguns segundos, temos a sensação de movimento cada vez que vemos imagens projetadas numa velocidade acima de 12 quadros por segundo. Antes mesmo do cinematógrafo, já existiam algumas máquinas que brincavam com essa possibilidade, projetando várias imagens, em sequência, com certa velocidade, para dar a ilusão de movimento. Os primeiros filmes produzidos referiam-se a cenas rápidas do cotidiano: um trem chegando à estação ou trabalhadoras(es) saindo de uma fábrica, por exemplo. Aos poucos, o cinema foi se desenvolvendo, aperfeiçoando-se, do ponto de vista técnico e estético, e se transformando em uma linguagem expressiva, elaborada, com o status de arte. O primeiro filme da história Assista à chegada de um trem, filmada pelos irmãos Lumière, em 1895. Acesse em PARA APROFUNDAR Com o surgimento da TV e do videotape, a produção e a circulação da arte cinematográfica passaram por mudanças; assistir a um filme na TV, no computador, no celular ou em um aparelho de DVD pressupõe uma série de alterações. Hoje, contamos com diversos recursos tecnológicos que mudam a forma de receber e se relacionar com essas produções. Por exemplo, a possibilidade de retroceder ou avançar as imagens em muitos desses aparelhos. Não são só as imagens que mudam, portanto, mas sim as tecnologias de produção e o contexto da circulação dos audiovisuais. No entanto, a discussão sobre as diferenças entre produções cinematográficas e de vídeos, por conta das tecnologias empregadas em cada caso, perdeu a força com a passagem do sistema analógico para o digital, pois ambos se tornaram digitais e suas linguagens muitas vezes se misturam. Sistema analógico: rolo de filme Foto: Pixabay 20 Antes, as peças audiovisuais eram produzidas em rolos de películas de filme (8 mm, 16 mm e 35 mm); depois, em fitas magnéticas (VHS, BETA, UMATIC etc.); hoje, transformaram-se em “bits”, que circulam pelas tecnologias digitais, provocando novas formas de representação da realidade, pela cultura digital. O que é película cinematográfica? Saiba mais em PARA APROFUNDAR Assim, os campos antes bem definidos das diferentes artes visuais passaram a se confundir pelo uso comum da tecnologia digital, compondo o que se chama hoje de audiovisual. Conheça um vídeo que apresenta a história do cinema em A escola e os multiletramentos críticos e criativos Segundo Roxane Rojo, professora livre-docente do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp: “A escola tem um papel fundamental na questão dos multiletramentos críticos. Porque a(o) estudante pode ser uma(um) jogadora(or) de games que ganha campeonato e ao mesmo tempo não ter criticidade sobre o grau de violência daquele game, sobre a sustentabilidade ou os temas.” Certamente, com os recursos tecnológicos disponíveis e com acesso cada vez mais democratizado, as(os) jovens têm experiência como espectadoras(es) de vídeos. No entanto, é importante também criar condições para que vivenciem a produção audiovisual como autoras(es), com tecnologia acessível. Dessa forma, poderão aprender a técnica de produção do audiovisual, os valores e as condutas éticas necessárias para a sua produção e divulgação e poderão contribuir para dar visibilidade às representações simbólicas de seu grupo social. A expressão audiovisual permite a elas(es) serem agentes criadoras(es) de novas formas culturais e exercerem sua cidadania. Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: conversa inicial Comece perguntando ao grupo quem já fez um pequeno vídeo com o celular para registrar momentos importantes da vida, como a comemoração do seu aniversário ou de alguém querido, o nascimento de um irmão ou irmã ou o casamento de uma(um) familiar ou amiga(o). Muito provavelmente todas(os) ou quase todas(os) as(os) participantes já tiveram essa experiência. Mas, será que a geração de seus pais também filmava, fazia vídeos? E a de seus avós? Provavelmente, poucos são os pais e menos ainda os avós que usaram esse recurso para registro de eventos e viagens porque, para isso era necessário ter uma máquina filmadora, que, além de cara, não era fácil de se achar e de se carregar. 21 Hoje, os recursos tecnológicos são mais práticos e o acesso a eles é bem mais fácil. Não é necessário ter uma filmadora para filmar, caso a pessoa não seja uma(um) profissional. Basta ter um celular em mãos. O vídeo tornou-se um recurso muito utilizado atualmente. Como, de maneira geral, as imagens são acompanhadas de som, dizemos que constituem uma linguagem audiovisual. Há inclusive diversos sites de armazenamento e compartilhamento de vídeos na internet, como o YouTube e o Vimeo. Quem não conhece o YouTube? Certamente todas(os) conhecem, mas, de qualquer forma, a nossa proposta é vocês entrarem na plataforma para as(os) estudantes verem, pelos títulos e descrições, que há vários tipos de vídeos, tanto os que trabalham com imagens reais como os que trabalham com animações de desenhos; longas, médias e curta-metragens disponíveis na íntegra ou parcialmente. O audiovisual está cada vez mais presente na nossa vida cotidiana e na produção artística contemporânea. Muitas(os) artistas fazem uso dessa linguagem e ela está ganhando cada vez mais espaço na arte, sendo valorizada por meio de festivais e premiações, como o famoso Oscar, prêmio oferecido anualmente pela Academia de Cinema de Hollywood (Estados Unidos), em várias categorias. Há também o Leão de Ouro (Itália), o Festival de Cannes (França) e o Urso de Ouro (Alemanha). No Brasil, um dos mais famosos é o Kikito – Festival de Gramado. Mas isto não significa que só aquelas(es) que possuem recursos são capazes de belas produções. Um exemplo do que boas ideias podem fazer é o Cinema Novo brasileiro. Em 1952, um grupo de jovens, entre eles o cineasta Glauber Rocha, engajados politicamente e criativos, iniciou o movimento que tinha como lema: ”Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça Para saber mais sobre o Cinema Novo, acesse PARA APROFUNDAR Cartaz de uma produção dirigida por Glauber Rocha. Foto: reprodução Por meio de filmes com baixo custo e forte abordagem política e social, o Cinema Novo foi transformado em uma força cultural brasileira. Os filmes do movimento retrataram a “vida como ela é”, mostrando os problemas sociais, dentro de uma perspectiva crítica, contestadora e cultural. Entre os filmes do Cinema Novo, destacam-se Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Ganga Zumba, de Carlos Diegues. Pergunte às(aos) estudantes: • Conhecem pessoas que trabalham na área audiovisual? • E vocês, com uma câmera na mão, que ideias e sensações gostariam de transmitir? Estimule que pensem para além dos registros repetitivos cotidianos, considerando o recurso audiovisual como meio de expressão e veiculação de ideias, pensamentos, emoções e que pode produzir arte. • O que do cotidiano vivido, da natureza e dos costumes, do ponto de vista pessoal e social, pode ser registrado de outra forma, com outro olhar, com a intenção de provocar no outro a curiosidade, o espanto, a reflexão e a vontade de preservar ou de transformar? 22 Convide-as(os) a parar e pensar sobre isso. Abra um debate para aquecer a conversa e problematize as ideias para que esse seja um momento real de reflexão sobre a vida, a arte, a ética e a estética. Da década de 1950 pra cá, os meios de comunicação e ferramentas se modernizaram. Hoje em dia é muito mais fácil e rápido se produzir um vídeo. Não é à toa que se observa a multiplicação de pequenos vídeos na internet. Um exemplo das novas formas de usar a comunicação audiovisual são os flash mobs, que vêm se afirmando cada vez mais. Pergunte se já viram um. Trata-se da filmagem de intervenções artísticas, realizadas por um grupo de pessoas que chegam num determinado lugar, vindo cada qual de uma direção e, ao se encontrarem, desenvolvem uma performance rápida, combinada anteriormente entre elas e, assim que termina, cada qual toma seu rumo, do mesmo jeito que chegou. Essas combinações podem ser feitas por meios virtuais ou de comunicação social. Os flash mobs têm vários conteúdos: políticos, humanitários, artísticos… Mostre alguns para elas(es): • Flash mob no metrô de Copenhague (Dinamarca) - Acesse em • Senhora desequilibrada - Pergunte o que acharam desses vídeos e que diferenças há em relação aos que fazemos com o celular. É claro que há uma diferença entre os vídeos caseiros e as produções a que assistiram, particularmente porque essas foram feitas por uma equipe formada por profissionais experientes. Explique a elas(es) que o resultado de um vídeo não é a sua filmagem original, tal qual foi feita, mas a composição intencional de algumas cenas dessa filmagem; significa que algumas imagens foram selecionadas e outras descartadas para compor o desenvolvimento da história. Selecionar as imagens que se deseja e organizá-las, para construir um determinado efeito que se pretende, “costurando umas às outras”, é o que chamamos de edição. Ela exige certo conhecimento técnico, mas que é possível aprender e todas(os) podem experimentar. Segundo encontro: vamos experimentar? Para começar a aprendizagem de uma edição, é interessante fazer algo mais simples e com as(os) participantes juntas(os). Por isso, proponha que façam a edição de um mesmo filme, para que você possa acompanhá-las(os), simultaneamente, e auxiliá-las(os). Diga-lhes exatamente isso: que elas(es) farão a edição de um mesmo vídeo para que você possa ajudá-las(os) e para que elas(es) possam ajudar-se umas(uns) às(aos) outras(os). Dessa forma, estarão aptas(os), posteriormente, a editar suas próprias filmagens. Peça que a turma grave uma cena, que pode ser na própria escola ou instituição educacional, como uma conversa no pátio, a hora da saída das(os) adolescentes e jovens do local ou a fachada do prédio. Como todas(os) utilizarão o mesmo vídeo, apenas uma pessoa deve realizar a gravação e depois distribuir o arquivo para todas(os) as(os) participantes. O arquivo, isto é, a gravação, pode ser salvo em vários computadores por meio de pen drives ou ser enviado via site de transferência de arquivos, como o WeTransfer. Depois de finalizado o vídeo, a ideia é iniciar a sua edição, selecionando imagens para construir determinado efeito que desejam, “costurando umas às outras”. A proposta é utilizar algum programa de edição de vídeos a ser baixado gratuitamente na internet. 23 Nessa primeira experiência, realize a edição no coletivo, combinando os objetivos e efeitos que desejam atingir ao final da ação. Após essa edição coletiva, combine que cada uma(um) exercite o mesmo trabalho com os vídeos que gravaram. Caso haja estudantes com mais experiência em edição de vídeos, você pode convidá-las(os) a compartilhar o que sabem com as(os) colegas. Isso pode ser feito tanto presencial como virtualmente, por meio de grupos de e-mails ou mensagens no WhatsApp. Organize um momento para compartilharem os vídeos editados, as experiências adquiridas e avaliarem a atividade. • Foi fácil ou difícil? • O que acharam mais interessante? • O que foi mais gratificante? • O que mais dificultou a edição? • Ficaram contentes com o resultado? Valeu a pena? • Houve algum momento que deu vontade de desistir? Foi legal sentir que se pode persistir e aprender? • Descobriram coisas novas? Quais? Hora de avaliar Para ampliar Atividades extras • Vocês podem organizar um festival de apresentação, para a turma, dos vídeos produzidos individualmente ou em grupos. No dia marcado, cada uma(um) apresenta o seu vídeo e abre-se um espaço para que comentem a experiência; • Junto com professoras(es) de Arte, História, Geografia e Língua Portuguesa, que tal criar um cineclube para assistir e refletir sobre algumas produções cinematográficas, do ponto de vista tecnológico e temático? Podem ser documentários ou filmes que retratam momentos históricos importantes; • Do ponto de vista tecnológico, é importante considerar que há um volume grande de profissionais necessárias(os) para se chegar a uma produção audiovisual. Chame a atenção delas(es) para as várias habilidades exigidas nessa linha de produção, desde a escolha do local a ser filmado, a montagem, a fotografia, até a continuidade e a estética final do conjunto da produção. Se possível, promova encontros entre as(os) jovens e alguns dessas(es) profissionais para que possam conhecer mais de perto as características das profissões e as exigências para exercê-las. 24 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 Um cineclube na comunidade • DVDs ou serviços de streaming dos filmes indicados. • Projetor, telão ou TV. • Exercitar o potencial de criação para intervir no território, ampliando as suas possibilidades culturais. • Elaboração e execução de projeto comunitário de um cineclube. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Aprender a elaborar projetos comunitários e trabalhar em equipe. • Analisar e debater um filme. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de atividades e território. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 25 Início de conversa Cineclube é uma associação sem fins lucrativos que estimula os seus membros a ver, discutir e refletir sobre o cinema. O cineclubismo surgiu nos anos 20 do século XX, na França. No Brasil, despontou em 1929 com o Cineclube Chaplin Club, no Rio de Janeiro. Os cineclubes nasceram em resposta a necessidades que o cinema comercial não atendia. Assumiram diferentes práticas conforme o desenvolvimento das sociedades em que se instalaram. O trabalho realizado por todos os cineclubes diz respeito a exibir cinematografias que não estariam disponíveis ao público de outra maneira. Além disso, promovem a discussão, o intercâmbio de ideias, de filmes e abrem espaços para novas(os) profissionais. Os cineclubes foram responsáveis pela formação cinematográfica de grandes cineastas como os brasileiros Glauber Rocha e Cacá Diegues, o francês Jean-Luc Godard e o alemão Wim Wenders. Saiba mais sobre a biografia de alguns cineastas renomados: • Glauber Rocha - Acesse em • Cacá Diegues - Acesse em • Jean-Luc Godard - Acesse em • Wim Wenders - Acesse em PARA APROFUNDAR Os cineclubes se vinculam a uma concepção revolucionária e democrática de organizar a relação do público com a obra cinematográfica – agora chamada de audiovisual. Por isso, sempre foram perseguidos pelo autoritarismo, marginalizados pelo poder econômico e ignorados pela maior parte das esferas institucionais. Hoje, vivemos um momento muito particular na História, em que a tecnologia digital abre uma oportunidade única de democratização de meios de produção e distribuição do audiovisual. E a proposta cineclubista talvez seja a que melhor se adapte a uma perspectiva de renovação democrática neste campo. O Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros é uma entidade sem fins lucrativos, organizada para debater e lutar pelo movimento cineclubista no Brasil. Nasceu na década de 60, tendo uma atuação importante até a década de 70, reunindo diversas entidades como associações, igrejas, sindicatos, escolas e universidades, nas quais exibia seus filmes. Durante a ditadura militar (1964 a 1985), teve suas atividades perseguidas e, em 1968, as práticas dos encontros nacionais, interrompidas. Em 1974, um grupo de cineclubistas se reuniu em Curitiba, retomando as atividades do Conselho. Neste encontro, foi realizada a defesa do cinema nacional na produção, distribuição e exibição de filmes. 26 Para sanar o problema da distribuição das obras, pois nem todos os cineclubes possuem estabilidade financeira para veicular filmes periodicamente e, por isso, os acordos com as empresas distribuidoras os tornam reféns do sistema, foi criada a DINAFILMES – Distribuidora Nacional de Filmes Brasileiros. No ano de 1976, a Federação Paulista de Cineclubes recebeu da Fundação Cinemateca Brasileira parte de seu acervo em 16mm e no mesmo ano iniciou as atividades da distribuidora, primeiro em São Paulo e depois no resto do país. O principal objetivo da DINAFILMES era garantir o acesso dos cineclubes aos filmes nacionais, inclusive os curtas-metragens. O movimento cineclubista conseguiu de fato rearticular-se, em 2003, com a posse do Ministro da Cultura Gilberto Gil e do secretário do audiovisual, Leopoldo Nunes. Nesse ano, foi realizada a 24ª Jornada Nacional de Cineclubes Brasileiros, durante o Festival de Cinema de Brasília. Depois disso, muito já aconteceu e agora a entidade se encaminha para a 29º Jornada Nacional. Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: organizando um ciclo de filmes e debates sobre as obras O objetivo da oficina é despertar as(os) adolescentes e jovens para participar de uma atividade cultural importante e simples, e que pode trazer benefícios culturais para elas(es) e para a comunidade. Trata-se da organização de um cineclube – que pode ser realizada com alguns recursos, geralmente disponíveis nas escolas e OSCs, como datashow, telão, alguns DVDs ou utilização de serviços de streaming. Para introduzir as(os) participantes no clima do cinema e motivá-las(os) a cultivar o contato com essa linguagem artística, propomos iniciar a oficina com a organização de um ciclo de filmes, que serão vistos, contextualizados e debatidos com elas(es), no decorrer de um certo período de tempo. Assim, comece a conversa na roda, perguntando sobre os últimos filmes que viram e de que tipo de filmes mais gostam: drama, comédia ou aventura? Peça para contarem um pouco do último filme de que gostaram muito e que identifiquem a época da vida em que o assistiram. Por acaso já assistiram o mesmo filme em dois diferentes momentos da vida? Como foi a experiência? Foi igual? Explique que o cinema é uma linguagem e que há vários gêneros de filmes, assim como temos vários gêneros de textos. Há o drama, o filme de aventura ou de terror, a tragédia, o filme épico, a comédia, o documentário e o filme de época. Pergunte como escolhem os filmes que assistem, se têm alguns critérios que utilizam, se recorrem a guias específicos, a indicações de jornais, revistas ou sites. Aproveite para comentar sobre os cuidados que se deve ter com as fontes de informação e como verificar se são confiáveis. Uma sugestão é observar onde essas informações estão hospedadas: se estiverem na mídia impressa, de circulação ampla e reconhecida, ou em sites bem conhecidos, certamente são confiáveis. Discuta, então, com elas(es), a proposta de realizarem um ciclo com três sessões de exibição de filmes, dentre uma relação que você oferecerá. Após a projeção de cada um deles, haverá um debate sobre os assuntos abordados, a fim de ampliar a compreensão que se teve, para além das primeiras impressões. Proponha que cada filme seja de um gênero. 27 O Portal Porvir e a Carta Educação trazem boas indicações de filmes sobre a infância e a adolescência: • Portal Porvir - Acesse em • Carta Educação - Acesse em PARA APROFUNDAR E se? Se elas(es) quiserem sugerir algum título, poderão, mas combine que só entrará na relação após você verificar limite de idade e consultar a resenha. Organize-as(os) em grupos de quatro ou cinco para consultarem as resenhas virtuais dos filmes e relacionarem três títulos para serem exibidos. Em seguida, abra para os grupos socializarem suas escolhas, relacione os títulos na lousa ou em um cartaz e compute as preferências para planejarem a sequência de exibições. Marquem três oficinas que não precisam ser sequenciadas, para projetarem os filmes e debaterem os assuntos em questão. Antes da projeção de cada filme, fale um pouco sobre o elenco: diretora(or), atrizes(atores), autoria da trilha sonora, fotógrafa(o). Anuncie a trama a ser desenrolada, fale sobre os personagens e o contexto socioeconômico em que se movimentam. Oriente que procurem na internet outras referências e críticas sobre o filme em questão, para se prepararem em relação ao que irão assistir. Chame a atenção para alguns elementos do filme que deverão observar, como a época em que se passa, a representação dos personagens, a música utilizada, se as fotografias são em branco e preto ou coloridas, se a sequência das cenas é contínua ou se a história vai e volta. Essas orientações são importantes para dirigir o olhar das(os) participantes. Encerrada a projeção, abra o debate, deixando que façam livremente os seus comentários, a partir de suas impressões iniciais. A partir daí, problematize com elas(es) as ideias veiculadas no filme, a verossimilhança dos acontecimentos e as interpretações que cada uma(um) delas(es) faz a respeito. Será que concordam ou não com a mensagem passada pela(o) diretora(or)? Que argumentos têm para justificar sua concordância ou discordância? Coloque na roda também os aspectos estéticos da película, como as fotos, a música, o posicionamento da câmera e se tais recursos ajudaram a transmitir boas ou más sensações. Teria a(o) diretora(or) sido bem sucedida(o) nesse aspecto? Importante frisar que não deve haver conclusões ou fechamentos no debate. Cada uma(um) assimilará do seu jeito os argumentos apresentados na discussão, de acordo com o repertório cultural com que conta naquele momento. 28 Segundo encontro: proposta da formação de um cineclube Depois da realização do ciclo de filmes, é hora de fazer a proposta de formação de um cineclube que pode funcionar na própria escola ou instituição educacional e ser aberto para a comunidade. Pergunte se sabem o que é um cineclube. Se não souberem, explique que um cineclube é uma associação de pessoas, sem fins lucrativos, que estimula os seus membros a ver, discutir e refletir sobre o cinema. Projete para elas(es) o documentário O que é um cineclube? (acesse em Nesse documentário, cineclubistas falam sobre o conceito de cineclube, seus objetivos e a importância de se preservar essa prática. Referem-se às pessoas que se reúnem para apreciar filmes e debater seus temas, de forma a desenvolver a inteligência, a sensibilidade e a consciência humana, pois os filmes de qualidade ajudam a refletir sobre a condição humana e compreendê-la melhor. Há alguns depoimentos em espanhol e em italiano, mas isso não compromete o entendimento das mensagens que transmitem. Após a projeção do documentário, discuta o assunto: • O que entenderam dele? • O que pensam sobre essa iniciativa cultural? • Concordam com os depoimentos das(os) cineclubistas? • O que tentam preservar? • O que chamam de cultura de massa? Gostariam de levar essa ideia adiante? Não é nada difícil montar um cineclube. Convide-as(os) a acompanhar um tutorial de montagem de um cineclube (acesse em Discuta o tutorial, que é muito simples, e diga que além da sua ajuda, elas(es) poderão buscar também auxílio da(o) professora(or) de Língua Portuguesa, de Artes ou de quem gosta de cinema. Forme uma comissão organizadora com um grupo de adolescentes e jovens para entrar em contato com as(os) professoras(es) e outra para procurar a gestão da escola ou instituição educacional, a fim de verificarem onde poderá funcionar o cineclube. Ele não precisa ser fixo, pode ser montado a cada dia de apresentação dos filmes, pois os equipamentos são móveis. O importante é fazer do ambiente um lugar aconchegante e os equipamentos funcionarem. Você pode conseguir alguns filmes gratuitamente no Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Terceiro encontro: bem-vinda(o) ao cineclube! O cineclube está organizado. Agora, como vimos no tutorial, é preciso pensar na sua divulgação e na de seus eventos. Para iniciar a ideia, é interessante pensar num primeiro ciclo de filmes e de debates, datas e horários, e organizar um folder com essas informações para ser distribuído nas outras turmas e em outras escolas ou OSCs próximas. Seria interessante também organizar um folheto contando sinteticamente a história da criação do cineclube e como ele funcionará: se uma vez por mês - em que dia da semana e em qual horário - para ser distribuído ao público. O folheto poderá ser acompanhado de uma enquete sobre assuntos, diretoras(es), atores ou atrizes que as(os) espectadoras(es) gostariam de ver contempladas(os) nos próximos ciclos, assim como debatedoras(es). 29 Atividade extra A comissão organizadora poderá pesquisar a existência de outros cineclubes na cidade ou em cidades próximas para organizarem juntos algum evento de maior porte, promovendo trocas e contribuições mútuas. Referências Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC) - Acesse em Curso de Graduação em Cinema – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Acesse em Oriente-as(os) a sempre convidar algumas pessoas da escola, da instituição educacional ou da comunidade para fazerem alguma análise da película e esquentar o debate. Hora de avaliar Para ampliar A avaliação da oficina deverá ocorrer após a montagem do cineclube e de sua primeira atividade. Será importante colocar em pauta as aprendizagens realizadas no processo, desde o começo até a inauguração do cineclube, desde as aprendizagens de conteúdo específico até as habilidades e valores envolvidos. 30 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 Visitando museus • Computadores com acesso à internet. • Projetor multimídia. • Imagens para projeção ou cartazes impressos com reproduções de obras de arte. • Ampliar a percepção em artes visuais. • Preparar-se para a visita a um museu ou outro espaço artístico. • Familiarizar-se com a leitura de obras expostas. • Construir relações entre as obras de arte apreciadas e as demais áreas do conhecimento. • Compreender as obras de arte como formas de expressão de um povo, uma cultura, uma época, um indivíduo, numa perspectiva de existência mais humanamente universal. • Expressar e discutir oralmente, bem como registrar por escrito impressões, emoções e ideias a respeito das obras de arte observadas. • Pesquisar sobre artistas, obras e movimentos artísticos como forma de ampliar o repertório cultural. • Proposta de diálogo entre o museu e a escola para ampliar o repertório cultural e artístico das(os) estudantes. Autora da oficina: América dos Anjos Costa Marinho, pedagoga, licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e formadora de leitoras(es). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Promover o acesso a espaços significativos de encontro com a produção artística. • Abrir janelas a um mundo recriado pela expressão artística. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Museu, sala de aula, sala de leitura e sala de informática. • 2 a 3 encontros de 50 minutos cada, além da visita a um museu. Voltar para o sumário 31 Início de conversa Educar em artes visuais é, de início, possibilitar à(ao) educanda(o) muitas oportunidades de entrar em contato com diferentes estilos e expressões artísticas — não só as que estão mais próximas de seu tempo e espaço, mas também outras mais distantes e não tão familiares. Trata-se de motivá-la(o) a refletir sobre essas experiências, fornecendo informações que ampliem seu repertório e permitam uma postura mais sensível e crítica diante da produção artística. Para isso, é preciso que ela(e) tenha acesso a muitos espaços significativos de encontro com essa produção, e, dentre eles, um dos mais ricos é o museu. Essa proposta busca integrar museus e escolas para, de forma prazerosa, abrir janelas a um mundo recriado pela expressão artística. A constante transformação Não se pode falar de linguagem artística sem pensar nas condições de produção, circulação e recepção de uma obra de arte — quem a produz, com que finalidade, de que recursos a(o) artista lançou mão para atingir seu objetivo, quem é a(o) interlocutora(or), com que bagagem essa(e) apreciadora(or) a recebe e que expectativas carrega. As(Os) espectadoras(es) não recebem a obra de arte pronta: a cada nova leitura, ela se transforma, se amplia, se renova. Isso significa que, a cada experiência estética, o sujeito identifica e redescobre uma série de valores, o que resulta numa nova obra. A preparação do olhar A arte é para todas as pessoas, embora muitas delas tenham a impressão de que não entendem, não sabem apreciar as manifestações artísticas ou de que não gostam das obras. Em princípio, nós somos capazes, sem exceção, de entender e de gostar de arte. Isso depende de habilidades que podemos desenvolver. Wassily Kandinsky, Composição VII, 1913 32 A primeira delas é a observação. Observar significa olhar com interesse dirigido, examinar minuciosamente, focalizar a atenção, concentrar o pensamento e os sentidos, com vontade de ver, de apreender, de perceber e descobrir os detalhes significativos. É como usar uma lente de aumento sobre algum objeto. Mas o fator que realmente dirige a observação é o nosso interesse especial, nosso ponto de vista, nossa sensibilidade interessada. Olhares impressionistas Você pode educar o olhar das(os) suas(seus) alunas(os) por meio de alguns exercícios, para que elas(es) desfrutem melhor as visitas aos museus ou a outros espaços culturais. Aproveite a sua própria experiência e as anotações que fez ao realizar a atividade isoladamente. Você pode pesquisar na internet mais informações sobre o movimento impressionista. Algumas sugestões para trabalhar o Impressionismo com a turma: • Movimento impressionista - Acesse em • Enciclopédia Itaú Cultural: Impressionismo - Acesse em • Museu D´Orsay - Acesse em • Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB): materiais educativos da exposição Impressionismo: Paris e a modernidade: Caderno de mediação acesse em , Práticas e reflexões com educadores • Vídeo: Os impressionistas (The Impressionists, Inglaterra, 2006) - Acesse em • Vídeo: Claude Monet - Acesse em • Vídeo: Pierre-Auguste Renoir - Acesse em PARA APROFUNDAR Na prática Sugestão de encaminhamento De olhos bem abertos Para esta atividade, é interessante que a escola ou a instituição educativa disponha de uma sala de informática ou de um espaço em que as(os) alunas(os) tenham acesso a alguns computadores (mesmo que tenham de usá-los em duplas ou trios). Se não for possível, ela pode ser realizada coletivamente, em uma sala na qual se possa projetar a imagem de um computador em uma tela ou parede. É importante que a projeção tenha boa qualidade, isto é, que a imagem fique nítida. Antes de iniciar essa atividade com as(os) educandas(os), realize sozinha(o) o mesmo exercício. Por meio da imagem, compreenda para onde a obra a(o) leva, como é tocada(o) pela imagem. Observe esse percurso e anote os questionamentos e impressões que você teve a princípio diante da obra de arte. 33 Volte a observar e busque novas leituras, novas possibilidades. Baseado em sua própria experiência, elabore um roteiro de leitura. Você pode se propor perguntas e criar palavras-chave para conduzir diferentes percursos de olhar. Outro questionamento importante é: que assuntos de outras áreas e/ou linguagens podem ser explorados com base na obra escolhida? Importante: não existe uma fórmula a ser seguida, mas, sim, inúmeras entradas e formas para “descobrir” a obra de arte. Não importa se começamos interpretando diretamente ou levantando aspectos formais e fazendo uma descrição etc. A melhor entrada é sempre a da curiosidade do grupo. Fique atenta(o) às “pistas” que a obra e a curiosidade – a sua e a de suas(seus) alunas(os) – oferecem. Francisco de Goya, Saturno devorando um filho, 1819-1823 Ampliando a experiência Diversas estratégias para o trabalho com as obras possibilitam a ampliação da experiência. Podem-se propor leituras comparativas: relacione a obra com a produção de outras(os) artistas (não se limite às(aos) artistas visuais). Um texto literário, um poema, um filme, uma música também podem ser incluídos na leitura, para ampliar ainda mais o repertório de todas(os) as(os) envolvidas(os). A interdisciplinaridade pode estabelecer relações enriquecedoras. É muito importante estimular a expressão de diferentes pontos de vista. Como já dito, não existe uma única interpretação correta. O diálogo e a compreensão de que não existem respostas definitivas para os questionamentos da arte auxiliam no exercício de construir uma sociedade mais democrática, que estimula a diversidade. É essencial realizar as suas próprias pesquisas, para se tornar uma(um) professora(or) investigadora(or). Nesse caminho, você pode se apropriar do conteúdo para gerar suas propostas de trabalho com as(os) educandas(os). Arte na web Além de visitas a bibliotecas físicas, a web é uma fonte rica para pesquisa. Conheça alguns links que podem facilitar a sua consulta sobre bibliotecas públicas pelo Brasil, e não se esqueça dos sites de busca da internet: • Sistema Municipal de Bibliotecas: Prefeitura de São Paulo - Acesse em • Portal Domínio Público: biblioteca digital desenvolvida em software livre - Acesse em PARA APROFUNDAR 34 Preparação para a leitura de obras A título de sugestão, segue uma primeira possibilidade de leitura de obras. São muitas(os) as(os) artistas dos mais variados movimentos da história da arte. Por se tratar de um universo muito vasto, infelizmente não será possível oferecer exemplos de todos os movimentos. A escolha das obras a serem trabalhadas com as(os) alunas(os) dependerá do tema e daquelas que estarão expostas no museu a ser visitado. Selecione algumas imagens do artista impressionista Claude Monet, como esta a seguir: Claude Monet, Crepúsculo em Saint-Georges-Majeur, 1908 Para aproveitar tudo o que uma imagem pode oferecer, explique que os olhos precisam percorrer o objeto de estudo com atenção. É preciso dar tempo para a obra se “hospedar” no cérebro e depois descrever todos os elementos percebidos, elaborando uma espécie de inventário. Dê bastante tempo para a observação. Provavelmente elas(es) serão invadidas(os) por um turbilhão de percepções e ideias. Diga que fiquem atentas(os) a todas elas e recomende que registrem as suas impressões por escrito: tudo o que observarem e também seus sentimentos e emoções, bem como as ideias, tema e conceitos que a obra apresenta. Explique que o registro escrito é uma das formas de estimular a memória visual, que é a capacidade de guardar com certa precisão aquilo que foi observado. Assim, mesmo passado algum tempo, é possível relembrar o que foi visto. Após a observação, é importante que a turma compartilhe suas experiências em uma conversa informal e descontraída, ressaltando que o grupo está construindo o conhecimento conjuntamente. Depois dessa conversa, vocês podem reforçar os elementos visuais que foram percebidos e compartilhados pelas(os) alunas(os) – e outros que porventura não foram relatados: • Quais eram as intenções do artista; • Como era o momento histórico que ele vivia. Você também pode apresentar informações pessoais do artista, se você considerar pertinente. Isso pode ser feito por meio de um audiovisual, como um filme ficcional ou documentário (há um documentário sobre Claude Monet sugerido nesta oficina). 35 É possível que cheguem à conclusão de que a leitura da imagem por elas(es) realizada pode corresponder à intenção do artista ao elaborá-la e à época em que foi produzida, mesmo sem terem estudado anteriormente. Isto é, podem perceber que a imagem “fala” à(ao) espectadora(or). Sugerimos, ainda, outra possibilidade de leitura de imagens, seguindo as observações já feitas acerca da pesquisa e leitura individual antes de aplicá-las com suas(seus) alunas(os). Neste exemplo, usaremos a obra Vibração (1969), de Lothar Charoux, artista plástico concretista austríaco que viveu no Brasil e foi um dos fundadores do Manifesto Ruptura, em 1952. Veja a obra na Enciclopédia Itaú Cultural, em Da mesma forma que as(os) educandas(os) percorreram os olhos pelas imagens impressionistas, podem-se fazer os seguintes questionamentos: • Quais cores e tonalidades predominam nessa imagem? • Há linhas ou formas geométricas representadas? • Essas formas estão estáticas? Trazem ideia de profundidade? Como essa impressão é dada na figura? Há diagonais? Há variações das tonalidades? • Qual é o título da obra? • Você acha que esse título tem a ver com a imagem? Por quê? • É possível perceber as pinceladas do artista? Se não, por quê? Para contextualizar a obra e embasar as perguntas realizadas, você pode encontrar mais informações sobre o movimento concretista. Algumas sugestões para trabalhar o Concretismo com a turma: • Concretismo - Acesse em ; • Enciclopédia Itaú Cultural: Arte concreta - Acesse em • Blog Arte Concretista - Acesse em • Revista da USP: CAMPOS, Haroldo de. Arte construtiva no Brasil. São Paulo, jun/ago 1996 - Acesse em • Vídeo: Waldemar Cordeiro: fantasia exata (2013) – Fernando Cocchiarale fala sobre o Manifesto Ruptura, a arte concreta e a arte de Waldemar Cordeiro - Acesse • Vídeo: Memórias concretas (2006) – documentário sobre o artista plástico Almir Mavignier - Acesse em PARA APROFUNDAR 36 A visita ao museu Se na sua localidade houver algum museu, organize uma visita com suas(seus) alunas(os). Você pode encontrá-lo no Guia de Museus Brasileiros (acesse em Mas, lembre-se: para que a visita seja bem aproveitada, é importante que você e as(os) estudantes estejam preparadas(os)! Por isso, é recomendável você visitar o espaço antes e conversar com as(os) educadoras(es) responsáveis pelas exposições, para poder orientar bem as(os) suas(seus) alunas(os). Na organização para a visita, comece explicando a elas(es) o que é um museu; o que é uma coleção e o que é um acervo – estude bem antes! Pesquise e peça às(aos) suas(seus) alunas(os) que investiguem sobre as atividades que um museu normalmente realiza e quais os tipos de objetos podem ser guardados em um museu – será que só existe museu de arte? Diga que, normalmente, há um espaço de visitação para o público e outro espaço restrito, onde as(os) profissionais que ali trabalham elaboram as exposições, guardam os objetos que não foram expostos, estudam a melhor maneira para mostrá-los ao público (acredite: até a cor da parede da exposição foi pensada por essas(es) profissionais!). Um passo a passo para viabilizar a visita ao museu • Antes de agendar a visita, informe-se sobre as condições de atendimento que o espaço oferece, verificando: número máximo de visitantes possível; número necessário de acompanhantes responsáveis; se há acompanhamento por educadoras(es) do próprio museu e se é oferecido material de consulta; se há oficinas e de que tipo (se há possibilidade de as(os) visitantes se sujarem – nesse caso, é interessante pedir para as(os) alunas(os) levarem aventais ou peças de roupa para usar durante a oficina); duração prevista para a visita; preço do ingresso etc; • Após o agendamento, providencie autorização dos pais, caso as(os) alunas(os) sejam menores de idade, transporte e lanche (se necessário). Prepare-se com antecedência e converse com elas(es), procurando estimular a sua curiosidade e fornecendo informações que possam resultar num aproveitamento melhor da visita; • Oriente-as(os) a se comportar adequadamente, informando que: não devem comer no espaço expositivo (nem mesmo chupar balas ou mascar chicletes); não devem tocar nas obras para não danificá-las; é importante falar baixo, para não atrapalhar as(os) demais visitantes, e andar sempre junto do grupo; devem ler as etiquetas das obras e, sempre que tiverem dúvidas, perguntar às(aos) educadoras(es) da instituição, levantando a mão para chamar a sua atenção. É importante dizer que elas(es) não devem ter vergonha de manifestar suas impressões ou expor sua curiosidade; • No dia marcado, procure chegar com certa antecedência ao local, para evitar que o tempo de visita seja prejudicado por atraso. (Atenção: se houver lanche, ele deve ser servido antes ou após o término da visita, fora do espaço expositivo); • Após a visita, faça com as(os) participantes uma avaliação, discutindo o que aprenderam, do que gostaram ou não, bem como um levantamento dos cuidados a se tomar nas próximas atividades dessa natureza. Retorno à sala de aula Logo em seguida à visita com suas(seus) alunas(os), não perca a oportunidade de conversar com a turma sobre o passeio como um todo: • A preparação em sala de aula; • O encontro para a saída ao museu; • Como foi entrar em um museu (sobretudo para aquelas(es) que não conheciam um es- 37 paço como esse); • Como foram a visita e o percurso pelo prédio; • Se houve acompanhamento de educadora(or), como foi a conversa com ela(e); • Será que há diferença em ver um objeto em uma projeção e “ao vivo”? As cores mudam? Ficam mais nítidas? E as formas e relevos representados? Se quiser, você pode elaborar atividades práticas, como a criação de um objeto, uma pintura, um desenho, para que as sensações e os conteúdos sejam recuperados e ampliados. Visitar um museu nos faz conhecer outros universos e outras formas de pensar e interagir com a sociedade, com o mundo ao redor. É importante que as crianças e as(os) jovens tenham consciência disso! A experiência estética Representar pensamentos, sentimentos, histórias, experiências pessoais e coletivas, conferindo-lhes dimensão estética, é o que a humanidade vem fazendo há milhares de anos por meio da linguagem artística ou pelos diversos caminhos e motivações da arte. Nesse contexto de busca e criação, aparecem as artes que fazem da visão o seu meio principal de apreciação e são conhecidas como artes visuais. Elas se utilizam dos mais variados recursos e formas de expressão para apresentar e representar a realidade conhecida como um mundo significativo, surpreendente e revelador. A(O) artista usa desenhos, pinturas, gravuras, esculturas e colagens, papel, tinta, gesso, argila, madeira e metais, filmadoras, máquinas fotográficas, programas de computador e outras ferramentas tecnológicas para representar o mundo real recriado por seu imaginário. Pablo Picasso na tela Assista ao trailer do documentário O mistério de Picasso, de 1956, dirigido por Henri Clouzot. Acesse em PARA APROFUNDAR Essas obras de arte, diferentemente dos objetos utilitários, revelam uma visão muito singular, especial e inventiva que a(o) artista tem da vida e provocam na(o) observadora(or) uma emoção, admiração ou inquietação. Esse conjunto de sensações recebe o nome de experiência estética. René Magritte, O duplo segredo, 1927 Para ampliar 38 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 6 Criando poemas visuais • Computadores com acesso à internet. • Livros de poesia. • Revistas. • Canetas, tintas, lápis, tesoura e papéis coloridos. • Relacionar poema visual ao seu contexto de produção (interlocutoras(es), finalidade, lugar e momento em que se dá a interação) e suporte de circulação original (objetos elaborados especialmente para a escrita, como livros, revistas e suportes digitais). • Estabelecer conexões entre texto e conhecimentos prévios, vivências, crenças e valores. • Estabelecer a relação entre o título e o corpo do texto. • Reconhecer os efeitos de sentido da diagramação, de recursos gráfico-visuais (tipo, tamanho ou estilo da fonte), identificando possíveis elementos constitutivos da organização interna do poema visual: arranjo gráfico e espacial do poema. • Examinar em textos o uso de recursos gráficos no poema: grafia das palavras e sua exploração visual; associação das palavras a objetos visuais (fotos, desenhos, pinturas, colagens). • Reconhecer o emprego de linguagem figurada e compreender os sentidos pretendidos, inferindo, com base em elementos presentes no próprio texto, o uso de palavras ou expressões de sentido figurado. • Planejar um poema visual: pesquisar e selecionar componentes verbais e visuais, observar a grafia das palavras e suas possibilidades de exploração visual e sonora, observar possibilidades de associação das palavras selecionadas a objetos visuais (fotos, desenhos, pinturas, colagens), explorar tecnicamente imagens de modo que produzam efeitos visuais adequados aos propósitos do texto. • Produzir poema visual, levando em conta o gênero e seu contexto de produção. • Sequência de atividades que apresentam o gênero poesia visual e proposta de produção textual com as(os) estudantes. Autora da oficina: América dos Anjos Costa Marinho, pedagoga, licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e formadora de leitoras(es). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Compreender e apreciar poemas visuais. • Produzir seus próprios poemas visuais e compartilhar/apreciar as criações das(os) colegas. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, biblioteca, ateliê de artes ou outro espaço. • 3 a 5 encontros de 1h a 1h30 cada. Voltar para o sumário 39 Início de conversa A poesia visual é uma forma de expressão artística que se caracteriza quase sempre pela combinação de palavra e imagem. É um gênero artístico de pequeno formato que, empregando alguns poucos elementos – como a disposição gráfica de palavras e/ou letras, bem como de imagens –, tem a capacidade de produzir grande impacto. A mensagem do poema é captada pela visualização da forma, que muitas vezes explora aspectos lúdicos, sonoros e visuais. Segundo Fábio Lucas, escritor e crítico literário: “O poema visual utiliza, com rara felicidade, a combinação dos signos verbais com a expressividade de linguagem icônica. Assim os dois códigos, o digital e o icônico, se combinam à perfeição para traduzir imagens poéticas e juízos críticos.” Nossa proposta nesta oficina é desafiar as(os) alunas(os) a compreender e apreciar visualmente muitos poemas visuais interessantes. Depois, elas(es) poderão criar suas próprias produções e observar como outras(os) reagem diante de sua criatividade. A poesia visual é um tipo de poesia em que – abolindo-se certas distinções entre os gêneros textuais e outras formas de arte – o texto, as imagens e os símbolos são dispostos de tal forma que o elemento visual assume papel preponderante na obra, não dependendo de elementos verbais para ser caracterizado como poesia. O ovo, do grego Símias de Rodes (300 a.C.), é o poema visual mais antigo de que se tem notícia. Símias de Rodes, O ovo A poesia visual Representar pensamentos, sentimentos, histórias, experiências pessoais e coletivas, conferindo a eles uma dimensão estética, é o que o ser humano vem fazendo há milhares de anos por meio da linguagem artística ou pelos diversos caminhos e motivações da arte. Outras experiências envolvendo escrita e imagem datam do início do século XVI até meados do século XVIII, momento que corresponde esteticamente ao Maneirismo e ao Barroco. Um exemplo é o poema Labirinto cúbico, datado do século XVIII. No início do século XX, com as vanguardas artísticas, experimentações envolvendo escrita e imagem ganham novo destaque. É o caso dos célebres caligramas do poeta francês Guillaume Apollinaire. No Brasil, o movimento concretista se destaca no cenário artístico da década de 1950. 40 Agora, conheça a adaptação audiovisual dos poemas concretos Cinco (José Lino Grunewald, 1964), Velocidade (Ronald Azeredo, 1957), Cidade (Augusto de Campos, 1963), Pêndulo (E. M. de Melo e Castro, 1961/62) e O organismo (Décio Pignatari, 1960). Direção: Christian Caselli. Acesse em Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiros contatos com a poesia visual Antes de falar sobre poesia visual com suas(seus) alunas(os), leia para elas(es) o poema Oco, de Jorge Miguel Marinho. Estimule comentários, para perceberem que o poema trata da tentativa de compreensão do eu por uma(um) adolescente. Depois mostre a elas(es) uma cópia ampliada do poema e faça nova leitura, acompanhando o texto com o dedo, e pergunte qual das duas formas de apresentação do poema é mais significativa. MARINHO, Jorge M. Oco. In: Blue e outras cores do meu voo. Ilustrações de Raquel Matshushita. São Paulo: Sesi, 2014. p. 14-15. CAPPARELLI, Sérgio. Falta de sorte. In: Tigres no quintal. Porto Alegre: Kuarup, 1989. p. 58. A seguir, organize a turma em duplas e apresente um poema de outro autor, Sérgio Capparelli, representativo desse gênero. Mostre às(aos) estudantes o poema Falta de sorte. Proponha que leiam o poema com atenção, procurando observar, além das palavras, o jeito como elas vêm escritas no papel e de que forma esse jeito interfere na sua compreensão. Depois de um tempo, converse com elas(es) sobre o que observaram. Pergunte se gostaram do poema e procure explorar a percepção das(os) estudantes: • Que figura o poema forma? O que acontece com a palavra “cai”? Com que intenção o autor teria desenhado esse círculo vermelho? A questão é proposta mais com o objetivo de levar as(os) estudantes a refletir sobre os poemas visuais e a perceber suas características, do que de encontrar uma resposta única. Por isso, lembre a elas(es) que em literatura e, sobretudo, em poesia são possíveis múltiplas interpretações, desde que fundamentadas no texto. 41 Diga que os poemas mostram, principalmente, a maneira como as(os) poetas veem as coisas. Assim, as palavras ganham um sentido mais rico, como se quisessem dizer mais de uma coisa ao mesmo tempo. No caso do poema Falta de sorte, o poeta resolve recorrer à disposição gráfica das palavras para enriquecer o sentido do que queria dizer. Muitas vezes, as(os) alunas(os) vão precisar de sua ajuda para estabelecer relação entre os poemas e outros conhecimentos: no exemplo de Falta de sorte, a bandeira do Japão é branca com um círculo vermelho no centro. Sugira às(aos) alunas(os) que procurem livros de Sérgio Capparelli na sala de leitura. Sobre Sérgio Capparelli O escritor nasceu em Uberlândia(MG), mas viveu em Porto Alegre (RS) durante muitos anos. Foi professor de Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É autor de prosa e poesia, com muitos livros premiados. Entre suas obras estão Tigres no quintal (1989) e Poesia visual (2006), este último em parceria com Ana Claudia Gruszynski, designer e professora de Comunicação Visual da UFGRS. PARA APROFUNDAR Sérgio Capparelli Poemas mais visuais ainda Agora, apresente às(aos) estudantes outros poemas e poetas que apostam bastante na visualidade. Organize um círculo com as carteiras para que todas(os) possam se olhar. Proponha a leitura de um poema de cada vez, e explore a leitura do maior número possível de estudantes, evitando, porém, que as falas se tornem muito repetitivas. É claro que, dada a pouca experiência de vida, elas(es) terão dificuldades para compreender muitas das referências implícitas nos poemas. Mas você pode ajudá-las(os), contextualizando os textos no tempo e no espaço e fornecendo as informações necessárias para ampliar a compreensão das(os) alunas(os). Trabalhando com Paulo Leminski Apresente à turma o poema Brasa (In: Almanak 88. São Paulo: Kraft, 1988), de Paulo Leminski. A composição forma uma figura geométrica – um octógono – e duas palavras: brasa e brisa. Você pode perguntar às(aos) alunas(os) por que o autor escolheu essa forma para se expressar. Embora a resposta seja pessoal, elas(es) podem, por exemplo, comparar a figura à imagem de um ventilador, que produz brisa para aplacar o calor abrasador. Ou podem observar que, como o “i” é muito pequeno (dentro do “a” central), a “brisa” não é suficiente para abrandar o calor, daí a sensação de “brasa”. Acesse o poema Brasa, de Paulo Leminski, em 42 Agora, mostre o poema Vazio agudo (In: Leminski, Paulo; Suplicy, João. Winterverno. São Paulo: Iluminuras, 2001), também de Paulo Leminski. Nele, o texto apresenta muitos contrastes: vazio/cheio; agudo/ cheio; vazio/tudo; meio/cheio… Talvez as(os) alunas(os) consigam estabelecer uma relação entre as palavras do texto e a forma em que elas estão inseridas: o círculo incompleto e o texto ocupando só metade da circunferência lembram uma lua minguante, o que remete à ideia de esvaziamento; a pincelada mais larga na parte de baixo do círculo em contraste com o fino traço da parte cima podem remeter, respectivamente, a cheio e agudo. Talvez possa se referir ao fato de o eu lírico andar “meio cheio de tudo”, isto é, sentir um grande (agudo) vazio, não ver sentido nas coisas… Acesse o poema Vazio agudo, de Paulo Leminsk, em Além da visualidade, o poema Vazio Agudo tem uma sonoridade bem marcada. O que contribui para isso são as rimas: meio/cheio; tudo/agudo. Observe se as(os) estudantes percebem que as letras “p.l.” no texto significam a assinatura do autor, Paulo Leminski. Sobre Paulo Leminski É um dos mais respeitados e conhecidos poetas brasileiros. Nasceu em 1944, em Curitiba(PR). Em 1964, morando em São Paulo, publicou poemas na revista Invenção, dedicada à poesia concreta. Trabalhou como redator de publicidade, foi tradutor de várias obras de Língua Inglesa e estudou Língua e Cultura Japonesa. Como compositor, teve canções gravadas por Caetano Veloso, Itamar Assumpção, Guilherme Arantes, entre muitos outros. Ganhou o prêmio Jabuti de Poesia em 1995, com o livro Metamorfose. Foi casado com a poeta Alice Ruiz. Faleceu em 1989, em Curitiba(PR). PARA APROFUNDAR Paulo Leminski Trabalhando com Arnaldo Antunes Em relação ao poema Vejo miro (In: Palavra desordem. São Paulo: Iluminuras, 2002), de Arnaldo Antunes, as(os) estudantes podem, por exemplo, pensar na determinação com que o eu lírico vai atrás daquilo com que sonha; contrapondo o desejo (“vejo como um beijo”) com todos os sentidos do corpo, à luta para conseguir o que quer (“miro como um tiro”), oposição marcada pela inversão espacial das frases. Conheça a radioarte criada por Diego Lima dos Santos com base no poema visual Vejo miro, de Arnaldo Antunes. Acesse em Muitas outras interpretações pelas(os) estudantes em relação ao poema Vejo miro são possíveis e desejáveis! 43 Sobre Arnaldo Antunes Nascido em 1960, em São Paulo (SP), Arnaldo Antunes é músico, ensaísta, compositor e artista visual. Iniciou o curso de Letras na Universidade de São Paulo (USP), mas não o concluiu em virtude do sucesso da banda Titãs, da qual fazia parte. Deixou a banda em 1992, mas continuou compondo com os demais integrantes. Em 2002, formou o trio Tribalistas, em parceria com Marisa Monte e Carlinhos Brown. É um dos principais compositores da música pop brasileira, respirando influências concretistas e pós-modernas. Lançou, em 1983, seu primeiro livro de poemas, Ou/e. De lá para cá, publicou dezenas de livros, entre eles Cultura (2012), voltado ao público infantil. PARA APROFUNDAR Arnaldo Antunes Trabalhando com Jacira Fagundes Por fim, sugerimos a apresentação do poema visual Corte, de Jacira Fagundes. Acesse o poema Corte, de Jacira Fagundes, em É interessante perguntar às(aos) alunas(os) se o significado desse poema estaria claro sem o título. Sobre Jacira Fagundes É professora e escritora. Nascida em Porto Alegre (RS), sua trajetória literária, encarada como ofício, começou em 2002, com o conto Noite fria de vigília, contemplado com o prêmio literário Nova Prova – 20 anos. Sua primeira obra é Um desafio para Manoel, voltada ao público infantojuvenil. Tem diversos outros livros, tanto dirigidos a crianças e adolescentes como para adultos, como a novela Dois no Espelho (2007) e o livro de contos No limite dos sentidos (2009). PARA APROFUNDAR Jacira Fagundes Produção de provérbios visuais Proponha às(aos) alunas(os) que pesquisem com seus familiares e amigas(os) alguns ditos populares e que os tragam para a sala de aula. Distribua tiras de papel pardo para que escrevam esses ditos. Exponha-os nas paredes da sala e estimule-as(os) a brincar com eles, procurando possíveis sentidos na seleção de algumas letras. Por fim, peça que ilustrem os poemas, de acordo com o que querem destacar. 44 Criação de outros poemas visuais Combine com a(o) professora(or) orientadora(or) da sala de leitura uma visita da turma voltada à consulta de livros de poesia. Oriente as(os) estudantes a escolherem um poema que gostariam de configurar como poema visual, sem alterar o texto verbal. Caso tenham dificuldades, você poderá organizar com elas(es) um dos poemas que a turma conheça e de que goste. Depois, poderão fazer suas tentativas individualmente ou em duplas, se preferirem. Ajude-as(os) dando dicas para que aprimorem seus trabalhos. Depois, junto com a turma, bolem um jeito bem criativo de expor os trabalhos! Conteúdo na web Assista ao bate-papo sobre poesia visual com Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski, realizado pelo Cenpec em 2014, no âmbito do projeto Plataforma do Letramento. Acesse em Hora de avaliar Para ampliar O momento da avaliação de um trabalho é muito importante. Comece com uma conversa informal, dando oportunidade para que todas(os) se manifestem. Depois, com a ajuda delas(es), reveja todo o trabalho desenvolvido e vá elencando as aprendizagens feitas durante o processo. Valorize bastante as conquistas e minimize as dificuldades, dizendo que elas(es) ainda têm muito tempo para vencê-las. Por fim, avalie os poemas visuais produzidos e a apresentação deles, levantando os pontos positivos e os aspectos a serem aperfeiçoados para as próximas vezes. 45 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 7 Vamos fazer um sarau? • Livros, revistas e sites de poesias. • Vídeos e áudios de pessoas experientes declamando poemas. • Tecidos, papéis coloridos, tintas, canetas e tesouras para decorar o ambiente. • Aparelho de som e instrumentos musicais para criar o ambiente sonoro. • Desenvolver a sensibilidade e o gosto pela leitura de poemas. • Conhecer um repertório de poemas por meio da leitura feita pela(o) professora(or) e por si mesma(o). • Identificar nos textos lidos os jogos de palavras, as rimas, as repetições que marcam os ritmos, as intenções da(o) autora(or) e a beleza da linguagem. • Conhecer poetas de estilos variados e saber um pouco sobre as suas vidas, trajetórias e principais obras. • Reconhecer o sarau como um tipo de evento cultural. • Participar ativamente da organização e da realização de um sarau. • Declamar poemas com ritmo e entonação adequados ao texto, ao público e à situação de comunicação. • Sequência de atividades para realização de um sarau literário e musical com as(os) estudantes. Autora da oficina: Madalena Monteiro, contadora de histórias e formadora do Projeto Entre na Roda (Cenpec). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Desenvolver nas(os) estudantes o gosto pela leitura e criação literária de forma lúdica e criativa. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, ateliê de artes, teatro, pátio ou outro espaço. • 3 a 6 encontros de 1h a 1h30 cada. Voltar para o sumário 46 Início de conversa Recentemente, os saraus literários voltaram a florescer em diversos espaços por todo o país. Com essa inspiração e aproveitando o gosto pela brincadeira com palavras e rimas, que tal organizar um sarau com a sua turma? Muitas pessoas gostam de recitar poemas, tirar versos e fazer brincadeiras de rimas. Esse gosto tem sido pouco explorado em virtude de outras ofertas de entretenimento e atividades variadas que ocupam grande parte do tempo de nossas crianças e jovens, bem como por causa das exigências do currículo escolar. Propomos uma sequência de atividades em que as(os) alunas(os) selecionam poemas e se preparam para apresentá-los em um evento público, organizado por elas(es). Ao oferecer às(aos) jovens a oportunidade de se debruçar sobre textos poéticos, estamos também lhes dando a chance de se aproximar de um gênero ligado à sensibilidade da(o) escritora(or) e da(o) leitora(or), que comunica não só pelas palavras, mas pela sonoridade e pelas imagens construídas, estimulando a leitura como ação que desperta o imaginário e a criação. A palavra sarau vem do latim seranus, que dá origem à palavra galega serao e, mais tarde, serão, em português. Sarau é um evento cultural em que as pessoas se encontram para se manifestar artisticamente. Em geral, o evento envolve dança, leitura de poemas, histórias, música, teatro e artes plásticas. PARA APROFUNDAR Há poemas milenares, que atravessaram as fronteiras de tempo e espaço, passando de boca em boca, até chegar aos nossos dias. Um exemplo bem conhecido é o Cântico dos cânticos, atribuído ao rei Salomão. Acesse o poema em salomao/cantares.html. Essa obra, considerada o mais famoso poema de amor da humanidade, está no Antigo Testamento e inspira poetas, musicistas e outras(os) artistas até hoje. Atualmente, temos um vasto acervo poético, dos mais variados estilos, tanto para adultos como para crianças, que agrada diferentes gostos literários. Manuscrito do Cântico dos cânticos. Wikipédia. 47 Para além das atividades de analisar a forma do poema e levantar as características desse texto (estrofes, versos regulares, uso de metáforas e, com certa frequência, uso de rimas), a proposta é experimentar o sabor de se deixar levar pelo texto poético, comentar, deliciar-se e escolher os que mais agradam a cada participante. Essa é também uma possibilidade de se descobrir como leitora(or), entrando em contato com poemas de diferentes épocas e estilos, de forma livre e prazerosa. Na prática Sugestão de encaminhamento Apresentação da proposta Um bom jeito de começar é ler ou declamar um ou mais poemas para a turma e, em seguida, conversar sobre esses poemas e sobre outros que elas(es) conheçam. Ao final, proponha a realização de um sarau, que poderá ser destinado ao público escolar ou aberto às pessoas da comunidade. Para isso, você pode pedir às(aos) alunas(os) que pesquisem o que é um sarau, como se organiza, além de pesquisarem poemas e trazer os que mais lhes agradarem para compartilhar com o grupo. Ampliação de repertório Nos encontros seguintes, é interessante trazer poemas de estilos e autoras(es) variadas(os) para apresentar às(aos) alunas(os). Você pode ler/declamar ou trazer áudios e/ou vídeos de pessoas experientes declamando os textos. Caso conheçam poetas locais ou pessoas da comunidade afeitas a esse tipo de atividade, será muito enriquecedor convidá-las(os) para se apresentar à turma. É interessante fazer parceria com a(o) responsável pela biblioteca ou sala de leitura da escola, ou ainda com a biblioteca municipal ou o centro cultural mais próximo, apresentando a proposta que está desenvolvendo. Você pode combinar algumas visitas periódicas a esses ou outros locais de difusão da cultura letrada para ampliar as possibilidades de contato com diferentes estilos de poesia e outros gêneros literários. No entorno da escola acontecem saraus ou eventos artísticos semelhantes? Que tal convidar as(os) estudantes para assistir a um deles? Assim, as(os) jovens vão se familiarizando e desenvolvendo o gosto por esses encontros. Além disso, vão se sentir mais à vontade para participar do sarau da turma. Estimule as(os) alunas(os) a ler e/ou declamar os poemas selecionados por elas(es). Nessas aulas é importante garantir um tempo para comentários: • Por que escolheram determinado poema; • O que sabem sobre a(o) autora(or); • O que acham do estilo do poema; • Comparação com outros poemas ou estilos conhecidos pela turma até agora. Outra estratégia para instigar a participação das(os) alunas(os) é, após a leitura, relembrar alguns trechos escolhidos pela(o) professora(or) ou que chamaram a atenção das(os) alunas(os), ressaltando alguns aspectos: 48 • A beleza de uma expressão; • A brincadeira com os sons; • As possibilidades de significado de determinados trechos ou do poema todo; • O entendimento de uma metáfora usada etc. Procure favorecer a reflexão sobre esse gênero textual: • Como são criados os efeitos sonoros em determinados poemas; • A regularidade da métrica de muitos deles; • A musicalidade gerada por meio da repetição de sons; • Os diferentes sentidos e climas criados pela repetição de palavras ou versos, ou por recursos como metáforas e comparações; • O poema como expressão de sentimentos diversos e por vezes contraditórios, desde amor, amizade, até revolta, contrariedade e ódio. Seleção de repertório Essas audições seguidas das conversas contribuirão para que, pouco a pouco, as(os) alunas(os) descubram seus estilos, temas e autoras(es) preferidas(os). Ao mesmo tempo que ampliam seu repertório poético, as(os) estudantes já podem ir escolhendo os poemas que querem apresentar no sarau. Deixe-as(os) à vontade para escolher se preferem ler em voz alta ou memorizar um poema e declamá-lo de forma mais dramática, coletiva ou individualmente. Estratégias de memorização Você pode trabalhar com as(os) estudantes algumas estratégias, por exemplo: • Declamar ou ler com elas(es) o poema inteiro durante alguns dias consecutivos; • Declamar e pedir que repitam verso por verso; • Declamar junto com as(os) alunas(os) à medida que vão memorizando o texto; • Ouvir declamações de poetas ao vivo ou em áudio; • Uma(Um) aluna(o) ler poemas em voz alta, fazendo pausas para que as(os) demais repitam cada trecho; • Para ler mais dicas, acesse PARA APROFUNDAR 49 Ensaios A ideia de se apresentar publicamente pode intimidar determinadas(os) alunas(os). Para garantir que elas(es) se saiam bem nessa empreitada, é preciso ensaiar com a classe e conversar sobre suas atuações para que se aperfeiçoem pouco a pouco e se sintam mais à vontade com a exibição no dia do sarau. Combine com a turma dias da semana nos quais duas(dois) ou três alunas(os) recitam um poema para as(os) demais. Caso tenham selecionado o mesmo poema, não há problema, pois o que importa nesse momento é que assumam lugar semelhante ao que ocuparão no dia do sarau. Após os ensaios, estimule o grupo a tecer comentários, enfatizando o que cada colega revelou de bom em sua apresentação e dando dicas do que pode ser melhorado. Por fim, oriente a turma a organizar o repertório que vão apresentar. As(Os) estudantes podem optar por ler ou declamar alguns poemas individualmente, outros em duplas, pequenos grupos ou até apresentar um poema coletivamente. Além de decidir se vão ler ou declamar, as(os) jovens podem usar outros recursos na apresentação, como: • Instrumentos para marcar o ritmo; • Imagens estáticas ou em movimento que possam enriquecer a apresentação do poema; • Movimentos sincronizados para enfatizar uma imagem do texto; • Qualquer outra ideia que lhes tenha surgido, seja inspirada pelo poema, seja com base nas pesquisas realizadas ou em outros saraus a que tenham assistido. Oriente-as(os) a ensaiar bem para que esses recursos não comprometam a leitura ou a declamação. Se houver alunas(os) que tocam instrumentos musicais ou cantam, estimule-as(os) a apresentar seus talentos e acompanhar as leituras e as declamações das(os) colegas. Trazer outras modalidades artísticas – como esquetes teatrais, desenhos, pinturas, esculturas – elaboradas pelas(os) estudantes também enriquecerá o sarau. Preparação para o sarau Envolva toda a turma na organização do evento, definindo: • O local, o dia e o horário em que acontecerá; • A produção dos convites, as formas de divulgação e quem serão as(os) convidadas(os); • Os recursos que serão usados nas apresentações etc. Se as(os) estudantes forem utilizar aparelhos para amplificar o som, é necessário treinar o uso do microfone. É preciso saber: • Como posicioná-lo diante da boca; • A distância que se deve tomar para que a voz não fique estridente, ou para que não se produzam sons desagradáveis no meio da fala; • Como se posicionar caso o microfone esteja num pedestal; • Cuidados para não se enroscar no fio, entre outros itens. 50 O grupo deverá divulgar o evento e enviar os convites com pelo menos uma semana de antecedência. No dia do sarau, o espaço deve estar preparado, conforme o que tenham combinado, de modo que seja aconchegante e agradável para as(os) convidadas(os) e as(os) “artistas”. É interessante decorar o local com poemas ilustrados pelas(os) alunas(os) ou outras obras artísticas. Um cuidado importante: o palco deve ter um fundo mais neutro para não desviar a atenção do público daquela(e) estudante que está se apresentando. Poesia na rede Há inúmeros materiais interessantes sobre poesia espalhados na web. Fizemos uma seleção que pode ajudar a ampliar o repertório da turma e colaborar nos ensaios: Declamação do poema Mundo grande, de Carlos Drummond de Andrade. Acesse em A intérprete Maria Bethânia declama o poema Passagem das horas, de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa). Acesse em O poeta Manoel de Barros declama alguns de seus poemas. Acesse em Poemas de Sérgio Vaz. Como organizar um sarau, vídeo produzido pela revista Nova Escola. Acesse em Hora de avaliar Para ampliar Combine com a turma um dia para avaliar o evento: oriente que cada uma(um) enfoque a própria atuação, pois assim aparecerão mais os pontos positivos, que favorecem o fortalecimento da autoestima e a confiança entre o grupo e a(o) professora(or). Você pode apresentar, com cuidado, alguns pontos frágeis do evento como um todo (não em apresentações individuais). Procure destacar os conhecimentos construídos ao longo de todo o preparo do sarau e o que pode ser aprimorado nos próximos eventos. 51 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 8 Bem-vindas(os)! Nós também viemos de outros lugares… • Mapa-múndi. • Globos terrestres (um por grupo). • Computador com acesso à internet. • Folhas de papel pardo. • Pincéis atômicos. • Giz de cor. • Revistas. • Tesoura. • Cola. • Reproduções dos quadros Primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles (1861), e Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500, de Oscar Pereira da Silva (1922). • Compreender que nós, seres humanos, somos todos imigrantes de certa forma. • Pesquisa e reflexão sobre as diferentes origens do povo brasileiro. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Respeitar as outras nacionalidades, etnias e culturas. • Conviver, dialogar e valorizar a diversidade e a pluralidade. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de atividades, sala de aula, biblioteca ou outro espaço com acesso à internet. • 2 encontros de 1h30 cada (crianças); 3 encontros de 1h30 cada (adolescentes e jovens). Voltar para o sumário 52 Início de conversa Migrar significa deslocar-se de um espaço – país, estado, região – para outro. A migração internacional, que compreende a emigração (saída de um país) e a imigração (entrada no país de destino), pode ser desencadeada por diversos fatores: desastres ambientais, guerras, perseguições políticas, étnicas ou culturais, causas relacionadas a estudos, busca de trabalho e melhores condições de vida, entre outros. O principal motivo para esses fluxos migratórios internacionais, todavia, é o econômico, ou seja, as pessoas deixam seu país de origem à procura de emprego e melhores perspectivas de vida em outras nações. O número de migrantes internacionais atingiu 272 milhões em 2019, segundo o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (DESA). Destas(es), 20 milhões são refugiadas(os). Segundo as Nações Unidas, esse número aumentou mais rapidamente do que o crescimento da população. Com isso, a quantidade de migrantes totalizou 3,5% da população global em 2019, enquanto em 2000 somavam 2,8%. Para Liu Zhenmin, subsecretário geral do DESA , os dados são fundamentais para entender a importância das(os) migrantes e da migração no desenvolvimento dos países de origem e de destino: “Facilitar a migração ordenada, segura, regular e responsável e a mobilidade das pessoas contribuirá para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).” Os principais destinos da migração internacional são os países industrializados, entre eles: Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália e as nações da União Europeia. Os Estados Unidos é o destino da maioria das(os) imigrantes internacionais. População mundial. Fonte: reprodução Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: viemos de outros lugares Receba sua turma com um mapa-múndi exposto na parede e alguns globos terrestres para circularem entre eles. Anuncie que a oficina que se iniciará terá o objetivo de buscar as suas origens familiares. 53 Por isso, os mapas. Forme uma roda e peça para cada estudante falar o seu nome e sobrenome. Pergunte se elas(es) têm ideia da origem do seu sobrenome e da sua família. Já ouviram alguém, em casa, comentar sobre o país onde viviam os seus bisavós (pais dos avós), trisavós (pais dos bisavós) e tataravós (pais dos trisavós)? E se? Se alguém tiver informações sobre a origem da própria família, peça para falar sobre ela e para localizar no mapa, com a sua ajuda, o país de origem, marcando-o com um giz de cor. Se ninguém falar, conte você para as(os) estudantes sobre a sua família. Diga se o seu sobrenome é de origem portuguesa, espanhola, moçambicana, italiana, japonesa, boliviana, congolesa, coreana, angolana ou outra. Para identificar o país de onde veio a sua família, marque-o com giz colorido no mapa-múndi. Se na turma houver alguma(um) estudante que imigrou recentemente para o Brasil, dê a palavra a ela(e) para falar de onde veio, peça para identificar no mapa esse lugar, com a sua ajuda, e para contar um pouco sobre o processo da mudança de país. Diga às(aos) demais que será bem interessante conhecer algumas particularidades sobre o país de origem da(o) colega. Pergunte à turma se sabia que todas(os) as(os) nossas(os) ancestrais (antepassados, familiares mais antigos) um dia, há muito tempo ou não, também vieram de fora do Brasil. Já haviam pensado nisso? Naturais daqui mesmo, somente os povos indígenas, que viviam nestas terras há milênios e milênios, quando aqui chegaram os portugueses. Eram eles os únicos habitantes do país, donos dessa terra. Mesmo assim, as(os) indígenas também chegaram aqui um dia vindas(os) da Ásia, via estreito de Bering. Foram os primeiros seres humanos a habitar o país. Portanto, umas(uns) antes, outras(os) depois, todas(os) viemos de fora. Como documento, mostre para as(os) estudantes duas reproduções de pinturas - indicadas abaixo - que retratam o Brasil da época da chegada dos portugueses, com os povos que habitavam nosso país: os povos indígenas. A primeira missa no Brasil. Óleo sobre tela de Victor Meirelles (1860). Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro-RJ. Fonte: Wikipedia. 54 Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500. Óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva (1922). Acervo do Museu Paulista – São Paulo-SP. Fonte: Wikimedia Commons. Explique que após os povos indígenas, os próximos que chegaram de outros lugares à terra brasileira foram os colonizadores portugueses, que vieram viver no Brasil para explorar as suas riquezas e povoá-lo. Em função disso, escravizaram os povos originários e dizimaram boa parte de sua população para ocupar as suas terras. Além disso, muitas(os) indígenas morreram por causa de doenças transmitidas pelos portugueses. A partir da colonização, muitas(os) portugueses imigraram para o Brasil, em busca de terras e enriquecimento e, com isso, passaram a viver aqui e povoar a nova terra com suas(seus) descendentes. Sabem o que significa imigrar? Imigrar significa entrar, voluntariamente, em um país que não é o seu de origem para viver ou passar um período da sua vida por ali. As causas da migração das pessoas de um país para outro, na história da humanidade, sempre foram e continuam sendo as mesmas: busca de melhores condições de vida, de trabalho ou de refúgio, em função de conflitos armados nas terras de origem ou de perseguição política, étnica ou religiosa. Palavras relacionadas à migração Migração: deslocamento das pessoas de uma região para outra (estado, país, região etc); Emigração: saída de pessoas do país em que residiam para se fixar em outro; Imigração: entrada, num país, de pessoas que saíram de seus países de origem; Apátrida: pessoa que não tem nacionalidade reconhecida em nenhum país (ex: uma família foi obrigada a sair do Líbano porque o casamento entre um cristão sírio e uma muçulmana libanesa não foi reconhecido naquele país, já que nenhum dos dois se converteu à religião do outro. As(Os) filhas(os), portanto, não foram registradas(os) e ficaram sem documento de identidade. Ou seja, são consideradas(os) apátridas. Por isso, não conseguiam estudar ou trabalhar na terra onde nasceram. A solução foi emigrar - sair do país. A família solicitou refúgio); PARA APROFUNDAR 55 Refugiada(o): pessoa que sai de onde mora por perseguições em função de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em grupos sociais. Ou ainda por causa de conflitos armados, violação de direitos humanos ou mesmo problemas ambientais, como secas e inundações. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) é o órgão responsável por zelar pela aplicação das regras internacionais criadas com o objetivo de assegurar proteção às(aos) refugiadas(os). No Brasil, ele é representado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare); Exilada(o): é considerado exilado o indivíduo enviado para fora do seu país por um governo. Uma vez exilada, a pessoa não pode mais voltar para a sua nação, até que receba autorização legal. Geralmente, os exílios são realizados por motivações políticas. Há também o exílio voluntário, quando a pessoa decide, por si, morar fora pelos motivos acima apontados; Asilada(o): é reconhecido como asilado todo indivíduo que sofre algum tipo de perseguição em seu país e pede proteção em outro. O Brasil só recebe asiladas(os) políticos. Estas(es) precisam de autorização da Presidência da República para entrar no país; Expulsão: ato administrativo do governo contra a(o) estrangeira(o) que coloca em risco a segurança nacional. Também pode ser expulsa(o) a(o) estrangeira(o) que cometa fraude para a entrada ou a permanência no país. No entanto, aquela(e) que tem cônjuge ou filha(o) brasileira(o) não pode ser expulsa(o); Extradição: acontece quando o governo entrega o indivíduo acusado de um crime para ser julgado no país onde está sendo processado. Geralmente, esses casos são orientados por acordos bilaterais entre os países; Deportação: ato de mandar uma(um) estrangeira(o) em situação irregular de volta ao seu país. A deportação é de competência da Polícia Federal. Não confundir com expulsão ou extradição; Expatriação: é a expulsão da pátria por motivos políticos ou religiosos. Mas também refere-se à saída voluntária de um país para residir em outro, como ocorre com muitas(os) funcionárias(os) de empresas multinacionais; Xenofobia: atitude preconceituosa que rejeita, exclui e, frequentemente, diminui pessoas por serem estranhas ou estrangeiras em relação à sociedade ou à identidade nacional. Da mesma forma que encontramos pessoas que saem de um país, há outras que procuram esse mesmo país, no sentido inverso. Se há, por exemplo, pessoas que migram para o Brasil (vêm para cá, tornando-se imigrantes), há também brasileiros que migram para outros países (saem daqui, são emigrantes). Assim, os seres humanos estão sempre se deslocando no planeta, em movimento. Imigração forçada: a escravidão no Brasil Às vezes, as pessoas vão para outros países, independentemente de sua vontade. É o caso das(os) africanas(os), na época da colonização brasileira, que vinham para cá, forçadas(os), nos porões dos navios negreiros (os chamados tumbeiros), para serem vendidas(os) como mão de obra escrava nas lavouras açucareiras do Nordeste. A abolição da escravatura no Brasil, em 1888, não criou condições para a oferta de trabalho e vida digna para as(os) ex-escravas(os). Mesmo que quisessem voltar para a África, não tinham recursos e também muitas(os) delas(es) não eram africanas(os) e, sim, brasileiras(os), porque nasceram aqui e por aqui viveram. Assim, elas(es), livres e sem trabalho, permaneceram em condições sociais bem difíceis, as quais se refletem na vida da população preta até hoje. 56 Crescimento da chegada de imigrantes em solo brasileiro O volume de imigrantes no Brasil, vindos de diversas localidades do mundo, cresceu consideravelmente a partir do final do século XIX, fruto do incentivo do governo brasileiro, que pretendia “embranquecer” a população em função do preconceito contra o povo preto. Preconceito corroborado pelos fazendeiros das lavouras de café, que não desejavam contratar e pagar salários às(aos) ex-escravas(os). Os principais grupos que por aqui chegaram nessa época - final do século XIX - e na primeira metade do século XX, foram os portugueses, os italianos, os espanhóis, os japoneses, os alemães, os eslavos e os sírio-libaneses, que tiveram grande impacto na vida econômica e social do país e na formação de sua gente. Além de virem para trabalhar nas lavouras, muitos também chegaram para trabalhar na indústria e no comércio das cidades. Cada povo com seus costumes influenciou e foi influenciado por outros povos que aqui viviam, constituindo assim a cultura brasileira. Já na segunda metade do século XX, o Brasil recebeu grupos coreanos, chineses, bolivianos, peruanos, paraguaios e africanos. Essa nova leva de imigração não foi tão impactante quanto a primeira, mas também contribuiu para a vida socioeconômica e cultural brasileira. Todas(os) as(os) imigrantes vieram em busca de condições melhores de vida para si e suas(seus) descendentes. Atualmente, dentre as(os) mais recentes imigrantes no Brasil, destacam-se as(os) bolivianas(os) e as(os) haitianas(os). Quanta gente diferente veio para cá na história do Brasil, não? Pois é, nós descendemos delas(es). Nossas famílias vêm daí e nossos costumes também. Pergunte às(aos) estudantes o que acham sobre essa constatação. A rica diversidade étnica e cultural que temos no Brasil, hoje, de ponta a ponta, deve-se à presença de tantos povos diferentes no decorrer da história do país: nossa gente, nossa comida, nossa música e nossa arte. Todos os povos que escolheram ou foram obrigados - no caso das(os) escravas(os) e refugiadas(os) - a imigrar para o Brasil, desde a sua ocupação pelos portugueses, foram muito importantes para a constituição da nossa população e da nossa cultura. Pesquisando a própria história Faça uma provocação às(aos) estudantes: que tal conhecerem um pouco dos seus antepassados? Proponha que façam uma pesquisa com as suas famílias para saberem da sua origem. Provavelmente, seus pais ou avós devem ter ouvido algumas histórias dos pais e avós deles sobre os antepassados e suas origens. Quantos fatos novos as(os) estudantes poderão descobrir… Para saber o que pesquisar, organize a turma em grupos e oriente que pensem, por aproximadamente 20 minutos, nas perguntas que gostariam de fazer às famílias: • O que seria interessante perguntar? • Que curiosidades elas(es) têm? Circule pelos grupos para ajudá-los. Após esse tempo, abra a roda para socializarem as suas produções. 57 Analise com elas(es) todas as perguntas sugeridas, para que sejam pertinentes e ajudem na recomposição do trajeto das famílias até chegarem ao lugar onde estão. Será importante obter, por exemplo, informações sobre o país de origem dos antepassados, época em que ocorreu a sua imigração para o Brasil e costumes que passaram para a família (comida, objetos, festas que comemoravam etc.). Oriente que procurem as(os) parentes mais antigos ou as(os) amigas(os) delas(es), para fazerem uma entrevista e gravar as respostas pelo celular. Podem entrevistar mais de uma(um) parente para entender melhor as informações que obtiverem. Será interessante também pesquisar objetos antigos ainda existentes na família, além de fotos. Combinem um prazo mais adiante para trazerem as informações, as fotos e os objetos. Sugerimos aqui um exemplo de entrevista possível para a pesquisa: • Qual é o nome e sobrenome da(o) entrevistada(o) e parentesco? • De onde vieram os familiares mais antigos? De qual país? • Quando vieram para o Brasil? Para qual lugar? Em que trabalharam? • Quais comidas ainda são feitas na família, que eram receitas dos antepassados? • Há alguma música da qual se lembram de ter aprendido com elas(es)? Como é? Poderia cantar um trecho dela para gravar? • Há alguma palavra ou expressão que a família ainda hoje usa? O que significa? • O que mais gostaria de falar? Segundo encontro: identificando as origens Professora(or) ou educadora(or), antes deste encontro procure investigar se há alguma predominância da origem das(os) habitantes da localidade onde a escola está inserida para identificar, no caso, as raízes e a razão da fixação nesse local. Sempre há um motivo social, econômico e/ou cultural, marcado historicamente para a ocupação do lugar. É importante conhecer a realidade local para ajudar as(os) estudantes a compreenderem a sua origem. Neste encontro, serão trabalhados os dados que as(os) estudantes trouxeram da pesquisa familiar. Organize a roda e em seguida cada uma(um) deverá contar o que descobriu sobre a sua família. Quem falar deve inicialmente identificar, com a sua ajuda, o país de origem do antepassado no mapa-múndi e fazer nele uma marca com giz de cor. Peça a todas(os) que prestem bastante atenção às histórias contadas, às canções (se tiverem sido gravadas), às fotos e aos objetos. Conforme forem contando suas histórias, registre na lousa ou em cartazes os países de origem que vão aparecendo, além das comidas, das músicas, das danças e das expressões usadas. E se? Se alguém não quiser falar (por timidez, constrangimento ou por não ter conseguido fazer a entrevista), não insista. Mas, depois, particularmente, converse com ela(e) para saber a razão, a fim de poder ajudá-la(o) tanto a conseguir as informações como a se colocar, oportunamente, no grupo. 58 Caso algumas(uns) não tenham conseguido chegar aos antepassados mais remotos, parando em avós ou bisavós brasileiras, não tem importância. Coloque a marca no estado brasileiro de origem (com giz de outra cor, para diferenciar o movimento de migração externo do interno) e incentive que pesquisem mais quando puderem e tiverem oportunidade. Depois que todas(os) tiverem falado, peça que olhem para os cartazes e observem quantas nacionalidades diferentes têm ali, a variedade de comidas, músicas e expressões que coletaram. Pergunte se sabiam da origem das comidas citadas, por exemplo. Chame a atenção para o fato de como nós todas(os) nos apropriamos, sem nos darmos conta, de costumes originariamente típicos de algum outro grupo. Isso porque eles passam a ser corriqueiros em nossas vidas. Por exemplo, quem nunca comeu: • Cocada (herança africana); • Esfiha e Quibe (herança de sírios e libaneses); • Pizza (herança de italianos); • Bacalhau (herança de portugueses); • Torta de maçã (herança de alemães); • Churros (herança de espanhóis). Chame a atenção também para o fato de não haver nomes africanos nas famílias. A não ser que haja imigrantes recentes desse continente na sua turma, não se encontrarão sobrenomes africanos. Isso porque as(os) escravas(os) quando aqui chegavam não tinham direito de manter o seu próprio nome e, assim, recebiam um nome em português. Conte para as(os) estudantes algumas curiosidades sobre as influências de cada povo que formou a cultura brasileira. Você pode usar o flipchart ou alguns cartazes, organizando as informações que trazem essas influências (vê-las ao final desta oficina). E se? Se sua turma for de crianças, termine a oficina aqui, propondo que construam um painel com desenhos e recortes de revistas que expressem a diversidade da cultura brasileira que encontraram na pesquisa e que é fruto do legado de vários povos. Darcy Ribeiro e as raízes do povo brasileiro Continue a oficina para as(os) adolescentes e jovens, projetando para elas(es) o vídeo O Povo Brasileiro, com Darcy Ribeiro, reconhecido antropólogo brasileiro. Assista ao vídeo, que apresenta uma visão ampliada do legado das primeiras raízes do povo brasileiro (o índio, o europeu português e o negro). Considere, professora(or), a irreverência do antropólogo em algumas passagens do seu depoimento, dada à força de suas ideias e paixão, o que de forma alguma tira o brilho, a seriedade e a compreensão humana dos fatos passados. Para que saibam a importância de Darcy Ribeiro para a formação do pensamento brasileiro, projete antes um pequeno vídeo, de apenas seis minutos, da TV Senado, que traz um panorama de sua importante atuação em prol do país e da gente brasileira. 59 Assista aos vídeos: • Grande personagens: Darcy Ribeiro - Acesse em • O Povo Brasileiro (quarto vídeo de uma série de 10) - Acesse em Após a projeção dos vídeos, abra um debate sobre as impressões provocadas por eles: • Quais foram os impactos? • O que foi significativo? • Com o que concordam ou discordam? Por quê? Para finalizar o segundo encontro com as(os)adolescentes e jovens, proponha que construam um painel com desenhos e recortes de revistas que expressem a diversidade da cultura brasileira, consequência da participação de vários povos na vida do país. Terceiro encontro: sejam todas(os) bem-vindas(os)! Comece o último encontro projetando o vídeo da música Encontros e Despedidas, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Distribua a letra impressa para que as(os) estudantes acompanhem e cantem junto. Acesse em Após ouvir a canção, abra para os comentários: • Qual relação as(os) participantes veem com o assunto discutido há dois encontros? • O que quer dizer essa letra? Parece que ela define bem o movimento de ida e vinda das pessoas pelos lugares, em busca de algo importante para as suas vidas. É por isso que vemos gente entrando e saindo dos países a todo momento. Chame a atenção para o lugar onde está o cantor, próximo à Estátua da Liberdade, nos Estados Unidos, na Liberty Island, uma pequena ilha localizada perto da entrada do porto de Nova York. A estátua foi doada pelo governo francês, como presente de seu povo, para a comemoração do centenário da independência dos Estados Unidos e se tornou o símbolo da liberdade. Ao lado de Liberty Island há outra pequena ilha, a Ellis Island, que serviu de centro de triagem para os milhões de imigrantes que chegaram aos Estados Unidos no século XIX e início do século XX, de 1892 até 1954. Metade da população dos Estados Unidos tem alguma ligação com a Ellis Island. Lá, inclusive, existe o Museu da Imigração, que conta a história da imigração para os Estados Unidos e o papel de Nova York nessa história. Imigração em ritmo acelerado Como já se viu, o movimento da humanidade em busca de uma vida melhor sempre existiu e continuará a existir pelos quatro cantos do mundo. No entanto, em ritmo e número, nunca foi como atualmente, porque hoje os meios de transporte são muito mais rápidos, mais acessíveis. Já pensaram em quantas pessoas de outros países chegam todo dia ao Brasil e quantas(os) brasileiras(os) saem para outros locais? 60 É importante considerar que não se tem um número preciso da quantidade de imigrantes nem de emigrantes no Brasil e no mundo, em função da situação irregular de entrada ou de estada das pessoas nos lugares, o que as leva a não se pronunciarem muitas vezes, com receio de se exporem e serem deportadas. O que se tem são estimativas e, mesmo assim, encontram-se muitas vezes dados díspares entre os apresentados por instituições diferentes, em função da não declaração das pessoas, do aumento ou diminuição do fluxo de imigração em certos períodos de tempo (guerras, catástrofes, miséria) e, inclusive, da diferença de metodologia adotada por tais instituições para a obtenção desses dados. Combate à xenofobia e construção de um mundo solidário A possibilidade de ir e vir é um direito inalienável das pessoas, que deve ser amplamente respeitado. Neste sentido, é inadmissível a convivência com os maus-tratos muitas vezes dispensados às(aos) imigrantes, fruto da xenofobia. Pergunte às(aos) estudantes se já tinham ouvido falar sobre esse termo. Sabem o que significa? Xenofobia é um termo derivado do grego – xénos: “estrangeiro”; e phóbos: “medo”. Segundo o dicionário Houaiss, xenofobia significa desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estranhas ao meio daquele que as ajuíza, ou pelo que é incomum ou vem de fora do país. PARA APROFUNDAR Trata-se da intolerância ou discriminação a determinadas nacionalidades ou culturas, ou seja, a não aceitação das diferentes identidades culturais. A globalização facilitou os deslocamentos das pessoas pelo mundo para trabalhar, fazer turismo e migrar, na busca de melhores condições de vida, ou para obter refúgio de conflitos e guerras. Com as tecnologias da comunicação é possível, hoje, obter informações a respeito de diferentes lugares do mundo e, com os meios de transporte disponíveis, deslocar-se mais rapidamente de um lugar para o outro. Como consequência das migrações, ocorrem, inevitavelmente, encontros de diferentes culturas, raças, credos e religiões, o que certamente contribui para a riqueza cultural e econômica de uma nação. No entanto, muitas(os) nativas(os) acreditam que o seu povo e sua cultura são superiores ou que as(os) imigrantes são responsáveis pelo desemprego, criminalidade e todos os problemas sociais do seu país, o que não tem fundamentação pelos dados estatísticos. Temos como exemplo o Holocausto, ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, quando os nazistas exterminaram aproximadamente seis milhões de pessoas. Isso porque acreditavam que o povo judeu era uma raça inferior e manchava o nome da Alemanha de Hitler, e, logo, deveria ser exterminado. Atualmente, assistimos à xenofobia do governo estadunidense que atribui às(aos) estrangeiras(os), particularmente ao povo mexicano, a causa do desemprego no país, e por isso atua para restringir a entrada dessas(es) imigrantes nos USA, buscando construir, inclusive, um grande muro de separação com o México. Na verdade, as(os) imigrantes, quando se deslocam procurando uma vida melhor, não “roubam” empregos das(os) nativas(os) do país de destino, mas, ao contrário, assumem postos de trabalho rejeitados por elas(es), considerados como inferiores, menos nobres, pesados e disponíveis em lugares de difícil acesso. Ou, então, ao contrário, deslocam-se para suprir mão de obra qualificada necessária e inexistente em um determinado país, num momento da sua história. Por isso, é preciso 61 desmistificar tal concepção e acolher quem procura o que um dia nossos antepassados buscaram aqui: uma vida digna e melhor. No Brasil, o aumento do número de estrangeiros vem sendo acompanhado por certa oposição de parte da sociedade, particularmente por se tratar de imigrantes da própria América Latina, de países mais pobres que o nosso, como bolivianas(os) e haitianas(os), pelos motivos acima apontados. É importante lembrar que o Brasil é um país que foi construído por pessoas de todas as partes do mundo. Assim, não pode tratar as(os) imigrantes como caso de polícia. Por isso, em 2017, foi votada a nova Lei de Migração. A Lei nº 13.445/17 revoga o Estatuto do Estrangeiro (1980), do período militar, que se baseia no paradigma da segurança nacional, que considerava como ameaçadoras as pessoas vindas de fora do país. A nova Lei de Migração trata a(o) imigrante como sujeito de direitos e não como estrangeira(o). Além disso, a legislação migratória finalmente se adequa à Constituição Federal, que determina tratamento igualitário a brasileiras(os) e pessoas vindas de fora. Nesse sentido, a lei institui o repúdio à xenofobia, ao racismo e a outras formas de discriminação, além de garantir o acesso à políticas públicas. Essa luta vem de muitos anos e a lei foi conquista de uma ampla mobilização, que pressionou o Poder Legislativo e contou com a importante atuação de organizações da sociedade civil, como a Conectas Direitos Humanos, Missão Paz, Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS), Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e Cáritas Arquidiocesana de São Paulo. A Organização das Nações Unidas (ONU) também tem promovido várias ações na direção da aceitação das(os) imigrantes e refugiadas(os), no mundo todo, por parte dos países que as(os) recebem, assim como de iniciativas de solidariedade das cidades e países de destino no seu acolhimento, para ajudar a se inserirem na sociedade. Com base nisso, projete para as(os) estudantes o vídeo Cidades Solidárias, da Agência da ONU para Refugiados, que traz depoimentos importantes sobre o acolhimento a refugiadas(os) e imigrantes na América Latina e que desmistifica as razões apontadas para justificar a xenofobia. Acesse em Após a projeção do vídeo, abra o debate com as(os) estudantes: • O que pensam dessa iniciativa da ONU? • O que acharam dos depoimentos das(os) refugiadas(os)? • São pessoas muito diferentes de nós? • O que elas(es) querem? Em seguida, peça às(aos) participantes para construírem cartazes com frases estimulando uma nova postura da população em relação às(aos) imigrantes e refugiadas(os), escolhendo, juntos, os locais da instituição, para fixá-los. De volta à sala, em roda, oriente que, em duplas, as(os) participantes elejam três pontos que consideraram mais significativos em relação aos assuntos trabalhados nos encontros desta oficina. Depois de alguns minutos, abra para que socializem com o grupo. Hora de avaliar 62 Atividades extras Para as crianças: elas podem confeccionar a árvore genealógica da família. Podem também montar um jogo para compor diferentes árvores genealógicas, a partir de várias fotos e imagens de homens e mulheres de diferentes gerações, raças e etnias que você colocar num baú. Para as(os) adolescentes e jovens: um debate amplo e aberto à comunidade, com professoras(es) de História, Geografia e Filosofia, representantes de organizações da sociedade civil e movimentos organizados para discutir a situação de imigrantes e refugiadas(os) no país e no mundo: causas, ganhos, problemas, necessidades e conquistas de direitos. As(Os) estudantes podem, a partir daí, desencadear uma campanha na escola, na comunidade e nas redes virtuais, compartilhando o que aprenderam e movimentando o debate. Contribuições das(os) imigrantes para a cultura brasileira 1. Indígenas Alimentação: pipoca, mandioca, tapioca, beiju, pirão; Objetos: canoa, artefatos de cerâmica, gamela, rede; Costumes: banho diário; Lendas: curupira, saci-pererê, boitatá, iara (veja as lendas no blog indígena, em Vocabulário: açaí, abacaxi, aipim, arapuca, biboca, caiçara, caipira, caipora, capivara, cupuaçu, carioca, catapora, curumim, guaraná, guri, igarapé, ipê, jacaré, jabuticaba, jacarandá, jaguar, jerimum, jururu, maracanã, mutirão, pamonha, paçoca, perereca, pipoca, pirarucu, pitanga, sagui, samambaia, tapioca, tiririca, tucano, urubu (veja outras palavras no site da EBC – Empresa Brasil de Comunicação, em 2. Portugueses Língua Portuguesa; Alimentação: arroz doce, rabanada, bacalhoada, fios de ovos, pastel de Belém; Religião católica: procissões e festas (festa junina, folia de reis); Danças: fandango, cavalhada, farra do boi; Folclore: cuca, bicho-papão, lobisomem e jogos infantis, como as cantigas de roda (o cravo e a rosa, roda pião, peixe vivo); Literatura, pintura, escultura, música e arquitetura. Para ampliar 3. Africanos Alimentação: vatapá, acarajé, cocada, pé de moleque; Instrumentos de percussão: atabaque, cuíca, berimbau e afoxé; Danças: capoeira; maracatu, samba, coco, frevo; 63 Religião: candomblé, macumba; Lendas: Negrinho do pastoreio, Negro d’água, Negão do Caixão; Vocabulário: axé, afoxé, babá, babaca, bagunça, balangandãs, bamba, banguela, banzé, batuque, birita, borocoxô, búzios, caçamba, cachimbo, cafuné, farofa, fofoca, fubá, fuxico, fuzuê, bobó, moqueca, embalar, geringonça, gororoba, lambada, lero-lero, mamulengo, nenê, pinga, quindim, serelepe, tagarela, tribufu, urucubaca, xodó, zoeira (veja outras palavras no site da Geledés, em Vídeo: assista à lenda da criação do mundo e dos orixás, em 4. Italianos Alimentação: macarrão com molho de tomate, pizza, polenta, vinho, festa da uva; Vocabulário: bandolim, barcarola, camarim, caricatura, aquarela, maestro, serenata, sonata, soneto, soprano, tenor, trêmulo, trombone, violino, violoncelo, alarme, arlequim, artesão, bagatela, banquete, boletim. 5. Alemães Alimentação: torta de maçã, cuca, chopp e cerveja, festa da cerveja; Vocabulário: blitz, kitsch, diesel, encrenca, chique, valsa, chopp, níquel, cobalto, hamster, química, guerra, Kombi, fanta, apfelstrudel; Arquitetura. 6. Sírios e libaneses Alimentação: quibe, esfiha, tabule, limão, arroz, a plantação de uva e de figo, coalhada seca, kafta; Danças: dança do ventre; Costumes: pintura das unhas e olhos; Vocabulário: açafrão, açúcar, açougue, alecrim, alface, alvará, enxaqueca, elixir, escabeche, esmeralda, fulano, garrafa, gergelim, laranjeira, limão, magazine, matraca, oxalá, perigo, sorvete, salada, tapete, sofá, xadrez, xerife. 7. Japoneses Alimentação: soja, legumes e verduras, amendoim japonês, yakisoba, molho de soja, sushi, sashimi, saquê; Artes marciais e esportes: judô, karatê, aikidô, sumô, jiu-jítsu, beisebol; Religião: budismo; Vocabulário: shiatsu, tatame, karatê, karaokê, caqui, cabochá, tofu, aji-no-moto, shoyu, fuji, ofurô, origami. 64 8. Chineses Alimentação: arroz, peixe, carnes vermelhas, broto de bambu e legumes, rolinho primavera; Esportes: tai chi chuan; Medicina: acupuntura; Festas: celebração do Ano Novo Chinês (Praça da Liberdade – SP). Referências Cultura Brasileira: heranças de outros povos - Acesse em O que é xenofobia - Acesse em Migração internacional - Acesse em Nova Escola: Plano de aula Impactos Culturais da Imigração na Paisagem - Acesse em 65 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 9 Marujada: história e cultura viva • Vídeos e fotos de apresentações da Marujada. • Livros, mapas e textos sobre a história da expansão ultramarina dos europeus no século XVI. • Celulares para fotografar e gravar entrevistas. • Cadernos de anotações. • Tambores e outros instrumentos de percussão (caso a escola ou instituição não disponha de instrumentos, podem ser confeccionados com latas, garrafas de água e outros objetos reutilizáveis). • Tecidos, fitas coloridas e outros materiais para compor figurinos. • Conhecer e valorizar as manifestações da cultura local e tecer relações com os conteúdos do currículo escolar. • Relato do projeto Marujada, desenvolvido na Escola Municipal Maria da Conceição Ataíde, em Cocais do Alto, zona rural de Coronel Fabriciano (MG). Autoria: Projeto Sociocultural da EM Maria Conceição Ataíde. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Contextualizar as manifestações artísticas como produtos culturais de um lugar, de um povo e de uma época. • Conhecer e valorizar a diversidade cultural e linguística. • Compreender a simbologia presente nas danças, músicas e adereços típicos dessas manifestações. • Aprender a realizar uma entrevista e entender a história oral como metodologia de pesquisa sobre os eventos coletivos contemporâneos. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de leitura, sala de informática, e espaço aberto. • Aproximadamente 2 meses. Voltar para o sumário 66 Início de conversa Esta oficina se baseia no relato de experiências adquiridas no projeto Marujada. A ação foi desenvolvida na Escola Municipal Maria da Conceição Ataíde, em Cocais do Alto, zona rural de Coronel Fabriciano (MG). Trata-se de uma inspiração para educadoras(es) e escolas que desejam inserir a cultura popular local ao seu currículo. Assim, é importante conhecer e incorporar as manifestações presentes nos territórios e nas comunidades no entorno da escola. Lembramos que o objetivo é valorizar o repertório das(os) estudantes e promover o diálogo entre os saberes oriundos das culturas locais e os conhecimentos escolares. A Marujada, também conhecida como fandango, é uma dança típica das regiões Nordeste e Norte do Brasil, mas também é encontrada em outras regiões do país, assumindo, em cada qual, uma feição própria da cultura local. Constitui importante manifestação cultural, de caráter popular, do folclore brasileiro. Participam deste folguedo homens (geralmente com os instrumentos musicais), mulheres (geralmente nas danças e encenações) e também crianças (nas encenações). A coreografia é composta por movimentos que imitam o balanço das ondas do mar. A Marujada surgiu em Portugal, como comemoração às conquistas das terras encontradas por meio das navegações ultramarinas dos séculos XVI e XVII. Retrata a vida difícil dos marujos em relação às longas travessias oceânicas daquela época. Em terras brasileiras, sofreu algumas modificações e adaptações culturais, ficando desta forma um pouco diferente do fandango de Portugal. Pelo mesmo motivo, não são idênticas as Marujadas das diferentes regiões brasileiras. Assim, no Norte e Nordeste, a festa é realizada em homenagem a São Benedito, tendo se originado, no século XVIII, de um pedido das(os) escravizadas(os) aos seus senhores para formar uma irmandade em louvor ao santo. Em Minas Gerais e em São Paulo, a Marujada assumiu fortes laços com outra manifestação cultural, de cunho religioso: a Festa do Rosário, que acontece na época das festas juninas. Estes festejos também remontam ao século XVIII, com a formação das irmandades religiosas das(os) negras(os) que, na região, tinham em Nossa Senhora do Rosário a sua santa padroeira. Na prática Sugestão de encaminhamento Relato da experiência O projeto Marujada integra a proposta Patrimônio Cultural da Cidade, endossado no projeto político-pedagógico da Escola Municipal Maria da Conceição Ataíde. É uma ação desenvolvida com as(os) estudantes do 9º ano e envolve a disciplina de História e a oficina de percussão do programa de Educação Integral. A escolha dos projetos que abordam a preservação do patrimônio histórico é feita no início do ano e os planejamentos semanais das(os) professoras(es) garantem a articulação das atividades propostas. A Marujada é uma manifestação cultural muito antiga na comunidade, mas pouco conhecida em sua história e significado. Tem uma origem religiosa, herdada do povo português, mas, com o tempo, passou a constituir uma manifestação cultural popular, integrando-se às culturas locais de alguns lugares do país, como Minas Gerais e Bahia. 67 O projeto teve a duração de aproximadamente dois meses. Nesse período, as(os) alunas(os) entrevistaram as pessoas mais velhas do bairro, pesquisaram sobre a origem da Marujada e prepararam uma entrevista para ser realizada com o Mestre do Grupo local, que não pode comparecer no dia marcado, sendo substituído por dona Perpétua. Nesse processo, um dos alunos da turma ajudou bastante por pertencer, ele mesmo, ao grupo da comunidade. Aula de História e pesquisa de história oral Acompanhe uma aula de História, com o professor Ney Vitor, da EM Maria da Conceição Ataíde, na qual ele retoma os conceitos de patrimônio cultural material e imaterial com as(os) alunas(os), que entrevistam a senhora Perpétua, moradora da comunidade e participante da Marujada local, desde os 4 anos de idade. Acesse o vídeo em A tradição viva no corpo: oficina de percussão Veja, a seguir, a oficina de percussão, na qual o professor Natanael trabalha com as músicas do repertório dessa manifestação artística popular. Acesse o vídeo em Ao término da oficina de percussão, todas(os) saem em cortejo pela comunidade, aos sons dos tambores tocados pelas(os) próprias(os) alunas(os), vestidas(os) conforme o ritual. Ao término do cortejo pelo bairro, finalizado em frente à igreja local, as(os) professoras(es) reuniram as(os) alunas(os) para fazer uma avaliação do projeto, identificando as aprendizagens realizadas, as impressões causadas e se acharam que valeu a pena. O que dizem os professores sobre o projeto? “A gente sempre faz um trabalho com a escola. Na minha parte, da percussão, sempre começo com a história, para a(o) aluna(o) entender de onde vem e o porquê daquilo que a gente vai passar”, afirma o professor de música Natanael Mariano. “Como professor de História, busco despertar a consciência crítica e o resgate das tradições. O objetivo é a formação humana, a sociabilidade e o aspecto comunitário por meio do resgate da tradição”, diz Ney Vitor Araújo Aguero. Assista ao vídeo com os depoimentos dos professores Natanael Mariano e Ney Vitor Araújo Aguero em E a gestora da escola? “O que aproxima a(o) aluna(o) da escola é conhecer a realidade, a cultura dessa(e) aluna(o)”, afirma Ludovina Drummond Lage Arruda. Assista ao vídeo com o depoimento da gestora em Referências O que é história oral (FGV/CPDOC) - Acesse em O que é Marujada? (Sua Pesquisa) - Acesse em Hora de avaliar Para ampliar 68

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Arte e cultura

Educar com arte, ensinar com cultura

Arte e cultura ajudam as(os) estudantes a ver, sentir e criar o mundo. Aqui você encontra oficinas para trabalhar essa temática, da Educação Infantil ao Ensino Médio.

1 Educar com arte, ensinar com cultura Oficinas para ampliar repertórios e afirmar identidades 2 3 A arte, em suas múltiplas expressões, é um poderoso caminho para o desenvolvimento integral das(os) estudantes. Ao entrar em contato com diferentes linguagens artísticas e manifestações culturais, elas(es) ampliam seus repertórios, constroem novas formas de ver e sentir o mundo e afirmam suas identidades. É com essa perspectiva que organizamos este conjunto de oficinas temáticas sobre Arte e Cultura, voltadas à Educação Infantil, aos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta as informações essenciais para sua realização: os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado e a duração estimada. Mais do que uma receita pronta, esses roteiros buscam ser convites abertos à experimentação, permitindo que cada educadora e educador adapte e enriqueça as atividades conforme as singularidades de sua turma e de seu território. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no chão da escola, construídas em diálogo com a comunidade escolar, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade cultural brasileira. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, 4 SUMÁRIO Oficina 1 - É hora de fogueira, paçoca e quadrilha! 5 Oficina 2 - Histórias nas dobras de papel 11 Oficina 3 - “O filho do vento”, uma lenda africana para crianças 18 Oficina 4 - Brincadeiras indígenas do Xingu 25 Oficina 5 - Essa folia tem história(s)! 30 Oficina 6 - Rap e letramento 36 Oficina 7 - A cultura indígena dançada e cantada 41 Oficina 8 - Atletismo, o esporte mais antigo 46 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 É hora de fogueira, paçoca e quadrilha! • Papéis coloridos. • Canetas hidrográficas. • Alimentos típicos de festas juninas. • Roupas de festas juninas. • Seleção de canções de festas juninas. • Aparelho de som ou computador, notebook ou celular conectado à caixa de som. • Fortalecer os vínculos e a organização do grupo e levá-lo a conhecer um tipo de manifestação cultural brasileira de dança folclórica. • Perceber a importância do movimento coordenado na execução da dança folclórica. • Oficina que articula a percepção das características da festa junina com a montagem da quadrilha como dança coletiva. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Valorizar uma manifestação cultural típica brasileira. • Promover o encontro e a celebração coletiva. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Ambiente aberto ou sala da instituição. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 6 Junho é tempo de festa junina! Essa celebração de origem pagã, segundo historiadoras(es), marcava o solstício de verão no hemisfério Norte, ou seja, a passagem da primavera para o verão. As festividades eram vistas como uma forma de afastar pragas e maus espíritos que pudessem causar danos às plantações. No hemisfério Sul, junho é o início do inverno, e a origem agrária e pagã da data foi sendo apagada com sua incorporação pela religião cristã. Assim, passou-se a relacionar as brincadeiras juninas a figuras importantes do Catolicismo: Santo Antônio (dia 13/06), São João (dia 24/06) e São Pedro (dia 29/06). No Brasil, a festa junina, muito popular na Península Ibérica (Portugal e Espanha), remonta ao século XVI, trazida pelos colonizadores. No início, a celebração era conhecida como festa joanina, em referência a São João, mas, com o tempo, passou a ser chamada de festa junina, em referência ao mês em que acontece (Junho). Aqui, ganharam cores, sabores e sonoridades próprias, por influência dos povos indígenas e africanos. Popular em todo o país, as festas juninas são caracterizadas por muitas comidas, bebidas, brincadeiras, costumes, músicas e danças, com variações de acordo com a região. Jules Breton, The Feast of Saint John, 1875/Wikipédia Menina em festa junina em Belo Horizonte (MG). Foto: Eduardo Coutinho/Wikipédia Início de conversa Na culinária, o milho é base de diversos quitutes juninos: a canjica, no Nordeste, chamada de curau no Sudeste, e a canjica sudestina, conhecida como mungunzá nos estados nordestinos. Há também a pamonha, doce ou salgada, encontrada em quase todo o Brasil. Os pratos preparados com mandioca (aipim ou macaxeira), batata doce, inhame e amendoim são marcantes, além dos clássicos quentão e vinho quente. Cores fortes, alegres, estampas florais, xadrez, quadriculadas, fitas, tecidos de chita e flanela marcam a decoração e o figurino das(os) brin- 7 cantes. Simpatias e brincadeiras de amor, como a barraca do beijo e o correio elegante, animam a celebração. Entre as danças, há manifestações diversas de acordo com a localidade. Na região Norte, no Amazonas e no Pará, e na região Nordeste, no Maranhão, se destaca a brincadeira do bumba meu boi, ou boi-bumbá, com seus vários “sotaques”, ou seja, formas diferenciadas de brincar o boi (sotaque de matraca, de zabumba, da ilha) e seus diversos personagens. No Nordeste, a ciranda, o xaxado, o xote e o baião são ritmos bastante populares nos festejos juninos. Enquanto no Centro-Oeste, há uma forte influência das tradições dos países da fronteira, especialmente o Paraguai. Além da quadrilha tradicional, dança-se o cururu, onde violeiros se desafiam com rimas em uma roda dançante. Já a região Sul se destaca pelas roupas típicas (o vestido de prenda rodado, bombacha e o lenço no pescoço), os ritmos vaneirão, chamamé e xote gaúcho, além da tradicional dança das fitas. “Olha a chuva! É mentira…” Quem nunca ouviu essa frase que marca a dança da quadrilha? Uma das manifestações mais conhecidas das festas juninas se espalhou por diversas regiões brasileiras, ganhando referências caipiras e matutas. Mas você sabia que sua origem remonta à aristocracia francesa? Bumba meu boi, Maranhão, Foto: Wikipédia Passo L’été (“verão”), da quadrille, c. 1820. Gravura de Lebas/Wikipédia De acordo com a publicação de Bruna Ramos, no Portal EBC: “A ‘quadrille’ surgiu em Paris, no século XVIII, como uma dança de salão composta por quatro casais. Era dançada pela elite europeia e veio para o Brasil durante o período da Regência (por volta de 1830), onde era febre no ambiente aristocrático. Da Corte carioca, a quadrilha acabou caindo no gosto do povo. Ao longo do século XIX, a dança se popularizou no Brasil e se fundiu com manifestações brasileiras preexistentes. ‘O brasileiro é um povo muito criativo e criou a forma estilizada de dançar a dança dos nobres’, opina a arte-educadora Lucinaide Pinheiro. A partir daí, diversas evoluções foram sendo incorporadas à quadrilha, entre elas o aumento do número de pares dançantes e o abandono de passos e ritmos franceses. As músicas e o ca- 8 Na prática Sugestão de encaminhamento samento caipira que antecede a dança, também foram novidades incorporadas ao longo dos anos.” Em contato com outros ritmos presentes no Brasil, essa dança se transformou, recebendo muitas variantes e denominações de acordo com a localidade. Por exemplo: • Quadrilha (São Paulo, Minas Gerais, Sergipe); • Saruê, do termo francês soirée, que significa “noite” (Centro-Oeste); • Baile sifilítico (Bahia); • Mana-Chica (Rio de Janeiro). Que tal a gente organizar uma festa junina? Agrupe a turma e abra uma conversa sobre o tema. Pergunte: “O que é necessário para se fazer uma festa junina”? Anote em um cartaz os palpites e as lembranças. Combine com as crianças os preparativos e marque o dia para celebrarem uma festa junina. Se possível, peça ajuda da comunidade. Marque o dia para os preparativos, a saber: • Enfeitar o ambiente com adereços (bandeirinhas, balões, chapéus de palha etc.); • Compartilhar alimentos típicos de um arraial (pé de moleque, paçoquinha, pipoca, pinhão etc.); • Selecionar com a turma músicas que gostem de ouvir e dançar numa festa junina. Quando tudo estiver pronto, é hora de festejar! Reúna todo mundo para compartilhar este momento. Aproveite a eventual presença de familiares das crianças na atividade e estimule que perguntem às(aos) adultas(os) sobre suas memórias juninas: • Que brincadeiras gostavam de fazer nessa festa? • Quais eram os objetos e símbolos presentes? • Que roupas costumavam usar? • E as comidas, bebidas? • E como eram as danças e músicas? Alguém se lembra de alguma e quer cantarolar? A seguir, conduza o grupo a se organizar em torno da quadrilha, sem anunciá-la, com as seguintes comandas: • Caminhem pelo espaço; • Formem 4 grupos em 10 segundos. Vou começar a contagem regressiva: 10, 09 ,08,…; 9 • Agora, formem duas filas; • Façam duas rodas, uma dentro da outra; • Agora uma grande roda; • Cada um pegue o seu par! Vamos dançar a quadrilha! Se as crianças não tiverem familiaridade com a quadrilha, provavelmente não terão desenvoltura para formar os pares e executar os movimentos da dança. Nesse caso, você e outra pessoa podem demonstrar os passos e as etapas da dança. Não deve haver preocupação com a perfeição porque o objetivo é as crianças perceberem a importância da coordenação e do movimento coletivo. Com o grupo preparado, coloque uma música de quadrilha e conduza a dança obedecendo as comandas típicas. Coordene a quadrilha para o momento final, a cena do casamento caipira. Chame os personagens (o padre, os pais da noiva e do noivo, um delegado), organize a cena e finalize a dança. Atividade extra As crianças ainda podem: • Fazer pesquisas sobre a origem da festa junina; • Pesquisar as diversas manifestações da festividade de acordo com a região do país; • Entrevistar familiares com a finalidade de conhecer como comemoravam esta festa: quais as suas lembranças destes eventos ou curiosidades ocorridas nesta época que marcaram suas vidas. Festa junina na web EBC: Saiba de onde vem a quadrilha, dança típica das festas juninas. EBC: Festas juninas surgiram na Europa com o nome de “joaninas”. Acesse em BBC: Festa Junina: a origem da celebração pagã que virou religiosa e ‘caipira’ no Brasil. Danças típicas: região Centro-Oeste. Hora de avaliar Para ampliar Depois da vivência da dança, será importante conversar com as crianças sobre o que elas sentiram enquanto se organizavam para a quadrilha, suas impressões sobre os passos e as comandas, e o que elas acham que poderia ter sido diferente. Registre suas falas. Não deixe de concluir a oficina ressaltando a importância do respeito de uma criança pela outra para que o trabalho coletivo aconteça e para que todas possam perceber que a dança só dá certo se todas as crianças se empenharem e estiverem bem coordenadas. 10 Danças típicas – região Sul. Acesse em Brincantes e brincadeiras com o bumba-meu-boi do Maranhão. Acesse em Festa de São João em Caruaru (PE). Acesse em Festa junina da Rua São João, Lontra (MG). 11 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 2 Histórias nas dobras de papel • Para escrita: lápis, caderno e computador. • Para leitura: livros de todos os tipos e dicionário. • Para origami: papel sulfite, color set, color plus, kraft, papel espelho, dobradura ou gessado (com as faces de cores diferentes, para adultos iniciantes e crianças) e outros. • Promover o gosto pela leitura e a produção textual de forma lúdica e criativa. • Oficina de origami (dobradura em papel) e criação textual. Autora da oficina: Tereza Yamashita, escritora, artista gráfica, origamista e ceramista. Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Expandir as percepções, potencializando as habilidades de observação, imaginação, criação e experimentação, tanto com o uso das imagens como com o das palavras. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 2 a 5 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 12 “A fantasia, a invenção, a criatividade pensam, a imaginação vê.” Fayga Ostrower Início de conversa Ler um livro ou ouvir uma história é como pegar uma carona numa bicicleta, num trem, num ônibus, num transatlântico ou mesmo num foguete mágico. A narrativa pode levar a uma maravilhosa aventura, uma viagem ao mundo insólito da imaginação. Nessa viagem, a(o) leitora(or) encontrará personagens que a(o) encantarão. Serão seus heróis e heroínas, amigos e amigas eternas… Ou quem sabe ela(e) tomará a vilã ou o vilão como seu personagem preferido? Agora, imagine se um desses personagens tomar forma em suas próprias mãos? Magia? Sim! Com o origami, isso pode acontecer. “Como?”, você, professora(or), me perguntará. Eu respondo: simplesmente dobrando um papel quadrado e soltando a criatividade. Relato agora um pouco da minha experiência com origami. Sou escritora infantojuvenil e, em meus lançamentos, eu sempre faço uma atividade com as(os) convidadas(os). Durante o evento, conto um pouco sobre a obra e convido todas(os) a dobrarem comigo um personagem ou um elemento do cenário. As crianças adoram dobrar, principalmente os personagens animais. Enquanto o papel quadrado e sem graça vai sendo dobrado, percebo em seus olhinhos euforia, interrogação e curiosidade. No início, elas não conseguem visualizar o que estão dobrando, mas, dobra após dobra, começam a descobrir e a entender o que está acontecendo. E, como num passe de mágica, surge em suas mãos um personagem real, vindo diretamente da história, das páginas do livro! Com ele poderão brincar, contando, recontando, criando e reinventando a história que leram. Segundo Fayga Ostrower: “De fato, criar e viver se interligam… O homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando.” Dobrando histórias Por meio das atividades artísticas, temos uma ótima oportunidade para expandir as percepções, potencializando as habilidades de observação, imaginação, criação e experimentação, tanto com o uso das imagens como com o das palavras. Esses são os primeiros passos para uma viagem criativa ao mundo da escrita e das artes, tendo como recurso de sensibilização a arte de dobrar o papel, o origami. Origami: do janonês, ori (dobrar) + kami (papel). Essa arte secular encanta crianças, jovens e adultos, por ser uma atividade divertida, relaxante e um ótimo estímulo criativo. Sem perceber, as(os) alunas(os) estarão treinando a coordenação motora fina, a atenção, cultivando a paciência e a perseverança, desenvolvendo a percepção espacial. Ludicamente, por meio de uma simples folha de papel, começam 13 a tomar conhecimento de uma parte importante da Matemática, a Geometria. O origami é feito basicamente com os formatos básicos: quadrado, retângulo e triângulo. A folha, que era plana, se transforma em um objeto tridimensional. Magia? Não? Pura Matemática! O objetivo de qualquer atividade com origami é potencializar a criatividade, no simples ato de escrever, dobrar, desenhar e contar uma história. A proposta aqui é começar pelo fim e terminar no começo, experimentar: dobrar, desdobrar ou desenhar para criar os personagens, o cenário e depois contar a sua história. Segundo Mario Vargas Llosa: “A raiz de todas as histórias está na experiência de quem as inventa; o que se viveu é a fonte que irriga a imaginação.” Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Muitas vezes, as crianças ou mesmo as(os) professoras(es) acham que nunca fizeram um origami/dobradura. Mas, quando você pergunta se elas(es) já dobraram um aviãozinho de papel, um barquinho, uma capucheta/pipa simples de jornal, todas(os) levantam a mão. Esses exemplos são de dobraduras, mas, como são tão corriqueiros em nossas vidas, nem percebemos. Ao dobrarmos um guardanapo de papel, ou mesmo de pano, estamos fazendo uma dobradura. Quando dobramos uma folha para fazer um cartão de Natal, de aniversário ou mesmo uma carta, uma roupa, um lençol, também estamos praticando a dobradura. Antes de iniciar um origami, é importante fazer uma roda de conversa com as crianças para levantar os conhecimentos prévios da turma. Você pode estimular o bate-papo com algumas questões: • Que tipos de papel vocês têm em casa? A maioria com certeza vai responder que é o sulfite, ou citar o nome de alguma marca conhecida. Outras(os) dirão: de blocos, de caderno, de presente, jornal e até mesmo papel higiênico. Assim, podemos ensinar que todos esses papéis podem ser dobrados, inclusive o papel higiênico (em hotéis do Japão, usa-se a dobradura na ponta do rolo de papel, para impressionar as(os) hóspedes e embelezar o banheiro, como também dobraduras em toalhas, de animais estilizados, tão na moda atualmente); • Que livros vocês têm em casa? Quais já leram ou quem leu para vocês? Perguntas dessa natureza ajudam a levantar os conhecimentos literários das crianças. Estimule-as a lembrar e contar um pouco dos livros que já leram ou que já ouviram. Caso não possuam livros em casa, aproveite a ocasião para organizar com a turma uma visita à biblioteca da escola ou da comunidade. Faça uma lista de livros indicados e ajude-as na escolha das obras, observando os interesses de cada criança. Você também pode incentivar o empréstimo de livros entre a turma; • Quem tem animais de estimação em casa? Quais? Como eles se chamam? Como eles se comportam com vocês: são brincalhões, tranquilos, agitados? Com essa conversa, ajude as crianças a notar as diferenças físicas e comportamentais entre os animais: como é a orelha do seu gato? E do seu cachorro? E como é o focinho deles? Qual é a cor do seu peixinho? Como ele se movimenta na água? etc. Assim, procure inspirá-las a representar seus bichinhos preferidos por meio de dobraduras alegres e coloridas. 14 Algumas ideias “Todo origami começa quando colocamos as mãos em movimento. Há uma grande diferença entre compreender alguma coisa através da mente e conhecer a mesma coisa através do tato.” Tomoko Fuse A seguir, apresentamos algumas sugestões de atividades com crianças da Educação Infantil (0 a 3 anos e de 4 a 6 anos) e dos anos iniciais do Ensino Fundamental (6 a 10 anos). Antes, vale uma observação sobre a principal matéria-prima do origami: o papel. Muitas(os) acreditam que só é possível fazer origami com papéis específicos para dobradura, vendidos em papelarias especializadas. É claro que as dobraduras ficarão mais bonitas com papéis coloridos e com texturas e gramaturas diferentes. Mas, felizmente, a falta desses materiais não impede a prática do origami. Podemos usar qualquer papel, dependendo da dobradura. Mas, para os origamis mais simples, de nível básico, e com as crianças, podemos utilizar o papel sulfite, tão usado nas escolas. Podemos também reutilizar papéis de revista, de presente, folhas escritas e até de jornal. Assim começamos a cultivar nas crianças a importância da sustentabilidade, divulgando o conceito dos 3 Rs: Reduzir, Reaproveitar e Reciclar. Educação Infantil, para crianças de 0 a 3 anos e de 4 a 6 anos Podemos introduzir o origami/dobradura para as crianças menores de uma forma bem lúdica e engraçada. Por exemplo, apenas manipulando o papel: amassando, torcendo, rasgando ou picando. É com base nesses movimentos que a criança começa a ter consciência do seu próprio corpo, do próprio ritmo, do controle de suas ações, estimulando as funções psicomotoras de coordenação. Exemplificando: no livro A família Fermento contra o supervírus de computador (Luiz Brás e Tereza Yamashita. Atual, 2008), a ilustradora caracterizou um dos personagens, o supervírus, como uma bola vermelha (foto ao lado). A atividade consiste em amassar dois papéis: um branco, formando a primeira bola de papel, e outro colorido, envolvendo a bola formada. Decoramos com olhos, nariz, pernas, orelhas, rabo, dentes etc. Também podemos pintar, fazendo manchas ou texturas no papel. Aqui é possível um diálogo com outras disciplinas (interdisciplinaridade), por exemplo, com as Ciências da Natureza e a Matemática: • O vírus monstrinho pode ter três olhos, cinco pernas! • O ser humano tem quantas pernas, quantos olhos? Nessa atividade podemos utilizar uma história com monstros, ou a(o) professora(or) pode fazer primeiro o monstrinho com as crianças, e depois inventar uma história de acordo com as ideias que partirem delas. Foto: Tereza Yamashita 15 Anos iniciais do Ensino Fundamental, para crianças de 6 a 10 anos Para crianças dessa faixa etária, já podemos ensinar o origami com as dobras de nível básico e intermediário. Exemplo abaixo: dobrar um chapéu de samurai que se transforma em peixe. Na ilustração a seguir, um poema foi criado. A atividade consiste em contar uma história e ao mesmo tempo ir dobrando os origamis. Deixe a imaginação correr solta. Assim, outras histórias ou poemas poderão ser escritos com base nos origamis: de chapéu, peixe ou barquinho (ao lado, o passo a passo da dobradura). 16 Outras ideias • Criar um cenário com base nos origamis e no poema. Utilizar o chapéu e fazer com que a criança imagine como é fisicamente o personagem (alto, baixo, magro etc.) que usa esse chapéu. Mudar o foco narrativo: da terceira para primeira pessoa (o narrador sendo um dos personagens); • A(O) professora(or) pode usar o kabuto (chapéu japonês) para introduzir um pouco da história e da geografia do Japão (samurais, cultura oriental); • Contar outras histórias de heróis, como os gregos Hércules, Ulisses e Aquiles, personagens dos épicos Ilíada e Odisseia; ou de outras culturas, como Zumbi e Dandara, símbolos da resistência africana contra a escravidão no Brasil; I-Juca Pirama, herói indígena do poema de Gonçalves Dias, e Iracema, protagonista do romance homônimo de José de Alencar etc; • Usar as dobras (quadrado, retângulo, triângulo, simetria, forma plana e tridimensional) para ensinar a geometria plana e espacial. A(O) professora(or) pode usar a sequência de dobras para apresentar as formas geométricas. Usar os elementos gráficos para criar personagens; • Introduzir o dicionário na aula. Saber o significado de novas palavras vai ajudar as crianças com a qualidade dos textos. Com esse exercício, o vocabulário e a qualidade dos textos aumentarão; • Montar um livrinho de origami com os poemas criados e com os próprios origamis. Se preferir, apenas faça com que as crianças copiem poemas (elas podem escolher os poemas preferidos), assim elas fixarão a grafia correta das palavras. Você pode organizar também, junto com as crianças, uma exposição (presencial ou remota) para que a escola e as famílias possam apreciar as produções (origamis e poemas) da turma (abaixo, o diagrama do livrinho de origami). 17 Expectativas de aprendizagem Com essas sugestões de atividades, pretendo, em primeiro lugar, promover a criatividade e a imaginação, o hábito da escrita e da leitura. Por meio do origami e da leitura, procuro estimular as crianças a observar mais os detalhes da vida, da natureza, dos animais, dos objetos. Esses pequenos detalhes são imprescindíveis para escrever, dobrar, desenhar, enfim, criar. Além disso, essas atividades estimulam as crianças a cultivar a paciência, a persistência, a concentração e o foco. Acredito que, se essas ações forem cultivadas, os benefícios alcançados tanto na leitura como na escrita serão excepcionais. Ler e escrever são experiências imperdíveis, assim como desenhar e dobrar. Em japonês, a palavra ganbatte significa: esforçar-se, dar o melhor de si e nunca desistir. Que o tsuru (grou), ave símbolo da longevidade e da paz, acompanhe vocês em todos os momentos. Tsuru. Foto: Wikipédia Mais sobre a autora Tereza Yamashita Em 2013 publiquei o livro Mãos mágicas, pela SESI-SP Editora, e com ele ganhei o 58º Prêmio Jabuti, na categoria Livro Digital. Na história acompanhamos a aventura dos irmãos Quadradinha de Papel e Fininho de Papel, e o espírito do origami está por toda parte. A técnica permite transformar o papel em mil coisas: animais, flores e objetos do cotidiano. Gosto de pensar que o ser humano, da mesma forma, também pode se transformar, se dobrar, se desdobrar, modificar, crescer, evoluir, aprender a conviver com medos e frustrações, e também a perceber que a vida pode ser bem divertida, com muita arte. Tereza Yamashita no YouTube A escritora e ilustradora Tereza Yamashita ensina a fazer origamis. Vídeo transmitido no IX Fliaraxá. Hora de avaliar Para ampliar 18 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 “O filho do vento”, uma lenda africana para crianças • Livro O filho do vento, de Rogério Andrade Barbosa (2ª ed. São Paulo, 2013). • Datashow com acesso à internet. • Almofadas (cada participante pode trazer a sua). • Outros livros infantis com personagens negros (veja sugestões ao final desta oficina). • Papel de seda de várias cores (pelo menos duas). • Duas varetas de bambu com 50 cm de comprimento e 3 mm de espessura. • Cola branca. • Tesoura sem ponta. • Barbante da espessura aproximada à de uma linha de carretel nº 10. • Conhecer um pouco da cultura africana. • Aproximar-se de outras formas de viver e compreender o mundo. • Entrar em contato com histórias que apresentam personagens negros, fugindo ao modelo do branco, europeu, estereotipado. • Contação de história sobre uma lenda africana. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Valorizar e respeitar a cultura africana e outras culturas, e aprender com elas valores comuns a toda a humanidade. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de atividades ou sala de informática. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 19 Início de conversa A escola, desde a Educação Infantil, tem como uma de suas responsabilidades desenvolver o respeito à diversidade. Para isso, deve estimular cotidianamente essa atitude entre as crianças por meio de situações de convivência e de solidariedade. Uma das possibilidades de desenvolver o respeito às diferentes origens das crianças é incluir, nas atividades de leitura da sala de aula, histórias vividas por representantes de variados grupos étnicos, desempenhando os mais diversos papéis. Conhecer a cultura de diferentes povos, suas histórias atuais e de tempos antigos ajuda as crianças a obterem variadas respostas às questões sobre o mundo que as cerca, seja de ordem social, seja natural. Há diversas explicações sobre o mundo que nos rodeia. O papel da explicação científica é desmistificar os seus mistérios; já as lendas e os mitos, que dão outros tipos de explicações, situam-se no campo da religião e da literatura, mas não são menos importantes. O que é mito? Assista a um trecho do documentário O poder do mito, com o mitólogo Joseph Campbell e o jornalista Bill Moyers, 1988. Acesse em PARA APROFUNDAR Mitos, cultura e educação étnico-racial A leitura de mitos tem a intenção de promover o conhecimento da produção cultural de um povo e valorizá-la. Ao estudarmos determinada cultura, nos aproximamos dela e, em vez de discriminá-la, passamos a compreendê-la e respeitá-la. O preconceito provém da falta de conhecimento e de respeito com uma dada cultura. A criança não nasce preconceituosa, ela aprende a ser preconceituosa com as atitudes das(os) adultas(os) com as(os) quais convive. A discriminação racial e étnica é uma construção social, tem origem histórica baseada na dominação de um povo que se impõe ao outro, que nega a cultura do dominado. No Brasil, foram mais de 300 anos de dominação do povo negro com a escravidão, do século XVI ao século XIX. Os africanos eram considerados seres inferiores e selvagens, pelos colonizadores. Para garantir sua supremacia, os dominadores disseminavam ideias que os desqualificavam e que eram reproduzidas de geração para geração. Assim, as(os) negras(os), desde essa época, vêm sofrendo o efeito da negação de sua cultura, pagando com a própria vida, muitas vezes, o preconceito irracional do branco. É preciso considerar que o Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta, acima de outros países africanos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2016, 54,9% das(os) brasileiras(os) se declararam pretas(os) e pardas(os), ou seja, a maioria da população. 20 As(Os) negras(os) sempre lutaram pela sua liberdade e igualdade de direitos. Um exemplo dessa luta foi a criação dos quilombos, comunidades negras formadas por escravas(os) fugitivas(os) dos engenhos de açúcar, no Brasil colonial. Entre eles, destaca-se o conhecido Quilombo de Palmares, que durou cerca de 140 anos e chegou a abrigar mais de 20 mil pessoas. Antônio Parreira, Zumbi dos Palmares, 1927. Acervo do Museu Antonio Parreiras, Niterói (RJ) A luta das(os) negras(os) pela sua emancipação e igualdade com as(os) brancas(os) nunca parou. A organização que conquistaram para reivindicar pelos seus direitos, na história do país, tem sido responsável por algumas importantes vitórias, como: • Criação do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra; • Estabelecimento, em 2003, do dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra (data em que, em 1695, foi assassinado Zumbi, líder do Quilombo de Palmares); • Criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2003, pelo Governo Federal; • Aprovação da Lei 10.639/03, que deixa clara a exigência “para o Ensino Fundamental e Médio, do “[…] estudo da História da África e dos Africanos, a luta das(os) negras(os) no Brasil, a cultura negra brasileira e a(o) negra(o) na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil, indicando que o assunto deve ser incluído como conteúdo das áreas de Educação Artística e de Literatura e História brasileiras; • Instituição do Estatuto da Igualdade Racial pela Lei nº 12.288/10; • Criação das cotas para ingresso no Ensino Superior pela Lei 12.711/12; • Criação das cotas para negras(os) no serviço público federal pela Lei 12.999/14. Ao lado de outras lutas, a população negra conseguiu transformar algumas condições da realidade, mas ainda há muito o que fazer para conquistarem, de fato, a igualdade de direitos entre os diversos grupos étnico-raciais que compõem a sociedade. 21 Na prática Sugestão de encaminhamento Compartilhando a história do livro “O filho do vento” Inicie uma conversa com as crianças sobre como está o tempo nesse dia: Frio? Calor? Chuva? Tem vento? Ventania? Ou o ar parece parado? Deixe que falem, comentem… Continue: Quando venta, o que o vento faz? (Imite junto com eles o barulho do vento…) Já presenciaram um vento forte alguma vez? Na cidade, na zona rural, na praia? Como foi? Hum… que tal uma história sobre vento e ventania? Ilustração e capa do livro “O filho do vento” Convide as crianças a se acomodarem nas almofadas para ouvirem você ler a história do livro O filho do vento para elas. Mostre a capa, fale quem é o autor, folheie as páginas para que observem atentamente as ilustrações e leia com bastante expressão, parando em alguns momentos, para que façam alguns comentários e imaginem o que virá em seguida… Acesse o vídeo do livro em formato de animação, em Nele, a história é contada em dois blocos, com um intervalo pequeno. Você pode deixar correr o vídeo (há algumas cenas de crianças imitando o vento, no intervalo) ou passar de um bloco para outro, direto. O primeiro bloco termina aos 9min 29s do vídeo e o segundo começa aos 11 min. Ao fim do primeiro bloco, converse com as crianças sobre a história contada até então: 22 • Estão gostando? • Como são os personagens? • O que acham que vai acontecer no segundo bloco? Roda de conversa Ao término da história, abra a roda para comentários. Pergunte se gostaram da lenda, quais os aspectos mais chamaram sua atenção e se sabem por que chamamos essa história de lenda. Fique atenta(o) para que todas as crianças possam se expressar. Estimule as mais tímidas e cuide para que a fala de cada uma seja respeitada, sem interrupções. Esperar a vez de falar, bem como acolher a opinião alheia são atitudes que se aprendem. Explique que lenda é uma narrativa que se transmite oralmente, de geração a geração, para explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais, misturando fatos reais com imaginários ou fantasiosos, e que vão se modificando através do imaginário popular. Pergunte se conhecem outras lendas. Enumere algumas lendas brasileiras originárias dos indígenas, como, por exemplo, a da Iara (mãe d’água), do boto cor de rosa, do Uirapuru, do Curupira e algumas de origem africana, como o Negrinho do Pastoreio, o Chibamba e o Quibungo (ambos assustam as crianças que desobedecem e não querem dormir cedo). Mostre os outros livros de lenda africana que você conseguiu disponibilizar, leia os títulos e distribua para que levem para casa para ler com a família. A seguir, retome com as crianças o assunto da oficina do dia: uma lenda tipicamente africana, que explica o fenômeno dos ventos e dos vendavais. Considere que se às vezes o vento é perigoso, outras vezes ele é muito bem-vindo. Em que situações isso acontece? Deixe que falem… Pergunte às crianças quais brincadeiras conhecem que precisam de vento para acontecer. Certamente alguém fará referência a empinar pipas/papagaios/pandorgas/quadrados/arraias. Sem vento, não dá não… Do livro à brincadeira Convide as crianças, então, a construírem pipas para brincar no pátio, ou em outro espaço, desde que o terreno seja regular e não haja fios de eletricidade e nem passem animais, carros, bicicletas ou motos. Pergunte se gostariam. Combine: quem sabe, ensina a quem não sabe. Veja abaixo orientações para a construção da pipa: 23 1- Divida o papel ao meio. De uma das metades, faça um quadrado exato para o corpo da pipa. Com as sobras do papel, ou outro, faça tiras de 4 cm (largura) para as barbatanas, e cole-as; 2- Cole uma das varetas na diagonal do quadrado. Deixe três dedos de sobra na ponta da vareta que fica no meio das barbatanas. Será o lado inferior da pipa; 3- Enrole o barbante em uma das duas pontas da segunda vareta, envergando a vareta para que se curve até ficar com o mesmo comprimento da diagonal da pipa. Prenda na outra ponta e passe cola na vareta; 4- Grude o arco que a linha e a vareta formaram na folha de seda; 5- Faça dois pequenos furos no papel no ponto onde as varetas se cruzam. Passe um barbante de modo que atravesse o papel pelo cruzamento das varetas. Depois, dê um nó na parte da frente, mas não corte o barbante; 6- Segurando o barbante, estique-o para o lado até chegar a quatro dedos de distância do fim da vareta envergada. Agora, estique para baixo até a ponta da outra vareta. Isto é só para fazer a medida, formando uma “barriga”; 7- Quando o barbante chegar à parte de baixo da vareta, amarre-o com cuidado e corte. Esse barbante preso chama-se cabresto; 8- Amarre a linha para empinar. Para descobrir o lugar certo, segure a pipa pelo cabresto. Amarre um pouco acima do meio dele. Quando as pipas estiverem prontas, antes de saírem para o pátio, converse com as crianças sobre os cuidados que devem ser tomados quando quiserem brincar em casa. Se o local onde vão brincar é seguro, o terreno é regular e não há postes ou fios de eletricidade, nem trânsito. Toda vez que quiserem brincar de pipa deverão prestar bastante atenção nos seguintes pontos, orientados pelo Corpo de Bombeiros: • Não solte pipas em dias de chuva, principalmente se houver relâmpagos; • Evite brincar perto de antenas, fios telefônicos ou cabos elétricos. Procure locais abertos como praças e parques; • Não empine pipa em cima de lajes e telhados; • Jamais utilize linha metálica, como fio de cobre de bobinas ou cerol (mistura de cola com caco de vidro). Também não faça pipas com papel laminado. O risco de choque elétrico é grande; • Tente soltar pipa sem rabiola, como as arraias. Na maioria dos casos, a pipa prende no fio por causa da rabiola; • Se a pipa enroscar em fios, não tente tirá-la. É melhor fazer outra. Nunca use canos, vergalhões ou bambus; • Cuidado com ruas e lugares movimentados, principalmente quando andar para trás. Pode ter algum buraco ou pista; 24 • Atenção especial com as(os) motociclistas e ciclistas: a linha pode ser perigosa para elas(es). Fique atenta(o) para que a linha não entre na frente delas(es); • Recomenda-se às(aos) motociclistas o uso de antenas antilinhas. A seguir, leve as crianças ao pátio para brincarem e se divertirem com as pipas. O que mais pode ser feito? • Um dia de contação de histórias africanas na comunidade, com a participação de contadoras(es) voluntárias(os) das próprias famílias; • Constituição de um acervo de livros da literatura infantil, com personagens negras e de outras etnias, a partir de uma seleção de títulos, por meio de carta de solicitação a empresas e lojas do bairro; • Articulação com as(os) professoras(es) de História e Geografia para aprofundamento de alguns aspectos da escravidão no Brasil e da condição da população negra no país, hoje; • As crianças podem ser estimuladas a pesquisar outras lendas africanas na biblioteca escolar, do bairro e na internet. Referências Protagonistas negros na literatura infantojuvenil O mundo no black power de Tayó (Kiusam de Oliveira); Chuva de manga (James Rumford); Betina (Lina Nilma Gomes); 100 livros infantis com meninas negras. Acesse no Portal Geledés, em Para ampliar 25 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 Brincadeiras indígenas do Xingu • Livros, revistas e sites que mostram imagens de territórios indígenas, rituais e brincadeiras. • Lápis, giz e tinta guache de várias cores. • Potinhos de barro ou pires. • Mapa do Brasil. • Conhecer brincadeiras da cultura indígena, fundamental na formação do povo brasileiro. • Vivência de brincadeiras de crianças Kalapalo, que habitam o sul do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Reconhecer as semelhanças e diferenças da infância em outras culturas. • Respeitar e valorizar a diversidade cultural. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Ambiente aberto. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 26 Início de conversa Os povos ameríndios, ou originários, são os mais antigos habitantes do nosso território. Viviam nestas terras muito antes de os europeus aqui chegarem e os colonizarem. Os portugueses chamavam todos os povos nativos de índios, ignorando as diferenças linguístico-culturais existentes entre eles. A colonização levou à extinção de muitas comunidades indígenas que viviam no território dominado, seja pelas armas dos europeus, seja em decorrência de doenças trazidas dos países distantes, seja ainda pela aplicação de políticas visando adaptar as(os) indígenas aos costumes dos colonizadores. A população ameríndia vem aumentando rapidamente nas últimas décadas, muito em função da luta política pela preservação de suas terras, de sua gente e de suas culturas. Além disso, simultaneamente a esse processo, registra-se uma gradativa conscientização de segmentos da população brasileira de que os povos originários são nossos contemporâneos: vivem no mesmo país, participam da elaboração de leis, elegem candidatos e compartilham problemas semelhantes, como as consequências da poluição ambiental e das diretrizes da política econômica, de saúde e de educação. Hoje, os cerca de 220 diferentes povos somam mais de 800 mil pessoas, que falam 180 línguas distintas. Os povos ameríndios vivem nos mais diversos pontos do território brasileiro. Mais da metade da população indígena está localizada nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, principalmente na área da Amazônia Legal. Mas há povos ameríndios vivendo em todas as regiões brasileiras, em maior ou menor número. Embora representem, em termos demográficos, um pequeno percentual (0,47%) dos mais de 190 milhões de habitantes do Brasil, são um exemplo concreto e significativo da grande diversidade cultural existente em nosso país. Conheça a festa Kuarup, celebrada pelo Povo Kamaiurá, no Xingu (MT). Acesse em PARA APROFUNDAR Roda de conversa Leve livros ou revistas com imagens de aldeias indígenas, ilustrando rituais ou brincadeiras infantis, e disponha o material no interior da roda do início do dia, definindo um tempo para que o grupo explore o conteúdo. Promova uma roda de conversa para levantar o que conhecem a respeito dos povos originários: Na prática Sugestão de encaminhamento 27 • Tiveram a oportunidade de ler alguma reportagem sobre a cultura indígena em jornais, livros, revistas ou sites? • Já conheceram uma(um) indígena? • Tiveram a oportunidade de conversar com ela(e)? • Já visitaram uma terra indígena? Se alguma criança já teve a experiência pessoal com essa cultura, peça para contar como foi para o grupo. Pergunte se sabem onde vivem os povos indígenas do Brasil, hoje. Aproveite o momento para mostrar, no mapa do país, as reservas indígenas existentes e fotos de diferentes etnias ameríndias. Material de apoio: localização e imagens dos povos indígenas no Brasil • Instituto Socioambiental (ISA): Povos Indígenas no Brasil – Mirim - Acesse em • Wikipédia: Reserva Indígena - Acesse em • Google Imagens: Indígenas do Brasil - Digite, no campo de busca, o termo “Indígenas do Brasil”. Localização do Parque Indígena do Xingu Em seguida, converse com as crianças para apresentar a proposta de vivenciarem e conhecerem um pouco da cultura indígena infantil. Diga que vão vivenciar, nesta oficina, algumas brincadeiras infantis de indígenas do Xingu, do povo Kalapalo, um dos que habitam essa região, atualmente. Algumas delas se parecem com brincadeiras conhecidas nossas, outras não. Mostre a região do Xingu no mapa do Brasil. Deixe o mapa exposto na sala. Aldeia Ipatse (Parque Indígena do Xingu), 2007. Foto: Pedro Biondi/ABr/Wikipédia 28 Brincadeiras infantis do povo Kalapalo Heiné Kuputisü Nesta brincadeira, as crianças formam uma fila na horizontal. Marca-se uma linha no chão, que será o ponto de largada e outra, a aproximadamente 100 metros de distância, à frente, que será o ponto de chegada. Cada criança terá que correr da linha de partida à de chegada, num pé só, feito saci, sem trocar de pé. As que conseguirem ultrapassar a linha de chegada serão consideradas vencedoras. Se ninguém conseguir chegar lá, vence quem foi mais longe. Há também uma variação. Podem ser formados dois times e a corrida é feita em duplas, um de cada time. No final, vence o grupo que teve mais participantes a ultrapassarem a linha de chegada. Para os Kalapalo, esta brincadeira é compartilhada entre crianças e adultos, no centro da aldeia. Toloi Kunhügü! É uma brincadeira de pega-pega. Uma das crianças participantes será o “gavião”, que poderá ser definido por sorteio; as outras crianças serão “passarinhos”. O “gavião” desenha no chão uma grande árvore, cheia de galhos, nos quais as outras crianças se espalham e sentam-se, fingindo ser passarinhos em ninhos. A um sinal seu, que está coordenando a brincadeira, “o gavião” sai atrás dos “passarinhos”, para caçá- -los, mas estes saem de seus “ninhos” e se juntam, num local bem próximo à “árvore”, batendo os pés no chão para provocar o “gavião”, fazendo uma algazarra com sua cantoria. O “gavião” avança na direção do grupo e, quando está bem perto dele, dá um pulo para tentar agarrar os “passarinhos”, mas eles saem correndo em todas as direções, fazendo manobras para driblar a(o) perseguidora(or). Para uma trégua de descanso, voltam aos seus “ninhos”, onde o “gavião” não pode pegá-los. Quando o “gavião” consegue pegar um dos “passarinhos”, nessa caçada, prende-o em seu refúgio, num lugar próximo à árvore. O último “passarinho” que conseguir escapar do “gavião”, toma o seu lugar na próxima rodada da brincadeira, tornando-se o novo “gavião”. Entre os Kalapalo, a brincadeira acontece na beira de uma lagoa ou de um rio. Quem propõe o jogo, assume o papel de gavião e será a(o) “dona(o)” da brincadeira. Mangá, Tobdaé Esta é uma brincadeira com peteca. Possivelmente as crianças conhecem e já jogaram peteca, nome de origem Tupi que significa “tapear”, “golpear com as mãos”. O jogo de peteca, entre os Kalapalo, guarda certa semelhança com a nossa “queimada” e é jogado com várias petecas ao mesmo tempo (quatro ou seis) e com duas(dois) jogadoras(es), a cada vez. As demais crianças aguardam, sentadas, assistindo. Para jogar, convide as crianças a construírem suas petecas com jornal, pintando-as com tinta guache. Saiba como fazer uma peteca! Acesse em Uma vez que as petecas estejam prontas, o jogo pode começar. A um sinal seu, coordenadora(or) do jogo, as(os) duas(dois) jogadoras(es) da partida arremessam as petecas, na direção da(o) adversária(o), tentando atingi-la(o) e, ao mesmo tempo, cuidando para não ser atingida(o). 29 O que mais pode ser feito? As crianças podem pesquisar brincadeiras de outros povos indígenas e de outras etnias, para saber como as crianças se divertem nos vários lugares do mundo e se há semelhanças com as nossas brincadeiras. Você pode buscar ajuda de professoras(es) de Arte, Geografia, História e Educação Física. O produto da pesquisa pode ser um álbum, com a descrição e ilustração das diferentes brincadeiras pesquisadas, a ser socializado na instituição. A turma também pode organizar um blog e interagir com instituições ligadas à infância e aos povos indígenas. Referências MUNDURUKU, Daniel. Coisas de índio. São Paulo: Callis, 2000; LIMA, Maurício; BARRETO, Antonio. O jogo da onça e outras brincadeiras indígenas. São Paulo: Panda Books/ Original, 2005. Quando for atingida(o) por uma das petecas, a criança sai do jogo, cedendo seu lugar para outra(o) jogadora(or), que é uma das crianças sentadas. A disputa recomeça, sucessivamente, até que todas(os) tenham tido a oportunidade de jogar. Hora de avaliar Para ampliar Depois de vivenciadas as brincadeiras propostas, forme um círculo com as crianças para uma roda de avaliação. Estimule-as a falarem, a partir de perguntas: • Quais as semelhanças e as diferenças com as brincadeiras que conhecem e brincam? • Qual a brincadeira que mais gostaram? • Tiveram dificuldade para fazer alguma ação que era parte integrante da brincadeira? • Qual delas gostariam de brincar de novo, numa próxima oportunidade? Peça também que cada criança atribua uma cor à oficina, de acordo com a legenda: • Verde – gostou muito; • Amarelo – gostou mais ou menos; • Vermelho – não gostou. 30 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 Essa folia tem história(s)! • Para decorar a sala: confetes, serpentinas, máscaras de cartolina e bexigas coloridas. • Para confeccionar fantasias: papel crepom, TNT de várias cores, lantejoulas, miçangas, tecidos (se houver possibilidade, plumas, tules, paetês), cartolina, lápis de cor, giz de cera, tesouras sem ponta, pintura para o rosto etc. • Pesquisar a história do Carnaval no Brasil, por meio de relatos e imagens dos pais, tios e avós das(os) participantes. • Identificar, nos relatos coletados, palavras e expressões que remetem aos costumes sociais diferentes dos atuais e perceber as variações pelas quais a Língua passa. • Pesquisa das memórias que as famílias das(os) estudantes têm sobre o Carnaval e organização de um baile carnavalesco. Autores da oficina: Leandro Medina, pesquisador e brincante da cultura popular brasileira, e Madalena Monteiro, contadora de histórias e formadora de professoras(es). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Ampliar os conhecimentos sobre essa importante festa popular e vivenciar a alegria do Carnaval por meio de trabalho coletivo de decoração da sala e confecção das fantasias, além de compartilhar a experiência de se divertir juntas(os). • Anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, sala de leitura, biblioteca, pátio ou outro espaço para trabalho coletivo. • 3 a 4 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 31 Início de conversa A origem do Carnaval remonta às celebrações pagãs da Antiguidade, tanto na Mesopotâmia quanto na Grécia e em Roma. Ao ser incorporado às tradições do Cristianismo, em 1091, passou a marcar um período de festividades que aconteciam entre o Dia de Reis e a Quarta-Feira de Cinzas, antecedendo a Quaresma, período em que as(os) fiéis deveriam dedicar-se exclusivamente às questões espirituais. No Brasil, o Carnaval é considerado a nossa festa mais popular. O costume de se brincar nesse período foi trazido pelos portugueses, provavelmente no século XVI. Tratava-se de uma tradição da Idade Média em Portugal, onde se comemorava a data com brincadeiras que tinham formas e cores variadas de acordo com a aldeia. Em algumas, destacava-se a presença de grandes bonecos, conhecidos como “entrudos”. Daí o nome pelo qual a festividade era conhecida na época: Entrudo. Augustus Earle, c. 1822. Jogos durante o carnaval no Rio de Janeiro (Entrudo familiar). Imagem: Wikimedia Commons Essa festividade é tão importante em nossa cultura que se costuma dizer que o ano só começa depois do Carnaval. No exterior, a folia se transformou em um dos grandes referenciais da cultura brasileira, tanto que, no imaginário de muitas(os) estrangeiras(os), “Carnaval” está entre as três primeiras palavras lembradas quando o assunto é Brasil. E como toda criança adora uma festa, a folia do Rei Momo é um prato cheio para atividades em que todos certamente se divertirão. Nossa proposta é recriar uma das brincadeiras mais tradicionais desse período: o baile de Carnaval, com direito a marchinhas, desfiles de fantasia, confetes e serpentinas. 32 Rei Momo Personagem da mitologia grega, levava na cabeça um gorro com guizos e nas mãos uma máscara e uma boneca. Deus do delírio e do sarcasmo, usava o riso para ridicularizar os outros deuses. Depois de muito aprontar, foi expulso do Olimpo. Mais tarde, já na era cristã, essa figura foi relacionada a celebrações regadas a bebidas e orgias. No Brasil, o Momo se tornou o soberano do Carnaval em 1933, na cidade do Rio de Janeiro. PARA APROFUNDAR Hippolyte Berteaux, 1813. O Deus Momo (detalhe do teto do Teatro Graslin, em Nantes, França). Na prática Sugestão de encaminhamento Aquecendo os tamborins (e a conversa) Em um primeiro momento, é interessante pesquisar a origem dessa antiga festa. Algumas(uns) historiadoras(es) apontam uma relação com as celebrações pagãs conhecidas como Saturnália, na Roma Antiga. Outras(os) relacionam a festividade a celebrações que se originaram na Grécia entre meados de 600 a 520 a.C. Para iniciar a conversa, você pode trazer curiosidades sobre como o Carnaval acontecia em diversas regiões e como veio se transformando no decorrer dos séculos (acesse as curiosidades em Pesquise na internet e mostre imagens dos bailes de máscara em Veneza e Paris, dos antigos carnavais que ocorriam em nossa terra e, é claro, muitas fotos e outras imagens (livros, jornais, revistas, sites) de crianças brasileiras fantasiadas, se divertin- do através dos tempos. Em seguida, faça uma roda e pergunte: • Quem já foi a um baile de Carnaval? • Que brincadeiras fizeram? • Que fantasia usaram? • Qual gostaria de usar num baile? • Alguém se lembra de uma música tocada no Carnaval? • Quem topa preparar um grande baile de Carnaval com a turma? Basile Pachkoff, 2004. Folheto para o Carnaval de Paris. Imagem: Wikimedia Commons 33 Escavando o baú das memórias Oriente as meninas e os meninos a criar um roteiro de perguntas que podem ser feitas aos pais, tios, avós e amigas(os) de outras gerações: • Quem já participou de bailes de Carnaval? • Como eram as comemorações na época? • De que músicas se recordam? • Como eram as brincadeiras? • Que fantasias usaram? Oriente as crianças já alfabetizadas a registrar por escrito os relatos. As crianças podem também gravar as entrevistas em áudio ou em vídeo. Comité organizador do carnaval de Barranquilla, Colômbia, 1908. Foto: anônimo/Wikimedia Commons Compartilhando os achados Combine uma data para o compartilhamento, em uma roda de conversa, das informações, histórias e imagens recolhidas na pesquisa. Nesse momento, é interessante perguntar se notaram, ao conversar com a família, algumas palavras e expressões que não conhecem. Caso se recordem, faça uma lista desses termos na lousa e oriente as(os) participantes a pesquisar o significado em dicionários e na internet. Essa é uma excelente oportunidade para discutir o tema da variação linguística. Estimulando as crianças a pensar quais as possíveis razões de esses termos não serem mais tão conhecidos hoje, elas poderão perceber que a língua não é estanque: ela se modifica junto com a sociedade. Vestindo a fantasia e organizando a folia A escolha e confecção das fantasias é uma tarefa bem divertida. A pergunta inicial sobre qual fantasia elas gostariam de usar pode ajudar a desenvolver a alegoria de cada criança. Mesmo que algumas prefiram usar fantasias prontas, é importante que confeccionem algum adereço complementar. Experimentem fazer capas, coroas, chapéus, cocares, máscaras usando tules, retalhos, papel crepom, lantejoulas, paetês, miçangas, brilhos, plumas etc. Deixem a imaginação fluir. Pintar o rosto com tinta apropriada é algo que toda criança gosta. “Tamborins aquecidos”, é hora de combinar com as crianças a data da festa. Para que elas se envolvam em todas as etapas da organização, proponha que pesquisem as memórias das famílias em torno da folia. Fotos são muito bem-vindas. Elas podem buscar com as famílias registros fotográficos do tempo em que seus parentes eram crianças. Vale trazer também pequenos recortes de revistas e jornais com imagens de fantasias. 34 Figuras da folia O Carnaval brasileiro é recheado de figuras notórias. Em todo o país, o Arlequim, a Colombina, o Pierrô, personagens da Commedia dell’Arte, da Itália do século XVI, colorem os bailes à fantasia. O Rei Momo renasce da mitologia grega para reger a festa carioca. Na pernambucana Olinda, o Homem da Meia-Noite e a Mulher do Dia se encontram nas ruas apinhadas de foliões pulando ao som do frevo. E na sua região, quais figuras se destacam? Uma pesquisa sobre os personagens tradicionais do Carnaval brasileiro, de sua localidade ou de outras regiões do país pode inspirar as criações da turma. Mãos à obra! PARA APROFUNDAR Giovanni Ferretti, séc. XVIII. Arlequim e Colombina. Imagem: Wikimedia Commons Escolhida a fantasia, é hora de organizar o baile. A decoração do espaço e a apresentação dos materiais que serão usados (serpentinas, confetes, bexigas etc.) podem proporcionar uma excelente conversa. Nela, a turma decide o que cada uma(um) fará no dia da arrumação, na véspera do grande baile. Não se esqueça de organizar o mural com as imagens recolhidas. Outra tarefa bem divertida é fazer uma coletânea de marchinhas para as crianças ouvirem: Mamãe eu quero, Alalaô, Índio quer apito, Chiquita bacana, entre outras. Toque as marchinhas na sala sempre que houver atividades voltadas ao baile. Ouça várias marchinhas tradicionais em Carnaval aqui, ali, acolá Vocês podem confeccionar instrumentos musicais com materiais recicláveis para cantar e tocar as marchinhas. Estimular a pesquisa de ritmos carnavalescos das diferentes regiões do país é interessante para ampliar o repertório musical da turma. Vale também convidar foliões da comunidade para cantar e contar histórias do Carnaval da região. Vocês podem convidar outras turmas, ou mesmo as famílias das crianças para participar da festa. Para isso, é interessante criar cartazes e espalhá-los pela escola ou instituição educativa, e convites para as(os) familiares. Ó abre-alas que a folia vai passar! Fantasias, cartazes espalhados, convites entregues, instrumentos afinados, marchinhas e ritmos na ponta da língua, ambiente decorado? Agora é celebrar! 35 Brincadeiras tradicionais como a dança das cadeiras, a chuva de confete e serpentina, o trenzinho e o desfile de fantasias podem gerar boas gargalhadas. É interessante não haver competição. Vale a pena registrar todos os processos com fotos e por escrito em seu diário de bordo. Boa festa! Referências Carnaval, cores e ritmos pelo Brasil Prefeitura do Salvador: Carnaval de Salvador em 1939. Acesse em Documentário sobre o Carnaval pernambucano Dias de Momo: Viva a Originalidade. Olhar Paulistano: História do Carnaval de São Paulo. A Canal Futura: Origens e evolução do Carnaval no Rio de Janeiro. Hora de avaiar Para ampliar Marque um dia após a celebração para uma roda de conversa sobre as impressões e aprendizagens envolvidas na atividade: • O que aprenderam sobre o Carnaval? • O que acharam de organizar e participar de um baile? • Do que mais gostaram? • O que poderia melhorar? • O que mais seria legal fazer? 36 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 6 Rap e letramento • Folhas de papel sulfite com a letra da canção de rap É hora de brincar, de autoria do Mestre Pê (letra) e de Vander Luís (música). • Aparelho de som. • Folhas de papel pardo. • Canetas hidrográficas. • Barbante para varal. • Pregadores. • Aliar o rap, expressão do universo cultural de crianças e adolescentes das periferias das grandes cidades, ao letramento. • Criação de textos com rima em ritmo de rap. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec), com base nas oficinas desenvolvidas pelo arte-educador e rapper P.MC, o Mestre Pê. • Desenvolver o prazer de brincar com as palavras, fazendo poesia. • Valorizar o rap como expressão cultural. • Anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de leitura ou sala de atividades. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 37 Início de conversa Como tornar as culturas juvenis aliadas da aprendizagem escolar? De que modo os ritmos musicais que fazem a cabeça de crianças e jovens, como o rap, podem estimular o gosto pela leitura e pela escrita em crianças e adolescentes? “Cabe à escola propiciar aos jovens a possibilidade de experimentarem diferentes formas de ser jovem e estudante, que estão profundamente atreladas às chamadas culturas juvenis”, reflete o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Alexandre Barbosa Pereira. O diálogo entre os conhecimentos escolares e as culturas às quais as crianças e as(os) jovens, principalmente periféricas(os), fazem parte é fundamental para criar um espaço de expressão e escuta dessas(es) estudantes. Ainda segundo Alexandre Barbosa Pereira: “Não se trata, entretanto, de imitar ou encenar as práticas culturais juvenis de forma empobrecida e controlada na escola, nem de criar cópias baratas e chatas de jogos eletrônicos ou grupos sociais na internet, mas de atentar para essas diferenças, não as desmerecendo e descartando de antemão, mas procurando estabelecer algum tipo de comunicação com elas, para enriquecê-las e permitir aos jovens ampliarem seus repertórios culturais.” A palavra rap vem da abreviação de ritmo e poesia em inglês. É a expressão musical e poética do hip-hop, movimento que surgiu na década de 1970 nos guetos nova-iorquinos. Como conta P.MC, o Mestre Pê, rapper e arte-educador que desenvolve oficinas de rima com ritmo de rap, “o hip-hop surgiu de uma necessidade social daquelas comunidades, como um caminho de diálogo entre as gangues locais que viviam em guerra.” “A escola tem que estar em sintonia com a comunidade. E onde estão as(os) adeptas(os) da cultura hip-hop? Na comunidade. Essa juventude que transita na cultura hip-hop está na escola pública. Então, é importante que a escola abra as portas e entenda a cultura hip-hop”, enfatiza Mestre Pê. Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Inicie a oficina conversando com as crianças e as(os) adolescentes sobre rimas e rap: • Conhecem algum rap? Podem cantar? • Conhecem algum rapper? Quem? • Como sabemos que o que ouvimos é um rap? • Já ouviram falar de algum rap para crianças? Sim? Qual? Não? Então, diga que nesta oficina elas(es) conhecerão um rap muito bonito: É hora de brincar. Conte que o 38 autor dessa canção é o Mestre Pê, em parceria com Vander Luís. Ele é feito de trava-línguas, especificamente para as crianças e adolescentes brincarem com as palavras. Ouça a canção É hora de brincar em enquanto acompanha a letra abaixo: 39 Trabalhando a letra da canção com as(os) estudantes Leia o primeiro verso da primeira estrofe do rap para elas(es) e peça para repetirem algumas vezes. Como se trata de um trava-línguas, certamente terão alguma dificuldade em pronunciá-lo rapidamente e isso será muito divertido. Dê um tempo para se apropriarem da rima. Agora, veja como o rapper e arte-educador Mestre Pê conduz essa atividade em sua Oficina de Palavras. Acesse em Em seguida, acompanhe as observações da professora América Marinho, especialista em Língua Portuguesa, sobre a importância da rima nos textos poéticos e musicais. Construindo rimas A seguir, escreva na lousa ou em um cartaz, algumas palavras como amizade e capoeira, e provoque- -as(os) a encontrar rimas para elas. Depois do exercício coletivo, cada uma(um) das(os) participantes falará uma palavra e as(os) colegas tentarão descobrir outras que rimam com ela. Vá anotando na lousa ou no cartaz. Peça que acompanhem as rimas com palmas, no ritmo do rap para entrarem no espírito da oficina. Estimule que todas(os) participem, propondo palavras para serem rimadas. Inspire-se com o Mestre Pê para desenvolver esta etapa da atividade (construção de rimas). Acesse em Registrando as rimas Agora que já entraram na brincadeira, convide-as(os) a construir suas próprias rimas, em duplas, trios ou grupos. Forme painéis com as folhas de papel pardo, coloque-os no chão, distribua as canetas hidrográficas e oriente-as(os) para que, primeiro, componham as rimas oralmente com os pares e, em seguida, registrem-nas no painel. Saiba como o Mestre Pê trabalhou a etapa do registro de rimas com as(os) participantes. Acesse em Terminados os painéis, você poderá pendurá-los no varal e pedir para que circulem e leiam as rimas produzidas pelas(os) colegas. Em seguida, distribua as folhas com a letra impressa do rap É hora de brincar, ligue o aparelho de som e convide as(os) participantes a cantar junto com o rapper Mestre Pê. Terminada a atividade, proponha a formação de uma roda para fazerem a avaliação da oficina: • Gostaram? De quê? • Perceberam a intenção das rimas, que é a de brincar com as palavras? • O que acham que faltou na oficina? • O que poderia ser melhorado em uma próxima vez? Assista ao vídeo com trechos da roda de conversa para avaliação que o mestre Pê conduziu com as(os) participantes em sua oficina. Acesse em Hora de avaliar 40 Rap e letramento Para saber mais sobre o rap na sala de aula e sua relação com o letramento, acesse os depoimentos das professoras especialistas em Língua Portuguesa, autoras e formadoras: América Marinho e Maria Alice Armelin. A entrevista está organizada em blocos temáticos: Concepção de letramento - Acesse em O letramento na sociedade contemporânea - A cultura popular e a escola - O rap na sala de aula - O hip-hop tem história Conheça um pouco da história do hip-hop no Brasil com o educador social Wagner Luciano da Silva (Guiné): O surgimento do hip-hop no Brasil - Acesse em A expansão do hip-hop para outras linguagens - A consolidação do hip-hop no Brasil - Rapper na escola Você pode convidar uma(um) rapper para vir conversar com a turma e contar experiências a respeito de sua produção. Uma(Um) integrante do movimento hip-hop também pode estar presente para contar mais sobre a história e a evolução desse movimento. Referências Canal Pé de Palavra no YouTube (com a produção do Mestre Pê) - Acesse em SILVA E SOUZA, Ana Lúcia. Letramento da reexistência. Poesia, Grafite, Música, Dança: hip-hop. São Paulo: Parábola, 2011. Para ampliar 41 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 7 A cultura indígena dançada e cantada • Vídeos de danças indígenas. • Mapa político do Brasil. • Giz coloridos e pincéis atômicos. • Papel jornal. • Chocalhos e adereços indígenas, como colares de sementes, brincos de penas de ave e cocares. • Pintura de rosto. • Entender a dança e a música como linguagens da arte que expressam a cultura, modo de ver e de pensar o mundo. • Aproximação do universo cultural indígena pela dança e pela música. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Contextualizar as manifestações artísticas como produtos culturais de um povo e de uma época. • Respeitar etnias e culturas diferentes. • Utilizar a dança e a música como formas de expressão de desejos, sonhos e ideias. • Anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Qualquer espaço livre onde se possa projetar vídeo e dançar. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 42 Início de conversa A dança e a música são linguagens da arte que sempre estiveram presentes na vida humana, desde tempos remotos, fazendo parte do dia a dia das populações. Nas sociedades tribais antigas e contemporâneas, não existe o conceito de “talento” ou “dom”; todas(os) participam das cerimônias, dançando e cantando. Já em nossa sociedade, o incentivo ao consumo e o fortalecimento da indústria cultural (entenda o conceito ao final da oficina) têm deixado nas pessoas a ideia de que somente as(os) artistas podem tocar, dançar e cantar. Desse modo, as pessoas se retraem e a possibilidade de se aproximar da arte como participantes fica cada vez mais remota. Assim, em vez de fazer arte, passam a ser apenas consumidoras de arte. Todas as pessoas podem ter prazer em fazer música e dança, não como artistas, mas como cidadãs(ãos) que participam da vida. Além disso, a imersão no universo da música e da dança permite que as pessoas se conheçam melhor, aprofundem suas experiências de escuta, se reconheçam como seres singulares, convivam com a diversidade, tenham acesso à produção cultural de seu meio, de seu país e de outros lugares. Essa ampliação do universo cultural é essencial para o desenvolvimento humano. Homens da dança, pintura rupestre Tehuelche, Walichu, Argentina Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Na roda inicial, pergunte como as(os) participantes comemoram as coisas boas da vida: quando o time do coração marca um gol, como se manifestam? Gritando Goooool…, cantando o hino do clube? E quando uma(um) amiga(o) ou familiar faz aniversário? Cantando parabéns e partilhando um bolo? E o Carnaval? Quem comemora, frequenta bailes ou sai em blocos pela rua, acompanhada(o) de uma pequena banda, não? Já foram a casamentos com festa? Como era? Repararam que a dança e a música estão sempre presentes nessas celebrações? A dança e a música são linguagens da arte, usadas como expressão de sentimentos e pensamentos relacionados às circunstâncias da vida. A arte nunca esteve separada da vida, sempre fez parte do cotidiano das pessoas. Nas sociedades antigas, as manifestações artísticas tinham funções bem definidas: pedir algo às divindades, agradecer uma graça, receber uma(um) bebê que chega ao mundo, ou auxiliar a(o) morta(o) em sua viagem para outros mundos. Nelas, tais atividades são consideradas sagradas, constituem o elo entre o ser humano e a divindade. 43 A arte foi adquirindo outras funções no decorrer da história da humanidade, mas essa forte relação com a natureza e a divindade podem ser vistas ainda hoje em sociedades tribais não letradas, contemporâneas, como nas aldeias indígenas brasileiras, por exemplo. com algumas celebrações de povos indígenas de diferentes regiões do Brasil. E se? Se não houver recursos para projetar os vídeos na sua escola ou instituição educacional, procure parcerias na comunidade: na biblioteca, na escola próxima, na igreja ou com a família de uma das crianças ou das(os) adolescentes do grupo. Antes de cada projeção, contextualize a etnia indígena apresentada: quem são as(os) integrantes, onde habitam, quantas(os) são hoje em dia (veja nos sites indicados ao longo desta oficina). Mostre a localização geográfica das tribos, no mapa do Brasil, circulando-a com giz colorido, uma cor para cada etnia, para que tenham a noção de que são diferentes, apesar das aparentes semelhanças, desconstruindo a ideia estereotipada que se tem das(os) indígenas. Projete os vídeos: • Quarup – dança dos kamaiurás (Xingu- MT/AM) - Acesse em • Dança dos nhamandus – índios guaranis (Peruíbe-SP) - Acesse em • Fogo Sagrado: dança realizada por várias tribos indígenas brasileiras. O ritual consiste em dançar ao redor do fogo (importante força da natureza) - Acesse em Projete mais uma vez cada vídeo para as(os) participantes apurarem o olhar sobre os detalhes. Peça para prestarem bastante atenção aos cantos e danças de cada ritual, pois, posteriormente, irão criar o seu ritual baseado no que viram. Após as projeções, é hora de falarem sobre o que chamou atenção nas diferentes celebrações, qual consideram mais bonita, como interpretam o significado de cada uma delas. A criação do ritual A seguir, proponha que, em grupos, as(os) participantes conversem para criar um ritual de dança e música indígena, a partir do que foi observado, escolhendo um acontecimento para comemorar: • Nascimento de uma criança indígena; • Casamento; • Pedido de chuva; • Comunicação com outra tribo etc. Uma viagem pelos rituais indígenas Convide as(os) participantes a “viajar” um pouco por algumas tribos indígenas brasileiras, por meio de apresentações de rituais que incluem a dança e a música. Diga-lhes que vai projetar pequenos vídeos 44 Blogs e sites indígenas As crianças e as(os) adolescentes podem entrar em blogs e sites disponíveis para conhecer e interagir com indígenas e não indígenas sobre as principais questões que as(os) afetam: • Museu Nacional dos Povos Indígenas - Acesse em • Índio Educa - Acesse em • Rádio Yandê: etnomídia indígena - • Mídia Indígena - Diversificação da pesquisa Os grupos podem também pesquisar músicas e rituais de outras culturas desconhecidas e sobre as quais tenham curiosidade. Se houver concentração de migrantes de algum outro lugar do país ou de outros países na região de sua escola ou instituição educacional, os grupos podem promover, com a ajuda de pessoas adultas e em parceria com professoras(es) e educadoras(es) de Arte, um estudo sobre essas culturas/etnias, culminando em uma mostra de suas danças e músicas mais expressivas, em local público, para apreciação de todas(os) as(os) moradores do território. Sobre o conceito de indústria cultural Segundo os criadores do conceito “indústria cultural”, os filósofos alemães Theodor Adorno (1903- 1969) e Max Horkheimer (1895-1973), membros da Escola de Frankfurt, a indústria cultural converte a cultura em mercadoria, ao usar os meios de comunicação para disseminar as ideias dominantes no sistema capitalista. Desta forma, cria-se a cultura de massa, homogênea, muitas vezes pasteurizada e sem senso crítico, a que as pessoas têm acesso pelos grandes meios de comunicação e de entretenimento, como rádio, cinema, televisão e teatro. Hora de avaliar Para ampliar Os grupos não devem se esquecer de dar um nome para sua tribo e para o ritual, além de usar os chocalhos e os adereços disponíveis. Após um tempo para a tomada de decisões e para a criação, cada grupo é convidado a apresentar sua produção para todas(os), explicando o ritual. Terminadas as apresentações, todas(os) se sentam em círculo, para falar da atividade: • O que aprenderam de novo sobre as tribos indígenas? • Sabiam que as(os) indígenas têm blogs e sites na internet? • Que têm representantes que lutam pela causa indígena, junto ao poder público? O que acham disso? Enquanto conversam, relacione essas aprendizagens num cartaz que ficará afixado na parede da sala, por algum tempo. 45 Absorvem, inclusive, as manifestações culturais genuinamente populares e críticas, podendo esvaziá-las de sentido e desvalorizá-las, ao reproduzi-las descontextualizadamente da sua origem, que é o que lhes dá significado. No entanto, felizmente, encontramos também um movimento na direção contrária, de resistência a esse estado de coisas, com iniciativas que vão na direção da valorização de expressões culturais de diferentes grupos sociais, por meio da criação de meios de comunicação para sua divulgação. Isso acontece, por exemplo, com as rádios comunitárias e os pontos de cultura, implementados e alimentados por grupos comunitários, como política pública cultural. Essas iniciativas permitem veicular a arte produzida por grupos culturais diversos e, com ela, a sua visão de mundo. Diante dessas considerações, nós, educadoras(es), temos uma grande responsabilidade frente às novas gerações, que é a de promovermos o desenvolvimento de sua consciência crítica, preparando-as para entrar em contato com os fenômenos da indústria cultural, extraindo o que de melhor há nela. E ajudá-las a não receber e assimilar com passividade o que é oferecido pelos meios de comunicação, mas escolher os conteúdos culturais com autonomia e crítica. Sobre este tema, indicamos a leitura da matéria publicada no Portal Amazônia: Fantasias indígenas no Carnaval: pode ou não pode? - Acesse em Referências FONTERRADA, Marisa T. de O. Música e movimento. São Paulo: Cenpec; Febem-SP; SEE-SP, 2002 (Educação e Cidadania, 13); COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção primeiros passos). 46 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 8 Atletismo, o esporte mais antigo • Revistas e jornais com fotos de corredoras(es) em Olimpíadas. • Datashow. • Computador com acesso à internet. • Rolo de papel alumínio ou PVC vazio. • Giz. • Fita métrica. • Perceber que o esporte teve origem nas atividades corporais cotidianas do ser humano, em busca de sobrevivência, e que as modalidades esportivas são produtos culturais criados para atender necessidades de uma determinada sociedade, em determinado tempo. • Pesquisa e prática da modalidade esportiva mais antiga de que se tem registro. Conteúdo publicado originalmente no site Educação&Participação (Cenpec). • Conhecer a história das Olimpíadas. • Identificar as modalidades do atletismo. • Avaliar respeitosamente o desempenho de outras equipes. • Anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Quadra. • 1 encontro de 1h30. Voltar para o sumário 47 Início de conversa O atletismo é o esporte mais antigo de que se tem conhecimento, tendo sido praticado desde a origem dos Jogos Olímpicos, iniciados pelos gregos no ano 776 a.C. Mesmo com o domínio romano sobre a Grécia, em 146 a.C., os Jogos Olímpicos tiveram continuidade até 394 d.C., quando o imperador Teodósio os aboliu. Estádio na cidade de Olímpia, Grécia. Imagem: Wikimedia Commons No século XIX, por iniciativa do Barão Pierre de Coubertin, foram retomados com o nome de Jogos Olímpicos da Modernidade, tendo sido o primeiro deles realizado em Atenas, em 1896, em homenagem às suas origens. Desde a Antiguidade, o atletismo constitui um conjunto de atividades como a corrida, os saltos e os arremessos de peso. Grande parte das provas de atletismo é realizada em estádios fechados, nos quais existem as demarcações específicas e os equipamentos para cada prova. Todavia, algumas competições acontecem em vias públicas, como a corrida internacional de São Silvestre, em São Paulo, na passagem de ano. Primeira corrida de São Silvestre, 1925 Imagem: Wikimedia Commons As corridas rasas de velocidade e revezamento são antigas. A maratona, a mais famosa das corridas de resistência, baseia-se na legendária façanha de um soldado grego que, em 490 a. C., correu do campo de batalha das planícies de Maratona até Atenas, numa distância superior a 35 km, para anunciar a vitória dos gregos sobre os persas. Uma vez cumprida a missão, caiu morto. As maratonas modernas exigem um percurso ainda maior: 42.195 metros. 48 Na prática Sugestão de encaminhamento Roda de conversa Esta oficina tem como objetivo apresentar um pouco da história do atletismo, suas modalidades e propor a prática de uma delas: a corrida de revezamento. Para isso, traga para a sala revistas ou jornais com notícias de eventos de atletismo, de preferência com atletas conhecidas(os) e brasileiras(os) correndo em Olimpíadas. Espalhe as gravuras pelas paredes ou pendure em varais, de forma que, conforme forem chegando, as crianças e as(os) adolescentes percorram o espaço para vê-las com o objetivo de identificar as(os) atletas e ler as notícias. Após algum tempo, chame-as(os) à roda. Comece a conversa perguntando o que sabem sobre atletismo, quais modalidades conhecem, e se alguma(um) participante ou alguma(um) conhecida(o) pratica uma ou mais dessas modalidades. Caso a resposta seja positiva, pergunte: qual(is) modalidade(s)? Onde e quando essa prática teve início? Já acompanharam provas de atletismo nas Olimpíadas? E as corridas de São Silvestre, que ocorrem em todas as viradas de ano nas ruas da cidade de São Paulo, já viram? Peça que contem as experiências vividas e também digam o nome de atletas famosas(os) e de algumas competições de atletismo que acompanharam nas Olimpíadas. Como o tema da oficina será atletismo, proponha que assistam à animação Pateta, o campeão olímpico, que apresenta um panorama divertido e bem humorado sobre as modalidades desse esporte. Acesse a animação Pateta, o campeão olímpico em Antes da projeção da animação, oriente-as(os) a prestarem atenção nas seguintes informações trazidas pelo filme, colocando-as num cartaz: • Em qual país surgiu o atletismo e como surgiu? • Quais modalidades foram apresentadas na animação? • Há semelhanças entre o que é mostrado no vídeo com o atletismo que se pratica hoje? Após a projeção, forme grupos com 4 ou 5 participantes para discutirem essas questões, por aproximadamente 20 minutos, e abra para a socialização. É interessante chamar a atenção das(os) participantes para o fato de o atletismo ser o esporte que esteve presente desde a primeira Olimpíada. Quais hipóteses elas(es) teriam para explicar essa constatação? Comente que a história do atletismo começa com o homem das cavernas, de forma natural, pois ele realizava uma série de movimentos para caçar e se proteger. Dessa forma, ele saltava, corria, lançava, enfim desenvolvia uma série de habilidades relacionadas com as diversas provas de uma competição de atletismo. Podemos verificar que as provas de atletismo são atividades naturais e fundamentais do ser humano: andar, correr, saltar e arremessar. Por essa razão, o atletismo é considera- 49 do como “esporte base”, e suas provas competitivas compõem-se de marchas, corridas, saltos e arremessos. Além disso, o desenvolvimento dessas habilidades é necessário para a prática de outras modalidades esportivas. Pergunte qual das modalidades acham mais interessante e por quê. E se? Caso ninguém se refira à corrida de revezamento, praticada em equipe, chame a atenção para essa modalidade pela importância da cooperação entre as(os) atletas. Da conversa à prática esportiva Na sequência, proponha que pratiquem a modalidade do atletismo de revezamento, com adaptações, é claro. Explique que as provas de revezamento são disputadas por grupos compostos por quatro atletas. Cada uma(um) delas(es) corre um quarto da pista e passa um bastão para a(o) atleta seguinte da sua equipe, que fica a postos, esperando na pista. Quando a(o) colega de equipe chega, quem vai pegar o bastão começa a correr, de forma que esse bastão seja passado de uma(um) para outra(o). Há formas diferentes de passar o bastão. A mais familiar é a(o) primeira(o) corredora(or) sair com o bastão na mão direita e passar para a mão esquerda da(o) segunda(o) integrante da equipe, que começa a correr à sua frente. A(O) segunda(o) atleta carrega o bastão na mão esquerda e passa para a mão direita da(o) terceira(o) corredora(or), que está esperando; a(o) terceira(o) pega o bastão com a mão direita e passa para a mão esquerda da(o) quarta(o) corredora(or), que avança até o final da prova com o bastão na mão. Mostre, como exemplo, a corrida em que o Brasil ganhou a medalha de prata, em Sidney, Austrália, no ano de 2000. Oriente-as(os) a observar a posição de saída das(os) atletas (por que cada uma(um) sai de uma distância diferente?) e como é feita a troca do bastão. Explique que elas(es) saem de pontos diferentes por conta do comprimento das raias, que tem formato oval, de forma que façam o percurso na mesma metragem. No caso, o bastão ora é passado para a mão direita, ora para a esquerda. E a corrida da turma, como será? Ela será realizada pelas equipes, uma a uma, no entorno da quadra da escola ou da instituição educacional, saindo sempre do mesmo ponto. Devem combinar, anteriormente, os locais onde serão feitas as trocas de bastão, que deverão ser marcados, com giz, no chão. O ideal é fazer a troca na metade da extensão do comprimento da quadra, nos seus dois lados. A corrida será feita por uma equipe de cada vez. Para dar uma ideia clara, mostre o vídeo gravado em uma escola pública do interior do estado de São Paulo. Acesse em Em seguida, inicie a corrida, ajudando nas primeiras tentativas de cada equipe, até que se apropriem das regras e se familiarizem com o espaço. Cada equipe pode correr por aproximadamente 15 minutos, revezando-se na quadra. Oriente para que uma acompanhe a outra, observando seus pontos fortes e frágeis a serem aprimorados. 50 O que mais pode ser feito? As(Os) participantes podem organizar uma corrida de revezamento envolvendo outras turmas. Para isso, será interessante pedir a ajuda de uma(um) professora(or) de Educação Física. Outra atividade a ser realizada é uma tarde de projeção de filmes selecionados sobre atletismo, se possível com a presença de alguma(um) praticante da modalidade, para debater com a turma. Principais modalidades do atletismo Corrida de pista É a mais tradicional competição do atletismo e envolve várias provas: • Corridas disputadas em pistas ovais (cada atleta corre numa faixa): 100, 200 e 400 metros rasos; • Corridas de meio fundo (atletas não precisam ficar na faixa): 800 e 1.500 metros; • Corridas de Fundo (dentro da pista): 5.000 e 10.000 metros; • Maratona (disputada nas ruas): percurso de 42,19 quilômetros. Corridas com obstáculos São realizadas dentro dos estádios e se dividem em quatro modalidades: 100 metros (feminino), 110 metros (masculino), 400 metros (feminino e masculino) e 3.000 metros (feminino e masculino). Hora de avaliar Para ampliar E se? Se o bastão cair, oriente que a(o) corredora(or) deve pegá-lo e continuar a corrida. Após a corrida, sentadas em círculo, as equipes trocarão suas impressões a respeito de seu próprio desempenho e também da atuação das(os) colegas das outras equipes, sempre de maneira respeitosa e civilizada. Primeiro, pergunte como foi correr em conjunto: • O que facilitou e o que dificultou a fluência da corrida? • Como lidaram com eventuais descompassos ocorridos na passagem do bastão? • Foi possível digerir os próprios erros e os erros das(os) colegas de equipe? Depois, abra para que avaliem também o desempenho das outras equipes, assinalando o que foi bom e em que podem melhorar. 51 Arremessos e lançamentos Existem quatro modalidades nesta categoria: arremesso de peso, lançamento de dardo, de martelo e de disco. Em todas elas, vence a(o) atleta que conseguir arremessar o objeto a uma distância maior. Decatlo Praticada por homens, numa mesma prova são envolvidas dez modalidades do atletismo. As modalidades do decatlo são: corrida (100 metros), salto em distância, salto em altura, lançamento de peso, corrida (400 metros), corrida (110 metros com barreira), lançamento de disco, lançamento de dardo, salto com vara e corrida (1500 metros). Vence o atleta que conseguir maior pontuação no geral das provas. Heptatlo Prova combinada somente para mulheres. Envolve sete modalidades do atletismo: corrida (100 metros com barreira), lançamento de peso, lançamento de dardo, salto em altura, salto em distância, corrida (200 metros) e corrida (800 metros). Vence a atleta que conseguir maior pontuação no geral das provas. Referências GOIÁS (Estado). Secretaria de Estado da Educação. Reorientação curricular do 1º ao 9º ano: sequências didáticas: convite à ação. Educação Física. Goiânia: 2010. (Currículo em Debate, caderno 7.3.). Acesse em Revezamento As provas de revezamento são disputadas por grupos compostos por quatro atletas. Cada atleta corre um quarto da pista e passa um bastão para a(o) atleta seguinte de sua equipe. Saltos • Salto em distância: a(o) atleta corre numa pista de, no mínimo, 40 metros. Deve efetuar o salto antes de uma tábua de 20 cm de largura. Ao cair na areia é feita a medição da distância obtida. Vence a(o) atleta que conseguir o salto com maior distância. • Salto em altura: nesta competição a(o) atleta deve percorrer uma pista de, no mínimo, 15 metros, para saltar por cima do sarrafo (barra horizontal). A(O) atleta pode tocar o sarrafo, mas ele não deve cair. A altura vai aumentando a cada salto positivo. Vence a(o) atleta que conseguir saltar a maior altura sem derrubar o sarrafo. • Salto com vara: nesta competição a(o) atleta deve percorrer uma pista de, no mínimo, 40 metros, segurando uma vara nas mãos, para, tomando impulso com a vara fincada ao chão, saltar por cima do sarrafo (barra horizontal). A(O) atleta pode tocar o sarrafo, mas ele não deve cair. A altura vai aumentando a cada salto positivo. Vence a(o) atleta que conseguir saltar a maior altura sem derrubar o sarrafo. 52

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Letramento e cultura digital

Usos e sentidos das tecnologias

Integrar a cultura digital à educação desenvolve repertórios e valoriza o letramento crítico. Conheça aqui algumas oficinas para trabalhar esse tema na escola, em todos os níveis de ensino.

1 Letramento e cultura digital Oficinas para valorizar linguagens juvenis e conectar saberes escolares à cultura digital 2 3 A cultura digital está profundamente presente no cotidiano de crianças, adolescentes e jovens. Por isso, integrá-la ao processo educativo é uma oportunidade potente de ampliar os repertórios culturais, desenvolver competências comunicativas e promover o letramento crítico em múltiplas linguagens. Foi com esse olhar que organizamos este conjunto de oficinas temáticas sobre Letramento e Cultura Digital, voltado à Educação Infantil, aos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Cada oficina é acompanhada por um guia inicial que apresenta os materiais necessários, os objetivos da proposta, o público para o qual se destina, o espaço mais adequado para sua realização e a duração estimada. As orientações visam apoiar o planejamento das educadoras e educadores, ao mesmo tempo que abrem espaço para criações autorais, adaptações sensíveis e práticas conectadas com os contextos vividos por cada turma. As oficinas aqui reunidas nascem da experiência acumulada pelo Cenpec em projetos e programas desenvolvidos junto às redes públicas de ensino. São práticas validadas no cotidiano escolar, construídas em diálogo com professoras(es), gestoras(es) e estudantes, sempre com o compromisso de promover uma educação pública de qualidade, que respeite e valorize a diversidade em todas as suas formas. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Telejornal da galera 5 Oficina 2 - Trocando mensagens, hoje e sempre 11 Oficina 3 - Memes e recriação de sentido 19 Oficina 4 - Vamos criar podcasts? 25 Oficina 5 - Produzindo uma playlist comentada 30 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Telejornal da galera • Computadores com acesso à internet para pesquisa e redação de roteiros dos telejornais. • Câmeras fotográficas ou celulares com recurso de filmagem, ou filmadoras de qualquer tipo (com cabos para descarregar os conteúdos produzidos). • Gravadores digitais de qualquer modelo (com cabos para descarregar os conteúdos produzidos). • Computadores com programas de edição de vídeo. • Apresentar o telejornalismo como um recurso midiático que pode ser usado em ambientes educativos, com foco no exercício da coletividade e da cidadania. • Possibilitar o desenvolvimento da expressão comunicativa e do protagonismo infantojuvenil, colaborando no exercício de autoria das crianças e das(os) jovens. • Contribuir para o desenvolvimento da competência leitora e escritora e da expressão/comunicação oral das(os) participantes. • Pesquisar e elaborar roteiros para telejornais. • Abordar questões técnicas básicas relativas à produção, à captação de imagens e de áudio e à edição de telejornais amadores. • Reconhecer diferenças e particularidades das linguagens televisiva e jornalística na chamada “grande mídia” e fora dela. • Oficina de produção de telejornais por crianças e jovens em ambientes educativos. Autora da oficina: Paola Prandini, educomunicadora e jornalista. Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Propiciar a reflexão crítica sobre o poder das mídias na sociedade e sobre a necessidade de todas as pessoas terem voz legitimada nos diversos espaços sociais. • Promover o desenvolvimento da competência leitora, escritora e da expressão/comunicação oral entre as crianças e as(os) jovens, colaborando no exercício de autoria destas(es). • Favorecer a construção coletiva de um ambiente educativo democrático e cidadão. • Educação Infantil, anos iniciais e anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de leitura ou sala de informática. • 4 a 5 encontros de 45 a 50 minutos cada. Voltar para o sumário 6 Quando uma(um) educadora(or) problematiza o ambiente educativo em que está inserida(o) − seja uma escola de educação formal, seja um espaço de práticas educativas não formais −, geralmente se depara com os desafios de uma educação que precisa ser organizada de maneira coletiva, democrática e, por que não, que se aproprie das mídias. Para muitas(os) educadoras(es) o desafio é não reproduzir o que já está posto pelas mídias comerciais, mas criticar, reformular, transformar e (des)caracterizar esses meios a fim de deixá-los com a cara de quem produz a informação. Esta proposta tem como foco a produção de telejornais, criados em ambientes educativos, com base nas ideias e experimentações de crianças e jovens, apoiadas(os) pela(o) educadora(or). O grande “xis” da questão é construir um veículo de comunicação embasado nos princípios do telejornalismo, mas que respeite e dialogue com o coração dos projetos educomunicativos: crianças e jovens que estão na frente e por trás da câmera. Luz, câmera: crianças e jovens em ação A produção audiovisual em ambientes educativos pode colaborar no exercício de autoria das crianças e das(os) jovens que se engajam na criação de um telejornal, por exemplo. Afinal, serão as(os) protagonistas de um projeto com foco educomunicativo. As ideias e o formato do programa telejornalístico deverão respeitar o que a galera tem a dizer. É importante ter em mente que esse tipo de produção não visa competir com os veículos de comunicação comerciais. O foco está na realização de produções com tecnologias acessíveis, de forma colaborativa, a fim de que as(os) participantes aprendam a técnica, mas também apreendam valores e conhecimentos para exercitar a linguagem do telejornalismo em diferentes situações. Trata-se também de um exercício de cidadania. Na prática Sugestão de encaminhamento Para aquecer a turma Em qualquer produção que faça uso de mídias com propósito educativo, é essencial iniciar o processo com uma roda de conversa para identificar os repertórios trazidos pelas(os) participantes e os interesses do grupo em relação ao processo. A dica é começar com perguntas-chave, como: • Quais são as emissoras de televisão que você conhece? • Quais são os telejornais a que assiste ou já viu alguém assistindo? • Já visitou alguma página de telejornal na internet? Se sim, o que havia nela? • Como seria criar um telejornal com a nossa cara, que trate da nossa realidade e com nosso jeito de dialogar com o mundo? Início de conversa 7 Conhecendo a mídia Após a discussão, é interessante ressaltar que os telejornais são produções pré-formatadas e seriadas, feitas para um grande público que assiste aos mesmos programas em horários previsíveis. No entanto, é sempre bom lembrar a turma que o foco da produção telejornalística na escola/ comunidade não é, necessariamente, repetir o padrão comercial, mas transformá-lo, adaptá-lo para a realidade em que vivem. Dessa forma, é importante conhecer o modelo comercial para refletir sobre como podemos alterá-lo, a fim de deixá-lo com a nossa “cara”. Outra característica dos telejornais é a presença de um ou mais âncoras/apresentadoras(es), que são o “coração” desse tipo de programa. A figura à frente das câmeras deve imputar credibilidade e seriedade aos fatos narrados, garantindo a atenção e a confiança da(o) telespectadora(or). Nos primórdios da televisão, os apresentadores – geralmente homens − ostentavam uma postura comedida e neutra, com o intuito de transmitir a impressão de uma cobertura isenta e objetiva. Eles deveriam ler o texto jornalístico empregando a linguagem formal, de acordo com a norma-padrão, e de forma pausada e clara, articulando bem as palavras. Havia a exigência de que os apresentadores não usassem regionalismos nem sotaque característico de determinada localidade, utilizando uma linguagem “neutra”, padronizada para todo o país. Hoje tornou-se mais comum o padrão de apresentadora(or) teatral e exagerada(o), que se expressa numa linguagem mais popular e busca impressionar e comover as(os) espectadoras(es). No entanto, ainda há um esforço da equipe de redação dos telejornais em redigir cuidadosamente um discurso adequado à norma padrão que possa ser reconhecido como familiar pela maior parte da população. Além das características comuns a todos os veículos de imprensa – como a busca da novidade, da credibilidade e da exclusividade –, o discurso televisivo do jornalismo aposta numa multiplicidade de recursos para captar a audiência e mantê-la fiel. Heron Domingues apresentando o telejornal Repórter Esso em 1962. Fonte: Portal Imprensa 8 Um dos recursos é a narratividade, ou seja, a capacidade de transformar uma notícia em uma história. Para isso, muitas vezes, há um excessivo uso da teatralidade, reforçada pela edição e pela trilha sonora, bem como da emotividade, que busca aguçar a sensibilidade das(os) espectadoras(es). Além desse recurso, predomina a verossimilhança, como se a notícia estivesse sendo transmitida naquele momento, em tempo real. Não é à toa que os telejornais ocupam diversos horários das grades de programação das emissoras de televisão brasileiras, afinal sua importância sempre foi legitimada pelo público. Mão na massa! Para começar a produção de um telejornal com um grupo de crianças ou jovens de um mesmo espaço educativo, podem-se seguir as etapas abaixo: 1. Discutir com o grupo quais serão os quadros do telejornal, buscando definir a linha editorial. 2. Definir qual será a periodicidade do programa (diária, semanal, mensal etc.) e ainda qual será o modo de veiculação da produção (on-line, podendo ser disponibilizada em um canal do YouTube, ou ao vivo, sendo apresentada à comunidade educativa em tempo real). 3. Distribuir as funções entre as(os) componentes da equipe e as tarefas a serem cumpridas por cada integrante, sendo elas: • Coordenadora(or) de equipe ou produtora(or) – confere a pauta prévia, esclarece a cada membro da equipe seu respectivo papel, controla os horários e o cumprimento de metas, bem como garante que tudo esteja em ordem para o bom andamento do programa; • Operadoras(es) de câmera – responsabilizam-se pelas câmeras/celulares e sua operação, definem os ângulos, a iluminação e os ambientes adequados nas tomadas de cena, orientam as(os) entrevistadoras(es) e as(os) entrevistadas(os) quanto à postura e ao posicionamento; • Auxiliares – apoiam as(os) operadoras(es), carregando os acessórios e isolando o espaço em volta da gravação, verificam e anotam os detalhes importantes; • Editoras(es) de vídeo – fazem a organização do material bruto filmado, organizam a sequência das imagens, inserindo créditos e legendas; • Repórteres – apresentam e fazem perguntas às(aos) entrevistadas(os), responsabilizam-se pelos microfones, gravam os offs (locução das reportagens); • Âncoras – apresentam o telejornal, podendo estar em uma bancada – seguindo o modelo tradicional – ou ainda em pé, ou em outro formato mais criativo. 4. Criar um breve roteiro do que será apresentado no telejornal. Há modelos de roteiros telejornalísticos disponíveis na internet, mas a equipe pode criar um próprio, que deve conter: Quadros ou editorias: programas voltados a determinados temas, como: Ciência e Tecnologia, Educação, Cultura etc. O telejornalismo pode ser temático ou trazer diferentes assuntos na programação. 9 • Definições de câmera: enquadramentos (como plano geral ou gravação de um ou outro âncora, por exemplo); • Texto de locução das(os) apresentadoras(es); • Entradas de reportagens externas; • Momentos para colocação de vinhetas de abertura, de passagem de um quadro a outro e de encerramento. Vinheta: “carimbo sonoro” que toca no início ou no fim do programa ou entre um quadro e outro. Ouça e veja vinhetas de telejornais do mundo em 5. Conferir e testar todo o equipamento antes da saída para o evento. Para isso, elabora-se um checklist, verificando se há câmeras/celulares disponíveis; baterias e pilhas carregadas e outras de reserva; cartões de memória, cabos e carregadores; tripé ou monopé, quando possível; bolsas para transporte de material, devidamente identificadas, no caso de saídas a campo. 6. Tomar cuidado com os ruídos no ambiente: quanto mais silencioso for o ambiente melhor, pois os microfones das câmeras/celulares, geralmente, apresentam baixa qualidade de captação. É sempre interessante providenciar um backup de áudio em paralelo – com o uso do gravador digital – para, se necessário, ser usado na edição. 7. Escolher um fundo que contraste com o que está sendo gravado. 8. Buscar um apoio fixo para a câmera/celular, sempre que possível. 9. Escolher a melhor forma de deixar o seu objeto de filmagem centralizado na tela e evitar contraluz, pois dificilmente gera bom efeito em coberturas jornalísticas. 10. Dar um espaço no início e no final da gravação, para não haver cortes de materiais importantes. 11. Gravar já valendo, ou seja, sem contar com a edição posterior. 12. Baixar o material gravado, bruto, em um computador instalado com software de edição de vídeo, a fim de que fique com a sequência determinada na reunião de pauta do grupo. 13. Disponibilizar o programa em um site de compartilhamento de vídeos, como o YouTube ou o Vimeo. A avaliação das práticas apresentadas deve ser contínua, aplicada ao longo de todas as etapas do processo, a fim de se construir ambientes dialógicos, que valorizem a igualdade de oportunidades e opiniões de todas(os) as(os) envolvidas(os). A dica é desenvolver indicadores para avaliações periódicas, como: • Formulários (impressos ou on-line, como os disponíveis no Google) para condução de pesquisas e enquetes; • Rodas de conversa com todas(os) as(os) integrantes das atividades; • Dinâmicas de avaliação que incentivem as(os) participantes a discutir o que já foi feito e o que está previsto, conforme as ações planejadas. Hora de avaliar 10 Conteúdos na web TV Cedro Rosa: telejornal produzido por crianças de uma escola de Educação Infantil da cidade de São Paulo. Entrevista com Marcelo Santos, educador que criou e coordenou o projeto TV Cedro Rosa. Acesse em TV Paulo Freire: reportagem sobre a criação de um telejornal sobre geografia em uma escola estadual da cidade de Janiópolis (PR). Acesse em Sala de Aula: entrevista com estudante deficiente visual sobre sua experiência ao participar de um telejornal universitário. TeleLibras: telejornal apresentado com tradução em Libras, criado pela OSC Vez da Voz. Acesse em Para ampliar 11 Oficina 2 Trocando mensagens, hoje e sempre Autora da oficina: Paula Baracat De Grande, doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Computador, tablet ou celular com acesso à internet. • Livros de literatura já lidos pela turma. • Biografias de autoras(es) selecionadas(os) - livros impressos ou digitais. • Retomar autoras(es) e obras da literatura brasileira. • Conhecer o gênero “carta pessoal” explorando as cartas de algumas(uns) autoras(es) estudadas(os), disponíveis no acervo do Instituto Moreira Salles. • Criar perfis fictícios em rede social para as(os) autoras(es) selecionadas(os). • Elaborar interações entre as(os) autoras(es). • Leitura de cartas entre escritoras(es) brasileiras(os), com o devido reconhecimento das características do gênero textual “carta pessoal” e produção de textos para compartilhamento em redes sociais. • Construir o conhecimento do gênero “carta pessoal”. • Promover o gosto pela leitura literária. • Trabalhar leitura, literatura e produção de texto na hipermídia. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 12 Início de conversa As cartas pessoais caíram em desuso. Mas a prática de trocar mensagens por escrito entre amigas(os), familiares, colegas de profissão, casais de namoradas(os) se mantém por meio das novas mídias: e-mail, Facebook, WhatsApp, Instagram, X, SMS e outras tecnologias disponíveis na palma da mão impulsionam a troca de mensagens pessoais. Que tal apresentar o gênero “carta pessoal” à turma por meio de cartas trocadas entre escritoras(es) brasileiras(os)? E ainda criar diálogos fictícios entre essas(es) escritoras(es) com perfis em redes sociais? Esta oficina busca aproximar as(os) alunas(os) de autoras(es) importantes da nossa literatura e mostrar a elas(es) como a prática de escrever sobre si a pessoas próximas existiu de outras maneiras e continua existindo com as mudanças trazidas pelas novas tecnologias. Para isso, vamos explorar o acervo de cartas do Instituto Moreira Salles . Você pode fazer uma seleção prévia de cartas escritas por autoras(es) já lidas(os) pelas(os) estudantes ou deixar que elas(es) as selecionem por data, local, tema, título de cartas etc. O acervo é riquíssimo e oferece inúmeras possibilidades de trabalho. Sugestões de temas para a pesquisa no acervo de cartas: • Composição musical e criação de canções (trocas de cartas entre Vinícius de Moraes e Chico Buarque sobre a composição de Valsinha); • Momentos históricos marcantes no Brasil e no mundo, como a ditadura militar no país e a criação artística da época (ver, por exemplo, as cartas sobre cinema) etc. Para inspirar, ouça a canção Carta ao Tom 74, de Toquinho e Vinícius de Moraes . Nela, o poeta Vinícius conta sobre essa composição e a canta acompanhado de Toquinho e do conjunto vocal Quarteto em Cy. 13 Conversa inicial Em uma roda de conversa, pergunte se as(os) estudantes já escreveram ou receberam uma carta pessoal. Provavelmente, a maioria nunca trocou cartas. Para exemplificar, leia com a turma uma das cartas pessoais encontradas no acervo do Instituto Moreira Salles. Uma opção interessante é a carta de Clarice Lispector, que simula um diálogo com um destinatário, o poeta e dramaturgo Lúcio Cardoso, a seguir: Na prática Sugestão de encaminhamento Acesse essa correspondência no acervo do IMS Leitura e análise dos textos Na carta acima, é possível explorar, entre outros elementos: • Estrutura composicional: local e data no início, com saudação à(ao) destinatária(o) e assinatura ao final; • Estilo: escolhas linguísticas que marcam a relação pessoal informal entre as(os) interlocutoras(es) e a comunicação direta entre elas(es); • Conteúdo temático: bastante original no caso dessa carta, que pode ser comparada com as trocas de mensagens instantâneas de hoje: Clarice reclama da demora do amigo em lhe enviar cartas e simula um diálogo face a face ou instantâneo (semelhante aos de hoje nas redes sociais), ironizando a falta de respostas do amigo. 14 Com base na carta de Clarice Lispector, discuta com a turma as diferenças entre esse tipo de correspondência em relação à comunicação instantânea pela internet e também seus possíveis problemas. Questione o que, na visão das(os) estudantes, pode ser interessante na troca de cartas pessoais pelo correio. Desvendando o baú de cartas Convide a turma a explorar as cartas disponíveis no acervo do Instituto Moreira Salles . Essa pesquisa pode ser feita a partir de filtros variados, a saber: • Data (desde 1500 até 2019); • Local (diversos países e regiões do Brasil); • Tema (alegria, amizade, amor, anistia, educação, erotismo, exílio, memória, solidão, sonho, viagem…); • Tipo de correspondência (bilhete, carta aberta, carta pública, carta/crônica…); • Formas de escrita (datiloscrito, digitado ou manuscrito); • Remetentes; • Destinatários. Para examinar mais correspondências pessoais, você pode selecionar um assunto de interesse das(os) alunas(os). Com turmas dos anos finais do Ensino Fundamental, uma boa sugestão é a carta da poeta Ana Cristina Cesar, escrita aos 10 anos de idade, sobre férias e infância, a seguir: Acesse essa correspondência no acervo do IMS 15 Com alunas(os) do Ensino Médio, uma sugestão é ler a carta apaixonada e exagerada do poeta Augusto Frederico Schmidt, a seguir: Debatendo com a turma Com base nas cartas lidas e analisadas, promova um debate com a turma: • O que mudou na comunicação entre as pessoas com o advento da internet e dos aparelhos de comunicação portáteis? • Quais são as vantagens e desvantagens dessas mudanças e avanços? • Os assuntos tratados por meio de redes sociais e mensagens são semelhantes aos das cartas pessoais lidas? Instigue a turma a compartilhar ideias sobre quais meios utilizam para trocar mensagens com teor semelhante às cartas lidas. Pergunte sobre o que conversam nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens na internet e no celular. Também é interessante saber se conversam com pessoas (amigas(os), familiares etc.) que estão distantes ou próximas. Após a leitura e a análise das cartas e o debate sobre as maneiras de se comunicar ontem e hoje, leia a apresentação do acervo no site e conte um pouco sobre as(os) escritoras(es) ou artistas envolvidas(os). Acesse essa correspondência no acervo do IMS 16 Do baú pra rede Então, proponha às(aos) alunas(os): • Que tal criarmos perfis em rede social parodiando as(os) escritoras(es) preferidas(os) da turma? E depois fazê-las(os) trocar mensagens entre si? Para aguçar a turma, você pode mostrar o exemplo a seguir: Em seguida, divida a turma em trios ou quartetos. Cada grupo se encarregará de criar o perfil de uma(um) escritora(or) estudada(o) pela turma que tenha cartas disponíveis no acervo do Correio IMS. Oriente-as(os) a pesquisar a biografia e a obra da(o) escritora(or) selecionada(o) para montar um perfil em rede social condizente com a vida e a obra da pessoa. Antes de criarem os perfis, oriente os grupos a pesquisar a biografia da(o) autora(or), suas principais obras e as características de sua produção literária, além de selecionar trechos de obras (poemas, contos, romances, crônicas etc.). Se, na troca de cartas, há referência a alguma obra específica, é interessante que as(os) alunas(os) a pesquisem. Por exemplo, na carta escrita por Erico Verissimo a Lygia Fagundes Telles, em 1966 (Um cômico pugilato), o autor gaúcho comenta a coletânea de contos O jardim selvagem, de Lygia (acesse a carta em . As(Os) alunas(os) podem ler alguns contos da coletânea e selecionar trechos que as(os) agradam. Outra sugestão é trabalhar as obras de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, com base na carta escrita em 1942 por Drummond a João Cabral (Mas o povo não lê poesia… Quem disse?). Verifique a necessidade de explicar à turma a presença do P.S. nesta carta (“P.S.: Obrigado pela dedicatória! Ia-me esquecendo.”). Postagem disponível na página Homo Literatus (Facebook). Acesse em: 17 Com base nas pesquisas que desenvolverem, peça que elaborem cartazes ou, se possível, apresentações de slides (usando ferramentas como PowerPoint ou Prezi) com características da obra e fatos da vida da(o) autora(or) para mostrar aos outros grupos. Incentive que façam comentários e perguntas que ajudem a aprimorar os cartazes. Então, oriente os grupos a criarem os perfis fictícios em rede social. Ao preencher o perfil, o grupo deve se basear nos cartazes que elaboraram. Cada grupo pode escolher o tom que dará ao perfil: informativo, humorístico, irônico, poético… Você também pode criar um perfil de uma(um) escritora(or) de sua preferência para interagir com as(os) alunas(os). Suas postagens e comentários podem ajudar os grupos a compreender a brincadeira e encarnar os personagens. Evite postar como professora(or) no perfil, para conferir um tom descontraído e lúdico à atividade. Estimule cada estudante a curtir os perfis criados pelas(os) colegas e comentar as postagens. Inicialmente, é interessante restringir a rede de amigas(os) aos grupos de alunas(os). Ao longo do bimestre, você pode lançar desafios e provocações para que a turma poste trechos das obras e comentários sobre elas. Por exemplo, tendo em vista um tema ou conteúdo estudado, desafie os grupos a buscar um trecho de algumas obras que tenham relação com o tema para postarem na rede social. Incentive os grupos a postarem links para sites relacionados à(ao) escritora(or) escolhida(o), assim como fatos (fictícios ou não) que tenham relação com sua vida e/ou sua obra. Essas postagens podem inclusive servir para comentar acontecimentos atuais de interesse das(os) alunas(os). As(Os) estudantes também podem fazer montagens, postando imagens das(os) escritoras(es) juntas(os), brincando com a relação entre elas(es). Uma prática que faz bastante sucesso nas redes são os memes com imagens da(o) escritora(or) e frases que façam alusão à sua obra, seja reproduzindo trechos, seja parodiando-os. P.S. Eu te amo Essa fórmula era utilizada para indicar algo que a(o) remetente considerava necessário acrescentar após o encerramento da correspondência, escrita à mão ou à máquina de escrever. Com o tempo, passou a ser usada para corrigir lapsos de memória ou informar que haviam ocorrido alterações depois que se deu por concluída a carta. Hoje, o P.S. é usado como estratégia para destacar algo (“Ah! Antes que eu me esqueça…“), geralmente anunciando o mais importante a dizer. 18 Veja alguns exemplos de memes sobre autoras(es) da nossa literatura: Conheça páginas no Facebook que podem ser exploradas nesta atividade Homo Literatus - Literatura da Depressão - Caio Fernando Abreu - Simplesmente Clarice Lispector - 19 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Memes e recriação de sentido • Lápis de colorir, giz de cera ou canetinhas de várias cores. • Folhas de papel sulfite. • Seleção de memes impressos ou para projeção. • Aparelho para escanear (se houver). • Trabalhar compreensão de conceitos, leitura crítica, síntese, metáfora, ironia e caricatura. • Estimular a construção coletiva e a troca de narrativas entre as(os) participantes, proporcionando um veículo de criação e compartilhamento. • Elaborar textos e imagens, partindo de um tema geral, que podem ser compostos a partir de um banco de memes já existentes. • Troca e exposição dos materiais produzidos. • Criação de memes com base em imagens disponíveis na internet. Autora da oficina: Sabrina Paixão, arte-educadora e pesquisadora de HQ na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). • Desenvolver a leitura e criação de textos multimodais, promovendo a formação do senso crítico e da criatividade. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, sala de informática ou outro espaço. • 2 a 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 20 Com o advento de fóruns, blogs e redes sociais, a cultura digital tornou-se uma via de criação de conteúdos e compartilhamento instantâneo de informações. Nesse contexto, surgiram diversos gêneros textuais multimodais (compostos por linguagens diversificadas: textos escritos, fotos, ilustrações, vídeos, áudios…). Um desses novos gêneros que ganhou popularidade na rede pelo seu componente de humor e crítica é o meme. Afinal, de onde vem este conceito, e como foi transportado para uma produção de sentido através de imagens fixas, caricaturais e por vezes replicadas de contextos variados? Criado por Richard Dawkins, o termo meme é utilizado analogamente ao termo gene, como menor unidade replicadora de informação. Os genes são replicadores de informações biológicas. Já o meme atuaria na transmissão cultural como um replicador de ideias. Dawkins, que é teórico evolucionista e autor da obra O gene egoísta (1975), define que a transmissão de informações e ideias se daria de forma análoga à genética para a constituição biológica. Início de conversa Richard Dawkins em meme metalinguístico (“Chamando memes de memes: É um meme”) Fonte: Museu de memes Segundo o geneticista Ricardo Waizbort, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os memes se propagam pelo cérebro humano graças à imitação, capacidade inerente ao homem: "o poder dos memes depende da capacidade de imitá-los, de reproduzi-los, seja através de ações e gestos (como imitar o ato de fazer uma ponta de lança), seja por pinturas, palavras faladas, registros escritos, poemas, programas de rádio ou de computador.” Os memes da internet são forma de comunicar um conteúdo que se relaciona a um contexto compreensível pelo grupo, e com propensão a viralizar pela web, dando origem a outros memes. Da mesma forma que surgem, os memes cibernéticos podem desaparecer, ou se saturar. Alguns modelos, entretanto, mantêm-se como exemplos matrizes, como as caricaturas da rage faces, considerados precursores deste movimento na web. Segundo Lucio Luiz, a primeira rage face surge em 2007 em um subfórum sobre videogames, em que uma(um) usuária(o) anônima(o) postou uma caricatura de outra(o) usuária(o) - rage guy, “cara irritado”. Dessa caricatura surgiu a primeira rage comics, uma série de quatro quadros com desenhos bem toscos, em que uma rage face aparece. Atualmente, as rage faces se multiplicaram, abarcando diferentes expressões faciais que exageram emoções ou situações, e deixaram de ser apenas caricaturas para incorporar desenhos, expressões faciais de personalidades, trechos de cenas de filmes, e tudo o que mais possa ser replicado de modo a transmitir a mensagem. Rage comics. Fonte: Runt of the web 21 A criação de memes cibernéticos se dá de forma colaborativa e espontânea, refletindo piadas internas de determinados grupos e sendo constantemente reutilizadas em outros contextos para a elaboração de novas piadas. Meme inspirado em expressão facial do ator Jackie Chan. Fonte: Meme generator Memes na construção de conhecimento Em junho de 2016, uma reportagem chamou a atenção de educadoras(es) e estudantes quanto às possibilidades dos memes na recriação e síntese literária. A proposta da professora chilena Jacqueline Bustamante desenvolvida com as(os) alunas(os) foi criar memes representando momentos importantes da obra Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Acesse a reportagem A professora que pediu a suas alunas ‘memes’ de Cem anos de solidão, publicada no El País, em PARA APROFUNDAR Segundo a professora, para a criação destes memes, as(os) estudantes deveriam captar a essência da narrativa, o que contribui para uma leitura mais significativa da obra. O que ela não imaginava era a repercussão que as imagens ganhariam, inclusive estimulando outras(os) educadoras(es) a proporem ações similares, inovando nas formas avaliativas e criando um canal de comunicação com as(os) jovens, dentro de uma linguagem com a qual elas(es) convivem cotidianamente. Meme criado por estudantes sobre obra Cem anos de solidão, inspirado em sequência de memes de Homer Simpson. Fonte: El País 22 Muitos outros memes populares circulam nas redes sociais, que se apropriam de imagens clássicas para tratar com humor de questões próprias de suas áreas (Pedagogia da Depressão, TTC da Depressão, Artes Depressão, Design Depressão, entre outras). Meme sobre obra de Jean-Baptiste Greuze, “Pupilo dormindo em seu livro”, 1755 A seguir, apresentamos algumas sugestões para a criação de memes aplicada ao estudo de disciplinas curriculares, por meio da reutilização de imagens que estão disponíveis na internet. Na prática Sugestão de encaminhamento Ponto de partida Qual tema você pretende trabalhar? Note que há uma gama infinita de possibilidades. Para esta atividade, é válido reproduzir memes clássicos. O objetivo não é a criação do desenho, mas sim a capacidade de sintetizar uma ideia, pensamento ou conceito utilizando as características do meme. Nada impede que as(os) estudantes criem suas próprias imagens para os memes. Na criação, é importante ter em mente que o humor e a ironia compõem a mensagem junto com a imagem selecionada. Neste ponto também é possível iniciar um diálogo sobre bullying e apropriação de imagens na internet. Como os memes podem ser criados com base em qualquer imagem, como fotos e vídeos, eles também podem servir de ponto de partida para discussões mais aprofundadas sobre a utilização consciente das redes, as fronteiras entre a piada e a ofensa, além das questões ligadas aos direitos de imagem e crimes virtuais, por exemplo. Além das disciplinas de Línguas e Literatura, a criação de memes pode abarcar conceitos de Ciências e Matemática, de Artes e até mesmo de Filosofia Meme do Dinossauro filósofo. Fonte: Memes Dorgado 23 Após a confecção, você pode propor uma mostra entre as turmas, ou exposição na sala, ou mesmo o compartilhamento destes memes entre as(os) estudantes, via redes sociais. Se você leciona em mais de uma turma, pode propor temas ou obras diferentes para cada uma e, após a produção, levar as(os) estudantes a compartilhar suas produções com as(os) colegas. Esse compartilhamento possibilita verificar se o meme atingiu seu objetivo comunicacional. Partindo das dúvidas e do grau de compreensão que apresentarem, é possível constatar o quanto o meme alcançou e transmitiu a mensagem pretendida. Primeiro momento: reconhecendo memes A proposta desta oficina é trabalhar com um tipo de meme: os que utilizam as rage faces. Você pode desenvolver a oficina durante a aula ou propor como exercício para casa. Inicie a atividade com uma conversa perguntando se as(os) participantes conhecem e costumam compartilhar memes. O objetivo é fazer um levantamento dos conhecimentos prévios sobre esse novo gênero textual. Após essa primeira abordagem, é interessante pedir às(aos) estudantes que selecionem e compartilhem com a turma alguns memes que acharem engraçados ou interessantes. Traga você também algumas rage faces como exemplo. Depois de exibir as seleções trazidas, proponha uma nova rodada de conversa. Pergunte: que emoções, sentimentos e ações cada meme busca transmitir (raiva, pressa, confusão, medo)? Peça que as(os) participantes façam caretas: essa é a base dos primeiros memes, as rage faces. Como é uma careta de pavor, de revolta ou de divertimento? Em que elas se parecem com as apresentadas pelos memes? Este é o princípio da transmissão de conhecimento através de desenhos tão caricaturais: perceber que todos nós temos basicamente as mesmas formas de exprimir emoções por meio da nossa expressão corporal. Essa é a chave que transforma o meme em um veículo comunicacional tão abrangente e reconhecível em sua estrutura mínima de linguagem. Segundo momento: criando memes Proponha às(aos) estudantes a criação de seus memes. Defina o tamanho e material em que será feito o meme e se ele será com quadro único, ou tipo história em quadrinhos, com 4 a 6 quadros. Defina com elas(es) se o trabalho será desenvolvido individualmente, em dupla ou grupo e combine um prazo para a finalização do trabalho. Vetor do meme challenge accepted. Fonte: Mensagens com amor 24 O que se espera deste tipo de atividade é que as(os) estudantes captem a concepção da transposição de temas, os recursos literários da ironia, do sarcasmo e do “time” do humor, e como elas(es) podem ampliar as percepções de sentido de uma imagem criada em um contexto diverso. A avaliação deste tipo de conteúdo se dá observando as capacidades de trabalhar a ironia, o humor, a clareza da referência e a seleção da imagem de acordo com a ideia a ser transmitida. Hora de avaliar Para ampliar Conteúdos na web A professora que pediu a suas alunas “memes” de Cem anos de solidão. Acesse em Lista de memes com seus significados. Acesse em 10 cenas de filmes que se tornaram memes da internet e o porquê disso. Referências DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; FREDERICO, Gisele. O meme na produção audiovisual da internet. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Cinema. Escola de comunicação e artes. Universidade de São Paulo; LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa, São Paulo: Ed. 34, 1999; LUIZ, Lucio (org.). Os quadrinhos na era digital: HQtrônicas, webcomics e cultura participativa. Nova Iguaçu, RJ: Marsupial, 2013; WAIZBORT, Ricardo. Dos genes aos memes: a emergência do replicador cultural. Episteme, Porto Alegre, n. 16, p. 23-44, jan./jun. 2003. 25 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 Vamos criar podcasts? • Programa gratuito para edição de áudio (como o Audacity), que deve ser instalado no computador. • Cadastro em sites para armazenar e compartilhar podcasts, como SoundCloud e Podomatic. • Fones de ouvido com microfone (headphones) e/ ou microfones de mesa, fones de ouvido e caixas de som para computadores e notebooks. • Apresentar o rádio e o podcast como recurso educativo e cultural democrático para exercício da cidadania. • Promover a expressão, a comunicação e o protagonismo infantojuvenil por meio de práticas multiletradas. • Abordar questões técnicas básicas relativas a locução, captação e edição de áudio. • Reconhecer particularidades da linguagem radiofônica. • Trabalho com a linguagem de rádio por meio da criação de arquivos de áudio digital. Autora da oficina: Paola Prandini, educomunicadora e jornalista. Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Contribuir para o desenvolvimento da competência leitora, escritora e oral das(os) participantes. • Promover práticas de multiletramento e letramento digital. • Praticar diferentes formas de conhecer e aprender e valorizar a diversidade. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 3 a 5 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 26 A escola divide seu espaço com outras formas de aprendizagem e disputa a atenção de crianças, adolescentes e jovens com diferentes práticas sociais e tecnologias, sobretudo as interativas, como a internet e os programas de televisão e da web que convidam o público a enviar comentários e sugestões de reportagens, por exemplo, além dos videogames, iPods, celulares, entre outros aparelhos eletrônicos. Imagina-se que, em algumas atividades entediantes, se pudesse, a(o) estudante apertaria um botão e desligaria a(o) professora(or), ou ao menos trocaria de canal. Nesse cenário, uma pergunta vem à mente: • Como os ambientes educativos podem dialogar com essa dimensão social? Comunicação e educação são indissociáveis. Juntas, elas podem proporcionar uma nova realidade para a escola. É possível facilitar o aprendizado e colocar em pauta assuntos e conhecimentos que antes não transitavam por esses espaços (e ainda hoje se apresentam de modo tímido). Além disso, a aliança entre educação e comunicação – que muitas(os) estudiosas(os) hoje chamam pelo termo educomunicação − potencializa a transformação de estudantes em cidadãs(ãos) conscientes e críticas(os). Início de conversa Saiba mais sobre os conceitos e as possíveis abordagens da Educomunicação. Acesse em PARA APROFUNDAR Esse é um dos objetivos desta oficina, que propõe o trabalho com rádio a partir da produção de podcasts (arquivos de áudio digital). Por meio de podcasts, é possível ouvir e baixar arquivos de áudio on-line, basta ter conexão com a internet. A palavra podcast vem da junção de pod (de iPod, aparelho reprodutor de áudios digitais em formato de arquivo) e cast (de broadcast, radiodifusão, transmissão de sinais de rádio e TV). Com essa prática, podemos colaborar para um ambiente educativo que ofereça oportunidades iguais às(aos) estudantes, favoreça a comunicação e o respeito pela(o) outra(o) – e por sua opinião − como pilar para a vida em uma sociedade democrática. Sem contar a importância de ter voz dentro e fora dos espaços educativos! O trabalho com rádio é também uma excelente oportunidade de envolver crianças, adolescentes e jovens em práticas letradas abrangendo oralidade e escrita, o que pode colaborar para a ampliação das formas de expressão e para o letramento digital das(os) envolvidas(os). 27 Produção coletiva e difusão de conteúdo Nossa proposta é produzir coletivamente pequenos programas em áudio e disponibilizá-los em blogs ou sites. Caso o objetivo seja ampliar os horizontes, você pode publicar as produções em sites para armazenamento de podcasts (como os citados na lista de materiais, no início da oficina). Assim, qualquer pessoa no mundo poderá conferir on-line as produções. Vale dizer que não há nenhuma limitação do que pode ser disponibilizado em podcast: desde um depoimento breve até um programa de rádio completo (veja abaixo exemplo de lauda). No entanto, é sempre bom lembrar que quanto mais objetiva, melhor a produção em áudio! Na prática Sugestão de encaminhamento Lauda para produção de um programa de rádio Primeiro encontro: aquecendo a turma! Em qualquer produção que faça uso de mídias na educação, é essencial iniciar com uma roda de conversa para identificar o repertório trazido pelas(os) participantes e seus interesses em relação ao processo. A dica é começar com perguntas-chave, por exemplo: • Vocês costumam ouvir rádio? Quais? E que programas preferem? • E na internet, conhecem algumas rádios e programas de podcast disponíveis na rede? Quais? • Como esses tipos de rádio podem ser adaptados à nossa realidade? 28 Conhecendo a mídia… Após a discussão, é interessante ressaltar que rádio é um tipo de mídia popular, informal e que geralmente usa linguagem coloquial. Além disso, no caso de um podcast, a audição não ocorre apenas durante a transmissão, ou seja, a(o) espectadora(or) pode ouvir em outro momento, quantas vezes quiser. Com base na conversa inicial, você pode criar uma lista de programas de rádio e podcast citados pelas(os) estudantes, além de outras sugestões que considere interessante que elas(es) conheçam. Ouça alguns com a turma e combine que acessem outros observando os temas, tipos de programa e estilo de linguagem. Peça que cada uma(um) anote suas observações, impressões e ideias sobre os programas. Segundo encontro: conhecendo a linguagem de rádio Organize uma nova roda de conversa para retomar com a turma as observações, ideias e impressões sobre os programas de áudio acessados. Você pode fazer perguntas que as(os) orientem a perceber características da linguagem de rádio. • Quais são os principais temas dos programas que vocês ouviram? • Quem são as(os) apresentadoras(es)? Qual é o perfil delas(es)? • A que público se dirigem? • Os programas usam outra linguagem além da fala, como músicas instrumentais, canções e trilhas sonoras? • Os programas têm diferentes blocos, seções e quadros temáticos? - Acesse exemplos de quadros para programas de rádio em ; • Há uma vinheta de abertura? - Saiba o que é uma vinheta musical e onde utilizá-la em Em seguida, conte para a turma que vocês vão criar seu próprio programa de rádio! Terceiro encontro: mãos à obra! Para começar a produzir um programa de rádio coletivo usando o podcast com um grupo de crianças, adolescentes ou jovens, você pode seguir estas etapas: • Escolham um tema para o programa, sempre tendo em mente qual será o público-alvo; • Definam alguns quadros e vinhetas; • Escolham as trilhas musicais para o programa; • Organizem a sequência do programa conforme a lauda apresentada nesta oficina; • Ensaiem antes de gravar; 29 • Façam a gravação usando um programa gratuito para edição de áudio (sugerimos o Audacity); • Editem seu programa também usando o Audacity ou outro software similar; • Cadastrem-se em um site para armazenamento de podcast (como o Soundcloud, o Podomatic ou outro) e publiquem seu arquivo de áudio; • Divulguem a produção em um blog ou site, ou ainda no próprio site em que armazenaram o seu podcast. Organize com a turma as etapas e tarefas para o projeto, que pode levar mais alguns encontros. Dicas sobre linguagem de áudio • Ao gravar um áudio, é importante que o texto a ser falado seja claro, direto, simples e conciso; • Evite palavras acessórias, como adjetivos, advérbios de modo e pronomes indefinidos (por exemplo, em vez de dizer “Diversos adolescentes se inscreveram para assistir a vários filmes da mostra de cinema organizada por alguns educadores desta bela escola”, prefira: “Estudantes se inscreveram para assistir a filmes da mostra de cinema organizada por educadores desta escola.”); • Fuja do gerundismo (por exemplo: em vez de “estaremos verificando…” diga “vamos verificar”); • Prefira a ordem direta das frases e a voz passiva (por exemplo: é melhor dizer “os organizadores divulgarão os eventos” do que “os eventos serão divulgados pelos organizadores”). É importante que a avaliação das práticas seja contínua, ao longo de todas as etapas do processo. Dessa forma, é possível construir ambientes dialógicos, que valorizam a expressão e a opinião de todas(os) as(os) envolvidas(os). A dica é sistematizar indicadores para avaliações periódicas, como: • Formulários (impressos ou on-line, como os disponíveis no Google Drive) para pesquisas e enquetes; • Rodas de conversa com as(os) integrantes das atividades; • Dinâmicas de avaliação que incentivem as(os) participantes a discutir as ações realizadas e previstas, conforme o planejamento compartilhado com a turma. Expectativas de aprendizagens Com essas sugestões, pretendemos promover a reflexão crítica sobre o poder das mídias na sociedade e sobre a necessidade de todos os indivíduos terem voz legitimada nos diversos espaços sociais. A criação de programas de rádio usando o podcast é uma proposta midiática que, além de favorecer o letramento digital, contribui para a construção coletiva de um ambiente educativo democrático e cidadão. Hora de avaliar Conteúdo na web Podcast: como usar na sala de aula? - Leia em Para ampliar 30 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 Produzindo uma playlist comentada • Computador, tablet ou celular com programa de edição de áudio, como o Audacity. • Exercitar a curadoria, elegendo um critério para seleção e organização de canções e operando escolhas de forma adequada. • Desenvolver habilidades de leitura, como localizar informações explícitas, realizar inferências, tecer intertextualidade, fazer relações entre o verbal e o não verbal, entre outras, na compreensão das canções, seja para decidir se pode ou não ser incluída em uma playlist, seja para refletir sobre que comentários sobre ela são pertinentes. • Pesquisar diferentes fontes e tratar (parafrasear) informações sobre as canções para construir um texto articulado (evitando o “copiar e colar”). • Descrever, explicar e apreciar/comentar/argumentar. • Promover situações em que as(os) alunas(os) sejam mais protagonistas e lidem com a diversidade, com as diferenças de forma respeitosa. • Ampliar os multiletramentos, contemplando diferentes culturas, linguagens e mídias. • Apropriar-se de critérios de apreciação estética. • Desenvolver habilidades ligadas ao uso da linguagem oral pública, mais especificamente relacionadas à locução de programas de rádio. Criação de sequência de músicas com comentários escritos (relatos, apreciações) de forma semelhante a um programa musical de rádio. Autora da oficina: Jacqueline Peixoto Barbosa, professora do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp. Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Possibilitar a formação de sujeitos competentes e críticos no uso de ferramentas tecnológicas, que compreendem implícitos e escolhas, e que explorem de forma transformadora as informações, os conhecimentos e as ferramentas disponíveis para seus projetos comunicativos. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de informática ou outro espaço com computador e acesso à internet. • 2 a 3 encontros de 1h a 1h30 cada. Voltar para o sumário 31 “Dedico esta música à Guilhermina Viana, do Largo do Rosário.” Quem nunca recebeu ou dedicou uma música a alguém, gravou uma fita ou lembrou algo (ou alguém) ouvindo alguma canção? É praticamente impossível dizer não a todas essas perguntas. As tecnologias digitais de comunicação e informação (TDIC) facilitaram muito essas práticas. Podemos, por exemplo, enviar a qualquer momento uma canção para alguém, que pode ouvila instantaneamente (ou quando quiser). Com o celular, também podemos ouvir música em quase todos os lugares. As TDIC permitem que qualquer pessoa faça coisas que antes só iniciadas(os) ou profissionais faziam ou que nós mesmos fazíamos, mas dispendendo muito mais esforço e tempo. Conhecer um CD ou disco de vinil de uma(um) compositora(or) tal e qual ela(e) o concebeu − a ordem das canções planejada, o encarte, as imagens, o design da capa (e da contracapa), entre outros − permite entender melhor a proposta apresentada pela(o) artista, ampliando os sentidos de suas composições. Mas isso não nos impede de ouvir só algumas das canções de um disco de vinil ou CD, na ordem em que escolhermos, misturadas ou não às de outros discos ou CDs de diferentes compositoras(es) e/ou cantoras(es). Antigamente, tínhamos que gravar fitas para isso. Gravávamos faixas de discos de vinil ou músicas que tocavam em rádio. Quase sempre traziam o jingle da rádio ao final, que tínhamos que cortar, muitas vezes de forma abrupta. Tínhamos que ouvir a música inteira e apertar as teclas REC no início de cada gravação e STOP ao final. Gastávamos muitas horas para gravar uma fita com cerca de 20 músicas. Hoje, gastamos apenas alguns minutos para selecionar músicas e montar uma playlist com uma infinidade delas. As playlists podem vir acompanhadas de apresentações, relatos, apreciações e comentários, de forma semelhante a um programa musical de rádio, podendo então ser chamada de playlist comentada. Ela pode intercalar texto escrito e os links das canções, ou contar com uma locução − nesse caso, o texto é oral, o que supõe a utilização de algum editor de áudio. Início de conversa Playlist: ao pé da letra, significa “lista de reprodução” – de músicas, vídeos, entre outros. Pode incluir sites, imagens, artigos, games etc. Aqui será proposto o segundo tipo de playlist (comentada com textos escritos), mas nada impede que as atividades sejam adaptadas para contemplar o primeiro tipo (com locução). Para alunas(os) em alfabetização, essa última pode ser uma alternativa interessante. Outra ideia é a produção coletiva de uma playlist da turma em que a(o) professora(or) escreve parte dos textos. 32 Na prática Sugestão de encaminhamento Iniciando a atividade Converse com as(os) estudantes sobre: • Quais são as suas preferências musicais, costume (ou não) de ouvir músicas? • Em que circunstâncias o fazem? • Quais gêneros musicais e compositoras(es) e/ou intérpretes costumam ouvir? • Produzem ou ouvem playlists, como e onde fazem? Proponha a exploração de playlists simples e comentadas. Desmontando uma playlist Proponha que escutem uma playlist comentada (sugerimos Dia da Consciência Negra), procurando analisar os comentários que antecedem e sucedem as canções: • Qual o critério para seleção das músicas? • Que tipo de informação é oferecida? • O que é comentado sobre cada canção? • Quais pessoas e fatos são retratados nas músicas da playlist? O que é denunciado? Acesse a playlist comentada Dia da Consciência Negra em Apresente dois roteiros de playlists comentadas: Releituras musicais: critério para seleção das canções− versões de canções conhecidas para o público infantil. São oferecidas informações sobre autoria das canções, ano de produção, álbum a que pertence, sucesso obtido etc. Os comentários sobre as canções incluem considerações sobre ritmos e instrumentos utilizados. 33 Periferia em destaque: critério para seleção das canções − compositoras(es) da periferia que tiveram destaque fora do Brasil. Tipo de informação oferecida: origem das(os) compositoras(es) e/ou banda (que nesse caso é importante, dado o mote da playlist − o sucesso dentro e fora do país), participação do grupo em ações sociais, sucesso da canção, outras(os) intérpretes etc. Os comentários incluem considerações sobre o fato de que a origem das(os) compositoras(es) é perceptível nas canções (vozes da periferia se fazem presentes), comparações com outras versões, gênero, ritmo, tema das letras das canções, entre outros. 34 Curadoria: conceito oriundo do mundo das artes. O termo vem sendo cada vez mais usado para designar ações e processos próprios das redes: conteúdos e informações abundantes, dispersos, difusos, complementares e/ou contraditórios e passíveis de múltiplas interpretações, que precisam ser reorganizados para se tornarem inteligíveis ou ganhar outros sentidos. A curadoria sempre implica escolhas, seleção, forma de apresentar, ordenar, hierarquizar conteúdos/informações (ROJO e BARBOSA, 2015). Você pode propor que as(os) alunas(os) leiam os roteiros utilizados para produzir essas playlists. Destaque falas e informações que as playlists apresentam, cada uma das canções e comentários sobre aspectos variados das canções. Explore os sentidos das canções e/ou trabalhe a compreensão do texto das playlists. Indique canções e peça que digam com qual combinam em cada roteiro ou simplesmente se determinada canção poderia integrar a playlist de um determinado tema. Por exemplo: Mosca na sopa, de Raul Seixas, poderia compor uma playlist de canções de protesto? Apesar de você, de Chico Buarque, poderia integrar essa playlist? Curadoria: produzindo uma playlist Uma atividade interessante é sugerir ou indicar uma temática, algumas canções e pedir que as(os) alunas(os) selecionem três músicas e montem uma playlist. Por exemplo: levando em conta os acontecimentos recentes no Brasil, solicite que produzam uma playlist comentada com três canções, dentre uma lista dada, que possam captar o clima do país, acrescida ou não de outras escolhidas. Sugestões: 35 • “Brasil” (Cazuza, Nilo Romero e George Israel); • “Aquarela do Brasil” (Ari Barroso); • “É” (Gonzaguinha); • “País tropical” (Jorge Ben Jor); • “Aquarela brasileira” (Silas de Oliveira); • “Aos olhos de uma criança” (Emicida); • “Chega” (Gabriel, O Pensador); • “Polícia” (Titãs); • “Que país é esse” (Legião Urbana); • “Índios” (Legião Urbana); • “Nenhum motivo explica a guerra” (Afroreggae). Muitas canções podem ilustrar o clima do país, dependendo do texto que apresenta e comenta a playlist. Assim, as mais diretamente relacionadas à crise política e ao debate sobre corrupção que tomou conta do país seriam Brasil, É, Que país é esse?, Chega. Mas também seria possível escolher a canção Polícia, se a playlist focar a atuação das forças policiais nas manifestações de rua, por exemplo. Outras, como Nenhum motivo explica a guerra e Aos olhos de uma criança, denunciam mais a violência e a miséria e, eventualmente, por meio de alguma conexão estabelecida, como os efeitos da corrupção para o restante do país, poderiam também ser escolhidas. Difícil seria justificar a escolha, diante da situação dada, de Aquarela do Brasil, Aquarela brasileira ou País tropical, salvo se os comentários se pautarem pela ironia ou tratarem da alienação diante do quadro em discussão. Na montagem de uma playlist como essa, é interessante orientar as(os) alunas(os) a pesquisar determinada canção ou grupo musical em diferentes fontes e trabalhar com elas(es) a produção de um texto que parafraseie as informações de forma concatenada e adequada à apresentação da playlist, em geral caracterizada por linguagem bastante informal. Proponha a produção, em grupo, de uma playlist comentada de três canções (uma lista maior dificulta depois a escuta e a troca entre todas(os). Além disso, uma playlist menor exige o exercício da escolha). Para isso, é necessário: • Definir o critério/tema da playlist comentada; • Escolher as canções; • Buscar informações sobre as canções; • Fazer a roteirização da playlist (você pode se basear nos dois roteiros apresentados nesta oficina); • Treinar a leitura do roteiro; • Gravar e editar a playlist, usando um editor de áudio, como o Audacity. Antes de gravar a playlist comentada, é adequado prever a entrada das falas de forma alternada com as canções. 36 Orientações para gravar a playlist comentada Com auxílio do programa Audacity, você pode gravar a playlist. Antes da gravação • Prepare-se: familiarize-se com o texto; • Experimente: prove diferentes tons, velocidades e estilos de leitura; • Pratique: treine e tenha bem claras todas as marcações que fez para auxiliar durante a gravação. Durante a gravação • Peça para outra(o) colega ajudar a operar o computador; • Respire fundo: conte até três e inicie a gravação; • Não se preocupe com o tempo em que iniciará a fala. Comece sua leitura no momento em que se sentir pronto: o silêncio do início da gravação poderá ser cortado depois. Após a gravação • Volte ao início da gravação: escute com atenção. Peça para outras pessoas ouvirem e avaliarem a sua leitura. Se julgar necessário, apague e comece novamente; • Faça a limpeza de ruídos; • Faça os cortes necessários; • Se julgar pertinente, acrescente efeitos; • Por fim, lembre-se de salvar duas versões: uma em .aup (guardar projeto) e outra em .wav (exportar). Para ampliar Referências COPE, B.; KALANTZIS, M. (Org.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. New York: Routledge, 2005; ROJO, R.; BARBOSA, J. P. Multiletramentos e currículo no Ensino Integral – Anos iniciais do Ensino Fundamental. São Paulo: Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2015. (Circulação restrita.) 37

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Leitura e escrita

Ler, escrever e transformar

A sala de aula deve ser um espaço de descobertas e encantamento com a linguagem. Sugerimos a você uma série de oficinas sobre Leitura e Escrita para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.

1 Ler, escrever e transformar Oficinas contextualizadas para leitura crítica e produção textual 2 3 Aprender a ler e escrever é muito mais do que decifrar códigos: é um processo que amplia horizontes, fortalece identidades e permite que cada estudante exerça sua cidadania também. Acreditamos que a sala de aula deve ser um espaço vivo de experimentação, descobertas e encantamento com a palavra escrita e falada. Por isso, reunimos aqui um conjunto de oficinas temáticas sobre Leitura e Escrita, pensadas para apoiar você, educadora e educador, na construção de experiências significativas para suas turmas dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Cada oficina é composta por um guia inicial que apresenta tudo o que você precisa saber antes de colocá-la em prática: os materiais necessários, as finalidades da atividade, o público a que se destina, o espaço onde pode ser realizada e a duração estimada. Nosso objetivo é que esse material sirva como um roteiro de apoio, mas que também inspire adaptações, novas ideias e conexões com os contextos e necessidades de cada grupo de estudantes. As propostas aqui reunidas são fruto de experiências desenvolvidas pelo Cenpec em projetos e programas voltados à educação pública, sempre em diálogo com a comunidade escolar. São atividades que valorizam a diversidade cultural, promovem a participação ativa das crianças e fortalecem sua relação com a leitura e a escrita de forma prazerosa e significativa. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Caras(os) educadoras(es), professoras(es) e profissionais da educação, Como navegar Para facilitar sua experiência com este material, organizamos as oficinas de forma que você possa navegar com autonomia e praticidade. Cada oficina tem início em uma nova página e apresenta, logo no começo, um botão de acesso ao sumário. Esse botão permite que você retorne rapidamente ao índice inicial do documento e escolha a próxima oficina que deseja explorar, sem precisar percorrer manualmente todas as páginas. Essa funcionalidade foi pensada para apoiar o seu planejamento pedagógico, permitindo que você consulte apenas os conteúdos que mais dialogam com as necessidades e interesses da sua turma em cada momento. Esperamos que essa organização contribua para tornar o uso do material mais ágil, fluido e responsivo ao seu dia a dia. 4 SUMÁRIO Oficina 1 - Letramento com temas da comunidade 5 Oficina 2 - Palavra-brinquedo 10 Oficina 3 - Investigando as estratégias publicitárias 15 Oficina 4 - No mundo dos fanzines 20 Oficina 5 - Eu e minhas escolhas 25 Os links mencionados neste documento foram acessados em junho de 2025 e, nessa data, encontravam-se ativos e operantes. Ressalta-se, contudo, que é possível que alguns deles sejam desativados futuramente. 5 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 1 Letramento com temas da comunidade • Computadores, tablets ou celulares com acesso à internet. • Papel pardo ou cartolina para confecção de cartazes. • Levantar e discutir problemas da escola, do bairro ou da cidade. • Selecionar um dos problemas levantados e pesquisar sobre ele. • Preparar e realizar entrevista com pessoas da comunidade que possam ajudar a compreender o problema. • Planejar e executar ações para solucionar o problema. • Ler e produzir textos de vários gêneros para o plano de solução do problema. • Projeto de letramento com base em temas relevantes para a comunidade. Autora da oficina: Paula Baracat De Grande, doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Promover o letramento das(os) estudantes por meio de temas relevantes à comunidade a que pertencem. • Anos finais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 4 a 5 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 6 Na escola, muitas vezes as atividades de ler e escrever apresentam objetivos circulares: lê-se para aprender a ler, escreve-se para aprender a escrever. Contudo, em nossa vida, sempre lemos e escrevemos para cumprir outros objetivos, para agir no mundo social. Considerando isso, esta oficina dá sugestões para professoras(es) e educadoras(es) desenvolverem projetos de letramento com base em questões ou problemas identificados pelas(os) estudantes como de interesse do grupo. Na prática Sugestão de encaminhamento A escolha do problema A escolha do problema ou da questão que guiará o projeto de letramento deve partir das(os) próprias(os) estudantes. Para iniciar, é interessante que você direcione uma primeira conversa sobre problemas da escola, do bairro ou do município que interessam e/ou afetam a elas(es). Caso já tenha observado as(os) alunas(os) discutindo algum problema local, explore o debate para propor o projeto. O problema pode ser um fato que atinge a turma. Por exemplo: nos últimos dias, muitas(os) estudantes faltaram por terem contraído dengue; ou tiveram seus materiais estragados por alagamentos que atingiram o bairro na época de chuvas; ou uma(um) aluna(o) quase foi atropelado em frente à escola e já houve casos parecidos; ou uma(um) estudante cadeirante não tem acesso a todos os espaços da escola e é impedida(o) de realizar algumas atividades etc. Vamos supor que, devido às reclamações de estudantes e famílias, você observou que a falta de coleta de lixo é um problema no bairro. Algumas pessoas adoeceram devido ao acúmulo de lixo pelas Início de conversa Assista à animação produzida pelo Cenpec sobre o conceito de letramento, elaborada no âmbito do projeto Plataforma do Letramento. Acesse em: PARA APROFUNDAR O que é letramento? Nesta proposta, o conteúdo deixa de ser o elemento estruturante do currículo, dando centralidade a práticas sociais letradas. As situações comunicativas oferecem a oportunidade de ler, escrever, falar e escutar uma variedade de gêneros discursivos, como também de aprofundar, sistematizar e avaliar conteúdos (KLEIMAN; TINOCO; CENICEROS, 2013). Ao promover o protagonismo estudantil, a proposta envolve flexibilidade e imprevisibilidade. Assim, é importante manter um diálogo aberto e constante entre as partes: professora(or), estudantes e comunidade escolar. Parceria, colaboração e criatividade são essenciais para isso. Vamos nessa? 7 ruas, o que é agravado na época de chuvas. Note que o que guia o projeto não é somente um tema – o lixo, por exemplo –, mas a busca de soluções para um problema real na vida delas(es). Assim, a proposta não é estudar o lixo como um tema isolado, mas sim aprender sobre lixo, seus componentes, a coleta no bairro, quais são os tipos de coleta e quem são as(os) responsáveis pelo serviço. Esta será a base da pesquisa: as(os) estudantes vão pensar e planejar ações para solucionar a falta de coleta no bairro. É essa prática social que vai orientar as leituras, escutas e produções escritas e orais no projeto. Promova um debate sobre o problema com a turma, lançando perguntas para saber mais sobre a questão e provocar reflexões. Sugestões: • Desde quando a coleta de lixo não é periódica? • Onde as famílias costumam deixar o lixo para a coleta? • Esse local é apropriado? Por quê? • Quais problemas vocês já enfrentaram devido ao acúmulo de lixo nas ruas e calçadas? • Que doenças vocês acham que podem ser causadas por esse acúmulo? • O que a época de chuvas tem a ver com isso? • O que poderíamos fazer para solucionar o problema? Organize as informações em cartazes para retomar depois. As perguntas não respondidas ou parcialmente respondidas também são importantes para o que as(os) alunas(os) vão pesquisar. Você pode propor a organização da seguinte maneira: Destaque que é preciso entender o problema e suas consequências para conscientizar a população do bairro sobre a questão e exigir providências das autoridades. Para isso, proponha pesquisas sobre o assunto. Pesquisando problemas e soluções Divida a sala em grupos e proponha que pesquisem o problema. Também peça que reflitam sobre ações que a turma pode promover em busca de soluções. Você pode trazer textos que ajude a compreender a questão. Em nosso exemplo: reportagens, artigos, infográficos que abordem o lixo, a coleta adequada, os aterros sanitários e lixões, e ainda leis e regulamentações sobre a coleta na cidade. Leia com a turma textos de gêneros que não se costumam trabalhar no dia a dia, como artigos da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), abrindo espaço para perguntas e comentários para promover a compreensão. Outros textos podem ser distribuídos aos grupos para discussão posterior. Solicite que as(os) estudantes tragam referências sobre o assunto para ler e debater em grupo. 8 Entrevistando a comunidade As(Os) estudantes também podem sugerir a entrevista de pessoas da comunidade que contribuam com informações sobre o problema e colaborem no planejamento de uma solução. Caso não conheçam ninguém, busque especialistas dispostos a conversar com a turma. Antes da entrevista, elabore um roteiro de perguntas com a turma. É interessante definir bem o tema e o objetivo da conversa, e compartilhar com a pessoa que será entrevistada. Uma ideia é que a pessoa entrevistada dê uma palestra aberta à comunidade. Nesse caso, a turma se encarregaria de fazer o convite, promover o evento com cartazes e panfletos, fazer anotações durante a palestra e fazer as perguntas ao fim da fala. Construindo uma solução Após as pesquisas, proponha que cada grupo apresente o que aprendeu sobre o problema e propostas para solucioná-lo. Depois da apresentação de todos os grupos, discuta as soluções propostas: • Quais foram mais interessantes? • Quais podem ser realizadas pelas(os) próprias(os) estudantes? • Quem pode ser envolvido nessas ações: outras turmas, professoras(es), comunidade, poder público? Com base nessa discussão, a turma deve elaborar uma lista de ações, indicando possíveis parcerias e prazos para realização. Lembre a elas(es) que os conhecimentos construídos nas pesquisas devem servir de base e argumento para a busca de soluções. O planejamento deve ser registrado e compartilhado com todas as pessoas envolvidas: Ações para solucionar o problema Vamos supor que a lista de ações gerada na turma foi a seguinte: • Elaborar carta aberta à comunidade, apresentando o problema e argumentando sobre alternativas para resolvê-lo ou minimizá-lo, instruindo sobre a separação, o armazenamento e o descarte de lixo; • Organizar uma passeata pelo bairro e arredores para denunciar o problema e cobrar providências das autoridades − nessa ação, além de produzir as faixas, cartazes e palavras de ordem, a turma precisa mobilizar as pessoas da escola e do bairro para participarem da manifestação, divulgando os motivos da passeata, o perigo da falta de coleta, os órgãos responsáveis pelo serviço etc. Vale entrar em contato com jornais locais para divulgar a passeata; • Elaborar uma carta reivindicatória à prefeitura do município − além de estudar o gênero textual a ser produzido, as(os) estudantes podem retomar o que pesquisaram sobre o tema para levantar argumentos, como também recolher assinaturas para um abaixo-assinado a ser anexado à carta; 9 Peça para as(os) estudantes observarem que houve um processo que durou um certo tempo, desde a discussão inicial, para decidirem qual problema seria o foco das ações até o desenvolvimento da solução planejada em conjunto. • Como foi esse processo? • Houve alguma discordância? • Algum impasse? • Como resolveram? • O que foi mais legal nesse processo? E o que foi mais chato – ou mais difícil? • O que aprenderam? • Há algo mais a aprender e a fazer? • Monitorar as ações da prefeitura para a solução do problema e divulgar essas informações à comunidade − isso pode ser feito por meio de informes a serem distribuídos ou expostos em locais de grande circulação na comunidade; a turma pode publicar esses comunicados em uma rede social do bairro. Ao longo desse projeto de letramento, conteúdos de várias disciplinas podem ser estudados. Estes são alguns temas envolvidos em nosso exemplo: • Decomposição de matéria orgânica; • Reciclagem; • Verminoses e outras doenças parasitárias; • Criação artística de cartazes, faixas e convites; • Poluição do solo e das águas etc. Além desses temas, há diversos conhecimentos linguísticos desenvolvidos na leitura e na produção dos gêneros textuais envolvidos na pesquisa e nas ações. Por isso, a parceria entre professoras(es) é muito bem-vinda. Por meio de diferentes usos da linguagem, orientados para uma prática social, as(os) estudantes podem agir sobre o mundo e encontrar soluções concretas para problemas da comunidade. Hora de avaliar 10 MATERIAIS O QUE É FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 2 Palavra-brinquedo • Apresentar os poemas de Manoel de Barros e seu estilo de compor poesia. • Apresentar as diferenças entre a linguagem literária e a não literária. • Trabalhar as diferenças entre as classes de palavras. • Explorar de forma lúdica os sentidos conotativos das palavras. • Explorar os processos de formação das palavras, em especial sufixação e prefixação. • Incentivar a produção poética das(os) alunas(os). • Moldes de dados impressos em folhas de papel sulfite (veja sugestão ao longo desta atividade). • 1 dado médio feito de EVA grosso. Em cada face deverá constar os prefixos des-, in-, re-; e os sufixos -mente, -dade, -ante. • 1 dado médio feito de EVA grosso. Em cada face deverá constar verbos e substantivos, como: brincar, saber, viver, criança, flor, pássaro. • 1 dado médio feito de EVA grosso. Em cada face deverá constar pronomes oblíquos me, te, nos e desinências verbais: -ava, -am, -ou. • Jogos com palavras e ideias inspirados em poemas de Manoel de Barros. Autora da oficina: Sony Ferseck, poeta e professora de Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Desenvolver o gosto tanto pela leitura como pela criação de textos poéticos. • Explorar e ampliar o repertório literário (inclusive a cultura oral) das(os) participantes. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de leitura, biblioteca ou outro espaço educativo/cultural. • 1 a 2 encontros de 45 a 50 minutos cada. • Poemas de Manoel de Barros (veja sugestões ao longo e ao final desta atividade). • Cartolinas. • Cola branca. • Folhas de papel sulfite. • Lápis. • Tesouras. Voltar para o sumário 11 Início de conversa “Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.” (Manoel de Barros) Manoel de Barros. Foto: Reprodução Na prática Sugestão de encaminhamento Leitura poética e roda de conversa A brincadeira é dividida em três etapas. No primeiro momento, distribua entre as(os) estudantes poemas e trechos de poemas de Manoel de Barros. Sugerimos iniciar com o poema Arte de infantilizar formigas (in: Livro sobre nada). Após a leitura, pergunte às(aos) alunas(os) o que acharam do texto: interessante, curioso ou estranho? Abra espaço para todas as percepções e ideias que surgirem. Em seguida, fale um pouco sobre este autor e seu estilo de escrita poética, em que a invenção e a brincadeira são elementos centrais. Para exemplificar, você pode ler trechos do poema O apanhador de desperdícios (in: Memórias inventadas): “… Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.” Depois, peça às(aos) alunas(os) que leiam em voz alta os poemas que receberam. Esse pedido geralmente causa risos e perguntas. É um ótimo momento para discutir a presença de palavras ou mesmo versos inteiros nunca antes ouvidos, lidos ou pensados. É também propício para discutir as propriedades da linguagem literária e a diferença da linguagem utilizada no cotidiano. Abra espaço para que elas(es) questionem termos e expressões que acharem estranhos ou curiosos. É interessante escrever no quadro palavras e versos destacados pelas(os) alunas(os) e introduzir a proposta de palavra-brinquedo. Você pode incentivá-las(os) com perguntas: • O que seria “desutilidade poética”? E “dessaber”? • Qual é o lugar citado no poema? • O que há nesse lugar? E o que tem no fundo do quintal de vocês? • Já pensaram em fabricar “brinquedos com palavras”? Como seria? 12 Invencionática poética A poesia de Manoel de Barros é repleta de invencionices: palavras, expressões, imagens inéditas, cheias de humor e lirismo. Como ele mesmo dizia: “Noventa por cento do que eu escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”. Para iniciar a brincadeira com palavras, apresente o primeiro dado, contendo prefixos e sufixos. Explique que vários poemas de Manoel de Barros apresentam palavras formadas pelo acréscimo dessas partículas a outras palavras. Um bom exemplo é o poema O fazedor de amanhecer, que no próprio título contém uma palavra inventada pelo acréscimo do sufixo -dor: “fazedor”. Além dessa, há “tratagens”, “usamentos” (sufixação) e “desapetite” (prefixação). Apresente o segundo dado, formado por verbos e substantivos. Convide então as(os) alunas(os) para jogar os dois dados. Ajude-as(os) a observar que palavras podem ser formadas pela junção dos resultados no jogo, por exemplo: re + criança + mento = recriançamento; in + viver = inviver; flor + ante = florante. Discuta com a turma se as palavras resultantes são compreensíveis e se são diferentes das palavras e dos sentidos usualmente atribuídos a elas. Discuta também quais sentidos as partículas acrescentam às palavras. Incentive as(os) estudantes a citar outras partículas que modificam palavras. Anote os termos resultantes que as(os) alunas(os) considerem mais expressivos e interessantes. Passe então ao terceiro dado, contendo pronomes oblíquos e desinências verbais. Oriente-as(os) a combinar os resultados e formar palavras e frases. Elas(es) podem usar como base as palavras resultantes do primeiro jogo. Por exemplo: nos + brincar + ava = nos brincava; me + inviver + eu = me inviveu. Anote essas palavras ou frases e converse com a turma sobre os resultados e as diferenças entre as formações, discutindo quais elas(es) consideram mais instigantes. Finalmente, peça às(aos) alunas(os) que produzam pequenos versos com as palavras anotadas. Com as palavras inventadas recriança, inviveu, florante e nos brincava, por exemplo, poderiam compor versos como: “O recriançamento me inviveu Florante nos brincava o pássaro”. Em seguida, organize a turma em grupos de três a quatro integrantes e distribua os moldes de dados impressos, cartolinas, tesouras, colas e canetinhas. Então, oriente-as(os) a confeccionar dados parecidos com os que elas(es) já jogaram, porém substituindo algumas das partículas ou palavras dos dados. O grupo terá de debater as possibilidades de combinações antes de escrever definitivamente quais partículas e palavras constarão nos dados. 13 Veja a nossa proposta de molde para confeccionar os dados: Molde dos dados Depois de prontos, os grupos trocam de dados e começam a jogá-los, anotando os resultados das combinações e formando pequenos versos. Peça que leiam os versos produzidos. Ao final da atividade, os poemas poderão ser expostos em um varal. Caso a turma ou a escola tenha um blog ou uma página em rede social, vocês podem publicar e compartilhar as produções nesses canais. Dados e dedos: outros brinquedos-palavras Além dos dados, outros brinquedos podem ser confeccionados, como: • Pião feito de material reciclado, como CDs antigos e tampas de garrafa PET - Assista como produzir em • Girocopo de copinhos plásticos de café - Assista como produzir em • Se o trabalho for realizado numa turma com poucas(os) estudantes, a dinâmica dos dados pode ser substituída pelo cilindro da poesia: ele é semelhante ao rolo silábico, mostrado neste vídeo , com a diferença de que, além dos rolos de papel higiênico, serão utilizados rolos de papel alumínio ou de papel toalha como base para girar os pedaços de papel e formar as palavras e os versos. A regra da brincadeira é a mesma dos dados (um terço dos rolos com prefixos e sufixos; um terço com verbos e substantivos; um terço com pronomes e terminações de conjugações verbais); 14 • Para adolescentes, a proposta pode ser adaptada na forma de dominó poético. Jogado em duplas ou em grupos maiores, as peças do dominó contarão com os mesmos elementos do jogo de dados. O número de peças varia entre 14 e 28. As regras de funcionamento podem seguir as do jogo de dominó clássico, ou seja, a partida termina quando a(o) primeira(o) das(os) jogadoras(es) ficar sem nenhuma peça em mãos. Ao final, as(os) alunas(os) deverão criar um poema com as palavras e orações formadas; • Outros brinquedos que possibilitem o elemento sorte na brincadeira. Hora de avaliar Para ampliar Esse é um momento muito importante do trabalho. Abra uma roda de conversa dando a oportunidade para que todas(os) se manifestem, apontando aprendizagens, dúvidas e dificuldades. Valorize as conquistas e minimize as dificuldades, diga a elas(es) que ainda têm muito tempo para superá-las. Poemas de Manoel de Barros na rede: Revista Bula: os 10 melhores poemas de Manoel de Barros - Acesse em 2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/; A magia da poesia: leia poemas do autor e trechos das obras Memórias inventadas e Tratado geral das grandezas do ínfimo - Acesse em Antonio Miranda: poesia infantojuvenil - Acesse em Para compreender mais a poética de Manoel de Barros, vale assistir aos documentários: Só dez por cento é mentira (2008), dirigido por Pedro Cezar - Acesse em Língua de brincar (2006), dirigido por Gabriel Sanna e Lucia Castelo Branco - Veja também: Animação: Histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo (2007), de Evandro Salles e Márcia Roth - 15 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 3 Investigando as estratégias publicitárias • Cópias impressas ou projeção de anúncios publicitários selecionados para leitura. • Computadores, tablets, celulares, câmeras para produção de anúncios em vídeo. • Revistas e jornais. • Cartolinas, canetinhas e tintas (no caso de anúncios impressos) ou computadores com programas para desenhar e editar imagens. • Produzir sátiras de anúncios publicitários impressos ou em vídeo. • Leitura crítica de anúncios publicitários e produção de sátiras sobre a crença de que um produto pode trazer felicidade. Autora da oficina: Paula Baracat De Grande, doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Desenvolver a leitura crítica das(os) alunas(os) sobre anúncios publicitários. • Discutir valores de nossa sociedade relacionados ao consumismo. • Analisar recursos linguísticos e visuais de anúncios publicitários. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de informática, biblioteca ou outro local. • 2 a 3 encontros de 45 a 50 minutos cada. Voltar para o sumário 16 O anúncio publicitário é um gênero textual cujo objetivo é promover uma marca, um produto ou uma ideia. Ele pode ser produzido para diferentes mídias: comerciais de TV e rádio, impressos em jornais e revistas, outdoors e ainda em diversos formatos divulgados pela internet. Quando propagam uma ideia, os anúncios podem abordar assuntos como a prevenção de uma doença, a conservação do meio ambiente ou a convivência positiva entre as pessoas no trânsito. Contudo, numa sociedade consumista como a nossa, os anúncios são muito utilizados para vender um produto, divulgando a ideia de que, com a compra de algo, conquistaríamos também sensações positivas (satisfação, felicidade, prazer, diversão, pertencimento a um grupo etc.). É importante desenvolver com as crianças, adolescentes e jovens uma visão crítica sobre os anúncios que chegam a nós e, cada vez mais, empregam recursos variados para alcançar seus objetivos: ativando relações intertextuais diversas e se utilizando de várias linguagens combinadas para construir os sentidos pretendidos. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Apresentação de um anúncio impresso e leitura crítica Apresente um anúncio publicitário às(aos) estudantes. Pode ser impresso ou projetado. É interessante trazer um texto que promova algum produto de sucesso entre elas(es). Nesta proposta, exploramos um anúncio como exemplo - Acesse em Inicie o debate com perguntas sobre o objetivo do texto: • O que está sendo promovido? • Qual é o público-alvo? • Vocês consomem esse produto? • O anúncio atrai sua atenção? Por quê? Depois, faça perguntas que estimulem as(os) alunas(os) a analisar a parte verbal e a não verbal do anúncio, como: • Qual frase foi usada como base para criar o slogan “Viva o lado Coca-cola da vida”? • Qual associação a marca pretende fazer entre o produto anunciado e a frase em que o slogan se baseia? 17 O termo slogan vem de “sluargh-ghairm”, expressão gaélica (idioma falado na Irlanda) que significa “grito de guerra”. Na publicidade, slogan é uma frase curta e impactante usada para criar a identidade de um produto ou de uma marca. Essas frases podem se basear em outras bem conhecidas pelo público em geral. “Veja a vida com bons óculos”, slogan de uma ótica, é um exemplo. Acesse outros slogans em PARA APROFUNDAR Para promover o debate, pergunte: • Vocês acham que um produto pode ser o lado bom da vida? • Para você, o que é o lado bom da vida? • Qual foi a estratégia utilizada pelas(os) publicitárias(os) para convencer o público a comprar o refrigerante? É importante também fazer perguntas que instiguem as(os) alunas(os) a perceber as relações entre a parte verbal e a não verbal do anúncio. Veja algumas sugestões: • Por que o anúncio usa preponderantemente a cor vermelha? • Os canudos dentro da garrafa são de diversos tamanhos, formatos e cores. Por quê? Que efeito isso pode causar no público? Seria o mesmo efeito se houvesse apenas um canudo branco saindo da garrafa? • Qual relação vocês estabelecem entre essa característica dos canudos e o slogan? A parte visual traz elementos importantes para a leitura do anúncio. Primeiro, a cor vermelha representa o produto, que sempre adota a mesma cor em seus anúncios e rótulos. Os canudos variados na garrafa remetem a ideias de diversão, alegria, diversidade, ou seja, associa o produto ao lúdico, à brincadeira, ao “lado bom da vida”. Para finalizar, tente construir com as(os) alunas(os) qual seria o argumento de venda do produto. Esse argumento pode ser resumido da seguinte maneira: o produto fornece às(aos) suas(seus) consumidoras(es) diversão e alegria, ou seja, promove o “lado bom da vida”. Leitura de anúncios audiovisuais Caso haja recursos em sua escola, é interessante explorar também anúncios audiovisuais, geralmente divulgados pela televisão ou pela internet. Se encontrar um anúncio da mesma campanha do produto trabalhado no impresso, é possível continuar a leitura iniciada na etapa anterior. A campanha do refrigerante explorado anteriormente também tinha peças audiovisuais. Acesse uma das peças em Essas perguntas têm por objetivo levar a(o) aluna(o) a perceber que a estratégia do anúncio foi substituir o adjetivo “bom” por “Coca-cola”, associando o produto a tudo que é bom na vida. 18 Você pode propor a discussão sobre como as ideias de diversão, imaginação, fantasia também estão associadas ao produto, da mesma maneira que no anúncio impresso. Como há mais linguagens interagindo no anúncio audiovisual, faça perguntas que levem a atenção das(os) alunas(os) para esses elementos: • Quais sons são ouvidos quando o rapaz coloca a moeda na máquina de refrigerantes? • Qual som passa a ser executado após a entrada da moeda na máquina? • Qual é o contraste entre o mundo fora da máquina e o mundo dentro da máquina? As mudanças nas imagens e nos sons contrastam o mundo “real” – cinzento, com buzinas, vozes sobrepostas, trabalho – com o mundo do produto – que seria colorido, divertido, mágico. Ou seja, baseia-se no mesmo argumento presente no anúncio analisado anteriormente: o produto traria ao consumidor o “lado bom da vida”. Planejamento da sátira A ideia aqui é propor às(aos) alunas(os) um trabalho lúdico e crítico com os anúncios publicitários. Apresente a elas(es) a ideia de sátira e proponha que produzam textos satíricos de anúncios publicitários, invertendo a lógica do argumento da publicidade. No caso do refrigerante, por exemplo, as(os) alunas(os) poderiam produzir uma sátira promovendo a ideia de que o produto faz mal à saúde. A sátira é uma manifestação artística que ridiculariza determinado tema (pessoas, organizações, estados), geralmente com o objetivo de provocar ou evitar mudanças na sociedade. Na Antiguidade e na Idade Média, a sátira, principalmente teatral, era muito usada para denunciar atos contrários à moral vigente, ridicularizando-os por meio do riso. A expressão latina Ridendo castigat mores [Rindo se castigam os costumes] traduz bem esse papel da sátira. No Brasil colonial, o poeta barroco Gregório de Matos (1636-1695) despertou ódio em figuras importantes da sociedade baiana, por seus textos exalando ironia. Seus poemas satíricos lhe renderam o epíteto pelo qual é conhecido até hoje: “Boca do inferno”. Atualmente, sátiras sobre diferentes assuntos, explorando várias linguagens, se multiplicam na TV, no rádio, jornal impresso e na internet. PARA APROFUNDAR O trabalho pode ser feito em grupos. Elas(es) podem escolher se a produção será de um anúncio impresso ou em vídeo. Ajude as(os) alunas(os) no planejamento, definindo etapas para que produzam o anúncio: • Quem é o público-alvo? • Qual anúncio será satirizado? • Qual o argumento da sátira (contrário ao argumento de venda do produto)? • Que materiais serão necessários para a produção do anúncio? 19 Se o anúncio for impresso, é preciso selecionar cores e recursos gráficos. Se for em vídeo, é preciso escrever um roteiro, fazer as filmagens e editá-las. É importante que as(os) alunas(os) façam rascunhos ou ensaiem os anúncios antes da apresentação para a turma. Apresentação da sátira As(Os) estudantes podem organizar um dia de apresentação ou exposição dos anúncios e convidar outras turmas para o evento. Elas(es) podem apresentar a sátira e o anúncio original juntamente. Também podem escolher um nome para o evento, que brinque com a ideia de antianúncio publicitário. Hora de avaliar Para ampliar Combine com a turma um dia para avaliar o projeto, procurando valorizar os conhecimentos construídos e apontar o que pode ser aprimorado nos próximos. Conheça conteúdos que podem ajudar as(os) estudantes nesta atividade: A propaganda política na história O documentário O experimento Goebbels: o diário de um nazista (Alemanha, 2005) revela o papel da propaganda na promoção e manutenção do regime nazista. O filme se baseia no diário de Joseph Goebbels (1897-1945), conhecido ora como o “gênio da propaganda”, ora como o “Mentiroso-Geral do Reich”. A História da propaganda no Brasil Este documentário, lançado em 2004, se baseia no livro 50 anos de vida e propaganda brasileiras, de Francisco Gracioso e José Roberto Whitaker Penteado, publicado em 2002, para comemorar o cinquentenário da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Apresentando um estudo da propaganda na história brasileira, mostra cenas antológicas e conta com depoimentos de nomes importantes do setor. Acesse em Conhecimento e consumo Neste vídeo, Imaculada, uma professora cheia de histórias para contar, relata como desenvolveu com suas(seus) alunas(os) um interessante projeto envolvendo publicidade, ética e língua. Este é o primeiro programa da série Pérolas da Imaculada, iniciativa do Programa Escrevendo o Futuro, do Cenpec. Acesse em 20 O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 4 No mundo dos fanzines • Lápis grafite ou lapiseira e borracha. • Lápis de cor, giz de cera ou canetinhas de várias cores. • Cola em bastão. • Tesouras sem ponta. • Folhas de papel sulfite. • Revistas e jornais para recorte. • Aparelho para escanear os fanzines produzidos (se possível). • Conhecer o universo cultural dos fanzines e suas formas de produção. • Conhecer formatos, composições e materiais utilizados em fanzines. • Estimular a construção coletiva e o compartilhamento de narrativa. • Com base em um tema, elaborar textos, que podem ser integrados por ilustrações, colagens e fotografias. • Promover troca e exposição dos materiais produzidos. • Oficina de pesquisa, produção de textos e imagens, criação artesanal de fanzines e compartilhamento das produções das(os) estudantes. Autora da oficina: Sabrina Paixão, arte-educadora e pesquisadora de HQ na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Trabalhar sistematização da pesquisa. • Aflorar a criatividade em se expressar sobre temas com os recursos disponíveis. • Elaborar a capacidade de síntese. • Estabelecer leitura de imagens. • Entender a composição de páginas. • Reforçar o trabalho em grupo, com distribuição de tarefas e organização do material, da pesquisa e da confecção do fanzine. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Ateliê de artes, sala de aula ou biblioteca. • 3 a 5 encontros de 1h a 1h30 cada. Voltar para o sumário 21 “Faça você mesmo, faça para entender, crie um mundo novo.” Essa frase de Redson Pozzi, músico brasileiro engajado ao movimento punk rock, define o espírito do fanzine. Os fanzines, termo criado pela união de duas palavras em inglês − fanatic (fã) e magazine (revista) −, surgiram na década de 1930 como publicações amadoras de baixo custo feitas artesanalmente por fãs de ficção científica para divulgar seus textos. Ao longo do tempo, com os movimentos juvenis dos anos 1960, e em face da censura, os fanzines se expandiram e abarcaram outros grupos − como punks, feministas, veganos, aficionados por jogos eletrônicos, cinéfilos − e gêneros textuais − quadrinhos, resenhas de cinema, literatura, poesia, fotografia e demais expressões artísticas. Produzidos artesanalmente e reproduzidos por meio de fotocópia (xerox), mimeógrafos e recentemente a digitalização, são publicações feitas em pequenas tiragens, sem fins lucrativos, que priorizam a criatividade, o (re)uso de materiais disponíveis e a troca de exemplares. Também chamadas de zines, essas publicações iniciam-se como espaço para discutir, trocar informações e divulgar trabalhos amadores acerca de um tema. Partindo do princípio “faça você mesmo”, as temáticas, as formas e os materiais para compor um fanzine são quase ilimitados, como veremos. Assim, produzir fanzines no ambiente escolar é uma experiência riquíssima, pois abarca todas as disciplinas e inclui os saberes das(os) alunas(os), valorizando suas habilidades e integrando-as na produção final de um exemplar que pode ser compartilhado com todas(os). Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Escolha da temática e formato do fanzine Para iniciar o projeto, é necessário escolher o tema – ou os temas – que serão abordados no fanzine. Você pode definir um tema geral ou estimular as(os) estudantes a fazerem pesquisas e escolherem os seus. O segundo passo é escolher o formato do fanzine. Para isso, é interessante trazer diferentes modelos para a turma conhecer e escolher os que mais lhes atraem. Em seguida, é importante definir o número de páginas e o acabamento que se pretende dar à publicação. Dependendo de sua intenção e do tema, você pode dedicar duas aulas ou até desenvolver um projeto que englobe o bimestre. As(Os) alunas(os) podem criar microfanzines em uma oficina prática durante a aula, ou elaborar fanzines mais complexos ou com maior número de páginas, durante um período maior. Esta atividade pode ser elaborada em qualquer disciplina, inclusive interdisciplinarmente. As(Os) estudantes podem criar zines sobre Esportes, Ciências, Literatura e Produção Textual, Línguas Estrangeiras, Atualidades ou Meio Ambiente, entre tantas outras temáticas. 22 Por ser de fácil montagem e manejo e permitir a livre criação dentro do tema, o fanzine contribui para uma apreensão efetiva e mais transparente acerca dos saberes, da argumentação e do ponto de vista da(o) estudante diante do tema proposto, além de propiciar a criatividade e o trabalho em grupo. Conhecendo os fanzines Inicie uma roda de conversa perguntando se as(os) alunas(os) já ouviram falar de fanzines. Se não, comece a proposta por aí, explicando o que são e seu contexto de surgimento, ou propondo uma pesquisa rápida para alimentar o bate-papo. Se possível, leve fanzines para elas(es) folhearem. Se não tiver possibilidade, leve imagens de capas e páginas internas de fanzines, que podem ser encontradas com uma busca na internet. Desenvolvimento da atividade Em seguida, estabeleça com a turma o cronograma e os materiais que podem ser utilizados (revistas, fotos, lápis coloridos, folhas coloridas, cola, grampeador, fitas etc.). Para o desenvolvimento do projeto, vocês podem optar por um processo mais artesanal ou utilizar ferramentas da web. O trabalho pode ser feito em grupos de até quatro integrantes ou individualmente. Defina o tamanho mínimo e o máximo de páginas, destacando que o fanzine possui capa e contracapa com “editorial”, onde serão colocados o nome das(os) participantes e a data, bem como o número do exemplar. Compartilhamento das produções Ao final, as(os) estudantes podem compartilhar as suas obras de variadas formas: • Trocar seus zines entre si ou com outras turmas; • Promover uma exposição em que atuem como mediadoras(es), explicando ao público a concepção do trabalho; • Fazer cópias a baixo custo e distribuí-las; • Alimentar um blog ou uma página em rede social com os zines digitalizados; • Criar uma zineteca na sala de leitura ou biblioteca da escola. Libere a criatividade e improvise! Utilize materiais disponíveis, como fitas, linhas, carimbos e até estêncil. Explore recursos livres na rede! Os fanzines podem ser produzidos com softwares livres e gratuitos na internet, como: • Gimp: software livre muito usado para criar páginas de jornais, revistas e fanzines; • Scribus: outro recurso livre bastante usado por fanzineiros para montar as publicações. 23 SOCIEDADE CAPIBARIBE DE EDUCAÇĂO E CULTURA (Socec). Quadrinhos e educação, v.1: relatos de experiência e análises de publicações. Jaboatão dos Guararapes: Socec, 2015; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da (Org.). Histórias em quadrinhos e práticas educativas. São Paulo: Criativa, 2013. v. 1; MUNIZ, Cellina (Org.). Fanzines: autoria, subjetividade e invenção de si. Fortaleza: Ed. UFC, 2010. Gibitecas Gibiteca Municipal de Santos (SP); Gibiteca Municipal Henfil, São Paulo (SP); Gibiteca da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado, Leopoldina (MG); Gibiteca de Curitiba (PR). Artigos e pesquisas PINTO, Renato Donisete. Fanzine como recurso pedagógico nas aulas de Educação Física em uma escola municipal. Acesse em BASAGLIA, Ana Paula H. F. Fundamentos do design gráfico aplicados no fanzine. Experimento realizado em escola de Ensino Fundamental de São Paulo. 2011. Monografia (Pós-graduação lato sensu em Design Gráfico: conceito e aplicação) – Fundação Armando Álvares Penteado – Faap, São Paulo, 2011. Documentários Fanzineiros do século passado, capítulo 1. Dir. Márcio Sno. Acesse em Zine-se: mensageiros de papel. Em forma de documentário, o trabalho de conclusão de curso de Rádio e TV de Gladson Caldas (2011) mostra as atividades de fanzineiros em Fortaleza (CE). Acesse em Blogs e matérias Zinismo: blog coletivo, autoral e independente formado por uma confraria de fanzineiros separados pela distância física e aproximados pela era digital. Acesse em Mais sobre o mundo dos zines O tema despertou interesse? Que tal saber mais? Indicamos a seguir alguns livros, artigos e vídeos para mergulhar no universo dos fanzines. Não deixe de procurar em sua região bibliotecas com acervo de histórias em quadrinhos, que podem conter também fanzines. Não esqueça que a maior aprendizagem na produção de zines é experimentar possibilidades de expressão e compartilhar saberes e talentos! Livros SNO, Márcio. O universo paralelo dos zines. São Paulo: TimoZine, 2015; PINTO, Renato Donisete. Fanzine na educação: algumas experiências em sala de aula. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2013; Para ampliar 24 365 fanzines: blog que divulga e disponibiliza fanzines variados para leitura. Acesse em IFanzine: projeto de extensão do Instituto Federal Fluminense, campus Macaé (RJ), que promove a cultura do fanzine e sua aplicabilidade no ensino-aprendizagem. Acesse com/; Fanzinoteca Mutação: blog que oferece a visualização de fanzines a diferentes públicos. Acesse em 25 MATERIAIS O QUE É FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO Oficina 5 Eu e minhas escolhas • Exercitar escolhas e estimar as possíveis decorrências delas. • Compreender o que leva as pessoas a diferentes escolhas. • Valorizar e respeitar a vida de todas as pessoas. • Barbante para varal. • Pregadores. • Baú de adereços. • Conjunto de figuras do material Quadros. • Apostila (1 por grupo) com as imagens impressas em tamanhos menores, com a respectiva numeração, disponível nas páginas de 112 a 116 do livro Vozes e olhares – uma geração nas cidades em conflito. • Elaboração de diferentes histórias de vida, a partir de quadros sugestivos que expressam situações do universo de adolescentes e jovens, particularmente das(os) mais vulneráveis. Autoria da oficina: Pró-menino e Instituto Fonte. • Desenvolver a reflexão sobre as escolhas, avaliando antecipadamente as consequências para si e para as pessoas. • Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio. • Sala de aula, sala de leitura ou biblioteca. • 1 a 3 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 26 Antes de começar a oficina, é importante você conhecer um pouco de Quadros. É um material que foi elaborado, inicialmente, pelo Instituto Fonte, no contexto da avaliação do Programa Pró-menino: Jovens em Conflito com a Lei, da Fundação Telefônica, após sete anos de vigência. Quatro municípios foram envolvidos nessa pesquisa. O material é composto por 27 quadros que apresentam situações do universo dessas(es) adolescentes, que podem ser tratadas com diferentes significados por elas(es). O objetivo do material, na avaliação do Programa, era facilitar o diálogo entre educadoras(es) e adolescentes que cumpriram medida socioeducativa em meio aberto (liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade), para trazer à tona situações marcantes da trajetória de suas vidas que poderiam oferecer subsídios importantes para a pesquisa. No entanto, o material, ao ser usado em várias outras situações socioeducativas, revelouse totalmente adequado para o trabalho educacional com jovens em situação de risco ou vulnerabilidade social, quer seja nas escolas quer seja nas organizações socioeducativas da sociedade civil. A possibilidade de extrapolar o público para o qual foi criado conferiu a ele o Prêmio Fundação Banco do Brasil, de Tecnologia Social, em 2009. Você pode consultar o livro Vozes e Olhares, que apresenta o método Quadros, a proposta pedagógica e os dados da pesquisa avaliativa realizada pelo Instituto Fontes – Vozes e Olhares. Início de conversa Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: o que escolho? Para receber as(os) adolescentes e jovens, prepare a sala de atividades com alguns varais de barbante nos quais estarão penduradas as figuras de Quadros. Ao entrarem na sala, oriente que circulem e observem as figuras. Após o tempo de circulação, forme a roda inicial do dia e comente que o tema da oficina são as escolhas que fazemos em nossas vidas. Sempre fazemos escolhas diante do que a vida nos oferece e do que queremos dela, desde as pequenas coisas do dia a dia, como comer banana de manhã, fazer um determinado caminho para a escola, usar um amuleto, até aquelas escolhas mais marcantes, que definem a nossa profissão, o nosso jeito de ser na família e na sociedade, que definem a nossa vida, enfim. É verdade que nem sempre temos no cardápio o que gostaríamos de ter para escolher e isso por vários motivos: econômicos, sociais, culturais. Há muitas coisas que precisam ser transformadas em nossa sociedade para que todas(os) tenham as mesmas oportunidades de escolha. Ainda estamos longe de ser uma sociedade mais igualitária quanto às oportunidades oferecidas às pessoas. Uma de nossas escolhas pode ser, inclusive, querer exatamente transformar essa realidade. 27 No entanto, dentro do escopo de nossas experiências de vida, fazemos escolhas. Até não sair do lugar é fruto de uma escolha, consciente ou não. E, toda escolha, qualquer que seja ela, traz consequências. Pode trazer ganhos ou perdas, mudanças ou permanências, ser construtiva ou destrutiva. Quanto mais consciência a pessoa tiver do que pode advir das escolhas que fará (alegria, dinheiro, prazer, responsabilidade, risco etc.) mais estará preparada para tomar uma decisão. Às vezes, tomar uma decisão não é fácil, sendo necessária a ajuda de pessoas que entendem do assunto em questão, para seguirmos pelos caminhos mais apropriados ao que desejamos. Sobre a proposta: histórias fictícias Ela tem como objetivo levar as(os) estudantes a exercitarem a escolha consciente, com base em situações que acontecem na vida das(os) adolescentes e jovens, algumas delas mais frequentemente do que imaginamos. As figuras de Quadros dão a oportunidade de desencadear diálogos entre adolescentes, jovens e educadoras(es), que podem acolher histórias e sentimentos difíceis de elas(es) expressarem em situações comuns de conversa. É muito importante trabalhar essas histórias e sentimentos na formação de adolescentes e jovens, por meio do diálogo e da reflexão, sem moralismos ou constrangimentos. Para favorecer a possibilidade de conteúdos não convencionais ou escolares virem à tona, porém sem caracterizar pessoalmente as questões que surgirem, as(os) estudantes criarão histórias fictícias, as quais serão base para o diálogo entre a turma e a(o) educadora(or). Veja a dinâmica da criação da história Num primeiro momento, todas(os) as(os) estudantes circularão pelos varais e cada participante escolherá um quadro que lhe toque mais e anotará o seu número para levar ao grupo. Distribua, a seguir, as apostilas com as 27 imagens numeradas e impressas em tamanho menor, uma por grupo, para que cada participante possa identificar o quadro escolhido por ela(e), quando circulou pelos varais. Organize grupos de quatro ou cinco participantes. A tarefa será construir duas histórias com o mesmo tema e os mesmos personagens centrais, mas com diferentes desenvolvimentos e desfechos. A cada composição das figuras, as(os) adolescentes e jovens lidarão com novas situações de vida e escolhas. Alguém do grupo, que se voluntariar, começa então uma história coletiva, com os personagens do quadro escolhido, mostrando-o às(aos) colegas. Uma fala puxa outra. A seguir, outra(o) participante dará continuidade à história iniciada pela(o) colega anterior, com base nas imagens do seu quadro e assim por diante, até que todos os quadros escolhidos pelas(os) participantes do grupo tenham sido contemplados. Essa atividade de criação de histórias levará aproximadamente 20 minutos. 28 E se? Se a(o) educadora(or) preferir e achar mais prático ou mais atrativo, poderá fazer vários kits com os 27 quadros avulsos, no seu tamanho original, e distribuir um kit por grupo. Nesse caso, as(os) estudantes primeiro circulam pelos varais e, voltando ao grupo, procuram o quadro escolhido por ela(e), entre os 27 quadros do kit do grupo. Da mesma forma que no exemplo anterior, alguém se voluntaria para começar a história a ser criada coletivamente, dispondo o seu quadro na roda, como a primeira cena de uma história em quadrinhos. Outra(o) participante continua a história, expondo o seu quadro ao lado do primeiro, formando o segundo quadrinho da história e assim por diante até que todas(os) exponham o seus quadros e tenham participado da criação da história. Circule pelos grupos e, conforme observar que as(os) participantes estão finalizando a primeira história, peça para contarem-na para você. Então problematize com o grupo que essa foi uma história possível. Haveria outras? Que outras possibilidades de desenvolvimento e desfecho poderia o grupo dar à história produzida, com esses mesmos personagens? Poderiam refletir um pouco e tentar outro caminho e fim? Oriente que para construir a nova história elas(es) poderão retirar um ou mais quadros da história anterior, trocar ou incluir outros (aproximadamente 20 minutos). Se perguntarem que desfecho elas(es) devem dar para essa segunda história, diga que a escolha é delas(es), não interfira na decisão. Finalizada a segunda produção, o grupo deverá pensar como apresentá-la para a turma, no próximo encontro, em outra linguagem. Exemplos: peça teatral, rap, música, poesia, dança, repente, haicai, cena muda etc. Dessa forma, o restante da oficina será para ensaiarem a representação. Segundo encontro: compartilhando as escolhas Neste encontro, os grupos socializarão entre si e debaterão as escolhas feitas dos quadros e das histórias produzidas por elas(es). Os varais deverão ficar vazios para cada grupo expor neles os quadros que deram origem às histórias produzidas. Participantes voluntárias(os) farão a filmagem das apresentações para que os grupos possam se ver depois. Inicialmente, cada grupo representará a segunda história produzida, por meio da linguagem escolhida e, após a representação, contará à turma como chegou a ela: • Qual foi a primeira história produzida (colocará os quadros no varal, para que os demais grupos vejam a sequência dos quadros e possam acompanhá-la); • Quais foram as transformações que as(os) participantes realizaram ao produzir a segunda história, remontando, no varal, os quadros que compuseram essa segunda produção. Após cada apresentação em grupo, promova um debate geral, investigando se entenderam o que cada grupo produziu e instigando a reflexão sobre as escolhas dos personagens das duas histórias, por meio de perguntas como: • Das duas histórias, que escolhas foram mais favoráveis aos personagens? Por quê? • E quais foram as mais desfavoráveis? Por quê? 29 • Haveria outras escolhas possíveis além das que o grupo apresentou? Quais? • Os personagens tinham consciência do que queriam? • O que acharam do desenrolar das histórias? • E dos desfechos dados? Fique atenta(o) às manifestações das(os) adolescentes e jovens e faça as mediações necessárias para que haja respeito entre todas(os), durante o diálogo, questionando atitudes agressivas ou pejorativas. Para finalizar, projete as gravações das apresentações num telão para os grupos se verem e a turma ter oportunidade de rever as diferentes histórias e escolhas realizadas. E se? Se perceber constrangimento ou desconforto por parte de alguma(um) participante, não comente nada em grupo. Procure-a(o) depois da atividade para conversar, isoladamente da turma, e averiguar se há algo que mereça uma atenção mais cuidadosa das(os) educadoras(es) ou da família e discuta na instituição. Em alguns casos, é importante buscar ajuda na parceria do CRAS mais próximo (Centro de Referência de Assistência Social). Na roda final do dia, peça que avaliem a oficina. Comece no coletivo, perguntando sobre o processo de construção das histórias: • O que provocou, pessoalmente, a escolha dos quadros: que sentimentos, que pensamentos? • Como cada participante compatibilizou o seu quadro com o da(o) colega, para dar continuidade à história do grupo? • Esse processo foi tranquilo ou houve impasses? Se houve, como eles foram resolvidos? • E, ao mudarem a história, houve negociação entre as(os) participantes? • O que as(os) motivou a adotar o novo enredo e o novo desfecho? Peça que conversem entre si, nos grupos, e escolham um dos 27 quadros expostos nos varais para expressar sua avaliação sobre a oficina, justificando-a para o coletivo da turma. Hora de avaliar Para ampliar O que mais pode ser feito? • Com base na oficina, as(os) adolescentes e jovens poderão organizar um debate, com a ajuda das(os) educadoras(es), para discutir as situações de vulnerabilidade social de adolescentes e jovens no Brasil e a proposição de projetos que instituem a maioridade penal a partir de 16 anos, em contraposição ao que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para adensar a discussão, poderão convidar alguma(um) juíza(juiz) e/ou promotora(or) da vara da infância e juventude e representantes de entidades que defendem os direitos das crianças e das(os) adolescentes como o Conselho 30 Municipal da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar; • Produzir lambe-lambes com algumas frases emitidas nesse debate ou em leituras afins. 31

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Leitura e escrita com sentido

Ler e escrever amplia horizontes e fortalece a cidadania. Neste material, você encontra oficinas que inspiram práticas relevantes na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.

Leitura e escrita com sentido Oficinas práticas e adaptáveis para o trabalho com turmas em processo de alfabetização Aprender a ler e escrever é muito mais do que decifrar códigos: é um processo que amplia horizontes, fortalece identidades e permite que cada estudante exerça sua cidadania também. Acreditamos que a sala de aula deve ser um espaço vivo de experimentação, descobertas e ecantamento com a palavra escrita e falada. Por isso, reunimos aqui um conjunto de oficinas temáticas sobre Leitura e Escrita, pensadas para apoiar você, educadora e educador, na construção de experiências significativas para suas turmas de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Cada oficina é composta por um guia inicial que apresenta tudo o que você precisa saber antes de colocá-la em prática: os materiais necessários, as finalidades da atividade, o público a que se destina, o espaço onde pode ser realizada e a duração estimada. Nosso objetivo é que esse material sirva como um roteiro de apoio, mas que também inspire adaptações, novas ideias e conexões com os contextos e necessidades de cada grupo de estudantes. As propostas aqui reunidas são fruto de experiências desenvolvidas pelo Cenpec em projetos e programas voltados à educação pública, sempre em diálogo com a comunidade escolar. São atividades que valorizam a diversidade cultural, promovem a participação ativa das crianças e fortalecem sua relação com a leitura e a escrita de forma prazerosa e significativa. Esperamos que este material contribua para enriquecer suas práticas e tornar cada momento de aprendizagem uma experiência inesquecível para sua turma. E que possamos construir uma educação integral, diversa, antirracista e de qualidade para todas e todos! Boa leitura e bom trabalho! Oficina 1 Imagens contam Histórias • Conjunto de fichas com ilustrações de uma narrativa. • Cola. • Folhas de papel. • Perceber a relação entre ilustração e texto na composição da narrativa. • Observar os elementos (personagens, eventos, tempo, espaço) e o enredo (sequência de eventos) de uma narrativa, e seu papel na formação da unidade e do sentido do texto. • Familiarizar-se com as estruturas da língua e o vocabulário da língua escrita. • Ouvir a leitura de livros. • Escrever textos. Exploração da relação entre ilustração e escrita na criação de histórias com crianças em alfabetização. Que tal trabalhar de forma divertida a relação entre imagem e escrita com as crianças por meio de um jogo? • Promover o letramento das crianças de forma articulada com as outras linguagens (visual, oral) e de forma lúdica e adequada à etapa de vida que elas vivem. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 2 encontros de 50 minutos cada. Em um livro para crianças, os aspectos gráficos e visuais são um recurso fundamental. As ilustrações, as cores, o jogo de luz e sombra, o tamanho das letras, a disposição de textos e imagens contribuem para a compreensão da obra literária e para a abertura de novas perspectivas de leitura, ao revelar ou realçar aspectos muitas vezes apenas sugeridos no texto. A expressão e comunicação por meio de imagens estão presentes desde os registros mais remotos do ser humano. Como reflete o autor e ilustrador Odilon Moraes: “A imagem foi o primeiro instrumento de que o ser humano se serviu para escrever. A escrita fonética vai vir muito depois. A imagem, embora não seja letra, representa algo que não está lá. Essa é a ideia da escrita. A criança aprender a ler é um pouco aprender que aquele ‘desenho’ que ela está fazendo significa algo que não está lá. Isso já é um processo de escrita.” Assim, explorar as ilustrações das narrativas é essencial à formação leitora, especialmente às crianças ainda não alfabetizadas ou no início da aprendizagem da leitura e escrita. Selecionando e contando a história Selecione uma narrativa. Você pode escolher livros do acervo da biblioteca da escola, distribuídos pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) para a Educação Infantil e para os anos iniciais do Ensino Fundamental. • O que o título sugere? • O que vai acontecer em seguida? Jogo: imagens contam histórias Num outro dia após a leitura da narrativa, distribua as fichas com as ilustrações em ordem diferente da original. Antes de iniciar o jogo, apresente às crianças o livro com a história que leram antes. Pergunte quem se lembra da história e dos personagens. Deixe que falem à vontade. Se achar necessário, mostre novamente as ilustrações para que recordem o enredo. Como jogar Peça que a turma se organize em duplas. Explique que ela(es) deverão organizar as ilustrações da forma que acharem melhor. Depois, podem colá-las segundo a ordem que escolherem, para fazer um pequeno livro. Dependendo do nível e da etapa da turma, você pode pedir às crianças que façam algum tipo de escrita. Mesmo crianças pequenas podem escrever algo, como o título do livro ou seu próprio nome, já que serão “autoras(es)” deste livro. Em seguida, você pode pedir que a turma se reúna em grupos maiores e observe as sequências montadas. Depois, peça que cada grupo escolha uma das combinações criadas e “leia” a história que elas ilustram. Por fim, você pode ler ou contar novamente para elas(es) a história original, para que comparem as versões. Conversando sobre as diversas versões da história Nesse momento, é muito importante estimular que expressem suas percepções e ideias sobre a experiência. O objetivo é ajudar as crianças a entender que mudanças a alteração da sequência das ilustrações gerou na história. Você pode fazer perguntas: Saiba mais sobre estrutura narrativa! Confira o vídeo Estrutura da Narrativa: Conhecer e produzir! • O que vocês acham que o personagem vai fazer? Reconte coletivamente a história com as crianças, atentando para os elementos principais da narrativa (veja mais à frente). Elaborando as fichas Depois que as crianças conhecerem a história, mãos à obra! É hora de elaborar as fichas. Para isso, procure selecionar imagens (ilustrações, fotos, desenhos, pinturas…) que representam momentos marcantes da narrativa: • Início (apresentação dos personagens, contexto – tempo e espaço); • Conflito (desafio que o(s) personagem(ns) principal(is) precisa(m) resolver para atingir seus objetivos); • Clímax (ponto de maior tensão da narrativa); • Desfecho. 8 • De qual história vocês gostaram mais? Por quê? • O que tem de mais legal nesse jeito de contar a história? • E o que não ficou tão bom, na sua opinião? Por quê? • Dá pra melhorar? Como? Vale ressaltar que cada criança pode ter diferentes opiniões e que o mais bacana é ouvir com atenção e respeito, mesmo que a gente discorde. E que mudar de ideia também é muito legal! Variações Você pode propor variações desse jogo, por exemplo, trazendo e misturando ilustrações de outras narrativas. Também pode incentivar as crianças a criarem suas próprias ilustrações. Para isso, elas podem usar desenho, pintura, colagem, misturar várias técnicas. É interessante ouvir e incorporar contribuições das crianças, que podem inventar novas formas de brincar e jogar com ilustração e narrativa. Falando de narrativa… Como apresentar os elementos de uma sequência narrativa de forma simples e divertida a estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental? • Assista à animação Literatura: viajando na narrativa. Ela foi inspirada no conto Nas garras do primeiro amor, do escritor mineiro Fernando Sabino. Acesse em: Oficina 2 Recriando histórias com as crianças O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Livros de contos clássicos (sugestões do acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Veja ao final desta oficina). • Podem-se usar tecidos e/ou fantasias, perucas e acessórios de teatro para se fantasiar e montar cenários. • Alimentar o interesse em ouvir histórias, comentando-as, opinando sobre elas e compartilhando interpretações com outras pessoas. • Fazer uso da imaginação e do conhecimento que tem sobre a história lida para criar novas versões. • Vivenciar a experiência da autoria de uma história. Criação de novas histórias com base em narrativas da tradição oral de diversos povos. Autora da oficina: Madalena Monteiro, narradora de histórias e formadora de professoras(es). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Promover o interesse pela leitura e produção de textos orais e escritos. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental • Em casa, na escola, na sala de leitura ou em outro espaço. • 1h a 1h30 aproximadamente. Voltar para o sumário 10 Início de conversa Os contos da tradição oral são um “tesouro inestimável” – como afirma Ana Maria Machado – que possibilita o contato com uma obra literária de qualidade narrativa inquestionável. A leitura e a narração dessas histórias transmitidas de geração a geração é uma maneira gostosa e envolvente de proporcionar às crianças um mergulho no mundo da ficção e da fantasia. A imaginação é uma poderosa ferramenta, muitas vezes acionada em nós, até inconscientemente. Podemos usá-la com a clara intenção de contribuir para que as crianças vivenciem experiências de criar e contar histórias. Para além do reconto, a criação com base em uma narrativa modelo alia a segurança de conhecer a narrativa em movimento, apresentada na história fonte, ao fascínio de se atirar às incertezas das novas ideias que se movimentam no imaginário de quem está criando. Assim, oferece uma vivência próxima à da(o) escritora(or), que controla o que cria, mas não o faz tão bem se não se deixar levar pela imaginação. É certo que a vivência do reconto contribui para que as crianças construam conhecimento sobre a produção textual. Já a criação a partir de um modelo garante a vivência da autoria, fundamental para que a(o) aluna(o) deslanche em seus textos nas séries mais avançadas. A sequência de atividades proposta a seguir passa pela leitura e se envereda pelos caminhos da criação literária, partindo do pressuposto de que todo ser humano, dotado de imaginação e capaz de fazer uso da memória e da linguagem, tem potencial para criar. Escolhendo os contos O primeiro passo é selecionar quais contos gostaria de usar para esse trabalho de criação. Sugerimos contos bem conhecidos: João e Maria, Chapeuzinho Vermelho, Os três porquinhos e Branca de Neve. Porém, é possível adaptar as atividades de acordo com o conto escolhido e com o repertório que as(os) alunas(os) já formaram. Oferecendo os contos às crianças Você pode fazer a leitura em voz alta de algum dos contos escolhidos ou de vários contos ao longo de alguns dias. Sempre ao final da leitura, é importante conversar sobre a experiência de escuta do conto: perguntando se gostaram ou não da história, quais partes querem destacar. É interessante fazer comentários que ajudem a relacionar essa história com outras já conhecidas ou com fatos ocorridos em suas vidas. E perguntar se gostaram ou não do conto, quais partes querem destacar, enfim, entabular uma conversa próxima da que costumam realizar as(os) leitoras(es) proficientes ao comentarem os livros que leem. Na prática Sugestão de encaminhamento 11 Brincando com os contos São infindáveis as possibilidades de brincadeiras que se podem propor a partir dos contos, com o intuito de suscitar nas(os) alunas(os) a inspiração para criar. A brincadeira pode ser vivenciada oralmente, por meio de desenho, com dramatização, ou ainda com as(os) alunas(os) recontando coletivamente a história recriada e a(o) professora(or) a escrevendo para que não se perca. E se algo não agrada na história? Pergunte qual ou quais as partes da história de que as crianças menos gostam e por quê. Justificar ajuda a aproximar o pensamento da pergunta: o que eu gostaria que tivesse acontecido nessa parte? Em seguida, você pode propor um jogo: vamos recontar essa história de um jeito que fique mais com a nossa cara? Há várias formas de fazer isso: pedindo para a criança recontar ela mesma a história com modificações; inventando com ela a história alterada; propondo um concurso de recontos, cada pessoa contando sua versão ou formando duplas/trios para recriar a narrativa… E se você estivesse na história? A criança é motivada a pensar que participou de alguma parte da história. Você pode dar algumas pistas: Quem você era? Onde estava? O que fez? Depois de um tempo de trabalho individual (que pode ser somente pensado, desenhado ou escrito), em roda, cada uma(um) partilha o que pensou e comenta as criações. E se o final não fosse assim? Uma das brincadeiras mais comuns com narrativas é a criação de um novo final. Para isso, é interessante combinar a partir de que ponto a história deverá ser modificada para acrescentar certo grau de dificuldade a esse exercício de criação. No conto Os três porquinhos, por exemplo, pode-se propor que reinventem a história a partir do momento em que o lobo correu para a casa do terceiro porquinho, ou, no conto Branca de Neve, a partir do momento em que os anões encontram a princesa morta. E se aparecesse outro personagem? O acréscimo de um personagem que não está inserido na história é um exercício um pouco mais elaborado, porque pressupõe conhecer um pouco sobre o personagem para criar sua ação dentro da trama narrativa. Como estamos trabalhando com crianças, é mais fácil sugerir um personagem que todas(os) conheçam e que seja marcante. Com o conto João e Maria, por exemplo, pode-se propor que recontem a história acrescentando um dos anões do conto Branca de Neve, ou, no conto Chapeuzinho Vermelho, pode-se propor o aparecimento de algum dos porquinhos. 12 Sugestões de livros de contos clássicos - Bibliografia comentada (acervo do PNBE e Pnaic) Contos de fadas, Maria Tatar (Org.), Jorge Zahar Editor O bacana desta edição é que traz os contos clássicos em suas versões originais, sem adaptações, com autoria de Grimm, Perrault e Andersen, entre outros. Histórias de quem conta histórias, Lenice Gomes (Org.), Ed. Cortez O livro é uma coletânea de contos escritos por contadoras(es) de histórias do Brasil, de Portugal e do México. Organizado por Lenice Gomes e Fabiano Moraes, reúne lendas do continente americano, contos de assombrar e de arrepiar, histórias de fadas e de encantamento e causos de exemplo e de esperteza. E se a história se passasse num outro lugar? Esse é outro exercício de criação que exige um pouco mais da imaginação e da capacidade de encadear ideias, já que mudar o ambiente da história, muitas vezes, pressupõe mudar também algumas ações e características dos personagens. Pode-se brincar de mudar todo o cenário do conto ou apenas um detalhe. Imaginemos que, na história da Branca de Neve, os anões fossem pedreiros, operários de uma construção muito grande. Como a protagonista chegaria até eles depois de sair da floresta? Como seria a “casinha” deles na cidade? Por que eles haveriam de morar todos juntos numa cidade, sem esposa e nem mãe? Como a rainha má chegaria até lá? E o príncipe, de onde teria vindo? Para continuar a brincar Essas foram algumas ideias para que você se aventure com as crianças pelas veredas da criação de histórias a partir de um modelo. Você já deve estar imaginando uma porção de outras possibilidades: • E se em vez de três porquinhos, fossem três peixinhos ou três passarinhos? • E se a Branca de Neve fosse uma princesa da África negra? • E se o príncipe da Branca de Neve se deparasse com Chapeuzinho Vermelho na floresta? • E se… As melhores histórias das mil e uma noites, Carlos Heitor Cony, Ediouro O livro apresenta as fábulas das Mil e uma noites, com seu colorido oriental, a paisagem encharcada de areia, camelos, palmeiras, tâmaras e beduínos. Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; Ali Babá e os Quarenta Ladrões; Sindbá, o Marujo e O Califa de Bagdá estão entre as mais conhecidas e amadas histórias. 13 Contos tradicionais do Brasil, Luís da Câmara Cascudo, Global Editora Este livro é resultado das pesquisas de Luís da Câmara Cascudo acerca da tradição oral brasileira na forma de contos e de manifestações do folclore. Nesta obra, foram reunidos mais de 80 contos populares brasileiros, divididos em 12 grupos, entre eles, os “contos de encantamento”, que algumas(uns) pesquisadoras(es) preferem denominar “contos de fadas”. São contos belíssimos, que podem ficar ainda mais bonitos se a(o) professora(or) se preparar para contar oralmente. As melhores histórias de todos os tempos, Monica Rodrigues da Costa (adaptação), Publifolha Editora Esta coletânea apresenta adaptações de histórias infantis como Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, Os Três Porquinhos, Branca de Neve e O Flautista Mágico. Os contos são baseados nas narrativas dos irmãos Grimm, Andersen e de outras(os) autoras(es) que criaram verdadeiros clássicos da literatura mundial. A gata borralheira e outros contos de Grimm, Walcyr Carrasco (adaptação), Editora Manole Os contos registrados pelos irmãos Grimm fazem parte da tradição oral europeia. São histórias contadas de pais para filhos, por gerações. Esses contos corriam o risco de se perder para sempre, mas, graças ao trabalho de Jacob e Wilhelm Grimm, são conhecidos em todo o mundo, até hoje. Em alguns dos contos, Walcyr Carrasco mantém o tom levemente tétrico, dando uma ideia de como eram narrados. 14 Oficina 3 Jogando e percorrendo histórias O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Papelão quadrado de mais ou menos 60 cm. • Canetas hidrocor. • Lápis de cor. • Tampas de garrafa para confeccionar os peões. • Tesoura. • Cola branca. • Papel A4. • Cartolina para confeccionar os dados. • Ampliar o repertório sobre jogos. • Recitar oralmente uma sucessão ordenada de números. • Reconhecer e produzir a escrita de numerais. • Designar oralmente uma quantidade em situação de contagem. • Conhecer e produzir textos instrucionais. • Organizar a própria ação com base nas indicações prescritas pelas regras do jogo. • Colaborar em situações de produção coletiva de textos, acompanhando seu desenvolvimento, dando ideias a respeito do que deve ser escrito, suprimindo ou modificando trechos quando necessário para melhor entendimento da(o) leitora(or). • Confecção de jogos de percurso com base em narrativas. Autora da oficina: Maria Alice Junqueira, formadora de professoras(es) com especialização em alfabetização, coordenadora do projeto Letra Viva Alfabetiza (Cenpec). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Apoiar, de forma lúdica, as crianças na apropriação da leitura e da escrita, assim como o numeramento. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de leitura, sala de atividades, biblioteca ou outro espaço. • 2 a 3 encontros de 1h a 1h30 cada. Voltar para o sumário 15 Início de conversa Jogar é uma atividade da qual as crianças sempre participam com prazer. À primeira vista, pode parecer apenas diversão com amigas(os). Mas você já observou o quanto se aprende jogando? A cada jogada é necessário resolver problemas e, para isso, desenvolvem-se estratégias e aprendizagens. Nos jogos de percurso, ao lançar os dados e avançar com o peão pelas casas do trajeto, as crianças vão compreendendo o sistema numérico. Avançar no percurso de acordo com o número tirado no dado implica recitar a série numérica e enumerar as casas, isto é, tentar fazer que o número pronunciado corresponda ao objeto contado. Ao mesmo tempo, as crianças avançam na apropriação da leitura, uma vez que precisam ler as regras do jogo e as cartas que correspondem à casa onde seu peão caiu. Por fim, mas não menos importante, aprendem que ganhar e perder fazem parte do jogo. Por essas e tantas outras razões é que os jogos vêm sendo cada vez mais incorporados ao currículo das escolas. Então, que tal criar um jogo de percurso com suas(seus) alunas(os)? Ou melhor, ajudá-las(os) para que elas(es) mesmas(os) produzam seu próprio jogo? As crianças confeccionarão o tabuleiro, as regras do jogo, as cartas, os peões e o dado. Para tanto, escolherão uma história que será a “narrativa” do percurso. Com isso, aprenderão muito sobre o sistema alfabético. Aprenderão, ainda, a aceitar as regras do jogo, pois sem estas não se pode nem iniciar a partida. Perceberão, ao longo do jogo, que as regras até podem ser modificadas, desde que isso seja discutido e acordado com as(os) parceiras(os). Essa vivência com certeza as ajudará, inclusive, a compreender a importância das regras para o convívio social. Ao final, propomos a realização de um festival de jogos, em que a turma apresente suas criações e ensine as(os) visitantes a jogar com elas(es). Jogo de percurso e numeramento Esse tipo de jogo é bastante simples e conhecido. Mas existem diferenças quanto ao grau de dificuldade nos percursos a serem trilhados. Há aqueles em que a(o) jogadora(or) avança as casas de forma contínua até o final do trajeto. Outros, mais complexos, apresentam casas marcadas com símbolos, indicando que a(o) jogadora(or) receberá uma carta com determinações para adiantar, deter ou atrasar a caminhada. Por exemplo: “Você teve sorte, avance 5 casas”, ou “Que azar! Recue 3 casas”, ou ainda “Fique uma rodada sem jogar”. Nessa segunda modalidade, as(os) participantes podem jogar com dois dados, somando suas faces e avançando as casas de acordo com o resultado obtido. Como se vê, nos jogos de percurso, mesmo nos mais simples, é necessário algum conhecimento sobre a recitação da sequência numérica, ou seja, é preciso recitar a sequência sem pular números ou modificá-la, até chegar ao número previsto, sincronizando fala e gesto. Os jogos de percurso podem contribuir para que, com a mediação da(o) professora(or), as crianças avancem no conhecimento da sequência numérica e da enumeração de objetos. 16 Na prática Sugestão de encaminhamento Pesquisando jogos de percurso Antes de iniciar o trabalho com as crianças, vale a pena pesquisar sobre jogos de percurso e suas regras. Assim, você poderá avaliar quais são os adequados para sua turma. Compartilhando a proposta com as(os) estudantes É interessante organizar rodas para apresentar aqueles que pesquisou. Além de envolver as crianças, essa é uma boa oportunidade de observar se elas já têm familiaridade com jogos, se conhecem algumas regras e como enfrentam situações em que estas devem ser respeitadas. Você pode observar também que estratégias elas(es) utilizam para saber o número obtido no dado e para contar as casas a serem avançadas. Após algumas rodas, você pode propor a organização de um festival de jogos na escola. Para isso, elas(es) criarão jogos de percurso (e suas regras) e, durante o evento, ensinarão as(os) convidadas(os) a jogá-los. Ampliando o repertório de jogos Para confeccionar os jogos, é importante que as(os) estudantes ampliem seus conhecimentos sobre jogos de percurso. Peça que tragam jogos à escola para apresentar às(aos) colegas. Caso ainda não sejam leitoras(es) convencionais, você pode ajudá-las(os) lendo as regras em voz alta. Pode também realizar partidas com um pequeno grupo no centro da roda, a fim de demonstrar como se joga. No final, disponibilize os jogos para as(os) alunas(os), organizando-as(os) em pequenos grupos para as partidas. A regra é clara: o texto instrucional Ler as regras do jogo em voz alta e recorrer a elas no caso de dúvida ou polêmica é muito importante para que as(os) participantes compreendam seu papel no bom andamento do jogo e na interação com as(os) parceiras(os). Além disso, permite que as crianças conheçam melhor o gênero texto instrucional e suas características. Um traço marcante desses textos são os tópicos que aparecem em destaque: “Componentes” (tabuleiro, peões, cartas, dado…); “Preparação” (o que deve ser feito antes de iniciar a partida: distribuir os peões, decidir quem joga em primeiro, segundo lugar…); “Como jogar”; “Vencedora(or)”, entre outros. Outras características são frases como: “Distribua um peão para cada jogadora(or)”; “Avance casas de acordo com o número obtido no dado”… etc. É interessante ler e perceber, com as crianças, que esse gênero em geral apresenta verbos no infinitivo ou imperativo, que identificam claramente as orientações. 17 Agrupando as crianças O trabalho será realizado em pequenos grupos − sugerimos que estes não ultrapassem cinco integrantes para que todas(os) possam envolver-se de forma direta na elaboração do jogo. É importante considerar não só os conhecimentos das crianças sobre os jogos em si, mas também as hipóteses sobre o sistema de escrita alfabética que estão elaborando. Vale lembrar que não é interessante agrupar crianças com hipóteses muito distintas, por exemplo, crianças pré-silábicas com alfabéticas. O passo seguinte será a escolha de uma história que se transformará no jogo. Ouvindo histórias Esta é uma etapa significativa do projeto, pois as crianças serão envolvidas por sua leitura de histórias. Para que este seja um momento prazeroso, vale decorar a sala com tecidos coloridos, almofadas e cantinhos aconchegantes, onde as crianças se acomodem para ouvir as narrativas e ver melhor as ilustrações exibidas durante a leitura. Após a leitura de várias histórias, cada grupo escolherá uma para ser a inspiração na confecção do jogo, ou melhor, para ser transformada em jogo. Transformando a história em jogo Para auxiliar as crianças a transformar a história em jogo, procure organizar algumas atividades. Uma delas é planejar situações em que as crianças recontem oralmente a história, para conhecer melhor seus personagens e se apropriar de seu enredo. Isso será importante no momento em que forem produzir os peões, o texto das cartas e o tabuleiro, conforme se verá a seguir. A próxima atividade que pode ser proposta é a escrita de uma lista de personagens a serem transformados em peões ou utilizados para marcar determinadas casas do percurso. Essa lista pode ser feita de diferentes formas, mas sempre com o objetivo de contribuir para o avanço na aprendizagem da escrita. Por exemplo: as crianças de um grupo ditam o nome dos personagens da história que escolheram para que uma(um) colega de outro grupo escreva em um cartaz, que ficará afixado na classe. Outra possibilidade é formar duplas para escrever a lista. Essa é uma ótima oportunidade para as crianças colocarem em jogo o que sabem sobre a escrita em vez de copiar de um modelo. Essa lista também será muito útil para lembrar os personagens no momento de marcar algumas casas do percurso. Seguem exemplos do trabalho a ser realizado nessa etapa: vamos imaginar que um dos livros selecionados foi O caso do bolinho, de Tatiana Belinky. Algumas casas podem ter a imagem do “lobo”, do “vovô”, da “vovó“ ou “da lebre”. Capa O caso do bolinho 18 Quando uma(um) jogadora(or) chegar a uma dessas casas, receberá uma carta que determinará o destino a seguir: avançar, retroceder ou ficar onde está. Por exemplo, a carta retirada poderá ordenar: “O bolinho saiu rolando, avance cinco casas”. Também é necessário que a(o) professora(or) ajude os grupos a planejar como pretendem iniciar e terminar o percurso do jogo. Para isso, novamente é preciso tomar como base a história escolhida. Vamos supor que o livro selecionado tenha sido O rei Bigodeira e sua banheira, de Audrey Wood. Capa O rei Bigodeira e sua banheira Nesse caso, a primeira casa do percurso poderia mostrar a ilustração do rei Bigodeira em sua banheira acompanhada de um texto como: “Vamos ajudar o rei Bigodeira a sair de sua banheira?”. Já a última casa poderia exibir uma ilustração do rei Bigodeira saindo da banheira, acompanhada por um texto como: “Parabéns, você venceu o jogo: o rei Bigodeira saiu de sua banheira!”. O importante é que os textos sejam criados pelas(os) alunas(os), com base na história escolhida. É fundamental ajudá-las(os) a identificar qual é o conflito central, em torno do qual a história se desenvolve. No caso de O rei Bigodeira e sua banheira, por exemplo, trata-se de convencer o rei a sair da banheira. Já em O caso do bolinho, a trama gira em torno das estratégias criadas pelo bolinho para se safar dos animais que pretendem devorá-lo. Para auxiliá-las(os) nessa tarefa, você pode − no caso das duas histórias citadas – perguntar, por exemplo: “Por que os personagens do livro estavam tentando convencer o rei Bigodeira a sair de sua banheira?”; “Por que o bolinho teve que se safar dos animais que encontrou pelo caminho?”; “O que acontece no final da história?”. Montando o tabuleiro A etapa seguinte é orientar as(os) alunas(os) na construção do tabuleiro. Para que o tabuleiro fique firme, é importante que a base seja confeccionada com papelão, papel-cartão ou cartolina. Após ser recortada no tamanho desejado, a base será forrada com papel, sobre o qual o percurso do jogo será desenhado. Planejando como será o percurso do jogo Antes de desenhar o percurso sobre o tabuleiro, oriente as(os) alunas(os) a fazer um esboço do trajeto. É importante elaborar com elas(es) uma lista do que precisam definir: • Resolver como será o seu formato e quantas casas ele terá; • Combinar como a trilha será desenhada (Quem traçará o percurso? Ele será traçado só por uma(um) aluna(o)? Qual será a participação das outras crianças? etc.); • Selecionar as casas que serão demarcadas com ilustrações de personagens, que personagens serão e quem vai desenhá-los. 19 Definindo o formato do percurso Esse item requer um planejamento mais cuidadoso do que os anteriores, por isso vamos nos deter um pouco mais nessa questão. Planeje uma atividade em que as crianças possam observar alguns tabuleiros e conhecer diferentes formatos. Nesse momento, você pode chamar a atenção para as diferenças entre os vários percursos: alguns são retangulares, outros descrevem várias curvas, há os que foram traçados em espiral; assim, elas(es) perceberão que há vários formatos possíveis e cada grupo escolherá a forma que pretende dar ao seu percurso. Depois, cada grupo esboça o seu trajeto da forma como combinaram. Traçando o percurso e finalizando o tabuleiro Uma vez que o esboço realizado for aprovado pelo grupo, a próxima etapa é desenhar o percurso no tabuleiro. Quando ele estiver pronto, é o momento de decorar o espaço em torno do percurso, decidindo se produzirão imagens ou pretendem complementá-lo com algum texto. Alguns jogos costumam trazer o título do jogo escrito no tabuleiro ou algumas frases que orientam o percurso (como sugerido no tópico “Transformando a história em jogo”). Você pode sugerir que observem novamente alguns tabuleiros para se familiarizarem com os textos que costumam fazer parte destes. Como inspiração, organize uma atividade em que possam apreciar outras imagens, além daquelas que ilustram a história escolhida. Pode disponibilizar outros livros ou até mesmo produções de artistas conhecidos sobre o tema que pretendem desenhar. As crianças podem desenhar sobre o tabuleiro ou em outro suporte e depois recortar e colar sobre as casas e/ou o tabuleiro. Numerando as casas do percurso Em geral, desde muito pequenas, as crianças têm contato com números escritos no dia a dia, observando, por exemplo: o número dos ônibus que as transportam, o número de seu telefone ou da casa onde moram, a forma como as(os) adultas(os) usam o dinheiro etc. Porém, isso não garante que têm familiaridade com sua escrita. Em vista disso, tarefas como a de numerar as casas do percurso contribuem para o avanço das(os) alunas(os) na escrita de algarismos. Para isso, a(o) professora(or) pode dispor uma tabela com os números ordenados para servir de apoio à turma: quando uma criança não souber escrever “11”, por exemplo, pode contar as casinhas na tabela e, com base na numeração oral memorizada, ter acesso à escrita numérica desse algarismo. Assim, as crianças encarregadas dessa tarefa conseguirão numerar as casas e avançar em seu conhecimento da escrita numérica e da ordenação dos números. Confeccionando e escrevendo as cartas A confecção das cartas precisa ser planejada com a sua ajuda, pois cada uma deve conter um texto baseado na história escolhida. Por exemplo, se a narrativa for a do rei Bigodeira, o texto de uma dessas cartas poderia ser o seguinte: “O rei Bigodeira não quer sair de sua banheira, volte cinco casas” ou “O rei Bigodeira espirrou água para todo lado, avance sete casas para não se molhar” ou ainda “O rei Bigodeira dormiu na banheira, fique uma vez sem jogar”. 20 É importante que, antes de escrever, as(os) alunas(os) leiam – ou ouçam a(o) professora(or) ler − cartas de diferentes jogos para que possam se apropriar das características desses textos (expressões usuais, verbos no modo imperativo, organização espacial do texto etc.). Uma maneira de propor a elaboração desses textos é criar situações que misturam produção de texto oral com escrito, por exemplo: as(os) alunas(os) ditam o texto e a(o) professora(or) registra no quadro, já fazendo contribuições como escritora(or) mais experiente, discutindo com elas(es) a forma de escrever as palavras e fazendo perguntas que ajudem as crianças a construir um texto o mais semelhante possível aos textos instrucionais. Nesse sentido, também é interessante reler algumas cartas para que relembrem os recursos próprios do gênero instrucional e os introduzam em sua produção. Participar de situações de escrita coletiva de textos é fundamental para estudantes em alfabetização, pois oferece a chance para que percebam que são capazes de produzir textos, mesmo antes de saberem grafá-los. Por isso, é necessário lembrar que é importante que a(o) professora(or) coordene esse momento, garantindo que cada uma(um) tenha a oportunidade de dar sua opinião, na medida de suas possibilidades. Revisando o texto das cartas A revisão tem por objetivo buscar soluções para os problemas que o texto apresenta, não só no que se refere aos aspectos ortográficos e de pontuação, mas também no que diz respeito à clareza e coerência do texto, para que seja compreendido pela(o) leitora(or). Você pode ler em voz alta o texto produzido coletivamente, assim todas(os) podem comentar e sugerir modificações para aprimorá-lo. Com base nessas sugestões, você faz as modificações no texto até que seja considerado satisfatório. Produzindo os peões e a caixa do jogo A última etapa de criação do jogo pode ser a produção dos peões. Cada um deles representará um personagem da história escolhida. Eles podem ser desenhados em papel ou cartolina, recortados e colados numa base que fique em pé (tampinhas de pasta de dente, por exemplo). Em seguida, produzem uma caixa para guardar o jogo e seus componentes, que pode ser construída com papelão ou papel-cartão. Os dados podem ser confeccionados com cartolina. Escrevendo as regras do jogo Você pode propor que as crianças expliquem oralmente como jogar. Expor as regras oralmente facilita sua produção escrita, pois as(os) alunas(os) já saberão o que escrever. Assim, poderão se concentrar na linguagem utilizada em um texto de gênero instrucional. Você pode gravar as explicações (utilizando um gravador ou celular) e sugerir que as crianças escutem para transformá-las, com sua ajuda, em um texto. Na transposição do oral para o escrito, oriente- -as(os) a usar uma linguagem mais direta, enxuta e sem repetições. Por exemplo, em vez da explicação “Para andar as casas, você tem que ver que número saiu no dado”, típica da oralidade, elas(es) podem escrever “Avance o número de casas indicado no dado”. Exemplo de texto com verbo imperativo 21 Revisando o texto instrucional As regras do jogo devem apresentar orientações precisas sobre o modo como o jogo deve ser conduzido, por isso, na revisão do texto, é importante avaliar se ele está claro o suficiente para que a(o) leitora(or) compreenda, passo a passo, como organizar o jogo e como proceder durante a partida. Você pode ler as regras em voz alta para que as(os) alunas(os) avaliem, com sua ajuda, se é possível compreender as orientações ou se é necessário transformar, acrescentar ou omitir algum trecho para tornar o texto mais claro. Também é importante examinar se empregaram recursos próprios a um texto instrucional, uma vez que a intenção é que o texto se aproxime o mais possível desse gênero textual. Outras atividades de escrita e de leitura É interessante promover, ao longo da proposta, outras atividades que contribuam para o desenvolvimento das(os) alunas(os) em alfabetização. Para isso, você pode organizar algumas atividades, com base nas necessidades que forem surgindo, para que as crianças avancem na escrita. Seguem sugestões: • Escrita, em duplas, da lista dos componentes do jogo e do nome do jogo no tabuleiro ou em sua caixa; • Escrita (com letras móveis) dos nomes dos personagens (depois os nomes podem ser transcritos no papel e colados nos peões). Também é importante planejar situações em que as(os) alunas(os) tenham a oportunidade de se colocar na posição de leitoras(es), mesmo sem saber ler de maneira convencional, pois isso favorece a construção de estratégias para a leitura. Um exemplo: você pode solicitar que as(os) alunas(os) localizem uma palavra no texto de uma regra, como “tabuleiro”. Oriente as crianças a apoiar-se em indícios, como uma palavra já conhecida − o nome de uma criança da turma, “Taís”, por exemplo – que inicia da mesma forma que a palavra “tabuleiro”. Organizando o “festival de jogos” Para que o dia seja um sucesso, é necessário planejamento. Em primeiro lugar, é importante que as(os) alunas(os) conheçam bem as regras do jogo para saber explicá-las e esclarecer as possíveis dúvidas que as(os) convidadas(os) tiverem. Por isso, é recomendável ensaiar com a turma a apresentação para o dia do festival. Assim, poderão discutir a melhor forma de ensinar o jogo, antecipar as possíveis dúvidas e pensar sobre como solucioná-las. Além disso, é importante listar as tarefas e definir quem ficará responsável por elas. Pode-se combinar um rodízio entre as(os) alunas(os), de tal forma que, em cada partida, uma(um) ou duas(dois) autoras(es) do jogo estejam sempre presentes para ensinar as(os) convidadas(os) a jogar, e os outros membros do grupo estejam livres para aprender os jogos elaborados por outras equipes. Você pode envolver outras(os) profissionais da escola – coordenadora(or), diretora(or) ou outras(os) educadoras(es) – na organização e na promoção do evento. Bom festival! Texto instrucional revisado 22 Sugestão de livros para os jogos BELINKY, Tatiana. O caso do bolinho. São Paulo: Moderna, 2004; MUNDURUKU, Daniel. Caçadores de aventuras. São Paulo: Caramelo, 2018; SANTOS, Joel Rufino. O presente de Ossanha. São Paulo: Global, 2000; ILELA, Fernando. Lampião e Lancelote. São Paulo: Pequena Zahar, 2006; WOOD, Audrey. O rei Bigodeira e sua banheira. São Paulo: Ática, 2002. Falando em jogos… KLISYS, Adriana. Esse jogo é nosso! Instituto Avisa Lá. Acesse em MONTEIRO, Priscila. Jogos de percurso: contribuições para o ensino da Matemática na Educação Infantil. Instituto Avisa Lá. Acesse em SOARES, Carla. Competições que ensinam a turma a ganhar e a perder. Revista Nova Escola. Acesse em Para ampliar 23 Oficina 4 Passeios letrados O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Cadernos e lápis. • Celulares com câmera. • Cartolinas ou papel kraft. • Canetinhas coloridas. • Perceber funções da escrita e outros sistemas simbólicos em ambientes públicos. • Diferenciar símbolo, desenho e escrita. • Analisar cores, formas e sentidos na escrita ambiente. • Produzir placas e avisos multimodais. • Passeio com as crianças pela escola e arredores observando cartazes, letreiros, placas e outros objetos em que a escrita esteja presente. Autora da oficina: Paula Baracat De Grande, doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Contribuir para a percepção das crianças sobre a presença e a função da escrita no seu dia a dia. • Ajudá-las a diferenciar a escrita de outras linguagens gráficas, como números e desenhos. • Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental • Sala de aula, sala de atividades, biblioteca, centro cultural ou ambiente on-line. • 4 encontros de 1h30 cada. Voltar para o sumário 24 Início de conversa Vivemos numa sociedade letrada, em que a escrita está por todos os lados: em anúncios e letreiros comerciais, placas e avisos no trânsito, livros e jornais, panfletos que recebemos em casa, no computador, no celular… Desde cedo, as crianças percebem algumas das funções sociais da escrita. Para levar as(os) estudantes a prestarem atenção na escrita que as(os) rodeia, ajudar a perceber suas funções e refletir sobre elas, além de diferenciar a escrita de outras linguagens gráficas, propomos a organização de passeios letrados! Começamos pela escola, depois vamos para seus arredores. Além de perceber a escrita já presente nesses ambientes, as crianças poderão refletir sobre lugares que se beneficiariam com placas ou avisos escritos e multimodais (em que linguagens não verbais e linguagem verbal são combinadas para construir sentidos). A atividade também mostra que um texto não pode ser medido pela quantidade de palavras escritas. Por exemplo, o sinal PARE, registrado em placas de trânsito, é considerado um texto, porque, naquela situação específica, comunica. Já imaginou como seria ter que ler enquanto dirige: “Pare seu carro porque na referencial pode estar passando outro veículo ou pedestre. Siga quando nenhum outro veículo ou pedestre estiver na preferencial”? O sinal nos comunica tudo isso quando vemos a placa. A palavra PARE, nessa situação, é um texto. Procure dar um tom lúdico a essa reflexão com as crianças. Na prática Sugestão de encaminhamento Primeiro encontro: conversa na sala e passeio na escola Converse com a turma sobre usos da escrita no ambiente da sala de aula. Pergunte onde identificam a escrita: nas paredes da sala, na lousa, nos materiais, nos corredores da escola. As respostas podem variar e incluir desenhos e símbolos. Após a conversa, convide as crianças para um passeio pela escola, direcionando os olhares aos usos da escrita no ambiente: avisos em cartazes nos corredores, listas de produtos da cantina ou o cardápio da merenda, calendários, placas ou letreiros com o nome da escola ou identificando salas da administração. Questione o que são e para que servem esses materiais no ambiente. Segundo encontro: passeio pela rua e registro fotográfico Num segundo momento, organize um passeio pela rua da escola ou por algumas ruas dos arredores. Prepare a câmera fotográfica. Peça que as crianças identifiquem as escritas no ambiente. Leia com elas(es) placas, avisos, outdoors e discutam suas funções e significados naquele contexto. Fotografe o que identificarem. Mesmo que apontem placas de trânsito compostas de símbolos e desenhos, é interessante registrar para uma conversa posterior. O passeio também pode ser acompa- 25 nhado de registro no caderno: as(os) alunas(os) anotam, à sua maneira, o que encontraram de escrita nas ruas próximas da escola. Na volta para a sala de aula, reveja as fotos com as(os) alunas(os). Se possível, projete-as ou reveja as anotações do grupo. A ideia é diferenciar a escrita de símbolos e desenhos em anúncios e placas, e discutir os sentidos expressos por eles. Você pode levar exemplos selecionados previamente, identificando com a turma as palavras, as letras, os símbolos, as cores e os formatos utilizados, assim como seus sentidos e funções no contexto em que foram encontrados, por exemplo: Caso o entorno da escola tenha pouca escrita pública, vocês podem discutir como os arredores poderiam ser beneficiados com alguns textos escritos (avisos de perigo, de proibição de jogar lixo, de cuidado com crianças etc.). Terceiro encontro: registro de escritas no caminho escola-casa Peça às crianças que prestem atenção nas escritas presentes em seu caminho da escola para casa. Peça que registrem o que viram (podem reproduzir com desenhos ou pedir a uma pessoa adulta que as ajude a registrar). No dia seguinte, converse sobre o que identificaram como escrita e anote na lousa. Depois, discuta e mostre as diferenças entre símbolos, fotos, desenhos e escrita nos exemplos trazidos. É importante mostrar como, em alguns casos, esses diferentes sistemas gráficos se complementam para atingir seus objetivos. Você pode levar exemplos e discutir como a escrita se combina com desenhos, cores e símbolos. Quarto encontro: produção de placas, avisos e letreiros Proponha a criação de placas, avisos e letreiros para a sala de aula e para a escola usando cartolinas ou papel kraft e canetinhas coloridas. As crianças podem escolher um nome para a turma e fazer um letreiro para colocar sobre a porta de entrada da sala. Caso várias sugestões de nomes surjam, organize uma votação! As placas e os avisos podem trazer o universo lúdico da criança, com mensagens bem-humoradas: • “Cantinho da Alegria” (para espaço de brinquedos e brincadeiras); • “Dê asas à imaginação” (em local onde ficam livros ou mesmo na biblioteca); • “Proibido mau-humor na sala” etc. As crianças podem criar desenhos e símbolos para as mensagens. As placas e os avisos também podem registrar algumas regras de comportamento e convivência na escola. Placa de Trânsito Hora de avaliar Ao final dos encontros, monte uma roda de conversa com as crianças para que contem o que acharam das atividades: • Gostaram de passear pela escola? E pela rua? • O que acharam mais legal nos passeios? • Sabiam que tinha tantas coisas escritas e desenhadas nesses locais? 26 Referências Conheça o fascículo Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever?, de Angela Kleiman, sobre o trabalho na perspectiva do letramento para a inserção das crianças no mundo da escrita. Para ampliar • Para que acham que servem todas essas coisas? Também é interessante planejar atividades para verificar como os conhecimentos das crianças sobre a escrita se modificaram após essa oficina. Você pode pensar em algumas brincadeiras e perguntas para avaliar se já conseguem distinguir melhor o que são palavras e o que são desenhos e se já têm uma ideia mais definida das funções da escrita em determinadas situações do cotidiano. 27 Oficina 5 Jogo de Alfabetização O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • 15 cartelas com seis figuras (cada cartela) e as palavras escritas correspondentes. • 30 fichas com palavras escritas que têm o mesmo som inicial das palavras que dão nome às figuras das cartelas. • 1 saco para guardar as fichas de palavras. • Compreender que as palavras são compostas por unidades sonoras que podem ser pronunciadas separadamente. • Observar semelhanças sonoras nas sílabas iniciais de palavras. • Perceber que palavras diferentes têm partes sonoras iguais. • Identificar a sílaba como unidade fonológica. • Desenvolver a reflexão sobre as propriedades sonoras das palavras (consciência fonológica) e sua forma escrita. • Atividade lúdica para promover a percepção das relações entre os sons das palavras e suas formas escritas. Oficina adaptada com base nos materiais do CEEL/UFPE; MEC. Manual didático – Jogos de Alfabetização. Pernambuco: 2009. Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Desenvolver a compreensão das crianças em alfabetização de que as palavras, sonoras e escritas, são compostas de partes, e promover a percepção das relações grafofonêmicas (letras e sons) nas palavras. • Anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala de aula, sala de atividades ou sala de leitura. • 1 momento semanal de 40 minutos a 1h. Voltar para o sumário 28 Início de conversa Este jogo busca pôr em prática, de forma divertida, a análise de palavras, sons e sílabas semelhantes. Por meio dele, as crianças são estimuladas a observar propriedades do sistema alfabético (como ordem, estabilidade e repetição de sons/letras nas palavras) e semelhanças sonoras (sílabas iguais, rimas, aliterações etc.). Assim, brincam com as palavras de maneira criativa e criadora. Na prática Sugestão de encaminhamento Jogando bingo com palavras As crianças podem jogar o bingo individualmente ou em duplas. Cada criança ou dupla recebe uma cartela. Para começar, combine as regras do jogo. Explique que dentro do saco estão fichas com palavras (imagem abaixo) que começam com o mesmo som das palavras que elas têm nas cartelas. Diga que você vai tirar uma ficha por vez e ler em voz alta para elas. 29 A tarefa é circular as palavras que começam com som igual. Dê alguns exemplos e escreva na lousa, circulando os sons iniciais parecidos (como casa, cachorro, caminho; janela, jaula, jabuticaba) para as crianças se familiarizarem com o jogo. Peça que deem exemplos também. A seguir, leia o texto das regras para que entrem em contato com o gênero instruções de jogos: 30 Jogos de alfabetização: material relacionado à oficina Os recursos didáticos apresentados neste manual têm como objetivo ajudar a(o) professora(or) a desenvolver sua prática pedagógica na alfabetização infantil. As Orientações para a(o) professora(or) que acompanham cada jogo, trazem conceitos sobre a natureza do sistema alfabético de escrita e os modos como as crianças se apropriam dessa ferramenta cultural. Fruto da parceria entre o Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e o Ministério da Educação (MEC), o livro também incentiva as(os) professoras(es) a criar outros jogos, brincadeiras e recursos lúdicos para dinamizar a aprendizagem no ciclo de alfabetização. Acesse a publicação no endereço eletrônico: Referência: CEEL/UFPE – Centro de Estudos em Educação e Linguagem da Universidade Federal de Pernambuco; MEC – Ministério da Educação. Jogos de Alfabetização. Pernambuco, 2009. Certificando-se de que elas entenderam como se joga, comece a retirada e a leitura das fichas, uma a uma. Durante o jogo, percorra a sala para verificar as dificuldades; caso restem dúvidas, retome as regras, lendo e explicando. Ao sortear as palavras, faça a leitura em tom alto, pausadamente, e procure sempre dar um tempo para que todas(os) as(os) alunas(os) possam ouvi-las claramente e compará-las às palavras e imagens impressas em sua cartela. No caso de o jogo ser em duplas, sugira que as crianças conversem sobre suas hipóteses, antes de marcar a palavra cantada. Quando alguém completar a sua cartela, gritará: BINGO! Você pode escrever as palavras na lousa para conferência do que foi assinalado e fazer as intervenções necessárias. Então o jogo pode reiniciar com novas cartelas, se estiverem animadas(os). Ao final do jogo, proponha a reflexão sobre as partes semelhantes entre as palavras e peça que as(os) estudantes identifiquem a sílaba oral inicial e sua forma escrita. A sílaba oral nem sempre corresponde à escrita. Exemplo: em BARRACA, a sílaba oral inicial é BA, enquanto na escrita é BAR, pois, por convenção, quando há dígrafo (RR/SS), as letras iguais são separadas. Possíveis variantes Podem-se criar cruzadinhas ou atividades de completar palavras com lacunas nas sílabas iniciais. As(Os) alunas(os) com hipótese alfabética podem, com base nas cartelas, formar outras palavras que começam com as mesmas sílabas orais. Se quiserem avançar, podem criar palavras com essas sílabas no meio ou no fim. Hora de avaliar Para ampliar 31 Oficina 6 E se fosse verdade? O QUE É MATERIAIS FINALIDADE EXPECTATIVA ESPAÇO ETAPA DE ENSINO DURAÇÃO • Livros de literatura já lidos pela turma. • Computadores conectados à internet. • Cartolinas e canetinhas coloridas. • Retomar contos tradicionais e fábulas já trabalhadas com a turma. • Selecionar e descrever alguns personagens desses textos. • Produzir perfil em rede social dos personagens escolhidos. • Criar interações dos personagens com base no enredo dos contos de origem. • Trabalhar leitura e produção de texto na hipermídia. • Oficina de criação, em rede social, de perfis de personagens de contos tradicionais, lendas, fábulas ou de outros gêneros literários previamente trabalhados em sala de aula. Autora da oficina: Paula Baracat De Grande, doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Material publicado originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec). • Desenvolver a leitura, a criação textual multimídia e a interação em rede social, explorando características do gênero escolhido. A escolha do enredo, dos personagens e das tarefas a serem executadas na rede social deve ser adequada à faixa etária da turma. • Anos iniciais do Ensino Fundamental. • Sala com acesso à internet. • 3 a 5 encontros de 1h a 1h30 cada. Voltar para o sumário 32 Início de conversa Que tal aliar as leituras literárias da turma ao uso das redes sociais digitais? A proposta desta atividade é que as(os) alunas(os) criem, em rede social, perfis de personagens de contos tradicionais, lendas, fábulas ou de outros gêneros literários previamente trabalhados. Com os perfis criados, faça com que esses personagens interajam digitalmente com base nas suas características e nos enredos das histórias escolhidas. Para isso, é necessário estudar o funcionamento da rede social, do texto da hipermídia e das histórias e personagens. As redes sociais têm políticas de uso, com indicação de idade mínima de suas(seus) usuárias(os), por exemplo, além de outras regras e recomendações. Informe-se sobre essas políticas de uso antes de propor a atividade. Na prática Sugestão de encaminhamento Hipermídia A internet é um espaço propício ao surgimento de gêneros textuais híbridos, com base na junção entre hipertexto e multimídia. O hipertexto caracteriza-se pelo acesso à informação de maneira não linear, propiciando a articulação entre diferentes textos e a interatividade com a(o) usuária(o)/leitora(or). Este, por sua vez, não pode usá-lo de maneira passiva, pois, “ao final de cada página ou tela, é preciso escolher para onde seguir” (SANTAELLA, 2007, p. 310). “A multimídia é formada pela justaposição de textos, sons e imagens. Ao se juntar com o hipertexto, configura a hipermídia. As unidades conectadas pela hipermídia podem aparecer na forma de diferentes modalidades e sistemas semióticos, como textos escritos, imagens, fotos, desenhos, gráficos, vídeos e sons de várias espécies” (LIMA; DE GRANDE, 2013). Retomando as histórias já conhecidas pela turma A atividade pode iniciar com uma conversa com toda a turma sobre as histórias já lidas na escola ou outras conhecidas pelas(os) estudantes. Questione: • Quais histórias já lemos na escola? • Quais vocês lembram? • Quais são as preferidas? PARA APROFUNDAR 33 Vá fazendo uma lista na lousa com os títulos das histórias. Com a lista pronta, proponha às(aos) estudantes: • E se os personagens dessas histórias fossem reais e tivessem perfil em rede social? • Que tal criarmos perfis para os personagens preferidos da turma? Converse com a turma sobre as redes sociais disponíveis e sobre aquelas mais utilizadas pelas(os) estudantes. Assim, a turma em conjunto escolhe em que rede social os perfis serão criados. Não é necessário ler novas histórias. É interessante retomar as já lidas pela turma, pertencentes a gêneros conhecidos e trabalhados. Assim, pode-se aprofundar o estudo das selecionadas, para que o perfil seja coerente com a construção do personagem no enredo original. Divida a turma em pequenos grupos. Cada grupo ficará responsável por um personagem. As escolhidas podem vir de uma mesma história ou de histórias diversas. Construindo os perfis dos personagens Peça que as(os) estudantes releiam as histórias escolhidas pelos grupos. Elas(es) devem fazer um estudo cuidadoso do personagem. Você pode orientá-las(os) a elaborar uma tabela com as características físicas e a personalidade de cada personagem, além de um registro dos fatos mais importantes de sua vida. Elas(es) podem dispor essas informações em um cartaz e expô-lo à turma. Ressalte que as características do personagem, principalmente as de personalidade, não são sempre explícitas na história. Os fatos do enredo e ações do personagem dão dicas de sua personalidade. Veja um exemplo: Branca de Neve • Características físicas: a mais bela do reino, pele clara, cabelos negros, lábios vermelhos; • Personalidade: bondosa, gentil, ingênua, frágil. Fatos importantes (segundo uma das muitas versões do conto) Muito amada pelos pais, perdeu a mãe quando era criança. Seu pai, o rei, casa-se com outra mulher, gananciosa, vaidosa e má. A rainha inveja a beleza e a juventude de Branca de Neve e planeja matá-la, ambicionando ser a mais bela do reino. A madrasta ordena que um caçador a leve à floresta e arranque seu coração. Ele, com medo da rainha, obedece. Mas, com piedade da princesa, conta a ela o plano da madrasta e a manda fugir. Branca de Neve, muito assustada, corre para a floresta e encontra uma casinha habitada por anões. Ela passa a viver com eles, mas a rainha descobre que a princesa está viva. Determinada a assassinar sua rival, a madrasta vai diversas vezes disfarçada até a casa dos anões. Por fim, consegue que Branca de Neve morda uma maçã envenenada. Quando os anões chegam, colocam a princesa em uma carruagem para levá-la ao castelo. No caminho, o corpo de Branca de Neve cai, um pedaço da maçã preso na garganta é expelido e ela acorda. A rainha má é desmascarada e punida com a morte. Na apresentação do cartaz, é interessante que os grupos expliquem como as características estão presentes no enredo. Você pode ajudá-los fazendo perguntas, por exemplo: • Por que vocês acham que Branca de Neve é ingênua? • Que fato confirma essa característica? 34 Após o debate sobre cada personagem, os grupos podem refazer e completar o cartaz. Ressalte que, com base neste cartaz, cada grupo vai construir o perfil na rede social e interagir com os outros personagens. O cartaz também é uma ótima oportunidade para trabalhar a caracterização de personagens ao longo do enredo, não só pela descrição direta, como também pela exploração de aspectos gramaticais, como a classe dos adjetivos e a concordância nominal, de acordo com a idade e o estágio de aprendizagem da turma. Caso haja interesse das(os) estudantes, os grupos podem fazer sátiras dos personagens, já planejando como eles serão apresentados na rede social. Por exemplo, as princesas dos contos de fadas poderiam ser mais independentes, não esperariam um príncipe encantado; a Bela Adormecida poderia “desmentir” o fato de que teria sido acordada pelo beijo do príncipe, e dizer que foi devido ao seu cheiro desagradável por não ter tomado banho há dias, andando pela mata a sua procura. As sátiras podem ser produzidas em sala de aula, compartilhadas e comentadas entre os grupos antes da criação dos perfis virtuais. Criando perfis em rede social Geralmente, é necessário ter um e-mail para cadastrar um novo perfil em rede social, além de nome, sobrenome e data de nascimento. Então, os grupos devem criar uma conta de e-mail para cada grupo antes de fazer o cadastramento na rede social. As(Os) integrantes também devem decidir o sobrenome e a data de nascimento do personagem, caso tais informações não constem nas histórias. O grupo precisa ainda selecionar uma imagem para colocar como a foto do perfil. As(Os) estudantes podem criar a imagem ou buscar alguma na internet. Ao preencher o perfil na rede social, os grupos devem se basear no cartaz com características e fatos importantes do personagem. Outros dados, como idade, local de nascimento e profissão, devem ser escolhidos pelos grupos de maneira coerente com a história de que o personagem participa. Após criar os perfis, um grupo deve adicionar como “amigos” os personagens dos outros grupos. Inicialmente, é interessante restringir a rede de amigos aos grupos das(os) estudantes. Você pode escolher um personagem e criar um perfil na mesma rede social para interagir com os grupos. Suas postagens e comentários podem ajudar os grupos a compreender a brincadeira e encarnar o personagem. Nunca poste como professora(or) no perfil da personagem. Interagindo na rede social Combine com a turma a frequência de postagens. Por exemplo, cada personagem deve fazer uma postagem por dia e comentar as postagens de pelo menos outros dois personagens. Cada dia, um membro do grupo é responsável pelo perfil. Incentive que os grupos postem links para sites relacionados ao personagem escolhido e registrem fatos da rotina do personagem que tenham relação com a história. As(Os) alunas(os) podem brincar com fatos da história. Os comentários nas postagens dos outros grupos sempre devem estar associados às características do personagem, nunca com a relação entre as(os) alunas(os). Para retomar o exemplo da Branca de Neve, as(os) alunas(os) poderiam criar postagens como “Cansei de brincar de casinha na floresta. Chega de ter medo da rainha má. Tô indo passear com as amigas Cinderela e Bela Adormecida” #prontofalei”. A linguagem é informal e pode explorar o internetês à vontade, como também o hibridismo de linguagens (usando vídeos, áudios, imagens etc.). Contudo, os usos da linguagem também dependem do perfil do personagem escolhido. Estimule-as(os) a imaginar como escreveria um rei ou uma criança, ou uma fada madrinha etc. Procure dar exemplos distintos com base nas falas dos personagens nas histórias lidas. As(Os) alunas(os) também podem fazer montagens, postando imagens dos personagens juntos, brincando com a relação entre as histórias e fatos da atualidade. Caso haja personagens da mesma 35 Referências bibliográficas ROJO, R.; MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012; ROJO, R. Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013; SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. história, os grupos podem recontá-la pelas postagens e comentários. Para ampliar 36

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